Resumos
Este artigo discute a interdisciplinaridade no ensino médico, reconhecendo que as denúncias sobre a fragmentação deste ensino e a ênfase disciplinar na conformação do projeto pedagógico, centrada em concepções biologicistas e visões especializadas, intensificam-se frente aos processos de consolidação das reformulações curriculares dos cursos de graduação em Medicina. A partir de um rastreamento conceitual sobre interdisciplinaridade, privilegiando as interlocuções com Morin, Fazenda, Fourez, Pombo e Furlanetto, analisa-se a existência de múltiplos olhares e compreensões sobre o seu significado. Construir caminhos no ensino médico a partir da interdisciplinaridade inclui a implementação de desenhos curriculares que possibilitem a articulação de conteúdos, valorizem o enfoque problematizador e desenvolvam atividades acadêmicas que tenham como eixos a prática médica no contexto do trabalho em saúde, a inserção do estudante e do professor como sujeitos, a produção contextualizada de saberes. Delineiam-se desafios e possibilidades para a construção de propostas formativas que empreendam práticas interdisciplinares frente à complexidade das dinâmicas de ensinar, aprender e cuidar em Medicina.
Educação Médica; Comunicação Interdisciplinar; Relações Interprofissionais
This paper discusses interdisciplinarity in medical education, recognizing that the complaints on the fragmentation in the curricular reformulation processes is more intensive in the undergraduate medicine courses due to the emphasis given to a pedagogic project based on biologicist and specialization concepts. The concept interdisciplinarity was analyzed from multiple viewpoints, based on a conceptual tracking and favoring interlocutions with Morin, Fazenda, Fourez, Pombo e Furlanetto. The construction of directions in medical education based on interdisplinarity includes the implementation of curricular designs allowing to articulate contents, encouraging problem-based approaches and promoting academic activities guided by medical practices anchored in the context of health services, insertion of students and teachers as subjects in the process and production of background knowledge. We delineate challenges and possibilities for the construction of proposals for a curriculum employing interdisciplinary practices for facing the complexity of medical activities such as teaching, learning and health care.
Education, Medical; Interdisciplinary Communication; Interprofessionals Relations
ENSAIO
A interdisciplinaridade no ensino médico
Interdisciplinarity in medical education
Sylvia Helena da Silva Batista
Psicóloga, Doutora em Psicologia da Educação, Universidade Federal de São Paulo, Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde, Programa de Mestrado Ensino em Ciências da Saúde, São Paulo, Brasil
Endereço para Correspondência Endereço para Correspondência: Universidade Federal de São Paulo Departamento Ciências da Saúde Avenida Ana Costa, 95 04020-041 - Santos, SP - Brasil
RESUMO
Este artigo discute a interdisciplinaridade no ensino médico, reconhecendo que as denúncias sobre a fragmentação deste ensino e a ênfase disciplinar na conformação do projeto pedagógico, centrada em concepções biologicistas e visões especializadas, intensificam-se frente aos processos de consolidação das reformulações curriculares dos cursos de graduação em Medicina. A partir de um rastreamento conceitual sobre interdisciplinaridade, privilegiando as interlocuções com Morin, Fazenda, Fourez, Pombo e Furlanetto, analisa-se a existência de múltiplos olhares e compreensões sobre o seu significado. Construir caminhos no ensino médico a partir da interdisciplinaridade inclui a implementação de desenhos curriculares que possibilitem a articulação de conteúdos, valorizem o enfoque problematizador e desenvolvam atividades acadêmicas que tenham como eixos a prática médica no contexto do trabalho em saúde, a inserção do estudante e do professor como sujeitos, a produção contextualizada de saberes. Delineiam-se desafios e possibilidades para a construção de propostas formativas que empreendam práticas interdisciplinares frente à complexidade das dinâmicas de ensinar, aprender e cuidar em Medicina.
Palavras-chave: Educação Médica; Comunicação Interdisciplinar; Relações Interprofissionais.
ABSTRACT
This paper discusses interdisciplinarity in medical education, recognizing that the complaints on the fragmentation in the curricular reformulation processes is more intensive in the undergraduate medicine courses due to the emphasis given to a pedagogic project based on biologicist and specialization concepts. The concept interdisciplinarity was analyzed from multiple viewpoints, based on a conceptual tracking and favoring interlocutions with Morin, Fazenda, Fourez, Pombo e Furlanetto. The construction of directions in medical education based on interdisplinarity includes the implementation of curricular designs allowing to articulate contents, encouraging problem-based approaches and promoting academic activities guided by medical practices anchored in the context of health services, insertion of students and teachers as subjects in the process and production of background knowledge. We delineate challenges and possibilities for the construction of proposals for a curriculum employing interdisciplinary practices for facing the complexity of medical activities such as teaching, learning and health care.
Key-words: Education, Medical; Interdisciplinary Communication; Interprofessionals Relations.
"No mistério do Sem Fim, equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim, e, no jardim, um canteiro,
no canteiro, uma violeta, e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem Fim, a asa de uma borboleta."
(Cecília Meireles - Canção)
Interdisciplinaridade é um tema que assume um sentido nuclear no campo da Educação Médica, especialmente neste momento de implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais. Ao delinear o contexto da abordagem que será empreendida neste artigo, vale situar que falo do lugar de uma professora universitária que traz em sua bagagem um encontro bastante significativo com as interseções medicina e educação, na prática de formação docente em saúde. Este lugar traz, em si, características, possibilidades de interpretação e apropriação, acreditando nas interações sociais como espaços para que outros olhares sejam forjados e novos patamares de compreensão possam ser configurados.
No campo do ensino em saúde, as denúncias sobre a fragmentação deste ensino, o distanciamento dos conteúdos curriculares em relação ao perfil de uma formação geral do médico e às necessidades de saúde da população, a desvalorização de abordagens no que se refere à ética, à humanização e ao cuidado, o deslocamento do aluno para a posição do sujeito que recebe passivamente a informação e a centralidade do processo pedagógico no professor como fonte única de saber são recorrentes e intensificam-se frente aos processos de consolidação e implementação das reformulações curriculares dos cursos de graduação em Medicina.
Batista e colaboradores1, Feuerwerker2 e Almeida3 têm discutido como áreas de dificuldades para o ensino em saúde: as dicotomias (teoria e prática; saúde e doença; promoção e cura; básico e profissional; ensino e pesquisa) na formação de novos profissionais; o biologicismo e o hospitalocentrismo na formação em saúde, que reduzem as práticas a seus aparatos técnicos e tecnológicos; as dimensões ética e humanista consideradas em segundo plano; a formação docente frente às mudanças políticas e educacionais, incluindo uma significativa fragilidade no processo de profissionalização docente; a desvinculação dos currículos em relação às necessidades da comunidade e o distanciamento entre os cenários de aprendizagem e assistência.
Quando se fala deste ensino, delineiam-se zonas de interseção entre práticas educativas e de saúde, configurando o encontro de múltiplos saberes e fazeres. Reconhecem-se, assim, áreas de fronteiras que ultrapassam a divisão disciplinar clássica do conhecimento científico.
Focalizar o ensino médico como uma prática social, buscando novas atitudes perante o conhecimento, permite identificar uma consonância com os pressupostos que têm orientado a reordenação não somente do ensino, mas também dos serviços e das práticas profissionais em saúde. Sobre este aspecto, Feuerwerker2 afirma:
"Há necessidade de redefinir referenciais e relações com diferentes segmentos da sociedade no sentido da universidade construir um novo lugar social, mais relevante e comprometido com a superação das desigualdades. No campo da Saúde, é indispensável que a produção de conhecimento, formação profissional e prestação de serviços sejam tomadas como indissociáveis de uma nova prática."
Um importante desafio no processo de transformação dos cursos médicos refere-se à incorporação da concepção ampliada de saúde com ênfase na integralidade e no cuidado no processo de formação profissional, bem como a aprendizagem para o trabalho em equipe multiprofissional. Nessa direção, resgata-se a dimensão política da saúde, explicitada na 8ª Conferência Nacional de Saúde4, em 1986, como "resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde". Agregando a dimensão política, Canguilhen5 situa um plano epistemológico na concepção de saúde: "uma maneira de abordar a existência com uma sensação não apenas de possuidor ou portador, mas também, se necessário, de criador de valor, de instaurador de normas vitais". Essa ótica de saúde realça o lugar do sujeito que a constrói nas interações que mantém com os outros, com o mundo e consigo mesmo. Abandona a contraposição linear de saúde e doença, reconhece os processos de autoria e de condicionamento histórico-cultural de práticas de vida, inscrevendo saúde como direito e serviço6.
No contexto desta concepção ampliada, têm sido produzidas propostas de formação que buscam, em diferentes níveis, articular ensino-serviços-comunidade, formação-controle social, ensino-realidade, ensino-pesquisa-extensão. Estas propostas trazem expectativas de gerar impactos no modo de concretizar as propostas formativas em saúde, alterando as "rotas" do ensino e da aprendizagem tradicionais, centradas nos conteúdos biológicos e na intervenção curativa, trazendo à tona a discussão do aprender como um processo que integra cognição-afeto-cultura e possibilitando o desenvolvimento de uma competência profissional vinculada a uma prática de integralidade na assistência ao indivíduo e à comunidade.
Há, assim, um reconhecimento do esgotamento dos modelos mais conhecidos de formação, indicando-se que demandas até então negligenciadas e/ou desvalorizadas estão a exigir a reconfiguração dos itinerários de formação profissional em saúde, articulando, além da sempre presente tríade ensino-pesquisa e extensão, os espaços de ensino com o âmbito dos serviços e dos condicionantes criados pelas políticas públicas de saúde e educação.
Nesse sentido, propostas curriculares na formação do médico que sinalizem novos lugares para professor, aluno e conhecimento, apontando para relações de proximidade e troca com o cotidiano dos serviços, numa perspectiva do trabalho em saúde como algo que transcende os fazeres individualizados de cada profissão, têm sido assumidas como potencialmente importantes para a construção de caminhos formativos que lidem com as ciências como elaborações humanas historicamente condicionadas. Morin7 afirma:
"[...] todo conhecimento constitui, ao mesmo tempo, uma tradução e uma reconstrução, a partir dos sinais, símbolos, sob a forma de representações, idéias, teorias, discursos. (...) Trata-se de procurar sempre as relações e inter-retro-ações entre cada fenômeno e seu contexto, as relações de reciprocidade todo/partes: como uma modificação local repercute sobre o todo e como uma modificação do todo repercute sobre as partes."
E na busca por um projeto de ensino médico que signifique encontro de diferentes conhecimentos e configuração de novos cenários de aprendizagem, emerge, com grande ênfase, a crítica ao modelo disciplinar clássico dos currículos dos cursos. Delineiam-se contextos científicos e acadêmico-institucionais para o encontro com a interdisciplinaridade. Para Furlanetto8:
"A proliferação das disciplinas científicas, a diversificação do saber e o questionamento social a respeito do papel que esse conhecimento estava assumindo no mundo contemporâneo possibilitaram que a palavra interdisciplinaridade fosse cada vez mais pronunciada. (...) À medida que a compreensão vai se aprofundando, o próprio conceito de disciplina, bem como o seu papel no que se refere à produção e organização do conhecimento passam a ser redimensionados."
A partir de uma visão histórica, entendo que o redimensionamento aludido pela autora situa o encontro com a interdisciplinaridade como um dos caminhos possíveis para a transformação do ensino em saúde, não tendo caráter redentor ou de panacéia, mesmo que possamos encontrar este tom em alguns discursos. Na direção de aprofundar os sentidos desse caminho, parece-me importante clarificar as concepções que têm circulado sobre interdisciplinaridade e mapear desdobramentos no plano das práticas de ensinar e aprender em Medicina.
INTERDISCIPLINARIDADE: CONHECENDO UM CAMPO POLISSÊMICO
Morin9, Fourez10,11, Pombo12,13 e Pimenta14 explicitam uma instigante dialética entre as disciplinas científicas (forma específica de organização e divisão dos saberes especializados) e os movimentos de articulação, integração, diálogo entre as diferentes áreas das ciências.
Os autores sublinham a institucionalização da organização disciplinar no século 19, indicando que seu desenvolvimento no século 20 teve na pesquisa científica empreendida na universidade um eixo primordial. Essa démarche está inscrita na história das ciências, na história das universidades modernas e na história das sociedades, desvelando os percursos da construção dos conhecimentos em suas lógicas internas (objeto, método, instrumentos) e externas (relação com outras disciplinas, fronteiras teóricas).
Este modelo, ao trazer inegáveis avanços para o conhecimento em geral, representou, também, a emergência da especialização como um caminho fundamental para este avanço, desdobrando-se na constituição de áreas hiperespecializadas. Tais áreas, importantes e singulares nas atividades científicas contemporâneas, contribuíram para rumos cada vez mais sofisticados e relativamente autônomos na produção de conhecimentos.
Observa-se, assim, que os próprios caminhos de produção de conhecimento geram suas contradições e pontos de inflexão, parecendo fazer emergir, como uma outra face da mesma moeda, os movimentos de aproximação, de colaboração e troca entre os saberes científicos. Morin9 afirma que é necessário reconhecer a história oficial da ciência como marcada pela criação e desenvolvimento de disciplinas, mas também que uma outra história se estruturou como inseparável: a constituição dos movimentos interdisciplinares.
A expressão interdisciplinaridade passa a circular no âmbito das ciências, com particular destaque, a partir dos anos 1970. Santomé15 refere como marco o Seminário Internacional do Centro de Pesquisa e Inovação do Ensino sobre Pluridisciplinaridade e Interdisciplinaridade, ocorrido na França em 1970, promovido pelo Centro para a Pesquisa e Inovação no Ensino da Organização para Cooperação e Desenvolvimento.
Neste evento, cientistas discutiram os riscos dos movimentos cada vez mais expressivos da especialização, os quais caracterizavam a fragmentação do conhecimento e esboçavam a impossibilidade de um saber comprometido com uma integração científica maior. Fazenda16 e Klein17 destacam as reações desse momento, trazendo as posições de grandes cientistas, como Jean Piaget. Este, inclinado sobre os processos de construção do conhecimento, percebeu o reducionismo das formulações biológicas e psicológicas quando tomadas isoladamente, insistindo em movimentos de aproximação e colaboração.
Todo esse movimento colaborou para a expressiva disseminação da expressão interdisciplinaridade, gerando um novo paradoxo: ao tudo nomear, espraia-se o sentido de uma ruptura epistemológica, parecendo tratar de uma obviedade do cotidiano humano. Sobre isto, é importante acompanhar as expressões de Jacquard18: "Há palavras que são como esponjas, absorvem as substâncias que encontram, se enriquecem dos sentidos atribuídos, mas correm o risco de se esvaziar e não apresentar mais nenhuma significação."
Para Pombo12, a interdisciplinaridade, contudo, "é uma palavra que persiste, resiste, reaparece. O que significa que nela e por ela algo de importante se procura pensar". Ao enveredarmos pelas possibilidades de compreender os sentidos desse "algo de importante", vão emergindo diferentes entendimentos do que seja interdisciplinar.
Fazenda16,18,19 identifica uma marca inicial: a interdisciplinaridade como integração de disciplinas. Essa concepção parece denunciar, explicitamente, que as disciplinas precisam estabelecer canais de comunicação e de colaboração, possibilitando construir referenciais teórico-metodológicos mais ampliados sobre as situações e problemas da realidade.
Morin9, ao escrever sobre interdisciplinaridade, chama a atenção para o fato de que as fronteiras disciplinares foram questionadas pela complexidade da realidade, na medida em que as idéias de propriedade, de desqualificação do outro considerado estrangeiro (não especialista) em um campo científico foram sendo fortemente criticadas nos itinerários de avançar cientificamente em objetos que desafiam um único olhar. O autor afirma ser necessário, em vários programas de pesquisa, que os "esquemas cognitivos" de uma disciplina migrem para outras áreas do conhecimento e retornem ao campo original, trazendo superações, novas hipóteses de trabalho e produzindo mudanças nos modos de organização.
O aprofundamento dessa perspectiva provoca, no interior da própria interdisciplinaridade, outros sentidos que vão coabitando com a idéia de integrar, aproximar, pôr em contato. A emergência de múltiplas e simultâneas significações tem, para Lenoir21, uma forte influência dos contextos culturais e científicos. Assim, o autor alerta que assumir a interdisciplinaridade como um caminho inovador no ensino implica reconhecer sua polissemia e múltiplos enfoques, sendo recente o investimento de clarificação conceitual, revelando-se como uma teoria em construção.
Pombo13 apresenta uma concepção na qual situa interdisciplinaridade como um continuum no qual as esferas de justaposição, fusão, transcendência circulam em diferentes sentidos e configuram modos de trabalhar com os encontros, diálogos e conexões entre os saberes científicos. A autora acentua que a constituição desse continuum traz o reconhecimento de que o avanço das ciências não ocorre apenas, linearmente, pela especialização crescente, mas também por olhares mais transversais. A percepção em foco está sendo produzida num mundo em transformação em que a proliferação de novas práticas de intervenção em face dos novos problemas gerados pela sociedade contemporânea provoca ruptura das rígidas fronteiras disciplinares, colocando conjuntos de conhecimentos em rede, alargando o conceito de ciência, de aprendizagem, de pesquisa e das interseções entre os conhecimentos científicos e a política, a arte, a economia, a educação, a saúde.
Fazenda19, pesquisadora brasileira fortemente influenciada pela obra de Georges Gusdorf e Hilton Japiassu*, utiliza a expressão atitude para explicitar uma outra concepção de interdisciplinaridade.
Atitude de buscar alternativas para conhecer mais e melhor; atitude de espera perante atos não-consumados; atitude de reciprocidade que impele à troca, ao diálogo com pares idênticos, com pares anônimos ou consigo mesmo; atitude de humildade diante da limitação do próprio saber; atitude de perplexidade ante a possibilidade de desvendar novos saberes; atitude de desafio diante do novo, desafio de redimensionar o velho; atitude de envolvimento e comprometimento com os projetos e pessoas neles implicados; atitude de responsabilidade, mas, sobretudo, de alegria, revelação, encontro, enfim, de vida.
A interdisciplinaridade como atitude é mais discutida pela autora ao propor uma incursão sobre qual o seu sentido, destacando o sentido do ser (um olhar da antropologia filosófica), o sentido do pertencer (a perspectiva da antropologia cultural) e o sentido do fazer (a abordagem da antropologia existencial). Esses sentidos se cruzariam, alterando e inaugurando possibilidades de produzir conhecimento e propor intervenções na realidade.
Uma outra concepção tem sido anunciada por Fourez10,21 ao assumir interdisciplinaridade como a construção de ilhas de racionalidade. Ao propor essas ilhas, aborda a triangulação representação, imaginação e criatividade que, em sua ótica, estaria presente na produção dos conhecimentos científicos. Esta "tríade" acaba por tornar visível a complexidade da realidade, exigindo que se reconheça que as ciências produzem explicações parciais, pois há insígnias contextuais e circunstâncias intersubjetivas que transformam as relações entre os objetos de estudo, os métodos privilegiados e os conceitos elaborados. Depreende-se que há na expressão representação uma ótica de saberes disciplinares que circulam nas esferas das ciências, ora se aproximando como uma troca superficial de enfoques teórico-metodológicos, ora buscando instaurar planos de conexões mais ampliados (projetos comuns), ou, ainda, empreendendo a construção de novos campos científicos em uma visão de complexidade e totalidade.
