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Os conceitos de eletricidade vítrea e eletricidade resinosa segundo Du Fay

Concepts of vitreous electricity and resinous electricity according Du Fay

Resumos

Na década de trinta do século XVIII, Charles François De Cisternay Du Fay enunciou dois princípios gerais que, segundo ele, regiam os fenômenos da eletricidade. O objetivo deste trabalho é discutir as propostas de Du Fay e sua interpretação posterior. Estruturamos o artigo em três partes. Inicialmente, faremos uma breve biografia de Du Fay para, em seguida, discutirmos sua proposta da eletricidade vítrea e eletricidade resinosa. Na terceira parte apresentamos a tradução de uma carta de Du Fay ao Duque de Richmond relatando suas descobertas sobre eletricidade.

eletricidade vítrea; eletricidade resinosa; Du Fay


In the 1730 decade, Charles François De Cisternay Du Fay enunciated two general principles that, according to him, ruled the electric phenomena. The goal of this paper is to discuss Du Fay's proposal and its later interpretation. We have organized the paper in three parts. In the first one, we will present a short biography of Du Fay. Next, we discuss his proposal for vitreous electricity and resinous electricity. Finally, we present the translation of letter of Du Fay to the Duke of Richmond in which he describes his discoveries on electricity.

vitreous electricity; resinous electricity; Du Fay


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

Os conceitos de eletricidade vítrea e eletricidade resinosa segundo Du Fay

Concepts of vitreous electricity and resinous electricity according Du Fay

Sérgio Luiz Bragatto Boss1 1 E-mail: serginho@fc.unesp.br. ; João José Caluzi2 2 E-mail: caluzi@fc.unesp.br.

Departamento de Física, Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista, Bauru, SP, Brasil

RESUMO

Na década de trinta do século XVIII, Charles François De Cisternay Du Fay enunciou dois princípios gerais que, segundo ele, regiam os fenômenos da eletricidade. O objetivo deste trabalho é discutir as propostas de Du Fay e sua interpretação posterior. Estruturamos o artigo em três partes. Inicialmente, faremos uma breve biografia de Du Fay para, em seguida, discutirmos sua proposta da eletricidade vítrea e eletricidade resinosa. Na terceira parte apresentamos a tradução de uma carta de Du Fay ao Duque de Richmond relatando suas descobertas sobre eletricidade.

Palavras-chave: eletricidade vítrea, eletricidade resinosa, Du Fay.

ABSTRACT

In the 1730 decade, Charles François De Cisternay Du Fay enunciated two general principles that, according to him, ruled the electric phenomena. The goal of this paper is to discuss Du Fay's proposal and its later interpretation. We have organized the paper in three parts. In the first one, we will present a short biography of Du Fay. Next, we discuss his proposal for vitreous electricity and resinous electricity. Finally, we present the translation of letter of Du Fay to the Duke of Richmond in which he describes his discoveries on electricity.

Keywords: vitreous electricity, resinous electricity, Du Fay.

1. Introdução

O estudo sistemático da eletricidade tem seu início no século XVII com os trabalhos de estudiosos da natureza como Otto de Guericke (1602-1686), Francis Hauksbee (1660-1713), Stephen Gray (1666-1736), Charles François de Cisternay Du Fay (1698-1739), Benjamin Franklin (1706-1790), entre outros. Na década de trinta do século XVIII, Charles Du Fay realizou vários experimentos sobre eletrostática e enunciou dois princípios gerais que, segundo ele, regiam os fenômenos elétricos. O objetivo deste artigo é discutir estes princípios e parte do trabalho de Du Fay, bem como analisar o conceito introduzido por ele de eletricidade vítrea e resinosa. Desta forma, procuramos entender do ponto de vista atual os experimentos e fenômenos estudados, e sendo assim, nas discussões utilizamos termos contemporâneos, como potencial elétrico, carga elétrica, eletrização, isolante, condutor, que não eram usados pelos eletricistas do século XVIII. Ao final, apresentamos uma tradução da carta publicada no periódico Philosophical Transactions of the Royal Society em 1735. Esta carta é considerada importante, pois apresenta uma síntese dos trabalhos sobre eletricidade realizados por Du Fay até aquele período.

2. Charles François de Cisternay Du Fay

Charles François de Cisternay Du Fay nasceu em 14 de Setembro de 1698, na cidade de Paris. Filho de Charles Jerome de Cisternay Du Fay, oficial da Guarda Francesa, e Elisabeth Landais. Iniciou sua carreira na Guarda Francesa, ingressando no Regimento de Picardie como tenente em 1712, com quatorze anos de idade, seguindo o exemplo de seu pai. Serviu também em Fuenterabia (1718-1719). Em 1721, acompanhou seu pai e Armand Gaston Maximilian, cardeal de Rohan (1674-1749), a uma visita a Roma. O Cardeal, ao longo do tempo, foi um grande incentivador de sua carreira como pesquisador. Pouco tempo após a viagem, em 1723, candidatou-se e assumiu uma posição de químico na Academia Francesa de Ciências e, naquele mesmo período, deixou a Guarda Francesa. Tomou esta decisão com o incentivo e o apoio de sua família. É interessante procurar entender como um jovem de 25 anos de idade, oficial de infantaria, que aparentemente não havia escrito nada sobre ciência, pôde sair do Exército e ingressar na Academia Francesa de Ciências. Este fato, em boa parte, deve-se ao seu pai. Embora bastante rude, o velho Du Fay tinha fácil acesso à alta sociedade. Seu grande amigo, antigo companheiro de escola, Cardeal Rohan, era um nobre e o principal clérigo da França na época. Esta proximidade com o Cardeal Rohan pode ter influenciado o ingresso de Du Fay, que também foi apoiado por duas eminentes figuras, René Antoine Ferchault de Réaumur (1683-1757), um dos principais membros da Academia, e o abade Jean-Paul Bignon (1662-1743), presidente da Academia Francesa de Ciências na época. Réaumur administrou a candidatura do jovem Du Fay com o apoio de Bignon e em 14 de maio de 1723 ele tornou-se membro daquela instituição.

Ele foi pensionista (1731) e Diretor da Academia Francesa no período de 1733-1738. Sua versatilidade e habilidade como cientista são evidenciadas pela sua produção científica. Publicou, no mínimo, um artigo em cada uma das disciplinas científicas reconhecidas pela Academia. No campo da eletricidade apontou a existência de dois tipos de eletricidade, a vítrea (do Latim vidro) e a resinosa, entre outras observações. Também trabalhou com alguns minerais e cristais. Foi administrador do Jardim Real das Plantas (Jardin Du Roi), cargo que recebeu em 1732. Nele construiu uma nova estufa para a flora estrangeira e estabeleceu trocas de espécies com instituições similares, transformando o Jardim Francês em um exemplo na Europa. Também foi membro da Royal Society de Londres, eleito em 08/05/1729. Faleceu em 16 de Julho de 1739, em Paris, acometido de varíola. Esta breve biografia foi baseada em quatro fontes, conforme as Refs. [1-4].

