Acessibilidade / Reportar erro

Violência: um Velho-Novo Desafio para a Atenção à Saúde

Violence: a New Old Challenge fo r Hea lth Care

Resumo:

Este artigo propoe uma reflexão sobre a violência e seu impactosobre a saúde, tomando como exemplo o caso brasileiro. Inicia-se com uma exposição sobre as dificuldades de inclusão do tema na área da saúde. Critica as versões que absolutizam o sentido da violência, considerando­a um processo a-histórico e acima das consciências e da sociedade. Numa perspectiva fustórica, busca situar o tema no campo social e da saúde, advertindo para o risco epistemológico e prático de reducionismo quando se trata esse fenômeno como uma epidemia, ou seja, como uma ·doença social. Mostra que a violência é um fenômeno muito mais complexo, que constitui um problema histórico, um termômetro social e um indicador de qualidade de vida. Inclui alguns dados gerais e chama atenção para os caminhos de possibilidade de ação setorial e intersetorial e, sobretudo, para a atuação médica.

Palavras-chave:
Violência; Saúde; Ação Intersotorial

Abstract:

This article aims to present some reflections on violence and its impact on health services and the health of the Brazilian population. lt begins with a critical commentary on perspectives that ascribe a sense of absoluteness to violence by considering it an ahistorical process, beyond conscience and society. Second, it calls attention to the epistemological and practical risk of reductionsim in the health sector, dealing with the phenomenon of violence as an epidemic, i.e., considering it a “social disease”. The author shows how the phenomenon is much more complex. Violence is a social problem, a barometer; and an indicator of quality of life. The text includes some geral data and calls attention to the possibility of sector-based and inter-sector actions, mainly for medical practice.

Key-words:
Violence; Health; Intersectorial Action

INTRODUÇÃO

Neste artigo, busca-se discutir a participação do setor saúde, principalmente da atenção médica, na abordagem teórica e prática da violência. Para isso, articulam-se os conceitos centrais de análise, tentando provocar um debate necessário na pauta tradicional da área, freqüentemente voltada para os conceitos biomédicos que dizem respeito à saúde física e à história natural das doenças. O tema da violência faz parte de uma nova agenda evidenciada pelas mudanças no perfil epidemiológico do País, que, nos últimos 30 anos, passou por uma transição importante. Às enfermidades infecciosas e parasitárias colocadas nos primeiros lugares como causas de morte e de morbidade se sucederam doenças vinculadas às condições, situações e estilos de vida.

Essa transformação importante11. Frederiksen H. Feedbaks in economic and demographic transition. Science 1969;166:837-847.,22. Omran AR. The epidemiologic transition. Milbank Mem Fund Q 1971;3:509-583.possui características peculiares no caso brasileiro33. BarretoML, Carmo H. Situação desaúde da população brasileira: tendências históricas, determinantes e implicações para as políticas de saúde. Inf Epidemiol SUS 1994; 3:5-34.,44. Barreto ML, Carmo H. Mudanças em padrões de morbimortalidade:conceitos e métodos. ln: Monteiro, CA, org. Velhos e novos males da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec/ NUPENS;1995 p. 7-32., em que se observa a convivência de situações de subdesenvolvimento social e de elevado índice de qualidade de vida, devendo ser examinada com a complexidade que merece. Analisando-se de forma aglomerada, as três primeiras causas de mortalidade hoje são, pela ordem, as enfermidades cardiovasculares, as violências e os acidentes, e as neoplasias. Todas elas requerem formas de prevenção e de tratamento que excedem o estrito paradigma biomédico, exigindo-se a integração da visão biológica com a complexidade dos modos de vida e das relações sociais. Portanto, não é apenas a violência que provoca turbulência na tecnicalidade da atuação médica, mas, sim, um espetro de mudanças que exigem transformações conceituais.

Hannah Arendt55. Arendt H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará;1994. é urna das principais inspiradoras da parte conceitual deste artigo, com sua reflexiva e contundente frase: "a violência dramatiza causas". Essa autora, que apresenta urna das mais vigorosas reflexões sobre o tema, considera que: "A violência, sendo instrumental por natureza, é racional. Ela não promove causas, nem a história, nem a revolução, nem o progresso, nem o retrocesso; mas pode servir para dramatizar causas e trazê-las à atenção pública"55. Arendt H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará;1994.. Suas considerações estão voltadas para o campo político e social. Na área da saúde pública, as discussões teóricas estão apenas começando e, como por estágios, vão se introduzindo nas pautas das diversas categorias profissionais, empurradas pela contundência da realidade.

Se é verdade que a partir das décadas de 1960 e 1970 houve, nos países da América Latina, um grande esforço teórico-metodológico para compreender a saúde como uma questão complexa, resultante de determinações e condicionantes sociais, nunca um tema provocou tanta resistência para sua inclusão na pauta sanit ária como tem sido o caso da violência. As razões são muitas. