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Um jogo de tabuleiro utilizando tópicos contextualizados em Física

A board game using contextualized topics in Physics

Resumo

Este trabalho apresenta a elaboração e aplicação de um jogo de tabuleiro didático, como uma atividade de revisão, envolvendo conceitos de física relacionados ao cotidiano dos alunos. A pesquisa foi aplicada para 51 estudantes do terceiro ano do ensino médio, no final do primeiro semestre. A metodologia destaca a importância de se empregar o lúdico na exploração das habilidades de argumentação e na relação social dos estudantes que, normalmente, não são contempladas em uma aula tradicional. Observou-se um progresso nas relações entre os próprios alunos e também entre alunos-professor, durante a elaboração conjunta das respostas às perguntas contidas nas cartas do jogo. Cabe destacar a importância destas interações nas discussões teóricas dos conteúdos de física e na construção das relações entre esses conceitos e o seu dia-a-dia. Após a aplicação da atividade, o professor descreveu que houve um maior interesse dos estudantes pela disciplina de física, além de uma postura mais crítica, observada pelos diálogos em sala de aula, durante a finalização da disciplina.

Palavras-chave:
Ensino de Física; atividade lúdica; relação aluno - professor

Abstract

This work presents the development and application of a didactic board game, as a review activity, involving physics concepts related to the students' daily lives. The survey was applied to 51 third year high school students at the end of the first semester. The methodology highlights the importance of employing playfulness in the exploration of argumentation skills and in the social relationship of students, which is not normally included in a traditional class. Progress was observed in the relationships between the students themselves and also between teacher-students, during the joint elaboration of the answers to the questions contained in the cards present in the game. It is worth highlighting the importance of these interactions in the theoretical discussions of the physics content and in the construction of the relationships between these concepts and their daily lives. After the application of the activity, the teacher described that there was a greater interest of students in the discipline of physics, in addition to a more critical posture, observed by the dialogues in the classroom, during the completion of the discipline.

Keywords:
Physics teaching; play activity; student - teacher relationship

1. Introdução

Os pesquisadores da área de Ensino têm uma preocupação constante com relação aos métodos pedagógicos a serem usados em sala de aula, e a principal colocação deles envolve o processo falho de ensino e aprendizagem, sendo a área de Exatas e, neste caso em especial, o Ensino de Física no Ensino Médio um dos mais atingidos. Os motivos para a baixa assimilação dos conteúdos pelos estudantes são variados e vêm sendo discutidos há anos, indo desde os contextos sociais, políticos e econômicos [1][1] G.S. Nunes, Revista Acadêmica 2, 57 (2000).,[2][2] E.C. Ricardo e A. Zylbersztajn, Caderno Brasileiro Ensino de Física 19, 351 (2002)., influenciados pelos efeitos de um ensino fundamental que não estimula a curiosidade e o aprendizado de Ciências. Segundo Silva et al. [3][3] J.B. Silva, G.L. Sales e J.B. Castro, Revista Brasileira de Ensino de Física 41, e20180309 (2019)., um fator que tem contribuído significativamente para a desmotivação dos estudantes em relação à Física, é o emprego de um modelo passivo/expositivo dos conteúdos abordados. Geralmente esta metodologia vem acompanhada por uma didática centrada no professor e o conteúdo costuma utilizar métodos que empregam a resolução de exercícios e a memorização de fórmulas matemáticas, visando apenas a realização das provas de vestibulares.

Os pesquisadores na área de Ensino de Física têm apresentado diversos trabalhos abordando o pensamento de Vygotsky, de sua teoria sócio-interacionista [4][4] R.G. Barbosa e I.L. Batista, Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências 18, 49 (2018).. Segundo suas ideias, na interação de um sujeito com outros indivíduos em sociedade ocorre uma simbiose dos hábitos e signos culturais entre eles que auxiliam no desenvolvimento e formação do seu pensamento e de sua personalidade. O ambiente escolar representa um espaço importante para esta formação, pois é um local que propicia a difusão do conhecimento adquirido pela humanidade, contribuindo para o desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores [5][5] T.C. Rego, Vygotsky: Uma perspective histórico-cultural da educação (Editora Vozes, Petrópolis, 2007)..

A escola permite a seus alunos que possam compreender os processos mentais a que são submetidos (processos metacognitivos). As discussões dos conteúdos didáticos é um promotor para as zonas de desenvolvimento proximal (ZDP) do aluno. A ZDP é a relação entre o nível de desenvolvimento real, o qual é constituído pelas funções que estão consolidadas pelo indivíduo e que permite realizar as tarefas com autonomia, e o nível de desenvolvimento potencial, que é caracterizado pelas funções que estariam em estágio embrionário, ainda não amadurecidas no processo de aprendizagem [6][6] L.S. Vygotsky, Pensamento e Linguagem (Editora Martins Fontes, São Paulo, 1987).. Quando o aluno apresenta dificuldades em sua aprendizagem, seus colegas ou mesmo o docente podem auxiliar nas condições apropriadas para ajudar a superá-las no decorrer de sua formação psicológica. Porém, em muitos casos, esta barreira tem se tornado intransponíveis aos alunos em relação aos conhecimentos físicos, tanto no nível médio quanto no superior [4][4] R.G. Barbosa e I.L. Batista, Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências 18, 49 (2018).,[7][7] R. Leinonen, M.A. Asikainen e P.E. Hirvone, Research in Science Education 42, 1165 (2012)..