3. Estudos sobre eletricidade

Em 1735, foi publicada na revista Philosophical Transactions of the Royal Society, volume 38, uma carta de Du Fay em que ele resumia sua pesquisa em eletricidade até aquele momento. Os assuntos abordados naquela carta foram detalhadamente trabalhados em suas Memórias, publicadas no periódico Histoire de L'Académie Royale des Sciences.3 3 As pessoas interessadas em consultar os textos originais do trabalho de Du Fay podem fazê-lo acessando o endereço eletrônico http://gallica.bnf.fr. Este sítio é mantido pela Biblioteca Nacional da França e possui uma grande quantidade de material histórico digitalizado, e.g., livros, revistas, etc. Para os interessados em história da ciência é uma fonte de consulta preciosa. Em 1733, foram publicadas quatro memórias. A primeira é uma síntese histórica dos trabalhos sobre eletricidade feitos até então. Na segunda ele discute sobre os corpos susceptíveis a eletrização. A terceira apresenta os corpos mais intensamente atraídos por materiais eletrizados e aqueles que são mais próprios para a transmissão da eletricidade. Na quarta memória Du Fay discorre sobre a atração e repulsão dos corpos elétricos. Em 1734, ele publicou mais duas memórias: a quinta e a sexta. Na quinta ele discute como a eletricidade é afetada por vários fatores. Na sexta investiga qual a relação entre a eletricidade e a produção de luz em corpos eletrificados e quais fatores podem influir nesta produção. Em 1737, ele publica mais duas memórias. Na sétima, continua o tema da sexta e na oitava discute o trabalho de Stephen Gray, fazendo uma avaliação de seu trabalho em eletricidade. Du Fay publicou um total de oito memórias sobre o tema.

4. Carta de Du Fay à Royal Society

Agora vamos centrar nossa atenção na carta publicada em 1735. Nesta carta, Du Fay descreveu seus dois princípios, que foram descritos com detalhes na Quarta Memória, publicada em 1733. O primeiro princípio afirma que um corpo eletrizado repele todos aqueles que também estão eletrizados e atrai os corpos não eletrizados. O segundo reporta a existência de duas eletricidades, a vítrea e a resinosa, e afirma que corpos com a mesma eletricidade se repelem e com eletricidades diferentes se atraem. O segundo princípio é tido como a maior contribuição de Du Fay à ciência da eletricidade. Ele utilizou parte do trabalho de Otto de Guericke, Francis Hauksbee e Stephen Gray em suas pesquisas. Refez alguns experimentos de seus antecessores e, por vezes, extraiu deles novas conclusões.

Na carta Du Fay se declara um devedor de Gray e de Hauksbee por terem-no incentivado a iniciar suas pesquisas em eletricidade por meio de seus trabalhos. A influência deles em sua pesquisa é uma constante, tendo em vista que ele refez grande parte dos experimentos de Hauksbee e, principalmente, de Gray. Comentaremos a carta parágrafo por parágrafo, pois os temas são assim divididos.

O segundo parágrafo aponta alguns materiais que Du Fay descobriu serem eletrizáveis, sendo que, utilizava-se a expressão tornado elétrico para se referir aos materiais eletrizados, pois no período os materiais passivos de eletrização eram chamados de elétricos, e aqueles que não possuíam tal característica eram chamados de não-elétricos. Estes materiais foram relatados na Segunda Memória (1733), e neste momento ele ainda supunha que não era possível eletrizar os corpos metálicos, os macios (que derretem com o aquecimento) e os líquidos. Du Fay assinala que os corpos devem ser aquecidos antes de serem eletrizados, uma vez que ele tinha conhecimento de que a umidade dificultava e, em algumas ocasiões, até impedia a eletrização. É comum nos depararmos, em sua obra, com avisos sobre a secagem, geralmente por aquecimento, dos materiais.

Du Fay provavelmente tomou conhecimento de que o aquecimento auxiliava na eletrização com os trabalhos de Hauksbee e Gray. Hauksbee e Robert Boyle (1627-1692) consideravam o aquecimento um pré-requisito absoluto para obter efeitos elétricos. Em alguns experimentos Hauksbee deixava os objetos tão quentes que se tornava quase impossível manipulá-los, e algumas vezes os objetos se tornavam quebradiços devido ao aquecimento. Gray, ao que tudo indica, parece não ter compartilhado dessa idéia. Ele considerava o aquecimento importante, porém, não fundamental [5, p. 39]. No primeiro artigo publicado por Gray [6, p. 106] sobre eletricidade há relatos que ele só obteve sucesso ao tentar eletrizar algumas fitas depois de aquecê-las, responsabilizando a umidade pelo insucesso.

Du Fay atribuía o insucesso ao tentar eletrizar metais por atrito a uma umidade interior dos metais. Ele escreveu que conseguiria meios de tratá-los, de forma que sua umidade interior fosse extraída e, assim, poderiam ser eletrizados por atrito [3, p. 51 e 53]. Atualmente, sabemos que Du Fay não conseguiu eletrizar metais porque não os segurava por meio de um material isolante. Ao final do segundo parágrafo, há menção a alguns materiais que requerem mais ou menos aquecimento para serem eletrizados.

O terceiro parágrafo menciona um experimento de Gray (que discutiremos mais adiante) em que o aparato foi apoiado sobre uma plataforma ou um copo de vidro aquecido ou seco previamente.

Para entendermos melhor a importância do aquecimento do vidro e dos materiais em geral, vamos fazer uma breve digressão sobre a relação entre a umidade e o vidro4 4 O que discutiremos aqui não era do conhecimento dos eletricistas dos séculos XVII e XVIII, mas esclarece a importância de aquecermos os materiais manipulados em experiências de eletrostática. . Para isso discutiremos a questão: que tipo de interação existe entre a molécula de água e o vidro (material bastante utilizado por eletricistas do século XVIII)? Atkins e Jones afirmam que:

O menisco de um líquido é a superfície curvada que se forma em um tubo estreito. O menisco da água em um vidro capilar é curvado para cima nas bordas (adquirindo uma forma côncava) porque as forças adesivas entre moléculas de água e átomos de oxigênio e grupos (-OH) que estão presentes em uma superfície típica de vidro são mais fortes que as forças coesivas entre moléculas de água. A água tende a se espalhar pela maior área possível do vidro. [7, p. 309]

O tipo de ligação entre as moléculas de água (H2O) e de sílica (SO2) é a ligação de hidrogênio (ou ponte de hidrogênio), que é uma interação intermolecular forte [7, p. 304]. A água forma sobre o vidro uma espécie de película, que não é removida com o passar de um pano, por exemplo. Para que a superfície do vidro esteja bem seca, ou seja, com o mínimo de moléculas de água sobre ela, é necessário aquecê-la. O aquecimento causa o rompimento das ligações de hidrogênio, fazendo com que as moléculas de água evaporem, deixando o vidro seco. A força da ligação de hidrogênio varia de acordo com a posição dos átomos de hidrogênio na molécula, fator que varia de molécula para molécula. Isso significa que a força da ligação entre as moléculas de água e as de um material qualquer, varia de material para material.

