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As contribuições dos aspectos da complexidade para um ensino de física mais crítico* * Esse texto usará o gênero masculino considerando as regras da língua portuguesa, no entanto, inclui-se e respeita-se todas as identidades de gênero.

Contributions of complexity aspects to a critical physics teaching

Resumos

Um olhar mais crítico sobre os acontecimentos que permeiam nossa realidade requer formação escolar científica pautada por uma perspectiva mais complexa e reflexiva. Isso se dá especialmente ao considerar as Dimensões da complexidade nos contextos específicos da educação, do processo ensino-aprendizagem e da epistemologia, incorporadas em propostas de aulas de ciências mais abertas e dinâmicas. Considerando esses pressupostos, esse artigo identifica e analisa aspectos da complexidade (i) em uma proposta de aulas de Física sobre as emergências climáticas; e (ii) nas impressões sobre esta proposta de docentes da escola básica. Tomam-se elementos da Análise de Conteúdo para organização e interpretação dos dados. Dos resultados, destacam-se que os aspectos da complexidade quando incorporados em propostas de aulas tem potencialidade de aproximar o ensino das ciências das realidades dos sujeitos, em especial, porque dá abertura para reflexões mais participativas e criativas, embasadas em distintas esferas do conhecimento, como a científica, cotidiana, cultural, política e econômica. Nota-se também que as intencionalidades projetadas pelos pesquisadores são relativamente frágeis visto que grande parte dos conhecimentos conceituais é suprimida na análise docente acerca das aprendizagens de seus estudantes.Palavras-chave: Ensino de Física, Ambiente, Risco, Dimensões da complexidade.

Palavras-chave
Ensino de Física; Ambiente; Risco; Dimensões da complexidad


A more critical view about events in our reality requires a scientific school training guided by a more complex and reflective perspective. It occurs when considering the Complexity Dimensions in specific educational contexts, teaching-learning process, and epistemology, incorporated into a more open and dynamic scientific education approach. Acknowledging these assumptions, this publication identifies and analyzes aspects of complexity (i) in a scientific education approach for Physics classes on climate issues; and (ii) in the impressions about approaches of high school teachers. The elements of Content Analysis are contemplated to organize and interpret the data. From the results, it is highlighted that there is a potential in the aspects of complexity when incorporated in classes proposals, to bring science teaching closer to the subjects’ reality, in particular, because there is an opening to a more participatory and creative reflection, based on different spheres of knowledge – scientific, daily, cultural, political, economic, among others. It is also noted that the intentions projected by the researchers are fragile since a large part of the strictly conceptual knowledge is suppressed in the basic school’s teaching analysis about the learning of their students.

Keywords
Environmental Physics Teaching; Risk; Complexity Dimensions


1. Introdução

Uma sociedade permeada por diversas situações de riscos [11. U. Beck, Sociedade de Risco (Editora 34, São Paulo, 2010).] nos levam cotidianamente às tomadas de decisões que muitas vezes se baseiam em intuições e informações previamente manipuladas. Assim, por exemplo, promover as queimadas na floresta amazônica por influência de parte do empresariado do agronegócio ou optar por tratar uma pandemia com medicamentos sem eficácia comprovada cientificamente, mostram o quanto um ensino de ciências de qualidade é fundamental para o desenvolvimento de um país. Um ensino que se pauta por uma única visão de mundo, e de ciência, não parece saudável e tampouco honesto intelectualmente.

Essa atitude reducionista, determinista e simplificadora [22. E. Morin, Introdução ao pensamento complexo (Sulina, PortoAlegre, 2007), 3a ed.], baseada quase que exclusivamente em aulas transmissivas, está presente em muitas escolas e universidades (sendo reforçada pelas atuais conjecturas políticas) e o que vemos é uma geração de brasileiros que usam pouco da ciência escolar para tomar decisões em suas vidas. Uma educação que demanda um olhar mais crítico, próximo da realidade dos sujeitos [33. P. Freire, Pedagogia do oprimido(Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977).], pauta-se também por uma perspectiva mais complexa e reflexiva [44. G. Watanabe e M.R.D. Kawamura, Revista Brasileira de Pesquisa emEducação em Ciências 14, 255 (2014).] sendo, portanto, capaz de lidar com as incertezas e os distintos olhares produzidos pela própria ciência. Cabe destacar que essa abordagem não implica em negar a visão de grupos científicos específicos, mas de trazer à tona as descobertas/estudos e as formas de conduzir e propor modelos capazes de explicar as interações com o mundo. O olhar complexo implica em repensar a forma de lidar com a educação que, de antemão, não entra em rota de colisão com as outras perspectivas da ciência – determinista ou das indeterminações [55. M. Cini, Un paradiso perduto (Editora Feltrinelli, Itália, 1994).], mas pelo contrário, as complementam. Concordando com Morin1 1 Tradução nossa de “Le mode barbare de penser est dans la simplification, la disjonction, la séparation, la rationalisation qui excluent la complexité, la contradiction, l’inclusion, l’inséparation, l’irréel, le rêve et la poésie”. (Twitter Web App, 23:31, 31/07/2020). “o modo bárbaro de pensar está na simplificação, na disjunção, na separação, na racionalização que exclui a complexidade, a contradição, a inclusão, a inseparação, o irreal, o sonho e a poesia”.