A zona de desenvolvimento proximal (ZDP) é a parte do aprendizado relacionado ao desenvolvimento psicológico na qual está vinculado a aprendizagem, e este é caracterizado por meio da expressão da capacidade potencial do aluno em executar um desafio proposto para um determinado problema através do apoio de outro indivíduo. Estritamente, a ZDP segundo Vygotsky é:

“[…] é a distância entre o atual nível de desenvolvimento determinado pela capacidade de resolver um problema individualmente e o nível de desenvolvimento potencial determinado por meio da capacidade de resolver um problema sob a orientação de um adulto ou em colaboração com um colega mais capaz”. [6][6] L.S. Vygotsky, Pensamento e Linguagem (Editora Martins Fontes, São Paulo, 1987).

Para Vygotsky a definição de aprendizado para o aluno ocorre quando a ação ou a mediação de outro indivíduo for eficaz para o seu desenvolvimento, pois as funções mentais foram construídas na fase de amadurecimento. A importância do ambiente escolar é significativa para o desenvolvimento do aluno, e diversas habilidades são incorporadas somente nas disciplinas de Ciências. Segundo Oliveira [8][8] J.S. Oliveira, M.H.F.B. Soares e W.F. Vaz, Revista Química Nova na Escola 37, 285 (2015)., o ambiente escolar deve atender plenamente ao seu desenvolvimento:

“A implicação dessa concepção de Vygotsky para o ensino escolar é imediata. Se o aprendizado impulsiona o desenvolvimento, então a escola tem um papel essencial na construção do ser psicológico adulto dos indivíduos que vivem em sociedades escolarizadas. Mas o desempenho desse papel só se dará adequadamente quando, conhecendo o nível de desenvolvimento dos alunos, a escola dirigir o ensino não para etapas intelectuais já alcançadas, mas para estágios de desenvolvimento ainda não incorporados pelos alunos, funcionando realmente como um motor de novas conquistas psicológicas. Para a criança que frequenta a escola, o aprendizado escolar é elemento central no seu desenvolvimento”. [8][8] J.S. Oliveira, M.H.F.B. Soares e W.F. Vaz, Revista Química Nova na Escola 37, 285 (2015).

Neste tema, constantemente discutido na Área de Ensino de Ciências, Gonçalves e Pimenta [9][9] C.L. Gonçalves e S.G. Pimenta, Revendo o ensino de 2° grau: propondo a formação de professores (Cortez, São Paulo, 1992), 2ª ed. já apontavam os problemas com relação ao sistema educacional:

“A educação brasileira é marcada por um conjunto de deficiências e problemas, que estão a requerer urgentes mudanças, e em relação às ciências naturais o problema é ainda mais grave”. [9][9] C.L. Gonçalves e S.G. Pimenta, Revendo o ensino de 2° grau: propondo a formação de professores (Cortez, São Paulo, 1992), 2ª ed.

Contudo, mais de duas décadas depois, as mesmas discussões persistem nas salas de aula [10][10] R.F. Pereira, P.A. Fusinato, M.C.D. Neves, em VII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (Florianópolis, 2009).. Os educadores, que muitas vezes passaram por uma formação inicial através de uma metodologia predominantemente tradicional, ficam sem propostas diversificadas para aplicação em sala de aula. É muito comum suas aulas refletirem sua própria formação, que privilegiava o aluno “receptáculo”. Assim, muitos destes professores, não obtêm êxito em promover nos alunos o interesse necessário para o aprendizado da Física e das Ciências. Sua prática continua empregando a metodologia memorística, com reforço do conhecimento através de fórmulas já prontas que são utilizadas na resolução de exercícios que se resumem a casos ideais sem conexão com o cotidiano e sem oportunidade para questionamentos, como já apontava o trabalho de Werneck [11][11] H. Werneck, Ensinamos demais, Aprendemos de menos (Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1996).:

“…Creio que ensinamos demais e os alunos aprendem de menos e cada vez menos! Aprendem menos porque os assuntos estão cada dia mais desinteressantes, mais desligados da realidade dos fatos e os objetivos mais distantes da realidade da vida dos adolescentes”. [11][11] H. Werneck, Ensinamos demais, Aprendemos de menos (Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1996).

Piassi [12][12] L.P.C. Piassi, Que Física ensinar no 2° grau? Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo (1995). também discutia a distância do Ensino de Física da realidade como fator de importante para o desinteresse pela Física:

“Mais grave ainda é a visão excludente que a proposta dos livros didáticos atuais representa, pois se trata de um objetivo ainda mais restrito, que sequer é de formação científica em algum nível. Um amontoado de fórmulas e definições sem sentido aparente não serve, na realidade, nem aquele que irá prestar o exame vestibular na área de ciências exatas, porque está lhe privando de uma formação que talvez nem a faculdade, com seus outros objetivos, poderia lhe dar”. [12][12] L.P.C. Piassi, Que Física ensinar no 2° grau? Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo (1995).

Ao se trabalhar os conteúdos de Física através de metodologias pouco inovadoras e sem conexão com o dia-a-dia, os alunos se sentem desmotivados a aprender, adquirem muito pouco conhecimento sobre as questões práticas e estas atividades contribuem muito pouco para a sua alfabetização científica. O estudo da Física, no Ensino Médio, passa a constituir meramente as discussões de equações matemáticas sem as relações com o seu cotidiano. É importante que a metodologia possa inserir na aprendizagem uma prática reflexiva, tanto por parte do aluno como do educador. Ferreira e Carvalho [13][13] M.C. Ferreira e L.M.O. Carvalho, Revista Brasileira de Ensino de Física 26, 57 (2004). descrevem a necessidade desta inserção na aprendizagem dos alunos e professores.