O grau de aquecimento para secar um objeto pode, então, variar de acordo com a força de ligação existente entre as moléculas de água e do material. Quanto maior a força, maior o grau de aquecimento. Citamos aqui o exemplo da ligação de hidrogênio, porém a interação intermolecular pode ser outra, como íon-dipolo, dipolo-dipolo, ou forças de London, que são interações mais fracas que as ligações de hidrogênio e requerem menor grau de aquecimento para secagem, quando envolvidas no processo.

Sendo assim, faz sentido que os materiais sejam aquecidos antes de serem eletrizados por atrito. Da mesma forma, faz sentido falar em maior ou menor grau de aquecimento dos objetos. Como observa Nussenzveig [8, p. 4], é muito difícil realizar experiências de eletrostática em muitas localidades brasileiras, especialmente no verão. Isso ocorre devido ao elevado grau de umidade na atmosfera, que tende a recobrir os objetos com uma fina camada de água, tornando-os condutores. Isso dificulta, ou impede, a eletrização por atrito. Nos países frios, o aquecimento no inverno seca o ar. É comum, por exemplo, que o corpo fique eletrizado quando se caminha sobre um tapete espesso, a ponto de soltar faíscas quando se toca um objeto metálico.

No terceiro parágrafo Du Fay relata ter lido uma carta em que Gray reporta ter conseguido eletrizar água. Este é um fato importante, pois, após ter lido esta carta, reproduzido o experimento e verificado a eletrização da água, ele conclui que a eletricidade é uma propriedade que pode ser adquirida por todos os materiais, sem exceção, e não é mais considerada um atributo de uma classe limitada de materiais [3, p. 49].

Gray relatou a eletrização da água em uma carta de 1732: "Nesta carta eu comunicarei somente dois Experimentos, o primeiro mostrando que a Água pode ter uma Virtude Elétrica comunicada a ela por Corpos Elétricos [...]" [9, p. 227]. Ele descobriu que a superfície de uma quantidade de água pode ser eletrizada. Para realizar o experimento, fixou um recipiente de madeira em uma plataforma e colocou-os sobre uma placa de vidro, a qual foi previamente aquecida. Em seguida, a água foi colocada no recipiente de madeira. Um tubo de vidro eletrizado foi movimentado embaixo e em cima da água, cerca de quatro vezes, mas sem tocar as peças que compunham o experimento. Então, Gray colocou uma linha de seda sobre a superfície da água e verificou que ela era atraída e repelida. Também verificou a eletrização com pedaços de papel e lâmina de bronze.

Ao refazer este experimento, Du Fay conseguiu eletrizar um líquido. Nisso, há dois fatos importantes: o primeiro é que, além de tomar conhecimento de que não são apenas os sólidos que podem ser eletrizados, ele toma conhecimento da possibilidade de eletrização sem contato (eletrização por influência); o segundo, é a importância que ele atribui ao material da base que suporta o recipiente.

[...] Água pode ser eletrizada com a aproximação de um tubo de vidro eletrizado [...], descobri com o experimento que a mesma coisa aconteceu com todos os Corpos, sem Exceção, se sólido ou fluido, e para aquele propósito era suficiente colocá-lo sobre uma plataforma de vidro. [10, p. 259]

Acreditamos que no experimento a água ficou eletrizada com uma carga resultante diferente de zero. A água comum é condutora, cheia de íons. Quando o bastão atritado foi aproximado ao recipiente, houve um deslocamento de cargas na água, tal que mais perto do bastão eletrizado havia uma carga oposta e na parte mais afastada uma carga igual a sua. Isto pode ter gerado um intenso campo elétrico entre o bastão carregado e a superfície carregada da água. Este campo elétrico deve ter ocasionado faíscas ou descargas elétricas entre o bastão e a água, causando uma transferência de cargas entre eles. A água então adquiriu uma carga resultante de mesmo sinal que a do bastão, e como ela estava apoiada sobre uma superfície de vidro isolante, estas cargas não foram perdidas para a terra. Quando a linha foi colocada próxima à água carregada, ela polarizou eletricamente e ocorreu uma atração. Nesta hipótese o papel principal da base de vidro aquecido era o de ser um isolante, não permitindo que as cargas adquiridas pela água por meio das faíscas entre ela e o tubo de vidro eletrizado fossem depois perdidas para a terra.

Gray [9, p. 229] reporta que em outro experimento, muito semelhante ao anterior, era possível ver faíscas saindo da água e ouvir estalidos. Isso subsidia a hipótese acima. A placa de vidro, no experimento realizado por Du Fay, pode ainda influenciar de outra forma a eletrização da água. Tendo em vista que a placa é isolante, é possível que o tubo de vidro a tenha eletrizado com carga de sinal igual ao seu. Se a base de vidro estiver eletrizada, tem-se um campo elétrico na parte inferior do recipiente com água. Este campo tende a alinhar as moléculas de água, as quais são dipolos elétricos, de forma que os pólos negativos tenderão a ficar voltados para baixo. Como efeito macroscópico, tem-se a face superior da água com carga positiva e a face inferior (em contato com o recipiente) com carga negativa. O campo elétrico também tende a posicionar os íons negativos na face inferior e os íons positivos na face superior. Esta reorganização de íons e o alinhamento dos dipolos também pode colaborar com a polarização da água contida no recipiente. É importante ressaltar que estamos considerando os vidros utilizados nos experimentos como isolantes e o tubo eletrizado positivamente.

No quarto parágrafo Du Fay refuta a afirmação de Gray que as cores influenciam na força de atração.

Eu deveria ter dado algumas Explicações das descobertas que fiz no ano passado a respeito da Atração de Corpos Coloridos. Mostrando que eles atraem mais ou menos de acordo com suas cores, embora o material seja o mesmo, e tenha mesmo peso e tamanho. Somente observarei que descobri que o Vermelho, o Laranja e o Amarelo atraem três ou quatro pés a menos que o Verde, o Azul ou o Violeta. Embora, recentemente, tenha encontrado métodos novos e mais precisos para fazer estes experimentos, peço permissão para realizar novos experimentos sobre eles antes de comunicá-los. [11, p. 44]

Du Fay afirma que, ao realizar o primeiro experimento com fitas coloridas, em que ele as pendurava em uma linha (em ordem) e aplicava o tubo eletrizado, a vermelha foi a última e minimamente atraída. Em um segundo experimento, com as mesmas fitas, ele as aqueceu previamente e não foi verificada diferença na atração. O mesmo ocorreu quando ele as umedeceu: todas as fitas foram atraídas igualmente. Temos o aquecimento das fitas como um divisor, entre atrair igualmente e não atrair igualmente. Isso nos leva a suspeitar que a diferença de atração era devido a diferença de umidade das fitas. Estando uma fita mais úmida, ela deve apresentar uma maior força de atração sob ação do tubo. Isso se dá devido ao alinhamento dos dipolos das moléculas de água, formando sobre a face da fita uma região com "maior quantidade de determinada carga". Isso faz com que haja maior força de atração entre o tubo e a fita, e conseqüentemente, maior rapidez na atração. A reorganização dos íons dissolvidos na água também contribui com este processo.