A complexidade é um conceito que se constrói a partir das relações e inter-relações de um sistema, seja por comportamentos individuais ou coletivos; da união entre a unidade e a multiplicidade; e da organização de princípios (sistêmico, dialógico e hologramático) refletidos em pensamentos, valores e ações [66. E. Morin, Educar na era planetária: o pensamento complexo comométodo de aprendizagem no erro e na incerteza humana (Cortez, São Paulo, 2009).]. Historicamente a complexidade ganha alcança o status de paradigma nos anos de 1970, mas se constrói, influencia e é influenciada por reflexões sobre: (1930) biologia funcional e evolutiva; os organismos vivos reduzidos às relações de nível molecular; (1940) teoria da informação como medida de organização dos sistemas; teoria da cibernética sobre causa-efeito; teoria sistêmica considerando os princípios de interação/interdependência, totalidade e feed-back/retroação; (1970) teoria da auto-organização; conceito de autopoiese; princípios dialógico, sistêmico e hologramático; e (1980) teoria do caos determinístico que descreve estatisticamente elementos do sistema; e conceito da seta do tempo – quebra da simetria temporal [77. I. Prigogine, Entre o tempo e a eternidade (Companhia das Letras,São Paulo, 1992)., 88. I. Prigogine, Enciclopédia Einaudi: Sistema (Imprensa Nacional,Casa da moeda, Lisboa, 1993)., 99. I. Prigogine, O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza(Editora da UNESP, São Paulo, 1996)., 10,10. E. Scheider e J. Kay, em O que é a vida? 50 anos depois,editado porM. P.Murphy e L.A.J. O´Neill (Editora UNESP,São Paulo, 1997), p. 186. 1111. N. Fieldler-Ferrara em Simpósio Nacional de Ensino deFísica, XV, Conferência (Curitiba, 2003).].

E de que forma essa discussão pode chegar às escolas? Parece essencial incorporar a complexidade nas distintas dimensões que envolve o processo de ensino-aprendizagem, o que remete às Dimensões e às Ênfases [1212. G. Watanabe, Aspectos da complexidade: contribuições daFísica para a compreensão do tema ambiental. Tese de doutorado,Universidade de São Paulo, São Paulo (2012).]; além de considerar a necessidade de tratar uma temática que, dentre outros aspectos, propicie o estudo de diferentes pontos de vistas (científico, econômico, político etc.) e elucide o processo de construção da ciência atual (particularmente, a problemática socioambiental) [1313. J. E. García, Educación ambiental, constructivismo ycomplejidad. (Díada Editora S. L., Espanha, 2004)., 1414. G. Watanabe, em Educação é a base? 23 educadores discutem a BNCC,editado por F. Cássio e R. Catelli Jr. (Ação Educativa, SãoPaulo, 2019) v. 1, p. 269., 1515. G. Watanabe e M.R.D. Kawamura, Caderno Brasileiro de Ensino de Física37, 428 (2020).]. De antemão, as Dimensões referem-se aos espaços nos quais a complexidade deve ser abarcada para promover uma formação mais crítica e reflexiva; e as Ênfases voltam-se às possíveis abordagens de atividades que articulam esses espaços no contexto escolar.

Diante disso, esse artigo investiga alguns aspectos da complexidade presentes nas Dimensões e na Ênfase Dinâmica [1212. G. Watanabe, Aspectos da complexidade: contribuições daFísica para a compreensão do tema ambiental. Tese de doutorado,Universidade de São Paulo, São Paulo (2012).], em uma proposta de aula sobre emergências climáticas e nas falas dos docentes. A intenção com isso é encontrar alguns aspectos da complexidade que efetivamente têm significado para os docentes e seus alunos no processo de construção do conhecimento escolar para que, então, possa se alcançar a formação aqui desejada. Destaca-se que este artigo é parte do resultado de tese de doutorado e um conjunto de ações e reflexões realizados em dois pós-doutorados sobre o tema complexidade e ensino.

2. As Dimensões para a Complexidade Refletidas na Ênfase Dinâmica

As Dimensões para a complexidade surgiram da necessidade de tratar as questões socioambientais respeitando sua própria natureza, ou seja, considerando um conhecimento aberto e dinâmico, em plena construção científica. Elas são frutos de uma pesquisa que esteve preocupada com a prática escolar nos ensinos básico e superior, olhando para a sua inserção na formação do indivíduo (Dimensão Educacional), no contexto da sala de aula (Dimensão Ensino-Aprendizagem) e na abordagem de situações longe do equilíbrio e dinâmicas (Dimensão Epistemológica).

A Dimensão Educacional procura responder à questão “Quais perspectivas formativas contemplar visando a complexidade?”. Ela preconiza uma formação na qual o estudante é protagonista na construção do conhecimento, considerando que esse conhecimento influencia comportamentos, valores e ações. Alguns aspectos que podem contribuir para essa formação fundamentam-se nas ideias de Beck [11. U. Beck, Sociedade de Risco (Editora 34, São Paulo, 2010).], García [1313. J. E. García, Educación ambiental, constructivismo ycomplejidad. (Díada Editora S. L., Espanha, 2004)., 1, 1616. J.E. García, Hacia una teoría alternativa sobre loscontenidos escolares (Díada Editora S.L., Espanha, 1998).] e Morin [22. E. Morin, Introdução ao pensamento complexo (Sulina, PortoAlegre, 2007), 3a ed.; 66. E. Morin, Educar na era planetária: o pensamento complexo comométodo de aprendizagem no erro e na incerteza humana (Cortez, São Paulo, 2009).]; além de autores que tratam da educação ambiental e de aspectos da criticidade. Especialmente, as reflexões de Beck [11. U. Beck, Sociedade de Risco (Editora 34, São Paulo, 2010).] contribuem para pensar espaços nos quais os indivíduos podem agir e se posicionar, revendo seus posicionamentos sempre que às situações impostas pela sociedade de risco (aquela na qual os riscos não podem ser percebidos, previstos, calculados e compensados) emergem. Trata-se portanto de uma formação pautada pelo conceito da reflexividade, em que se projeta sujeitos auto-confrontadores, capazes de agir diante de situações de imprevisíveis, identificando e usando espaços de ações caracterizados pelas subpolíticas. Com a abordagem de Morin [22. E. Morin, Introdução ao pensamento complexo (Sulina, PortoAlegre, 2007), 3a ed.; 66. E. Morin, Educar na era planetária: o pensamento complexo comométodo de aprendizagem no erro e na incerteza humana (Cortez, São Paulo, 2009).] busca-se uma formação pautada por uma atitude anti-reducionista, capaz de identificar o discurso dogmático, a utilização das linguagens simplificadora e reducionista diante de situações complexas; e para lidar com as incertezas, paradoxos e contradições (pensamento complexo). Trata-se de reconhecer o tema socioambiental, por exemplo, enquanto complexo vinculado ao âmbito científico, social, econômico, político etc. Com García [1313. J. E. García, Educación ambiental, constructivismo ycomplejidad. (Díada Editora S. L., Espanha, 2004).; 1616. J.E. García, Hacia una teoría alternativa sobre loscontenidos escolares (Díada Editora S.L., Espanha, 1998).] essa busca também se converte em uma formação que incorpora aspectos da complementariedade, que está aberta para lidar com as trocas, que aceita negociar, estabelecer conexões e trabalhar em diferentes perspectivas. Implica em transitar desde um pensamento simples para outro mais complexo, tomando o conceito de complexificaçãoque incorpora a contextualização enquanto preocupação com a dimensão espacial (local-global) e a dimensão temporal (passado, presente e futuro).