Além disso, as ferramentas pedagógicas notoriamente desatualizadas promovem a apresentação de uma Física não atrativa para os alunos, gerando desinteresse massivo pela disciplina. De acordo com Aliprandini et al. [14][14] D.M. Aliprandini, E. Schuhmacher e M.C. Santos, em I Simpósio Nacional de Ensino de Ciências e Tecnologia (Ponta Grossa, 2009)., o Ensino de Física tem-se voltado apenas às repetições conceituais e à análises matemáticas, o que prejudica o desenvolvimento de outras habilidades necessárias à formação do aluno. Muitos professores que atuam no Ensino Médio reproduzem a estrutura do ensino estritamente mecânico e de baixa eficiência para o aprendizado [15][15] J.C. Gomes e W.S. Castilho, 1ª JICE - Jornada de Iniciação Científica e Extensão 2, 1 (2011).. Essa realidade reflete uma dualidade: de um lado a importância da disciplina de Física, seu caráter informativo e transformador para o aluno e a sociedade; do outro, a baixa aprendizagem que estes acabam apresentando no decorrer do processo.

Observa-se na maioria das escolas brasileiras uma transmissão do saber do professor para o aluno, geralmente empregando um método que faz com que o aluno não pense, não desenvolva seu raciocínio, prejudicando assim todo o processo de aprendizagem [16][16] B. Silva, A.M.T. Mettrau e M.S.L. Barreto, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos 88, 445 (2007).. A educação sem o diálogo com a sala, como a promovida pela metodologia tradicional, geralmente se caracteriza pela postura passiva do aluno, um mero espectador das informações, sem qualquer reação crítica. O papel dos alunos, neste contexto, é de apenas repetidores das informações recebidas e imitadores de um modelo inserido pelo professor, sem quaisquer questionamentos. Essa experiência na educação brasileira foi reproduzida em grande parte nos outros ambientes sociais, tendo como resultado um cidadão acrítico, mero repetidor de ideias dita por terceiros [10][10] R.F. Pereira, P.A. Fusinato, M.C.D. Neves, em VII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (Florianópolis, 2009)..

Libâneo [17][17] J.C. Libâneo, Didática (Cortez, São Paulo, 1994). aborda as deficiências na aprendizagem pelo sistema tradicional, indicando que se deve desestruturá-la, passando de mera conteudista e com inúmeras provas durante o período escolar para uma educação mais elaborada e aberta, fornecendo condições para o aluno pensar e refletir sobre os assuntos. É necessário apresentar uma Física problematizadora e reflexiva sobre o seu cotidiano, porém, esta metodologia não é tarefa tão simples para os educadores, segundo este autor:

“O professor passa a matéria, os alunos escutam, respondem o interrogatório do professor para reproduzir o que está no livro didático, praticam o que foi passado em exercícios de classe e decoram tudo para a prova”. [17][17] J.C. Libâneo, Didática (Cortez, São Paulo, 1994).

Oposto ao modelo tradicional de ensino, há diversas propostas didáticas que apresentam diferentes estratégias para o professor, tais como: experimentação, uso da história da ciência, desenvolvimento de atividades lúdicas [18][18] F.V.S. Diniz e C.A. Santos, Revista Brasileira de Ensino de Física 41, e20180268 (2019).,[19][19] J.D.S. Silva, N.S. Monteiro, A.P.P. Germano, A.J.S. Pereira, F.C.G.C. Vasconcelos, Experiências em Ensino de Ciências 14, 593 (2019)., entre outras. Tais atividades buscam contribuir para que a compreensão dos conceitos de Física possa ser desenvolvida pelos estudantes, tornando o aprendizado cada vez mais atraente e despertando seu interesse pela Ciência. Além de facilitar o processo de ensino-aprendizagem em Física, tais alternativas possibilitam que outras habilidades dos alunos possam ser trabalhadas em sala de aula.

O aprendizado pode se tornar mais atraente à medida que as aulas proporcionam mais reflexão do conteúdo, com discussões em sala com o professor e entre seus pares, onde o estudante é parte integrante e ativa do processo. Somente desta maneira é que a aprendizagem se tornará mais efetiva e instigante.

Dentre as propostas didáticas existentes, estão as atividades lúdicas como opção a ser explorada no Ensino de Física, que pode contribuir para aumentar o interesse e melhorar a relação aluno-aluno e aluno-professor dentro da sala de aula, além de auxiliar na divulgação da Ciência junto à sociedade. O uso de atividades lúdicas para o aprendizado também agrega diversas funcionalidades educacionais, tais como contextualização, conteúdo e discussão no mesmo momento de aplicação. Outra vantagem desta metodologia é a possibilidade de se trabalhar com outras habilidades dos alunos, as quais não são normalmente exploradas pelo sistema tradicional de ensino. O uso de jogos de Física, por exemplo, pode abrir espaço para o diálogo entre aluno e professor, discussões, colocações de argumentos, aprendizagem reflexiva, no mesmo contexto, através da mediação do educador.

A palavra “lúdico” tem origem no termo “ludus”, que significa jogo. Contudo, ao longo do tempo observaram-se várias outras definições, não sendo apresentado apenas para os jogos, mas também para outras atividades com caráter de divertimento e satisfação.