Du Fay realizou novos experimentos para estudar se as cores poderiam interferir na eletrização dos corpos. Para isto colocou gazes de cores diferentes sobre argolas de madeira e sob elas foi colocada limalha de ouro. Ao aplicar o tubo sobre as gazes a limalha foi atraída, exceto aquelas cobertas com as cores preta e branca. Ele refaz o experimento aquecendo-as previamente. Após o aquecimento das gazes, a limalha foi atraída de forma igual em todas as cores, e quando foram umedecidas nenhuma limalha foi atraída.

No quinto parágrafo Du Fay volta sua atenção para a mais notável descoberta de Gray: a transmissão da eletricidade. Não se contentou apenas com o fato da transmissão, tentou encontrar algum princípio geral que governasse o processo. O experimento realizado consiste em prender, ou aproximar, a um tubo de vidro eletrizado uma das extremidades de um barbante de cânhamo, e então verificar se a outra extremidade do barbante atrai pequenos pedaços de metal. Du Fay descobriu, ou concluiu, que umedecendo a linha de transmissão, aumentaria a capacidade de transmissão da eletricidade [3, p. 49-50]. Uma possível explicação para isso está no fato de a água conter íons dissolvidos, isso faria com que houvesse maior movimentação e maior concentração de cargas nas extremidades do barbante. Du Fay aponta que os suportes para a linha de transmissão podem ser tubos de vidro, em vez de linhas de seda como Gray fazia. Eles acreditavam que o suporte de material condutor (não-elétrico) desviava certa quantidade de matéria elétrica. Temos duas hipóteses para a transmissão de eletricidade no barbante de cânhamo. Primeira: esta transmissão se dá por meio de indução eletrostática no barbante (polarização), o que não seria uma transmissão de eletricidade, mas sim transmissão de seus efeitos, uma vez que a extremidade do barbante distante do tubo teria os mesmos efeitos que o tubo eletrizado. Segunda: se o campo elétrico gerado pelo tubo eletrificado for suficientemente elevado, o material isolante sofre uma ruptura dielétrica, uma ionização parcial que permite a condução elétrica através dele [12, p. 116].

Ainda no quinto parágrafo Du Fay relata outro experimento de Gray, em que se verifica que a linha de transmissão não precisa ser contínua para que haja transmissão de eletricidade. O experimento consiste em colocar dois pedaços de barbante apoiados em linhas de seda, de forma que uma das extremidades de cada barbante fiquem próximas. Na outra extremidade do primeiro barbante coloca-se o tubo eletrizado, e na outra extremidade do segundo barbante verifica-se se há atração. Não foi verificada diminuição ou interceptação da transmissão quando Du Fay colocou vários objetos entre as linhas. Home afirma que, com este experimento, Du Fay concluiu que a matéria elétrica corre livremente no ar, sem estar presa a nenhum corpo [3, p. 50].

No sexto parágrafo Du Fay relata que pendurou a si próprio em linhas de seda quando refez o experimento em que Gray pendurou um garoto. Du Fay comenta que segurava em sua mão uma tábua com lâminas de ouro (detectores), porém os detectores não foram atraídos pela sua face ou mão. Isso ocorre porque ao segurar a tábua Du Fay deixava as lâminas sob o mesmo potencial elétrico a que ele estava submetido. Porém, quando outra pessoa se aproximava dele segurando a tábua com as lâminas ele as atraía. Esta pessoa estava sob um potencial diferente ao que Du Fay estava e essa diferença de potencial entre os corpos envolvidos propiciava a atração. Da mesma forma se explica o fato de que quando outra pessoa colocava a mão próxima a Du Fay, ele emitia faíscas e estalidos.

Du Fay relata que quando era passado sobre seu corpo algo que não fosse um corpo vivo, ou um metal, não havia emissão de faíscas. Ele cita madeira e tecido como exemplos. Isso se deve ao fato de a madeira e o tecido serem isolantes e não terem cargas livres que possam ser retiradas. O metal e todo corpo vivo são condutores e possuem cargas livres, por isso vertem faíscas e estalidos.

No sétimo parágrafo, Du Fay enuncia seu primeiro princípio sobre eletricidade:

[...] Corpos Elétricos atraem todos aqueles que não estão desta forma, e os repelem assim que eles tornam-se elétricos, pela Proximidade ou pelo Contato com o Corpo Elétrico. [10, p. 262]

Este primeiro princípio de Du Fay é uma constatação importante e dá a ele condições para propor a existência de dois tipos de eletricidade. Sua afirmação está correta quanto aos corpos eletrizados atraírem corpos neutros, pois aqueles que não estão eletrizados (neutros) são realmente atraídos por aqueles que estão eletrizados. Os corpos eletrizados, tanto com carga negativa quanto positiva, atraem os que estão neutros. É importante ressaltar que as afirmações que fazemos limitam-se a corpos em pequena escala, referentes aos utilizados nos experimentos em questão. Ainda neste parágrafo, é citado um experimento em que uma lâmina de metal é aproximada ao tubo, ela provavelmente está presa a uma linha isolante formando uma espécie de pêndulo.

No parágrafo seguinte Du Fay enuncia seu segundo princípio:

(...) existem duas Eletricidades distintas, muito diferentes uma da outra, uma que chamo de Eletricidade vítrea (p. 264) e a outra de Eletricidade resinosa. [10, p. 263-264]

O primeiro princípio conseguia explicar o que ocorria no experimento em que a lâmina de metal neutra, presa a uma linha isolante, era aproximada ao tubo eletrizado. Porém, falhou ao explicar o que ocorreu quando a lâmina eletrizada, devido à interação com o tubo, foi aproximada a um pedaço eletrificado de goma-copal. Pelo primeiro princípio, esperava-se que a lâmina fosse repelida pela copal, tendo em vista que corpos eletrizados se repelem, no entanto ela foi atraída. Du Fay então procedeu a uma seqüência de experimentos para tentar explicar o ocorrido. Isso culminou na enunciação das duas eletricidades e do segundo princípio5 5 Posteriormente, outras explicações foram propostas. Como exemplo, temos a teoria do fluido único de Benjamin Franklin. . O primeiro princípio ao falhar dá condição para enunciação do segundo. Este trabalho de Du Fay está descrito em detalhes na sua Quarta Memória [13]. Atualmente, é possível explicar a falha do primeiro princípio tendo em vista que o tubo estava carregado positivamente e a goma-copal estava carregada negativamente, a lâmina neutra ao interagir com o tubo ficou com carga positiva e ao ser aproximada da copal foi atraída.