A Dimensão Ensino-Aprendizagem procura responder à questão “Quais elementos, no âmbito escolar, podem promover uma formação no contexto da complexidade?”. Ela considera os espaços de ação na escola a partir de seu estatuto, função e currículo, incluindo as perspectivas para o trabalho docente como a promoção da autonomia para a elaboração de propostas de aulas. Esses aspectos implicam na opção pelo tratamento da questão socioambiental pelo viés temático, a considerando aberta, dinâmica e complexa. Trata-se de incorporar os pressupostos da Abordagem Temática [1717. D. Delizoicov, Alexandria Revista de Educação em Ciências eTecnologia 1, 37 (2008).; 1818. D. Delizoicov, J.A. Angotti e M.M. Pernambuco, Ensino deCiências: fundamentos e métodos (Cortez, São Paulo, 2002).; 1919. F. Rodriguez-Marín, J. Fernández-Arroyo e J. García,Enseñanza de las Ciencias 32, 300 (2014).]; e da complexificação do conhecimento escolar e as hipóteses de transição [1313. J. E. García, Educación ambiental, constructivismo ycomplejidad. (Díada Editora S. L., Espanha, 2004).; 1616. J.E. García, Hacia una teoría alternativa sobre loscontenidos escolares (Díada Editora S.L., Espanha, 1998).; 1919. F. Rodriguez-Marín, J. Fernández-Arroyo e J. García,Enseñanza de las Ciencias 32, 300 (2014).].

A releitura desses autores sugere a necessidade de: (i) redimensionar a função da escola, que deve instigar as transformações pautadas pela mudança, ou fortalecimento, de postura do estudante frente a sua realidade, incentivando, por exemplo, a participação nas comunidades; (ii) selecionar temas abertos e complexos conectados aos interesses e preocupações dos estudantes e comunidade escolar e que sejam capazes de mobilizar conteúdos científicos escolares, culturais, sociais etc.; (iii) construir o conhecimento escolar enquanto autônomo e com suas próprias dinâmicas [1313. J. E. García, Educación ambiental, constructivismo ycomplejidad. (Díada Editora S. L., Espanha, 2004).; 1616. J.E. García, Hacia una teoría alternativa sobre loscontenidos escolares (Díada Editora S.L., Espanha, 1998).]; (iv) propor aulas inspiradas na complexificação do conhecimento escolar, conceito metadisciplinar e hipóteses de transição [1313. J. E. García, Educación ambiental, constructivismo ycomplejidad. (Díada Editora S. L., Espanha, 2004).; 1616. J.E. García, Hacia una teoría alternativa sobre loscontenidos escolares (Díada Editora S.L., Espanha, 1998).; 1919. F. Rodriguez-Marín, J. Fernández-Arroyo e J. García,Enseñanza de las Ciencias 32, 300 (2014).], no processo de investigação temática [33. P. Freire, Pedagogia do oprimido(Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977).] refletido nos Três Momentos Pedagógicose naredução temática [1717. D. Delizoicov, Alexandria Revista de Educação em Ciências eTecnologia 1, 37 (2008).; 1818. D. Delizoicov, J.A. Angotti e M.M. Pernambuco, Ensino deCiências: fundamentos e métodos (Cortez, São Paulo, 2002).], e nas organizações temática e conceitual e percursos temáticos [1212. G. Watanabe, Aspectos da complexidade: contribuições daFísica para a compreensão do tema ambiental. Tese de doutorado,Universidade de São Paulo, São Paulo (2012).].