Sem abandonar o aporte das disciplinas científicas, Fourez11 enfatiza que a abordagem interdisciplinar constitui uma proposta que articula o contexto (as questões culturais), os projetos e objetivos que estão sendo privilegiados, os saberes dos sujeitos envolvidos, os destinatários dos saberes produzidos e a que produção se pretende chegar.
Os espaços abertos pelas articulações, nexos e rupturas instaurados entre as disciplinas representam para Furlanetto22,23,8 o sentido da interdisciplinaridade como espaço entre, que não é o lugar do objeto nem do sujeito, mas o lugar das interações entre sujeito e objeto. Para a autora, interdisciplinaridade constitui:
"[...] esse conhecimento que se produz nas regiões em que as fronteiras se encontram e criam espaços de interseção, onde o eu e o outro, sem abrir mão de suas características e de sua diversidade, abrem-se disponíveis à troca e à transformação. Qualquer prática interdisciplinar acontece a partir dessa postura de expansão de campos e de abertura de fronteiras."22
As concepções trabalhadas até aqui conferem visibilidade importante a um fato que surge entre os teóricos e os pesquisadores: não há um programa teórico unificado de interdisciplinaridade, sinalizando a existência de múltiplos olhares e compreensões. As continuidades e rupturas, os racionalismos e os relativismos, as intersubjetividades, as possibilidades de pôr em comum e o respeito às diferenças são processos vividos na produção científica contemporânea. E nesta, a interdisciplinaridade, com a sua polissemia e multiplicidade, traz sua contribuição.
A INTERDISCIPLINARIDADE NO ENSINO MÉDICO
O percurso construído parece-me que nos lança ao desafio de nos aproximar de algumas pistas para a construção de uma formação médica interdisciplinar que possa articular o cuidado, a integralidade, o controle social, a humanização e a ética, sem secundarizar as abordagens e pesquisas disciplinares.
Boaventura Santos24 comenta que "a universidade não poderá promover a criação de comunidades interpretativas na sociedade se não as souber criar no seu interior, entre docentes, estudantes e funcionários. Para isso é preciso submeter as barreiras disciplinares e organizativas a uma pressão constante.".
Nessa direção, pensar o ensino médico no contexto da universidade atual exige a ousadia de não enquadrar as demandas em velhos modelos de aprendizagem, mas a lucidez de encontrar, nas situações concretas, suas potencialidades de formação. Para Batista25:
"[...] formação traz em si uma intencionalidade que opera tanto nas dimensões subjetivas (caráter, mentalidade) como nas dimensões intersubjetivas, aí incluídos os desdobramentos quanto ao trajeto de constituição no mundo de trabalho (conhecimento profissional). Portanto, não se trata de algo relativo a apenas uma etapa ou fase do desenvolvimento humano, mas sim como algo que percorre, atravessa e constitui a história dos homens como seres sociais, políticos e culturais."
Formação envolve, assim, planos epistemológico e prático (experiencial) de aprendizagem. No plano epistemológico, identifica-se que aprender articula cognição, afeto e cultura numa perspectiva histórico-social, trazendo a questão da mediação e da intersubjetividade. Mediar a aprendizagem do cuidado implica sair da ênfase na doença, da abordagem biologicista das condições de vida e das relações de causalidade linear entre saúde e doença. Sair desse espectro possibilita dimensionar uma formação em saúde que se funde nas condições concretas de vida.
No plano prático (experiencial), a aprendizagem do aluno deve se vincular à prática e ao cotidiano, evidenciando que aprender e fazer apresentam dinâmicas de conexão, complementaridade e atribuição de significados. Nesse âmbito, a formação aparece como a possibilidade de construir novos sentidos para a formação em saúde, procurando configurar espaços de aprendizagem que estejam coadunados com as necessidades e demandas sociais, respondendo aos desafios contemporâneos da ética, da integralidade, do cuidado e da intersetorialidade.