Du Fay notou que os vidros e as resinas possuíam comportamento elétrico diferente, então nomeou as duas eletricidades como vítrea e resinosa. Com base nisto ele classificou alguns materiais. A eletricidade vítrea estava presente em materiais como vidro, pedra-cristal, pedras preciosas, pêlo de animais, lã, etc. Já a resinosa estava presente no âmbar, resina copal, goma-laca, linha, papel, etc. Notou também que os corpos com a mesma eletricidade se repelem e com eletricidades diferentes se atraem. Atualmente, essa classificação dos materiais em cada uma das eletricidades é questionável, pois um material adquire um ou outro tipo de eletricidade dependendo do material que o atrita. Se considerarmos a série triboelétrica, a classificação funciona bem para os materiais dos seus extremos, como por exemplo, o vidro. Ele está praticamente no topo da série e dificilmente será carregado negativamente por atrito. As resinas estão na parte inferior da série, e com isso é mais raro um material que as deixem com carga positiva. Contudo, a seda por estar na região central da série, se for atritada com lã adquire carga negativa, mas se for atritada com algodão, ou mesmo com âmbar, adquire carga positiva. Assim, a classificação de Du Fay só faz sentido caso o material utilizado para atritar seja sempre o mesmo.

No nono parágrafo Du Fay aborda um método para classificar um corpo dentro de um ou de outro tipo de eletricidade. Consiste em eletrizar uma linha de seda (pertencente à série resinosa) e aproximá-la ao corpo em teste, se ela for atraída o corpo pertence à série vítrea, caso ela seja repelida o corpo pertence à série resinosa. Contudo, se esta linha de seda não for sempre eletrizada com o mesmo material ela "fura" o segundo princípio e a classificação, tendo em vista o que discutimos no parágrafo anterior. Du Fay não discute sobre a classificação dos metais junto às eletricidades vítrea e resinosa, este é um problema em aberto para ele, já que não conseguiu eletrizar este material por meio de atrito.

5. Resultados e discussões

Du Fay reconhece a influência que Hauksbee e Gray exerceram sobre ele. A sua pesquisa inicial sobre os trabalhos em eletrostática feitos até então, Primeira Memória, deu-lhe conhecimento de teorias, experimentos e percalços sobre investigações em eletrostática. Ele sabia, por exemplo, do efeito da umidade, que é um fator importante quando se trabalha com eletricidade estática. Sabia como eletrizar os materiais de forma mais efetiva, isso o levou a encontrar um número muito maior de materiais eletrizáveis. Sabia também sobre o comportamento dos condutores quando utilizados como suporte para a linha de transmissão. Enunciou que a eletricidade não é uma característica restrita a determinada classe de materiais depois de tomar conhecimento da possibilidade de eletrização da água. O conhecimento das pesquisas anteriores é um fator importante no trabalho de Du Fay.

No artigo cuja tradução é apresentada a seguir, quase todos os experimentos realizados haviam sido propostos anteriormente. No entanto, as características dos três investigadores são diferentes. Hauksbee, ao que tudo indica, construiu aparelhos e elaborou experimentos para suas pesquisas, talvez com o objetivo de explicar o que é eletricidade. Gray quase que somente realizou experimentos, apesar das várias conclusões encontradas em seu trabalho ele não elaborou uma teoria para explicar a eletricidade, ele apenas concluiu sobre aspectos isolados. Du Fay, diferentemente de Hauksbee e Gray, não teve a preocupação de elaborar novas configurações experimentais para explicar a eletricidade, nos parece que seu objetivo está focado em buscar alguns princípios gerais que regessem os fenômenos. Também não elaborou nenhuma teoria explicativa para eletricidade, pelo menos não explicitamente. Segundo Home, Du Fay baseou seu pensamento nas idéias de Hauksbee [3, p. 58-59]. Porém, a teoria de Hauksbee previa que a ação elétrica deveria cessar no vácuo. Gray mostrou que isso não acontecia [14, p. 397]. Esse fato colocou dúvidas em Du Fay quanto a validade das idéias de Hauksbee, pelo menos quanto ao o papel representado pelo ar na sua teoria [3, p. 58-59].

Estes assuntos merecem e devem ser abordados em uma nova pesquisa sobre Du Fay. Contudo, o objetivo deste artigo é fazer uma breve apresentação da carta de Du Fay enviada à Royal Society. Também procuramos, na medida do possível, entender do ponto de vista atual a descrição dos experimentos realizados por Du Fay. Isto não no intuito de mostrar que Du Fay estava certo ou errado, mas como um exercício para entendermos os fenômenos descritos.

6. Tradução da carta do senhor Du Fay, F.R.S.6 6 Fellow of the Royal Society e da Academia Real de Ciências de Paris para sua alteza Charles, Duque de Richmond e Lenox, a respeito da eletricidade. Traduzido do francês por T.S. MD. [10]

Meu Senhor,

Estou lisonjeado comigo mesmo, Vossa Alteza não se decepcionará com os Relatos7 7 Para manter o texto original, algumas palavras estão grafadas com letras maiúsculas no meio das frases. de algumas Descobertas extraordinárias que fiz sobre Eletricidade dos Corpos. Não recuse o Favor que lhe peço, que esta [carta] possa ser comunicada a Royal Society. Eu devo esta Homenagem a esta Ilustríssima Corporação, não somente como um de seus membros mas, neste aspecto, como um Devedor dos trabalhos escritos pelo Senhor Gray8 8 Para detalhes da vida e obra de Stephen Gray, ver Ref. [15]. e anteriormente pelo Senhor Hauksbee9 9 Ver http://galileo.rice.edu/Catalog/NewFiles/hauksbee.html. , ambos [membros] dessa sociedade, por terem me informado a respeito do assunto, e fornecerem Sugestões que me levaram às seguintes Descobertas:

Primeiro, descobri que todos os corpos (exceto os metálicos, macios ou líquidos) podem ser Eletrizados, primeiro aquecendo-os, mais ou menos, e então os atritando em algum tipo de Tecido. Desta maneira, todos os tipos de Pedras, tanto preciosas quanto comuns, todas espécies de madeira em geral, e muitas coisas que testei tornaram-se Elétricas, por aquecimento e por atrito. Exceto aqueles Corpos que se tornam macios com aquecimento, como as Gomas, que se dissolvem na água, Cola e outras substâncias. Também foi observado que as pedras e os mármores mais duros (p. 259)10 10 Indicação da paginação original. requerem mais atrito ou calor do que os outros. A mesma regra se aplica a algumas espécies de madeira, como Guáiaco e outras, que devem ser aquecidas quase ao Grau de incendiarem-se, ao passo que o Abeto, a Tília e a Cortiça requerem calor moderado.