A Dimensão Epistemológica procura responder à questão “Que abordagem científica contribui para a compreensão das questões complexas?”. Trata-se, portanto, de considerar a questão da complexidade nas Ciências Naturais, superando as abordagens exclusivamente das físicas Clássica e Moderna, especialmente no que diz respeito à tentativa de impor o reducionismo, determinismo e simplificação para tratar a evolução de sistemas abertos e dinâmicos. Toma-se o termo “reducionista” no sentido de acreditar ser possível chegar à causa última dos fenômenos, por exemplo, a busca por uma Teoria Unificada. A complexidade remete: aos aspectos da Física do não equilíbrio que levam às reflexões acerca da relação homem-ciência, como por exemplo, o Segundo Princípio da Termodinâmica, a irreversibilidade e a seta do tempo [77. I. Prigogine, Entre o tempo e a eternidade (Companhia das Letras,São Paulo, 1992).; 88. I. Prigogine, Enciclopédia Einaudi: Sistema (Imprensa Nacional,Casa da moeda, Lisboa, 1993).; 99. I. Prigogine, O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza(Editora da UNESP, São Paulo, 1996).; 1010. E. Scheider e J. Kay, em O que é a vida? 50 anos depois,editado porM. P.Murphy e L.A.J. O´Neill (Editora UNESP,São Paulo, 1997), p. 186.; 2020. I. Prigogine, Ciência, razão e paixão (São Paulo,Livraria da Física, 2009).; 2121. I. Prigogine e I. Stengers, Entre o tempo e a eternidade (Companhiadas letras, São Paulo, 1992).; 2222. I. Prigogine e I. Stengers, A nova aliança (Editora Universidadede Brasília, Brasília, 1984).]; e às peculiaridades da vida considerando os sistemas vivos como complexos, auto-organizados e longe do equilíbrio, respeitando o viés histórico pautado pelas vertentes fisicalista, vitalista e organicista [55. M. Cini, Un paradiso perduto (Editora Feltrinelli, Itália, 1994).; 1010. E. Scheider e J. Kay, em O que é a vida? 50 anos depois,editado porM. P.Murphy e L.A.J. O´Neill (Editora UNESP,São Paulo, 1997), p. 186.; 2323. S. J. Gould, em O que é a vida? 50 anos depois,editadopor M.P. Murphy e L.A. J. O´Neill (Editora UNESP, São Paulo, 1997).; 2424. E. Schrödinger, O que é vida? O aspecto físico dacélula viva (Editora UNESP, São Paulo, 1997).]. Em suma, essa Dimensão busca contemplar os conhecimentos científicos escolares que permitam discutir: o acaso; o caos; a ordem-desordem; as conexões, as relações e inter-relações; as incertezas e os riscos; a seta do tempo, acontecimentos e irreversibilidade; que o todo não se reduz à soma das partes, mas apresenta propriedades que as partes não têm; sistemas abertos e dissipativos; tempo limitante e construtivo; limite dos sistemas vivos e ciclo da vida etc.

O Quadro 1 apresenta alguns aspectos da complexidade presentes nas Dimensões Educacional, Ensino-Aprendizagem e Epistemológica, adaptado de [1212. G. Watanabe, Aspectos da complexidade: contribuições daFísica para a compreensão do tema ambiental. Tese de doutorado,Universidade de São Paulo, São Paulo (2012).; 1515. G. Watanabe e M.R.D. Kawamura, Caderno Brasileiro de Ensino de Física37, 428 (2020).].

Quadro 1
Aspectos da complexidade presentes nas Dimensões

A partir dessas considerações é possível então conduzir um discurso para a formação escolar básica e superior. Isso levou, em pesquisas anteriores [1212. G. Watanabe, Aspectos da complexidade: contribuições daFísica para a compreensão do tema ambiental. Tese de doutorado,Universidade de São Paulo, São Paulo (2012).; 1515. G. Watanabe e M.R.D. Kawamura, Caderno Brasileiro de Ensino de Física37, 428 (2020).] ao que denominamos Ênfases. Elas transcendem aos temas específicos e conteúdos conceituais, estando mais voltadas aos tipos de abordagens. Ou seja, elas não se reduzem aos conceitos, ainda que os incorporem, podendo ser caracterizada como uma abordagem que expressa intenções do professor, dos alunos e dos agentes escolares. Assim, para além da estruturação dos temas e conceitos que são levados à sala de aula, parece clara a necessidade de privilegiar determinadas ênfases nas abordagens utilizadas. As Ênfases, que emergem da intersecção dos estudos sobre as Dimensões, estão indicadas na Figura 1. Elas referem-se ao estudo dos aspectos dinâmicos, temporais, entrópicos e das inter-relações.

Figura 1
Ênfases como articuladoras de uma abordagem escolar mais complexa.

Para este artigo, trata-se de discutir apenas a Ênfase Dinâmica. Essa Ênfase implica na superação das simplificações e reduções inerentes às generalizações físicas, procurando aproximar o conhecimento dos processos observados na realidade dos sujeitos. Nela estão incorporados os conceitos metadisciplinares de sistema e troca [1616. J.E. García, Hacia una teoría alternativa sobre loscontenidos escolares (Díada Editora S.L., Espanha, 1998).]. O conceito de sistema trata as propriedades intrínsecas e aspectos que surgem devido às interações, contribuindo para a promoção da diversidade que emerge das dinâmicas envolvidas nos processos. O conceito de troca confere ao sistema a capacidade de se autorregular para promover as entrada e saída de elementos como matéria, energia e informação, fundamentais para o desenvolvimento e manutenção do sistema vivo, por exemplo.

Essa Ênfase trata do sistema em contínua transformação em contrapartida à visão estática de mundo (por exemplo, no caso das emergências climáticas tomam-se cenários estáticos da natureza estabelecendo parâmetros de análise restritos que não sofrem alterações ao longo do tempo). Trata-se de discutir as interações dinâmicas, que implicam na movimentação e mudanças, conduzindo ao entendimento de que os sistemas sofrem influências incontáveis e de naturezas distintas, deste modo é limitante prever com exatidão todas as evoluções das variáveis desse sistema. Essa abordagem também dá margem para discutir a variação da entropia local causada pelas interferências humanas, afetando com maior ou menor intensidade o sistema global.

A partir dessas considerações, é possível que as discussões sobre as emergências climáticas sejam (re)contextualizadas, já que não se trata mais de procurar um valor para a temperatura da Terra tomando como referência estrita à Termodinâmica Clássica. Trata-se de compreender que a temperatura não se define por si mesmo, mas depende da análise dos fluxos de entrada e saída de energia do planeta. Significa ainda considerar que o sistema Terra está em equilíbrio dinâmico e que, portanto, a temperatura a ser considerada é uma média, sujeita a flutuações. Outro aspecto a ser considerado refere-se à análise sobre a interferência das ações humanas na natureza, ou seja, implica confrontar a ação humana com a dinâmica natural. Para essa discussão é possível estudar a produção do gás carbônico (CO2), analisando a sua dinâmica na atmosfera a partir dos conceitos de concentração e tempo de residência. Assim, trata-se de discutir os processos e não apenas os resultados de modelos pautados por variáveis controladas.