Nessa perspectiva de formação, a interdisciplinaridade parece ter um lugar importante. Todavia, Chatterjee26 alerta para o risco de se assumir a interdisciplinaridade como vitamina, numa metáfora no campo das ciências da saúde, circunscrevendo-a a práticas pontuais, isoladas e com reduzidas chances de, efetivamente, estabelecer cenários inovadores na formação universitária.
O autor argumenta a favor de uma abordagem da interdisciplinaridade na saúde como vacina, assumindo uma postura prospectiva e de concreto compromisso com o reordenamento curricular, invertendo e alterando os clássicos roteiros disciplinares, criando circunstâncias, mecanismos e instrumentos para que outras formas de trabalho possam se materializar.
Nessa direção, a pesquisa empreendida por Lattuca28 junto a universitários e pós-graduandos traz evidências bastante significativas de que não basta que os contextos acadêmicos estabeleçam espaços informais de trocas entre os departamentos, institutos ou núcleos disciplinares. É preciso instaurar uma nova cultura, em que cenários institucionais possam favorecer e fomentar as pesquisas em comum, o ensino interáreas e as propostas de intervenção na realidade a partir de um trabalho mais coletivo.
Rattner28, Geller e colaboradores29 e Raynaut30, ao descreverem suas experiências, parecem ratificar que não há um modelo único de formação que possa ser adjetivado, simplesmente, de interdisciplinar e chamam a atenção para o desafio de construir propostas alternativas ao modelo tradicional de formação.
Komatsu31, Lampert32, Feuerwerker33 e Almeida3, no cenário nacional, relatam e analisam experiências desenvolvidas no ensino médico que sinalizam os currículos baseados na problematização e na aprendizagem baseada em problemas como potenciais espaços para a transformação das práticas em educação e saúde.
Ao investigar percepções e olhares de estudantes e pacientes sobre os processos de envelhecimento, Komatsu32 destaca o potencial de uma formação médica que parta de problemas conectados com a realidade, reconhecendo na dinâmica do PBL (problem basic learning) os constituintes da troca, da busca ativa, da construção da autonomia e do conhecimento como possibilidades que se materializam entre sujeitos em diálogo.
Analisando tendências de mudanças na educação médica, Lampert33 enfatiza a construção do paradigma da integralidade na formação e sinaliza, dentre suas especificidades, a integração curricular com adoção de modelos pedagógicos mais interativos e o estímulo para uma atuação interdisciplinar.
Feuerwerker33 afirma que a abordagem interdisciplinar e multiprofissional é essencial no cuidado em saúde. A abordagem interdisciplinar pressupõe interações e rupturas de fronteiras habitualmente presentes no ensino médico, mudanças de poder concentrado em disciplinas ou departamentos e a implantação de acordos coletivos em prol de um projeto pedagógico orientado pelas necessidades de saúde da comunidade e pelo processo de construção ativa do conhecimento pelo estudante.
Almeida3, ao discutir propostas de mudança na educação médica, pontua os desafios de concretizar projetos que não se reduzam a meros arranjos de conteúdos e/ou atividades, mas que representem potencialidades de configuração de novas teias institucionais tanto no contexto da formação como nas práticas de atenção à saúde. Assim, o autor enfatiza que a tríade inovação, reforma e mudança implica uma construção coletiva que considere dimensões relativas aos diferentes espaços, aos sujeitos e suas singularidades, às lógicas dos conhecimentos científicos e às formas de pensar e fazer em saúde.
E na esteira de uma concepção ampliada de saúde e do trabalho em saúde, a pesquisa de Batista e colaboradores1 evidencia que o enfoque problematizador traz, em suas características, a interdisciplinaridade como um eixo fundamental das situações de aprendizagem, favorecendo a troca, a construção do conhecimento, a autoria na apropriação de saberes científicos, éticos, políticos. Os autores destacam, ainda, que aprender com pessoas de diferentes áreas de conhecimento parece ser uma experiência que amplia a compreensão do trabalho coletivo e da complexidade da realidade que se apresenta nos cenários em saúde.