Os jogos sempre estiveram presentes no cotidiano das pessoas. Estudos arqueológicos demonstram que muitas civilizações usufruíram de seus benefícios, sendo como diversão, uso educacional, como meio de recreação ou mesmo prazer [20][20] E. Benedetti e L.P.S. Benedetti, Emprego de atividades lúdicas no ensino de química (Editora Cidade, Sorocaba, 2015).. Na Grécia antiga, por exemplo, segundo Almeida [21][21] P.N. Almeida, Educação Lúdica - Prazer de Estudar - Técnicas e jogos pedagógicos (Edições Loyola, São Paulo, 1998)., o filósofo Platão já defendia que o jogo deveria ser usado para um aprendizado prazeroso e significativo, e a própria educação poderia ser realizada por meio de atividades lúdicas. Vemos, portanto, que sua ideia não é distante das atuais com relação à aprendizagem. Platão dizia ainda que os estudos da Matemática poderiam ser ensinados nas escolas na forma de atividades lúdicas, empregando para isso discussões através de problemas concretos do cotidiano como o comércio [20][20] E. Benedetti e L.P.S. Benedetti, Emprego de atividades lúdicas no ensino de química (Editora Cidade, Sorocaba, 2015)..

O método lúdico se apresenta como uma ferramenta de grande potencial no processo de ensino e aprendizagem em Física, ou outra ciência, a partir do instante em que se permite criar um cenário propício para dialogar o conteúdo a ser aprendido, se contrapondo ao ambiente tradicional tão discutido pelos pesquisadores.

Segundo Huizinga [22][22] J. Huizinga, Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura (Editora Perspectiva, São Paulo, 2000)., o emprego de atividades lúdicas pode fornecer uma aprendizagem significativa do fenômeno em estudo, uma vez que implica a definição de regras, de um ambiente adequado e de uma expectativa positiva para a atividade:

“O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias; dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana”. [22][22] J. Huizinga, Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura (Editora Perspectiva, São Paulo, 2000).

Nas atividades lúdicas observa-se a praticidade com que se chegar ao conhecimento concreto. Isso se otimiza quando o papel do professor é introduzido no processo, como facilitador, de troca de experiências. No caso das atividades lúdicas o professor é o mediador do conhecimento.

Dentre as várias atividades lúdicas, o jogo é uma das ferramentas mais conhecidas e eficazes para a aprendizagem. Através dele há uma quebra do vínculo com o cotidiano e a inclusão num ambiente muito particular, com regras, princípios, ordem, disciplina e principalmente o diálogo, muitas vezes ausente nos métodos tradicionais de ensino. Para Ramos [23][23] E.A. Ramos, Cadernos de Educação 23, 37 (1999).:

“O aprendizado é inerente à natureza humana e os comportamentos lúdicos e exploratórios são igualmente naturais à espécie humana. Entende-se que, numa situação não tão opressiva, o aprendizado é resultante de um processo interno ao sujeito. Sabe-se que os jogos e os brinquedos são fontes naturais de atração e, por sua natureza livre, são atividades voluntárias do ser humano”. [23][23] E.A. Ramos, Cadernos de Educação 23, 37 (1999).

Durante a aplicação do jogo, cria-se um ambiente favorável para o aprendizado do aluno, estimulando o agir e o pensar, termos facilitadores para a aprendizagem. E além destes, o raciocínio lógico também é trabalhado, como forma de se concluir determinados fenômenos. Ainda nesta perspectiva, Miranda [24][24] M.G. Miranda, em: Psicologia social: o homem em movimento, editado por S.T.M. Lane e W. Codo (Editora Brasiliense, São Paulo, 2001). diz que:

“(…) mediante o jogo didático, vários objetivos podem ser atingidos, relacionados à cognição (desenvolvimento da inteligência e da personalidade, fundamentais para a construção dos conhecimentos); afeição (desenvolvimento da sensibilidade e da estima e atuação no sentido de estreitar laços de amizade e afetividade); socialização (simulação de vida em grupo); motivação (envolvimento da ação, do desafio e mobilização da curiosidade) e a criatividade”. [24][24] M.G. Miranda, em: Psicologia social: o homem em movimento, editado por S.T.M. Lane e W. Codo (Editora Brasiliense, São Paulo, 2001).

Ainda com relação aos jogos, estes podem ser usados como forma de revisão de assuntos abordados ao longo de determinado período escolar, e mais, podem ser realizados em casa ou em períodos de intervalo entre as aulas, o que amplia em espaços possíveis para o aprendizado.

As pesquisas envolvendo atividades lúdicas no ensino têm demonstrado bons resultados de ensino-aprendizagem [18][18] F.V.S. Diniz e C.A. Santos, Revista Brasileira de Ensino de Física 41, e20180268 (2019).,[19][19] J.D.S. Silva, N.S. Monteiro, A.P.P. Germano, A.J.S. Pereira, F.C.G.C. Vasconcelos, Experiências em Ensino de Ciências 14, 593 (2019).. Por isso, o objetivo deste trabalho foi desenvolver e aplicar um jogo de tabuleiro abordando conceitos de física por meio da revisão dos temas estudados, e da interação com o cotidiano dos alunos. A atividade proposta também teve a intensão de verificar se o emprego do lúdico auxiliaria na exploração das habilidades de argumentação e na relação social entre os estudantes. Objetivou-se, ainda, analisar se tal metodologia despertaria o interesse dos alunos pela disciplina de física.

2. Metodologia

2.1. Conhecendo o jogo

O jogo de tabuleiro proposto foi desenvolvido para auxiliar nas discussões com alunos do ensino médio sobre diversos conteúdos de Física, sendo contextualizados com problemas do cotidiano. Na elaboração das questões, que fornecem a dinâmica do jogo, as seguintes áreas da Física foram contempladas: mecânica, térmica, ondulatória, óptica e eletromagnetismo. O enfoque proposto nos questionamentos foi de caráter clássico.