Ainda no contexto das emergências climáticas, mas com foco na manutenção dos sistemas vivos, é possível discutir as interações dinâmicas nos sistemas e subsistemas que podem levar à modificação ou perpetuação das espécies. Essa abordagem leva ainda às discussões sobre autorregulação; resistência dos sistemas vivos ao deslocamento do estado de equilíbrio considerando que as condições dinâmicas podem promover processos de auto-organização que dissipam gradientes; obtenção de energia de alta qualidade de fora do sistema (exergia) para a manutenção do estado organizado dos sistemas vivos, entre outros.

Em suma, a Ênfase Dinâmica busca promover uma reflexão considerando, no caso das emergências climáticas, as variáveis que caracterizam um sistema em contínuo movimento; os diferentes fatores que influenciam a dinâmica terrestre, como a circulação básica e interferências nessa circulação; as variáveis interdependentes como circulação, temperatura, pressão; as concentrações de gases como valores médios temporais e tempos de residência (fluxos de entrada e saída da atmosfera); a dispersão e difusão dos gases; os distintos fatores que influenciam os sistemas vivos; a dinâmica de transformação que o ser humano impõe sobre a natureza; e a contínua interação entre as espécies e o meio e seus diferentes ambientes. Todos esses parâmetros implicam deixar evidente que o ambiente está em contínua ação, movimento, interação e transformação.

3. Métodos

Para esse estudo foi primeiramente produzida a proposta de aulas acerca das emergências climáticas, especificamente, aquecimento global, pelo Grupo de Ensino de Ciências e suas Complexidades (GrECC). A partir disso, do ponto de vista dos professores investigados, foram identificadas as características dessa proposta que podem mobilizar os estudantes em suas aprendizagens.

O processo de produção e análise da proposta de aulas constou de três etapas: (i) delimitação de elementos que podem promover uma formação para a complexidade considerando os referenciais teóricos presentes nas Dimensões e na Ênfase Dinâmica (esses dados foram denominados Projetado por se tratar dos aspectos da complexidade a formação desejada); (ii) a efetiva construção das aulas considerando alguns desses elementos da complexidade (esses dados foram denominados Efetivado por se tratar dos aspectos da complexidade que foram efetivamente incorporados na proposta de aula); e (iii) análise das respostas de quatro professores do ensino básico – três da Física e um de Ciências/Matemática – que tiveram contato com a proposta de aulas, seja porque participaram de sua elaboração ou porque a aplicaram em suas aulas de Física (esses dados são denominados Interpretado por se tratar dos aspectos da complexidade indicados pelos docentes). Em (iii), a questão para coleta de dados refere-se a “Quais as características dessa proposta de aulas que podem promover maior interesse da(o)s estudantes?”. Os dados coletados foram obtidos a partir das falas/respostas dos professores, considerando suas ideias acerca dos elementos que podem promover uma visão mais crítica.

As informações obtidas foram analisadas por meio da Análise de Conteúdo (AC) [2525. L. Bardin, Análise do Conteúdo (Edições 70, SãoPaulo, 2016).]. A AC visa a sistematização do processo de análise através da leitura do texto dividido/organizado em unidades a serem estudadas em suas individualidade (unidade de registro) e suas relações (unidades de contexto). A análise dos dados ocorreu nos dois momentos, a saber: durante os estudos dos referenciais teóricos e a produção da proposta de aulas e após aplicação e/ou aproximação dos professores investigados à essa proposta.

4. Resultados e Análise: Aspectos da Complexidade na Proposta de Aulas e nas Considerações dos Professores

4.1. Resultados e análise: aspectos dacomplexidade na proposta de aulas e nas considerações dos professores

A proposta de aulas2 2 A proposta encontra-se no site: com foco nas emergências climáticas, pautadas no conceitos da Física e na temática do aquecimento global [1414. G. Watanabe, em Educação é a base? 23 educadores discutem a BNCC,editado por F. Cássio e R. Catelli Jr. (Ação Educativa, SãoPaulo, 2019) v. 1, p. 269.], foi produzida pelo GrECC que é conduzido por um equipe de professores, pesquisadores e alunos da graduação e pós-graduação de distintas instituições públicas. Essa produção já foi aplicada em escolas, em distintas realidades, o que, de certa forma, traz alguns indicadores consistentes para as considerações tecidas aqui.

A proposta de aulas foi construída pensando nos estudantes Ensino do Médio, no entanto, a sua organização dá margem para uso em outras etapas de formação. Ela está estruturada em cinco Momentos, cada um dos quais organizados em Aulas. As Aulas correspondem ao desenvolvimento de uma atividade e não efetivamente a uma aula no sentido escolar. Os Momentos estão dispostos sequencialmente para ajudar o docente em sua organização, embora não seja necessário contemplá-los nesta ordem. Isso indica que a proposta não é linear, buscando dar ao docente possibilidades de percursos a partir da estrutura apresentada. A liberdade em conduzir as aulas é uma das características centrais do projeto, o que promove uma visão mais aberta do fazer escolar. Os Momentos também procuram ampliar o grau de relações (transitando desde discussões mais simples para outras mais complexas). Eles se referem: (1) Questões sobre o aquecimento global (AG); (2) Medindo a temperatura do entorno da escola; (3) Os conceitos de Física para discutir o AG; (4) AG: algumas polêmicas e discussões; e (5) Sistematização e síntese: o que dizer sobre o AG? A estrutura geral da proposta está no Anexo 1 Anexo 1 Percurso sobre as emergências climáticas (aquecimento global). .

O Momento 1 está organizado para aproximar os estudantes do tema a ser estudado, por isso, é proposto um levantamento dos conhecimentos primeiros dos alunos a partir de um conjunto de imagens e vídeos que retratam o assunto de forma catastrófica e/ou mais neutra. A partir desse levantamento são organizadas as ideias sobre as causas e consequências do aquecimento para, em seguida, propor a questão problematizadora que orientará a proposta: “A Terra está aquecendo? Como saber?”. Para responder essa questão é necessário coletar dados sobre a temperatura da Terra e estudar os conceitos científicos escolares que subsidiam os modelos sobre o aquecimento. E esses dois possíveis caminhos são sugeridos aos estudantes nos Momentos 2 e 3, respectivamente.