McNair34 pontua com particular ênfase que para fazer junto no cotidiano do cuidado em saúde é preciso aprender junto sobre o trabalho em saúde. O autor indica que a construção da identidade profissional vai se fortalecendo a medida que os estudantes são expostos a situações comuns de aprendizagem, pois a complexidade da prática explicita a demanda por olhares diferentes, que ora se complementam, ora se confrontam, mas que possibilitam um nível mais ampliado de compreensão da realidade.
Afirma este autor que a interdisciplinaridade é um dos constituintes de uma aprendizagem interprofissional, contribuindo na superação de preconceitos, na ruptura com uma prática de saúde centrada na doença, na crítica ao paradigma científico disciplinar. Nesse sentido, são valorizados e podem ser aprendidas perspectivas de colaboração, de construção de novos focos de assistência, ensino, pesquisa e articulação com a comunidade.
Pensar e construir caminhos no ensino médico a partir da interdisciplinaridade incluem a implementação de desenhos curriculares que transformem o modelo disciplinar, seja possibilitando a integração de conteúdos, seja alterando a organização curricular para módulos, núcleos temáticos, assumindo um enfoque problematizador. Nesse sentido, surgem possibilidades múltiplas: a partir de um caso motivador comum, desencadear discussões, leituras e estudos sob diferentes enfoques (biológico, social, psicológico) de um mesmo tema; agrupar conteúdos em módulos temáticos que estejam organizados numa perspectiva integradora, possibilitando que a compreensão da saúde seja construída tendo como ponto de partida a complexidade da situação; assumir propostas de formação que, rompendo com as dicotomias básico-clínico, sejam estruturadas em eixos que sejam desenvolvidos no decorrer do curso médico.
Abrangem, também, tomar a prática médica, no contexto do trabalho em saúde, como eixo estruturante das situações de aprendizagem, privilegiando nestas o coletivo, a participação do aluno nos processos de aprender e os professores como sujeitos mediadores e provocadores de reflexão, busca e análise das informações.
E, ainda, implicam reconhecer o papel central da pesquisa na formação médica, desvelando a complexidade dos objetos e processos de investigação, instaurando patamares ampliados de aproximação com os caminhos da metodologia científica e da função social da produção das ciências. Também se referem à possibilidade de situar a extensão como espaço privilegiado de aprendizagem, possibilitando a universitários e professores a saída dos muros acadêmicos e inscrevendo as ações de aprendizagem e ensino no real, complexo e multideterminado mundo do trabalho em saúde.
Em síntese, implementar outras formas de organizar as situações de ensino, pesquisa e extensão, desenvolvendo atividades acadêmicas que tenham como eixos nucleares a participação do estudante, a produção contextualizada de saberes e a prática, não perdendo de vista a análise dos condicionantes políticos e culturais que influenciam e conformam os modos de viver, aprender e trabalhar. Eis um projeto de desenvolver e instaurar uma cultura interdisciplinar na formação universitária.
Inscreve-se nesse projeto a intenção de contribuir para que se formem profissionais médicos mais abertos para ações interdisciplinares e inclusivas em seus processos de trabalho.
Manoel de Barros35, em um poema, nos diz
(...) A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar (...)
Se a interdisciplinaridade puder, e acredito que possa, trazer idéias, fomentar ações e inspirar projetos inovadores, estamos diante de uma perspectiva de fazermos "cavalos verdes" no ensino médico.
Recebido em: 10/11/2005
Reencaminhado em: 22/02/2006
Aprovado em: 10/03/2006
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Jan 2007 -
Data do Fascículo
Abr 2006
Histórico
-
Aceito
10 Mar 2006 -
Revisado
22 Fev 2006 -
Recebido
10 Nov 2005