Segundo, Tendo lido em uma das Cartas do Senhor Gray [9] que a Água pode ser eletrizada com a aproximação de um tubo de vidro excitado (uma vasilha de Água foi primeiro fixada a um suporte, e [então] colocados sobre uma placa de vidro, ou sobre a borda de um copo, previamente aquecido por atrito ou de outro modo), descobri com o experimento que a mesma coisa aconteceu com todos os Corpos, sem Exceção, seja sólido ou fluido, e para aquele propósito era suficiente colocá-los sobre uma plataforma de vidro, indiferentemente aquecida ou somente seca, e então trazendo o Tubo próximo a eles imediatamente se tornaram elétricos. Fiz este Experimento com Gelo, com carvão, e com muitas coisas que vieram em minha mente. Constantemente, observei que os corpos que por si só estavam um pouco eletrizados11 11 Os eletricistas do século XVIII não utilizavam o termo "eletrizar", usavam ao invés a expressão "tornar elétrico". No entanto, empregamos a palavra "eletrizar" em alguns pontos desta tradução para deixar o texto mais claro. tinham um maior Grau de Eletricidade transmitida a eles com a aproximação do Tubo de Vidro.

Terceiro, o Senhor Gray disse no final de uma de suas Cartas [11] que Corpos atraem mais ou menos de acordo com as suas Cores. Isto me levou a realizar vários experimentos singulares. Peguei nove Fitas de tamanhos iguais, uma branca, uma preta, e as outras sete com as sete Cores primitivas,12 12 Provavelmente Du Fay estava se referindo às sete cores chamadas de primárias por Isaac Newton: Vermelho, Amarelo, Verde, Azul, Púrpura, Laranja e Índigo. Para detalhes, ver Ref. [16]. pendurei todas em ordem em uma mesma Linha. Então, trazendo o Tubo perto delas, a preta foi atraída primeiro, a branca (p. 260) foi a seguinte, e as outras foram sucessivamente atraídas até a vermelha, que foi minimamente atraída e a última de todas. Depois, cortei nove pedaços quadrados de Gaze, das mesmas cores das Fitas, e coloquei uma a uma sobre uma Argola de Madeira com Lâminas de Ouro [colocadas] sob elas.

As Lâminas de Ouro13 13 As lâminas eram utilizadas como detectores de eletricidade. Este hábito, que Du Fay tem de utilizar lâminas de metal, provavelmente foi adquirido com Gray, tendo em vista que Du Fay conhecia sua obra, como ele mesmo declarou. Gray utilizou lâminas de bronze como detectores. foram atraídas através de [quase] todos os Pedaços de Gaze coloridos, mas não através do branco e do preto. Isto me levou, a princípio, a acreditar que as cores contribuíam muito com a Eletricidade. Porém, três experimentos convenceram-me do contrário. Primeiro [experimento]: quando os Pedaços de Gaze foram aquecidos, nem o preto e nem o branco obstruíram a Ação do Tubo elétrico mais do que as outras Cores. De maneira semelhante, aquecendo as Fitas, as de cor preta e branca não atraíram mais fortemente do que as outras. Segundo [experimento]: umedecendo as Gases e as Fitas, estas foram atraídas igualmente, e todos os Pedaços de Gaze interceptaram igualmente a Ação dos Corpos elétricos. Terceiro [experimento]: As Cores de um Prisma sendo lançadas sobre um Pedaço de Gaze branca, [este] não apresentou nenhuma diferença de atração. Por esta razão, a diferença não provém da cor em si, mas do material que é empregado para este fim. Quando colori [algumas] Fitas, atritando-as em carvão, carmim, e outros materiais, as diferenças não se mostraram mais as mesmas.

Quarto, tendo transmitido eletricidade do Tubo por meio de um barbante de cânhamo, depois de ter feito da maneira do Senhor Gray, observei que o Experimento desenvolveu-se melhor umedecendo a Linha (barbante de cânhamo), e que ela pode ser apoiada sobre tubos de vidro, em vez de Linhas de Seda. Realizei este Experimento [alcançando] a Distância de 1256 pés14 14 1256 pés = 383 m. Na página 44 do artigo [11], Gray relata que conseguiu atingir a distância de 886 pés quando realizou o experimento para verificar a que distância conseguiria transportar a eletricidade. (p. 261) em um Jardim. Embora com vento forte, a Linha fez oito retornos e passou através de dois diferentes passeios. Por meio de dois laços [loops] de seda, ajustei duas Linhas de tal forma que suas extremidades ficassem distantes um pé15 15 1 pé = 0,304 m uma da outra, e observei que a Virtude Elétrica ainda foi transmitida. Vi na Philos. Trans. [14] N° 426, p. 431,16 16 A citação feita por Du Fay está errada, a descrição do experimento encontra-se à página 401, e não à página 431. que o Senhor Gray tinha a mesma. Opinião e que ele havia feito o mesmo [experimento] com Varas.17 17 Em seus experimentos, Gray utilizou uma vara de madeira e taquara para transmitir a eletricidade. Este Experimento levou-me a colocar vários Corpos diferentes entre as duas Linhas, a fim de verificar qual diminuiria ou interceptaria a Eletricidade, e qual não ofereceria nenhuma obstrução a ela. Forneci à Academia18 18 Real Academia de Ciências de Paris. algumas explicações mais detalhadas que omitirei agora devido à brevidade [da carta].

Quinto, suspendi uma Criança em Linhas de Seda, e realizei todos os surpreendentes Experimentos descritos pelo Senhor Gray, (Philos. Trans.,19 19 Gray realizou experimentos pendurando um garoto, deitado, em linhas de seda, como se estivesse pendurando-o em um balanço. Colocou um tubo eletrizado próximo a várias partes do corpo do menino para verificar se haveria atração. Também realizou o experimento com o garoto segurando varetas em ambas as mãos para verificar se elas atrairiam. Verificou que em todas as situações havia atração das lâminas colocadas sob o jovem [11]. N° 417, p. 39) [11]. Porém, realizei [também] o Experimento em meu próprio Corpo, da mesma maneira, e observei várias coisas extraordinárias. Primeiro: quando segurei em minha mão uma tábua, ou suporte, no qual as Lâminas de Ouro estavam apoiadas, nem a minha mão nem a minha face atraíram. Mas caso outra Pessoa que estivesse no quarto se aproximasse de mim, ela atrairia [as lâminas de ouro] com sua Face, sua mão, ou mesmo com um Bastão. Segundo: enquanto eu estava suspenso nas Linhas, se o Tubo eletrizado fosse colocado próximo às minhas Mãos, ou minhas Pernas, e então se outra Pessoa se aproximasse de mim e passasse a sua mão a uma distância de aproximadamente uma Polegada da minha Face, Pernas, Mãos ou Roupas, imediatamente emitiria de meu Corpo uma ou mais picadas, com estalos, causados tanto na pessoa quanto em mim. Há uma pequena (p. 262) Dor, semelhante a uma picada de alfinete ou queimadura de uma Faísca, que é tão perceptível através das Roupas quanto sobre a mão ou a face (nu). No Escuro estes estalos são, como pode ser facilmente imaginado, como muitas faíscas de Fogo. Estes Estalos ou Faíscas não são excitados se um pedaço de Madeira, tecido ou qualquer outra substância, que não um corpo vivo, for passada sobre a pessoa suspensa nas Linhas, a menos que seja um Pedaço de Metal, que produz quase o mesmo Efeito. Algum outro animal vivo produz o mesmo efeito, colocando-o sobre as Linhas e aplicando primeiro o Tubo e em seguida a mão próxima a ele. Por outro lado, se o Experimento for feito com a carcaça de um animal, somente poderemos perceber uma Luz uniforme, sem Estalos ou Faíscas, se o Experimento for realizado no escuro. Omitirei muitas outras Circunstâncias de menor Importância, contudo curiosas, para evitar que [o texto] fique muito extenso.