O jogo é composto por um tabuleiro principal (Figura 1) onde estão distribuídos seis locais como alternativas para as perguntas que envolvem o conteúdo didático. As questões sobre estes espaços estão contidas em cartas (Figura 2) referentes a cada localidade e armazenadas no tabuleiro auxiliar. Também são disponibilizados peões, dados e fichas extras para o andamento da partida, além de um manual para o professor – que contém as respostas comentadas para cada pergunta – e um livro de regras.

Figura 1
Tabuleiro principal.
Figura 2
Exemplos de cartas que compõe o jogo.

Na borda do tabuleiro principal há uma sequencia numérica para que os jogadores possam ir somando seus pontos durante a partida, facilitar a contagem e verificar quem é o vencedor do jogo. Em alguns cantos do tabuleiro principal há casas coringas que, se o jogador ficar sobre uma elas, terá a oportunidade de retirar uma nova carta pergunta e assim avançar em direção à vitória.

Entre os caminhos localizam-se alguns cruzamentos, representados por espaços em branco, no qual o jogador poderá optar por qual novo caminho seguir, se houver tal possibilidade. Isto também ocorre quando o jogador estiver em uma casa ilustrada, no qual as possibilidades de caminhos são bem maiores.

O tabuleiro foi desenvolvido contendo seis estabelecimentos: casa, parque de diversões, supermercado, loja de “luz e som”, centro automotivo e centro esportivo (Figura 1). A escolha destes locais se fez segundo o critério de familiaridade por grande parte dos alunos, bem como da possibilidade de contextualizar questões de diversos conteúdos de física. Cada estabelecimento trata de questões que abordam diferentes áreas da disciplina.

Foram elaboradas 10 questões para cada um dos estabelecimentos, como visto na Figura 2, sendo cinco no formato de teste e cinco de caráter discursivo, totalizando 60 questões.

O formato do tabuleiro foi planejado de forma a possibilitar múltiplas opções de deslocamento, devido aos variados caminhos permitidos após cada questão respondida. Essa dinâmica do jogo permite que cada partida seja única em relação à sequência de perguntas e aos estabelecimentos abordados.

O jogo pode ser disputado por até quatro grupos. Para isso, o tabuleiro possui quatro casas de saída, uma em cada vértice do tabuleiro. A partir dessas casas há diferentes caminhos possíveis que levam aos diferentes estabelecimentos distribuídos sobre o tabuleiro.

A construção do tabuleiro neste formato favoreceu uma otimização do tempo de aplicação do jogo no período de uma ou duas aulas de cinquenta minutos cada, proporcionando ao professor uma possibilidade de poder rever e discutir com os alunos, no intervalo deste tempo estabelecido, diferentes conteúdos para o Ensino de Física.

Os arquivos em pdf para impressão e confecção do jogo estão disponíveis no endereço eletrônico: http://www.mnpefsorocaba.ufscar.br/produto-educacional-danilo-favaretto.

2.2. Confecção do jogo

Os tabuleiros e as cartas foram criados com auxílio do programa “Corel Draw X5”. Em seguida foram salvos em formato pdf e impressos para montagem, a qual foi realizada mediante colagem de folhas de papel no formato A4 liso de gramatura 180g/cm2 sobre papel natural Paraná n°60 de gramatura 1125g/m2 . O tabuleiro do jogo contendo as trilhas foi confeccionado nas dimensões de 80 cm × 100 cm; e o tabuleiro das cartas nas dimensões A4 para impressão e corte. O desenho dos tabuleiros foi impresso colorido e as folhas foram coladas no papel Paraná, deixando uma borda de 5 cm em cada lateral. Após a colagem, colocou-se fita adesiva nas laterais como forma de proteger o tabuleiro. A Figura 3 ilustra parte da sua montagem.

Figura 3
Montagem parcial do tabuleiro principal.

As cartas impressas em papel liso gramatura 120g/cm2 formato A4 foram recortadas conforme as indicações para a sua confecção. O formato das cartas pode ser visualizado na Figura 4. Após o recorte, elas foram dobradas e coladas para obtenção do formato final em frente e verso.

Figura 4
Montagem parcial das cartas de perguntas.

A Figura 5 ilustra a montagem do dado para o andamento da partida, com faces específicas, diferente de um dado D6 convencional.

Figura 5
Montagem parcial de um dado.

2.3. Aplicação da atividade proposta

A aplicação do jogo foi realizada no final do primeiro semestre de aula, na cidade de Sorocaba, estado de São Paulo, em duas unidades de um colégio particular. O público alvo foram alunos das turmas do terceiro ano do Ensino Médio (51 alunos no total), sendo a primeira unidade com 26 alunos e a segunda com 25.

O início das atividades se deu com a preparação da sala de aula. No centro da sala, sobre uma mesa, foram colocados os dois tabuleiros contendo as cartas e as peças do jogo. Os pinos foram dispostos na posição de início (um em cada vértice do tabuleiro) e os marcadores na pontuação zero.

Os alunos se dividiram em quatro grupos e ocuparam o espaço na direção do pino escolhido para representar seu respectivo grupo. A escolha dos grupos foi livre, não havendo limitação quanto ao número de integrantes em cada um.