No Momento 2 os estudantes realizam medidas de temperaturas máxima e mínima no entorno da escola, durante um período de dias definido em classe. Essa discussão faz com que as condições de contorno em uma pesquisa sejam claramente delimitadas. Quanto à coleta de dados, a intenção é discutir as medidas realizadas e estimar a média da temperatura da Terra, considerando os erros e incertezas dos sistemas. Sugere-se aqui a construção e análise de gráficos. Devido ao tempo necessário para a coleta de dados, a análise dos resultados ocorre somente na Aula 5 do Momento 3.

O Momento 3 trata dos conhecimentos científicos escolares. Nas Aulas 1, 2, 3 e 4 são estudados os conceitos como sistema aberto, balanço dos fluxos de energia e equilíbrio dinâmico, mas para isso são revisitados os conceitos como calor, temperatura, energia etc. Discute-se o balanço dos fluxos de energia na Terra a partir de conceitos como equilíbrio dinâmico, radiação solar, espectro eletromagnético, processos de reflexão, refração, espalhamento e absorção. Especificamente, na Aula 4 são abordadas as representações sobre o efeito estufa, tomadas de sítios da internet e analisados considerando os possíveis equívocos. Na Aula 5, como previamente anunciado, discutem-se os dados coletados no Momento 2.

No Momento 4, com foco no posicionamento crítico e criativo dos estudantes, propõe-se discutir as visões polêmicas que envolvem o tema, dos pontos de vistas dos ortodoxo, cético, governo e sociedade. Sugere-se que as discussões tomem como referência os conhecimentos científicos escolares e os argumentos das outras esferas do conhecimento (cultural, política, social, econômica etc.). Algumas questões para debate são: “Quais os principais argumentos que sustentam o ponto de vista dos cientistas sobre AG?” “Quais são as ações do governo frente à questão ambiental?” “Quais são os interesses da sociedade frente às essas ideias?” e “O que a sociedade espera do país nos próximos anos?”.

No Momento 5 discute-se a relação ‘Ser’ e ‘Ter’, de forma que o estudante possa (re)analisar a intervenção humana sobre o planeta, considerando as ações de degradação local e global e o conceito de um sistema complexo, dinâmico e sujeito a muitas variáveis interdependentes, com história e evolução temporal na escala dos milhões de anos. Ainda coloca-se como questão para reflexão o estilo de vida de alguns países tornando o ambiente como cenário para discussão sobre as desigualdades. Trata-se portanto, de analisar a relação de consumo estabelecida pela ordem econômica mundial. Essas duas vertentes – Terra enquanto um sistema dinâmico e complexo e a possibilidade da intervenção humana nesse sistema – conduzem à discussão acerca das emergências climáticas, trazendo para a aula a possibilidade dos alunos se posicionarem (“Afinal de contas, o que nos cabe nessa hora?”).

O Quadro 2 apresenta os principais elementos da complexidade refletidos pela Ênfase Dinâmica que foram incorporados na proposta de aulas (Efetivado).

Quadro 2
Principais elementos da complexidade refletidos pela Ênfase Dinâmica que foram incorporados na proposta de aulas.

4.2. Resultados e análise: aspectos dacomplexidade na proposta de aulas e nas considerações dos professores

A produção da proposta de aulas teve diversas contribuições ao longo dos cinco anos de existência. Nesse sentido, alguns professores (identificados como P1, …, Pn) tiveram a oportunidade de interagir com a proposta, seja em sua construção ou aplicação. Essa interação está refletida nas respostas dos quatro professores, a saber: P1 produziu e aplicou na escola pública; P2 produziu e avaliou a proposta; P3 conhece e analisou a proposta; e P4 conhece a proposta. Nota-se que os professores estão organizados do maior para o menor tempo de dedicação à proposta (P1 é o mais antigo do GrECC).

Nas considerações de P1 as contribuições para a aprendizagem está na estratégia, especialmente, por promover atividades de cunho experimental. A sensação de pertencimento e responsabilidade também é citada como aspecto relevante na aprendizagem, em especial, porque houve espaços para diálogos dos quais foi possível, por exemplo, estabelecer regras de coleta de dados em grupos. Esse tipo de ação pode promover ainda a responsabilidade acerca da aprendizagem do próprio estudante. P1 também relata a interação dos estudantes em sala de aula ao estabelecer diálogos sobre as representações do efeito estufa, o que, por sua vez, pode levar ao exercício para uma formação mais participativa e crítica. Segundo P1,

As aulas práticas (com atividades ou experimentação) foram as que mais provocaram interesses nos alunos durante a proposta. No momento 2 ao manipular o termômetro, estabelecer os combinados com a sala para medir a temperatura em torno da escola e definir o responsável. Esse momento gerou um envolvimento dos estudantes entre si e com a proposta. E o momento 3 no desenvolvimento da atividade sobre efeito estufa (EF). A atividade constituía em compreender as representações abordadas pela mídia sobre o assunto EF, os alunos além de desenvolver sua tarefa participavam e interagiam com as representações dos colegas que eram diferentes. Portanto, os espaços da proposta de aulas que envolviam a participação e interação dos alunos entre si ou com material de de apoio promoveram maior interesse. (P1)

Nas considerações de P2 o que contribui para a aprendizagem é a temática controversa sobre o aquecimento global tratada sob o viés científico escolar. Também destaca a atividade experimental sobre a coleta de dados da temperatura do entorno da escola como potencial para levar a uma aprendizagem sobre o fazer científico, que inclui a leitura e tratamento de dados. Usa ainda como exemplo o debate no qual os estudantes têm a oportunidade de expressar duas idéias. Segundo P2,