Sexto, realizando o Experimento relatado por Otto de Guerik20 20 Ver http://galileo.rice.edu/Catalog/NewFiles/guericke.html. na sua Coleção de Experimentos de Spatio Vácuo, que consiste em eletrizar uma Bola de Enxofre para repelir uma Pena, percebi que o mesmo efeito foi produzido não somente pelo Tubo, mas por todos os corpos elétricos.21 21 Não-condutores ou elétricos: também chamados de elétricos per se, têm a característica de, quando atritados com outros materiais, geralmente lã, seda ou pele, apresentarem uma força elétrica capaz de atrair ou repelir objetos leves. Dependendo da força, podem emitir faíscas e estalidos. Condutores ou não-elétricos: são materiais que embora sejam incapazes de serem excitados por atrito, podem, em certas circunstâncias, conduzir os efeitos elétricos de um corpo para outro [17]. Descobri um Princípio muito simples, que explica grande parte das irregularidades e dos Caprichos, se é que posso usar este Termo, que parecem acompanhar a maioria dos Experimentos em Eletricidade. Este princípio é: Corpos Elétricos atraem todos aqueles que não estão desta forma, e os repelem assim que eles tornam-se elétricos, pela Proximidade ou pelo Contato com o Corpo Elétrico. Desta forma, (p. 263) a Lâmina de Ouro é primeiro atraída pelo Tubo, adquire Eletricidade por aproximar-se dele e, conseqüentemente, é imediatamente repelida. A lâmina não é atraída novamente enquanto reter a Qualidade elétrica. Mas, se enquanto ela estiver suspensa no Ar, eventualmente tocar em algum outro Corpo, ela imediatamente perde sua Eletricidade e é atraída novamente pelo Tubo, que, após dar a ela uma nova Eletricidade, a repele pela segunda vez. Isto ocorre enquanto o Tubo mantiver sua Eletricidade. Aplicando este Princípio em vários Experimentos sobre Eletricidade fiquei surpreso com o Número de fatos obscuros e confusos que ele clareou. O famoso Experimento do Globo de Vidro do Senhor Hauksbee, no qual Linhas de Seda são usadas, é uma conseqüência necessária deste [princípio], ver Fig. 1. Quando estas Linhas são estendidas de Forma Radial pela Eletricidade, em direção ao Globo, se o Dedo for colocado próximo ao Lado de Fora dele, a linha dentro [do globo] afasta-se do dedo, como é bem conhecido. O que acontece somente devido a aproximação do Dedo, ou algum outro corpo colocado próximo ao Globo de Vidro, esta aproximação eletriza o corpo, e conseqüentemente repele a Linha de Seda, que são dotadas com semelhante Qualidade. Com um Pouco de reflexão podemos, da mesma maneira, explicar a maioria dos outros Fenômenos, aparentemente inexplicáveis, se atentarmos para este Princípio.


Sétimo, por acaso lançou-se em meu caminho outro Princípio, mais universal e extraordinário que o anterior, que lança uma nova luz sobre o tema Eletricidade. Este Princípio é: existem duas Eletricidades distintas, muito diferentes uma da outra, uma que eu chamo de Eletricidade vítrea (p. 264) e a outra de Eletricidade resinosa. A primeira é aquela do Vidro, Pedra-Cristal, Pedra Preciosa, Pêlo de Animais, Lã e muitos outros corpos. A segunda é aquela do Âmbar, [resina] Copal, Goma-Laca, Seda, Linha, Papel, e um vasto número de outros Materiais. A característica dessas duas eletricidades é que um Corpo de Eletricidade vítrea, por Exemplo, repele todos aqueles que possuem a mesma Eletricidade, e ao contrário, atrai todos aqueles de Eletricidade resinosa. Desta forma, o Tubo eletrizado repelirá Vidro, Cristal, Pêlo de Animal, etc., e atrairá seda, linha, papel, etc., embora eletrizado da mesma forma. O âmbar, ao contrário, atrairá vidros eletrizados e outros materiais da mesma classe, e repelirá Goma-Laca, [resina] Copal, Seda, linha, etc. Duas Fitas de Seda eletrizadas repelirão uma a outra, duas Linhas de Lã farão o mesmo, mas uma Linha de Lã e uma Linha de Seda vão se atrair mutuamente. Este Princípio explica muito naturalmente porque as Extremidades das Linhas de Seda ou de Lã afastam-se uma da outra em forma de Pincel ou Vassoura quando elas adquirem a Qualidade elétrica. Deste Princípio podemos, com a mesma Facilidade, deduzir a Explicação de um grande Número de outros Fenômenos. É provável que esta Verdade nos levará a descobertas adicionais em muitas outras coisas.

A fim de saber rapidamente a qual das duas Classes de Eletricidade pertence algum corpo, é preciso somente Eletrizar uma Linha de Seda, que sabemos pertencer a [classe de] Eletricidade resinosa, e verificar se aquele Corpo eletrizado (p. 265) a atrai ou a repele. Se ele a atrair, certamente é da classe de Eletricidade que chamo de vítrea, e se ele a repelir é da mesma classe de Eletricidade da Seda, que é a resinosa. Observei da mesma forma, que corpos para os quais transmitimos Eletricidade retêm a mesma propriedade. Se uma Bola de Marfim ou de Madeira for colocada sobre uma Placa de Vidro, e esta bola for eletrizada pelo Tubo, ela repelirá todos os materiais que o Tubo repele. Mas se ela for eletrizada aplicando um Cilindro de Goma-Laca próximo a ela, produzirá o Efeito contrário, a saber, precisamente o mesmo que a Goma-Laca produziria. Para realizar estes Experimentos é requisito que os dois Corpos, que são colocados próximos um ao outro para encontrar a Natureza de suas Eletricidades, estejam tão eletrizados quanto possível. Se um deles não estiver eletrizado, ou estiver apenas fracamente eletrizado, ele será atraído pelo outro, embora seja da classe [de eletricidade] que deveria naturalmente ser repelida. Porém, o Experimento sempre ocorrerá perfeitamente se ambos os Corpos estiverem suficientemente eletrizados.

Tenho vários métodos para descobrir a Natureza da Eletricidade dos Corpos, mas minha Carta já está longa o suficiente e meu Propósito era somente dar a Vossa Alteza um pequeno Extrato (essência) dos Experimentos que fiz no último Ano. Imploro a Vossa Alteza para comunicá-la a Royal Society e, em particular para o Senhor Gray, que trabalha neste Tema com muita Aplicação e Sucesso, para quem reconheço minha dívida pelas Descobertas que fiz e também por aquelas que poderei fazer futuramente, visto que é dos escritos dele (p. 266) que eu tomei a Decisão de dedicar-me a este tipo de Experimento.

Tenho a Honra, e é com a mais sincera e mais respeitosa lealdade, Meu Senhor,Vossa Alteza, Mais Humilde e mais Obediente Servidor

Du Fay.

Agradecimentos

Os autores agradecem às sugestões do árbitro anônimo para o aprimoramento deste artigo e também às sugestões e críticas do Prof. Dr. André Koch Torres Assis. S.L.B.B. agradece à FAPESP pela bolsa de Iniciação Científica.

Recebido em 10/4/2007; Aceito em 31/8/2007

  • [1] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th Century: A Study of Early Modern Physics (University of California Press, Berkeley, 1979).
  • [2] I.B. Cohen, Franklin and Newton: An Inquiry Speculative Newtonian Experimental Science and Franklin'S Work in Electricity as an Example Thereof (Harvard University Press, Cambridge, 1966).
  • [3] R.W. Home, The Effluvial Theory of Electricity (Arno Press, New York, 1981).
  • [4] E.T. Canby, História da Eletricidade (Livraria Moraes, Lisboa, 1966).
  • [5] R.A. Chipman, Isis 45, 33 (1954).
  • [6] S. Gray, Philosophical Transactions of The Royal Society 31, 104 (1720).
  • [7] P. Atkins e L. Jones, Princípios de Química: Questionando a Vida Moderna e o Meio Ambiente (Bookman, Porto Alegre, 2001).
  • [8] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Eletromagnetismo (Edgard Blucher, Săo Paulo, 1997), v. 3.
  • [9] S. Gray, Philosophical Transactions of The Royal Society 37, 227 (1732).
  • [10] C.F.C. Du Fay, Philosophical Transactions of The Royal Society 38, 258 (1733).
  • [11] S. Gray, Philosophical Transactions of The Royal Society 37, 18 (1731).
  • [12] F.W. Sears e M.W. Zemansky, Física III: Eletromagnetismo (Addison Wesley, Săo Paulo, 2004).
  • [13] C.F.C. Du Fay, Memoires de l'Académie Royale des Sciences A, 457-476 (1733).
  • [14] S. Gray, Philosophical Transactions of The Royal Society 37, 397 (1732).
  • [15] D.H. Clark and L. Murdin, Vistas in Astronomy 23, 351 (1979).
  • [16] C.C. Silva e R.A. Martins, Revista Brasileira de Ensino de Física 18, 322 (1996).
  • [17] Electricity, in Encyclopaedia; or A dictionary of Arts, Sciences, and Miscellaneous Literature (Thomas Dobson, Philadelphia, 1798), v. 6, p. 420.
  • 1
    E-mail:
  • 2
    E-mail:
  • 3
    As pessoas interessadas em consultar os textos originais do trabalho de Du Fay podem fazê-lo acessando o endereço eletrônico
    http://gallica.bnf.fr. Este sítio é mantido pela Biblioteca Nacional da França e possui uma grande quantidade de material histórico digitalizado,
    e.g., livros, revistas, etc. Para os interessados em história da ciência é uma fonte de consulta preciosa.
  • 4
    O que discutiremos aqui não era do conhecimento dos eletricistas dos séculos XVII e XVIII, mas esclarece a importância de aquecermos os materiais manipulados em experiências de eletrostática.
  • 5
    Posteriormente, outras explicações foram propostas. Como exemplo, temos a teoria do fluido único de Benjamin Franklin.
  • 6
    Fellow of the Royal Society
  • 7
    Para manter o texto original, algumas palavras estão grafadas com letras maiúsculas no meio das frases.
  • 8
    Para detalhes da vida e obra de Stephen Gray, ver Ref. [15].
  • 9
    Ver
  • 10
    Indicação da paginação original.
  • 11
    Os eletricistas do século XVIII não utilizavam o termo "eletrizar", usavam ao invés a expressão "tornar elétrico". No entanto, empregamos a palavra "eletrizar" em alguns pontos desta tradução para deixar o texto mais claro.
  • 12
    Provavelmente Du Fay estava se referindo às sete cores chamadas de primárias por Isaac Newton: Vermelho, Amarelo, Verde, Azul, Púrpura, Laranja e Índigo. Para detalhes, ver Ref. [16].
  • 13
    As lâminas eram utilizadas como detectores de eletricidade. Este hábito, que Du Fay tem de utilizar lâminas de metal, provavelmente foi adquirido com Gray, tendo em vista que Du Fay conhecia sua obra, como ele mesmo declarou. Gray utilizou lâminas de bronze como detectores.
  • 14
    1256 pés = 383 m. Na página 44 do artigo [11], Gray relata que conseguiu atingir a distância de 886 pés quando realizou o experimento para verificar a que distância conseguiria transportar a eletricidade.
  • 15
    1 pé = 0,304 m
  • 16
    A citação feita por Du Fay está errada, a descrição do experimento encontra-se à página 401, e não à página 431.
  • 17
    Em seus experimentos, Gray utilizou uma vara de madeira e taquara para transmitir a eletricidade.
  • 18
    Real Academia de Ciências de Paris.
  • 19
    Gray realizou experimentos pendurando um garoto, deitado, em linhas de seda, como se estivesse pendurando-o em um balanço. Colocou um tubo eletrizado próximo a várias partes do corpo do menino para verificar se haveria atração. Também realizou o experimento com o garoto segurando varetas em ambas as mãos para verificar se elas atrairiam. Verificou que em todas as situações havia atração das lâminas colocadas sob o jovem [11].
  • 20
    Ver
  • 21
    Não-condutores ou elétricos: também chamados de elétricos
    per se, têm a característica de, quando atritados com outros materiais, geralmente lã, seda ou pele, apresentarem uma força elétrica capaz de atrair ou repelir objetos leves. Dependendo da força, podem emitir faíscas e estalidos.
    Condutores ou não-elétricos: são materiais que embora sejam incapazes de serem excitados por atrito, podem, em certas circunstâncias, conduzir os efeitos elétricos de um corpo para outro [17].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Recebido
      10 Abr 2007
    • Aceito
      31 Ago 2007
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