As regras do jogo foram explicadas e definiu-se o sentido horário como a ordem das jogadas. Após sorteio, definiu-se o primeiro grupo a jogar e deu-se início à atividade. Para obtenção dos resultados foi colocado um celular gravando o áudio da atividade desenvolvida. Este permaneceu ligado durante todo o período para posterior análise dos dados. As demais observações foram relatadas em diário de campo para relacionar com o áudio gravado.

O andamento da partida ocorreu conforme a proposta presente no livro de regras.

A análise dos dados obtidos recebeu uma abordagem qualitativa segundo as recomendações de Bogdan e Biklen [25][25] R. Bogdan e S. Biklen, Investigação qualitativa em educação (Porto Editora, Porto, 2000)., e também quantitativa. Tais instrumentos avaliativos foram inseridos a fim de verificar o desempenho dos alunos no desenvolvimento do jogo, na fixação do conteúdo de Física e do interesse pela atividade proposta através de um conteúdo relacionado ao cotidiano.

3. Resultados e Discussões

Conforme testes preliminares anteriores à aplicação do jogo em sala de aula, verificou-se que, para um melhor desempenho do material lúdico pedagógico proposto, era necessário um período de duas aulas – um total de, no mínimo, 100 minutos – para o bom andamento da atividade. Através da aplicação do material lúdico foi possível avaliar o comportamento dos estudantes durante a atividade proposta, suas interações com os indivíduos do próprio grupo e também entre os grupos na utilização do jogo.

Observou-se que houve uma interação entre os alunos para responder aos questionamentos, discussão sobre o próprio jogo, interesse pelo desafio de vencer a partida, corroborando com as observações apresentadas por Silva et al. [19][19] J.D.S. Silva, N.S. Monteiro, A.P.P. Germano, A.J.S. Pereira, F.C.G.C. Vasconcelos, Experiências em Ensino de Ciências 14, 593 (2019)..

“Além de propiciar a interação, aprendizagem e diversão, bem como a própria competição estabelecida entre os grupos, o jogo também despertou a curiosidade dos estudantes por envolver questões frequentes na realidade deles, desenvolvendo seu pensamento crítico-reflexivo”. [19][19] J.D.S. Silva, N.S. Monteiro, A.P.P. Germano, A.J.S. Pereira, F.C.G.C. Vasconcelos, Experiências em Ensino de Ciências 14, 593 (2019).

Observou-se que o papel do educador como mediador durante as partidas foi um fator importante para atingir os objetivos da proposta lúdica. Durante o desenrolar do jogo, nas discussões dos conteúdos didáticos entre os grupos e seus integrantes, foi o momento em que o professor desenvolveu um auxílio fundamental na construção das respostas dos questionamentos didáticos presentes nas cartas do jogo. Essa intervenção seguiu um caminho a fim de promover um diálogo entre os alunos e esclarecer a elaboração da resposta correta, fosse ela construída pelo grupo, ou por apenas um único aluno.

As observações em diário de campo demonstraram que, de início, os alunos estavam mais tímidos, com poucos diálogos. Porém, com a intervenção constante do docente, estes começaram a fluir e o jogo atendeu a este objetivo plenamente.

A participação dos alunos durante a aplicação da atividade foi voluntária, como sugerida por Huizinga [22][22] J. Huizinga, Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura (Editora Perspectiva, São Paulo, 2000).. Contudo, é importante citar que houve 100% de interesse. Houve um grande entusiasmo dos estudantes no decorrer da atividade, fato este verificado através das observações e registros em diário de campo. Alunos que previamente pouco dialogavam com o professor, tiveram participação expressiva, com questionamentos sobre os conteúdos de Física. Fatos relatados em trabalhos de Benedetti e Benedetti [20][20] E. Benedetti e L.P.S. Benedetti, Emprego de atividades lúdicas no ensino de química (Editora Cidade, Sorocaba, 2015). e Felício [26][26] C.M. Felício, Do compromisso à responsabilidade lúdica: ludismo em ensino de química na formação básica e profissionalizante. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Goiás, Goiânia (2011). reforçam as observações encontradas nestes levantamentos de dados. A observação do professor relatado em diário de campo ilustra estas colocações:

“Ministrei aula para esta aluna por 2 anos, somente hoje pude ouvir sua voz! Ela jamais fez qualquer pergunta nas minhas aulas de Físicas” (MAC)

As questões utilizadas no jogo seguiram as recomendações propostas por Herreid [27][27] C.F. Herreid, Journal of College Science Teaching 27, 163 (1998)., que indicam o uso de narrativas curtas e fáceis no envolvimento das questões e do conflito do jogo, através das quais se inserem citações teóricas. Tais narrativas visam despertar o interesse dos alunos que estão disputando a partida.

Através de discussões que ocorreram no grupo e pela decisão tomada em equipe para a resolução do assunto abordado, identificou-se os possíveis problemas de aprendizagem que os alunos apresentavam na elaboração da resposta à pergunta presente na carta, e assim, em aulas posteriores seria possível sanar tais dificuldades.

Um aspecto importante a ser discutido nesse trabalho é com relação à percentagem de erros e de acertos nas questões. Para permitir uma análise mais cuidadosa, os resultados foram decompostos em questões do tipo aberta, em que o aluno (ou grupo) constrói a resposta e as suas argumentações; e as questões do tipo teste, no qual dentre as opções apresentadas, o aluno (ou grupo) deve optar pela qual os membros do grupo julgam ser corretas.

A Tabela 1 apresenta o número de acertos na primeira e na segunda tentativas (quando a pergunta errada foi passada para o próximo grupo); e os erros (após duas tentativas) nas questões, bem como os respectivos percentuais, em função do tipo de questão (aberta ou teste).