(…) Tema socioambiental controverso: o aquecimento global é um tema que interessa aos alunos especialmente pela controversa. Muito se fala sobre o aquecimento global mas pouco se explica, de forma científica, o que é, porque ocorre e o que ocasiona. (…) Atividade experimental: a atividade de medição da temperatura utilizando termômetros de máximo e mínimo, embora bastante simples, leva os alunos a compreenderem melhor o que é a atividade científica. Não é apenas ler a temperatura corretamente, mas fazer o tratamento dos dados (leituras realizadas) e concluir algo a partir deles. Além disso, o próprio uso do termômetro de máximo e mínimo é algo diferenciado, pois a maioria dos alunos conhece apenas o termômetro hospitalar. (…) Debate: o debate promovido entre céticos, ortodoxos, governo e sociedade chama atenção por permitir que os alunos tenham oportunidade de se expressar, conheçam faces diferentes de um mesmo tema e possam formar sua opinião de forma mais rica e completa. (P2)

Nas considerações de P3 as contribuições para a aprendizagem emergem das questões problema que permeiam a proposta visto que elas promovem a inclusão da realidade dos estudantes e suas ideias sobre o tema; além de apresentar um caráter problematizador. Destaca que na proposta há uma perspectiva dialógica que procura trazer os sujeitos para a discussão e que os assuntos controversos contribui para isso. Aponta como aspecto relevante a resolução dos problemas tanto locais e globais, que se apresentam relacionados/interligados. Por fim, destaca os aparatos experimentais que podem despertar o interesse dos estudantes, além de contribuir para entender o ‘método científico de forma contextual’, ou seja, como meio para compreensão da realidade. Segundo P3,

A primeira característica que chama atenção, nos diferentes momentos apresentado nesta proposta, são as questões colocadas. Essas questões abarcam aspectos importantes, como a inclusão da realidade dos estudantes e da visão que possuem sobre os fenômenos estudantes, por exemplo, ao buscar elementos que definem a localidade em que os estudantes vivem, demonstrando o forte perfil dialógico, outro ponto, é que essas questões também apresentam caráter problematizador, e assumindo que são nessas nuances e controvérsias em que os conceitos científicos se inserem de forma mais necessária, a proposta corrobora a significação dos conceitos científicos e os apresenta como orientadores para a resolução dos problemas apresentados (locais e globais). Outra características marcante das propostas, é a utilização de aparatos experimentais que, além de despertar o interesse dos estudantes, sistematizam o método científico como uma forma de aprendizagem, não fora do contexto, mas que é utilizada como meio para compreensão da realidade, das questões sociais e históricas. (P3)

Nas considerações de P4 as contribuições para a aprendizagem está na tentativa de mostrar que a construção da ciência é um processo que se faz em um contexto também social; e ao permitir que o aluno investigue e reflita sobre os conceitos científicos escolares. Segundo P4,

Acredito que colocar a ciência sob a perspectiva de uma construção de saberes da sociedade, algo como inacabado, em construção, possibilita ao aluno encará-la como algo mais acessível à sua realidade. Além disso, a proposta permite ao aluno atuar de forma investigativa e reflexiva sobre diversos conceitos das ciências. (P4)

4.3. Os principais aspectos da complexidadecontemplados

Reunindo os resultados obtidos, ou seja, os principais elementos da complexidade que foram incorporados na proposta de aulas e nas considerações dos docentes é possível ter um panorama para compreender as proposições de aulas que podem ser mais ou menos efetivas na busca por uma formação mais crítica, pautada pela complexidade. Desse modo, aqui discute-se todo o processo, que parte de estudos de referenciais teóricos (aspectos Projetado) e da produção de aulas (aspectos Efetivado) até a percepção dos docentes (aspectos Interpretado). A Figura 2 indica os principais aspectos da complexidade identificados nessa trajetória. As cores das palavras indicam as aproximações com as Dimensões Educacional (DE – lilás), Ensino-aprendizagem (DEA – verde) e Epistemológica (DEp – laranja).

Figura 2
Aspectos da complexidade Projetado, Efetivado e Interpretado.

De forma mais geral, do ponto de vista dos referenciais (Projetado), a abordagem para a complexidade está organizada por meio das Dimensões e, especialmente, pela Ênfase Dinâmica. Logo, esses aspectos parecem ser os mais indicados para uma formação mais completa na perspectiva aqui defendida. Essa formação, como já salientado, volta-se à incorporação da complexidade em distintos contextos de ação dando abertura para reflexões mais críticas e criativas, embasadas em distintas esferas do conhecimento – científica, cotidiana, cultural, política, econômica etc. Do ponto de vista da proposta de aulas (Efetivado), nota-se interesse específico na formação do sujeito ao identificar as ideias dos estudantes que vão se tornando mais críticas ao longo do processo. Analisando os Momentos é possível notar que há diversos espaços para posicionamentos dos alunos e grande destaque para os conhecimentos científicos escolares nas palavras referência dessa categoria. Já do ponto de vista dos docentes (Interpretado) há referência especial às estratégias sugeridas na proposta e preocupação com o sujeito a ser formado. As estratégias destacadas apontam especialmente para atividades experimentais como uma forma de integrar e dialogar com os estudantes.

De forma mais detida, ao analisar esses grupos – Projetado, Efetivado e Interpretado – é possível encontrar alguns elementos que podem sinalizar para a necessidade de ajustes no processo educativo que visa uma formação mais crítica. Considerando as palavras referência da Dimensão Educacional (DA, em lilás na Figura 2), a convergência entre os grupos está na preocupação com a realidade dos estudantes. Uma educação para criticidade e um pensamento complexo ganham espaço especialmente nos grupos Projetado e Efetivado. Merece destaque a preocupação com a ideia de pertencimento apontada apenas pelos docentes (Interpretado), mostrando que as ações planejadas deram margem para incorporar os alunos no processo de ensinagem; e a ideia de responsabilidade acerca da aprendizagem do próprio estudante.