Tabela 1
Dados do número de acertos e de erros, em função do tipo de questão trabalhada, assim como seus respectivos percentuais em relação ao total de cada tipo de questão.

No caso das questões abertas ou testes, todas foram respondidas já após duas “tentativas”, o que mostra que os alunos foram capazes de construir uma resposta correta, ou parcialmente correta logo após as discussões em grupo, prestando atenção na resposta do grupo adversário e das observações do docente para formular uma nova resposta.

Após a leitura da pergunta, os membros do grupo discutiam de modo informal diversos aspectos relacionados à questão apresentada e chegavam a uma resposta em comum. Caso este grupo respondesse algo incorreto ou incompleto o professor apresentava alguns comentários e observações relevantes sobre o tema da pergunta, e passava a vez ao próximo grupo. A partir da primeira tentativa de resposta e das colocações do professor, o segundo grupo era capaz de responder a questão com argumentos mais sólidos.

Esta atividade de construção coletiva da resposta reforça a importância do diálogo entre os alunos para a construção do conhecimento. Este é estabelecido através de argumentos e propostas, e não se trata de algo pronto, mas de um processo de evolução para chegar ao resultado final. Neste momento, os alunos adquirem habilidades que não são trabalhadas durante o ensino tradicional, uma vez que devem construir hipóteses a partir do conhecimento já adquirido tanto na escola, quanto na sua vivência cotidiana. Dentre as habilidades para a formação cidadã, o jogo reforça a importância da argumentação e do respeito ao próximo, em que se deve esperar sua vez para fazer as colocações.

Rego [5][5] T.C. Rego, Vygotsky: Uma perspective histórico-cultural da educação (Editora Vozes, Petrópolis, 2007). defende que em um ambiente escolar é fundamental que ocorra uma interação social entre os alunos, onde aquele que apresenta um maior conhecimento possa auxiliar os demais alunos que demonstram um conhecimento inferior, podendo ajudá-los na construção de sua própria interpretação sobre os conceitos abordados no jogo. A mediação docente, por sua vez, tem a função de interferir na ZDP (Zona de desenvolvimento proximal) dos alunos, pois o professor transmite confiança por apresentar maior domínio sobre o conteúdo e mais experiência em tornar os conhecimentos acessíveis à eles.

Os resultados para as perguntas de múltipla escolha ou descritivas tiveram um alto índice de acerto, demonstrando que as discussões em grupo e a formação de argumentos são importantes para a aprendizagem e conhecimentos dos alunos. Essa troca de informações e construção em equipe é um processo bastante importante para a formação cidadã.

A interação aluno-aluno e aluno-professor foram importantes para demonstrar que as discussões são uma ferramenta eficiente para a formação do senso crítico dos alunos, podendo ser observado durante o processo de discussão dos tópicos de física abordados e seus progressos nas colocações argumentativas entre os membros do grupo.

Os diálogos entre os indivíduos demonstraram que uma metodologia alternativa de ensino com propriedades lúdicas favorece uma aprendizagem significativa e uma melhor formação cidadã, como indicado no PCN [28][28] BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio (Ministério da Educação, Brasília, 1999)..

Notou-se que houve um trabalho coletivo entre os alunos e o docente. No desenvolvimento da atividade, o aluno deixou de ser um espectador passivo e passou a integrar as discussões dos assuntos envolvidos. Por outro lado, o docente deixou de ser apenas o transmissor de informações e atuou como um colaborador na formação dos alunos, e isso demonstrou que a aprendizagem pode se tornar mais significativa e eficiente no processo educacional, mesmo neste processo de revisão de conteúdo. Segundo Oliveira et al. [8][8] J.S. Oliveira, M.H.F.B. Soares e W.F. Vaz, Revista Química Nova na Escola 37, 285 (2015)., “…são nesses momentos que alunos e professores atuam simultaneamente como sujeitos ativos do processo de ensino-aprendizagem…”. Ainda segundo Oliveira et al. [8][8] J.S. Oliveira, M.H.F.B. Soares e W.F. Vaz, Revista Química Nova na Escola 37, 285 (2015)., “… a discussão… levam os alunos ao debate em relação ao conceito ou a eventuais dúvidas que surjam.”.

3.1. Análise pontual dos erros observados nas respostas

Os erros pontuais observados durante a aplicação do jogo foram objeto de estudo para propor novas abordagens de conteúdo pós-aplicação a partir das questões erradas ou incompletas fornecidas pelos alunos. Na pergunta: “Qual fenômeno físico de transporte de calor NÃO contribui no preparo de um frango assado no interior de uma máquina de assar?”, a resposta do aluno foi: “convecção”.

Na discussão dessa questão surgiram comentários como: “Condução com certeza tem”, “Óbvio que tem irradiação”. Ficou claro que houve um erro conceitual sobre os processos de transferência de calor, condução e convecção.

A aplicação da atividade lúdica foi uma ferramenta eficiente para exemplificar as situações cotidianas vivenciadas pelos alunos, e assim melhorar a sua compreensão dos fenômenos físicos relacionados. Por exemplo, foi possível ilustrar as diferenças entre o uso de uma frigideira e de um forno elétrico ou a gás para o preparo dos alimentos. No caso da frigideira há o contato direto do alimento com a superfície e a transferência de calor se dá por condução. Já no forno, além da irradiação, a convecção se faz presente a partir do instante em que uma diferença de temperatura é detectada no interior do forno, havendo variação da densidade do ar e, consequentemente, o movimento de convecção.

Para a questão: “Por que os alimentos vegetais são colocados geralmente na parte inferior da geladeira?”, obtivemos a seguinte resposta de um aluno: “Porquê a temperatura nessa região é mais fria, conservando mais os vegetais”. Aqui foi observado que a displicência dos alunos na leitura do enunciado foi evidente. Eles não atentaram ao fato de que a região inferior da geladeira é necessariamente a região menos fria, e consequentemente não permite a “queima” dos vegetais, que ocorre nas regiões mais frias, ou seja, nas mais altas para uma geladeira de modelo mais simples.

Como se tratava de uma questão teste, a resposta escolhida, porém errada, trazia uma associação muito comum: “mais fria maior conservação”, o que não é válido no caso da conservação de vegetais. Essa questão foi um exemplo típico de resposta rápida e sem discussão, o que claramente levou a uma conclusão errada pelos alunos. Em momento posterior, estas colocações foram revistas pelo docente, indicando que a atividade foi importante para que o professor pudesse detectar falhas na interpretação dos alunos sobre referido fenômeno.

Seguindo nos exemplos de discussões abordadas em sala de aula, para a questão: “Por que a utilização de uma chave de roda de cabo mais comprido facilita a troca do pneu?”, uma das respostas apresentadas pelos alunos foi: “Porque a pressão é maior”. Através das observações do professor durante o jogo este viu a necessidade de discutir vários termos que a primeira pelos alunos estava relacionada entre si, como a definição de torque e de pressão. Esta observação, verificada pelo docente, foi importante para tornar evidente a diferença entre essas duas grandezas para os alunos.

Sobre as questões, cujo acerto aconteceu na 2a chance, temos como exemplo a pergunta: “Porque as folhas das plantas mostram-se verdes quando iluminadas pela luz do sol?”, ouviu-se a seguinte resposta: “Por que a folha absorve a cor verde”. Neste caso, há várias abordagens a serem utilizadas pelo professor. Uma sugestão seria levar para a sala de aula fotos ou vídeos de vestimentas de pessoas que residem em locais onde a temperatura é extremamente elevada ou extremamente baixa. Após observar o tipo de cor dessas vestimentas, pode-se chegar a algumas conclusões a respeito do tipo ideal de traje que se deve usar em função da temperatura do ambiente. Discutido a questão do “preto” e do “branco”, o professor deve abordar a questão da cor de um objeto.

Segundo Oliveira et al. [8][8] J.S. Oliveira, M.H.F.B. Soares e W.F. Vaz, Revista Química Nova na Escola 37, 285 (2015)., os alunos possuem vontade e perspectiva por aprendizagens que apresentam uma pluralidade de metodologias pedagógicas, diferente das propostas educacionais que favorecem a memorização de conteúdos (fórmulas matemáticas) e de aplicações das Leis da Física, na qual os autores descrevem como o principal fator para a desmotivação e desinteresse pelas Ciências.

Os PCN de Ciências Naturais ilustram a necessidade de que os alunos sejam capazes de criar um posicionamento crítico em diversas situações sociais e assim conseguir tomar decisões que sejam coletivas, através do emprego do diálogo para mediação dos conflitos existentes. Este aprendizado em anos anteriores ao Ensino Médio é fundamental para o melhor progresso dos alunos na formação cidadã e para que possam interagir com a Ciência, explorando os seus benefícios e sabendo correlacioná-la com o cotidiano e o ambiente em que estão inseridos. Estas habilidades diversificadas para a formação cidadã, muitas vezes, só podem ser aprimoradas através de atividades que envolvam discussão de conceitos científicos conjuntamente com seus pares e não apenas de maneira decorativa. O uso desta atividade lúdica pedagógica mostrou-se uma importante ferramenta para a consolidação da aprendizagem das ciências para os alunos participantes.

4. Considerações Finais

Notamos no final de toda a pesquisa que os resultados apresentados pela atividade correspondem ao pensamento de Vygotsky [29][29] L.S. Vygotsky, A formação social da mente: O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores (Editora Martins Fontes, São Paulo, 1984)., quando afirma que “a cultura forma a inteligência e a brincadeira favorece a criação de situações imaginárias e reorganiza experiências vividas”. Neste caso, o mundo imaginário do tabuleiro e suas relações com o seu cotidiano.

Segundo Kishimoto [30][30] T.M. Kishimoto, Jogos infantis: O jogo, a criança e a educação (Editora Vozes, Petrópolis, 2002), 10ª ed., a atividade lúdica empregada no jogo valoriza a participação entre os envolvidos na construção do conhecimento, através da motivação rotineira do jogo.

Esta pesquisa demonstra que se um docente optar pelo uso de um jogo didático como opção à revisão de conceitos, esta pode ser uma ferramenta importante para discussões conceituais de Física, eventualmente pela característica da metodologia de forma mais atraente e desafiadora para os alunos do que outros tipos de abordagens, como as baseadas nos simples comentários da memorização de definições e fórmulas.

Apesar de ser uma atividade de revisão, as discussões que a atividade proporcionou permitiram ao docente estabelecer quais as deficiências de aprendizagem que os alunos tinham e destacar estes ensinamentos nas aulas futuras. A interação entre os alunos e o aumento evidente nos seus argumentos e o respeito às discussões em grupo foi outro fator importante que a proposta pedagógica apresentou, levando a momentos de aprendizagem que seria muito difíceis de ocorrerem em uma aula tradicional.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2019
  • Revisado
    28 Maio 2020
  • Aceito
    29 Jun 2020
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