Considerando as palavras referência da Dimensão Ensino-Aprendizagem (DEA, em verde na Figura 2), a convergência entre os grupos aparecem na preocupação com o trabalho pautado por temas complexos, abertos, dinâmicos, socioambientais e/ou controversos. Está embutida aqui a preocupação com a interação em sala, à construção da ciência, a perspectiva dialógica e as questões problematizadoras. Quanto às estratégias mais comuns para os categorias Efetivado e Interpretado destacam-se as atividades experimentais e a relevância de considerar as ideias dos estudantes nas propostas de aula. Os docentes (Interpretado) salientam que os experimentos são os mais relevantes para a aprendizagem, mas indicam também o debate. Aspectos mais singulares dos grupos referem-se, por exemplo, no Projetado, aos conceitos específicos como complexificação conhecimento, hipóteses de transição, redução temática etc.; no Efetivado, às atividades identificadas como causa-efeito; e no Interpretado, à ideia do ‘método científico’ contextualizado (a construção da ciência é um processo realizado num determinado contexto social) e as questões sociais e históricas.

Considerando as palavras referência da Dimensão Epistemológica (DEp, em laranja na Figura 2), as convergências aparecem apenas nos grupos Projetado e Efetivado ao indicar elementos possíveis de serem estudados como balanço de fluxos, aspecto da complementariedade e variabilidade, concentração de gases, efeito estufa, erros e incertezas, aspectos temporal-espacial, local-global, sistemas aberto e complexo, distintas visões de mundo e ciência etc. Fica clara a preocupação, na categoria Projetado, em trazer à tona um universo conceitual amplo para subsidiar as escolhas na categoria Efetivado. A ausência de conceitos científicos escolares no discurso docente (Interpretado) pode ser indício de que a pergunta de pesquisa não foi bem entendida, mal formulada ou indica uma grande preocupação do professor com a forma de aprendizagem que, por sua vez, pode dar subsídios para os estudantes, mais adiante, aprofundarem outros conhecimentos. No entanto, isso não fica claro nas respostas, o que demandaria outra pesquisa.

5. Considerações Finais

Ao considerar as Dimensões para a complexidade (Educacional, Ensino-Aprendizagem e Epistemológica) é possível organizar aspectos que são essenciais para uma formação mais crítica, capaz de lidar com as incertezas e riscos que o mundo nos impõe. Essas Dimensões projetam aspectos explícitos e implícitos sobre a complexidade no processo de formação do sujeito, o que, por sua vez, pode contribuir para ajustar/criar/promover situações efetivamente possíveis para a formação desejada. Essas três Dimensões caminham conjuntamente e as interações que se estabelecem neste processo poderá alavancar as aprendizagens possíveis.

Nesse sentido, pensar nas escolhas docentes pautadas nas hipóteses de transição podem ajudar na organização de propostas de aulas capazes de incorporar um maior número de interações e relações. Os outros elementos identificados (complexificação do conhecimento escolar, percursos temáticos, redução temática, conceitos metadisciplinares, organizações temática e conceitual e percursos temáticos) também podem contribuir para ajustar o caminho das escolhas docente, complexificando os nós das aprendizagens possíveis. Destaca-se que a existência de muitos nós é fundamental quando se tem uma teia de conhecimentos muito bem estabelecida, mas os percursos mais simples podem ajudar, inicialmente, a alcançar uma formação mais complexa.

É relevante considerar que as escolhas dependem dos interesses e conhecimentos dos docentes. Nesse caso, parece essencial promover cursos e incluir reflexões nas matrizes curriculares das licenciaturas que incorporem a perspectiva da complexidade. Os resultados, especialmente, aqueles relacionados às ideias dos professores (Interpretado) apontam para isso. Interessante notar como os aspectos mais centrais da complexidade, como sistemas abertos ou pensamento complexo, não surgem nas justificativas dos docentes investigados. Esses resultados também mostram que as escolhas realizadas pelos integrantes do GrECC, ainda que com a intencionalidade de abarcar diversos aspectos da complexidade dos referenciais teóricos (Projetado) não são vislumbrados em sua plenitude pelos docentes. Isso ocorre porque é essencial uma mudança na formação de base, ou seja, que desde o início se incorpore outras visões da ciência para que no futuro os educadores possam formar cidadãos capazes de lidar com um outro mundo.

Por fim, destaca-se que a área de ensino de Ciências/Física vem mostrando diversos caminhos para essa mudança e isso poderá render bons frutos se formos capazes de incorporar as boas práticas. Importa ainda destacar que será fundamental entrar em debate para desconstruir os discursos mais atuais acerca da descomplexificação [2626. J.E.G. Díaz e G. Watanabe, Revista Linhas Críticas 25, 280(2019).].

Agradecimentos

As reflexões presentes aqui foram possíveis graças à parceria de longa data com a Maria Regina Dubeux Kawamura, a quem agradeço enormemente. Além disso, esse trabalho é resultado de pós-doutorado parcialmente financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) (processo n°2018/19136-3); e pelos Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (chamada 05/2019, processo n°440369/2019-3).

Anexo 1 Percurso sobre as emergências climáticas (aquecimento global).

Referências

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    J.E.G. Díaz e G. Watanabe, Revista Linhas Críticas 25, 280(2019).
  • *
    Esse texto usará o gênero masculino considerando as regras da língua portuguesa, no entanto, inclui-se e respeita-se todas as identidades de gênero.
  • 1
    Tradução nossa de “Le mode barbare de penser est dans la simplification, la disjonction, la séparation, la rationalisation qui excluent la complexité, la contradiction, l’inclusion, l’inséparation, l’irréel, le rêve et la poésie”. (Twitter Web App, 23:31, 31/07/2020).
  • 2
    A proposta encontra-se no site:

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2020
  • Revisado
    03 Nov 2020
  • Aceito
    03 Nov 2020
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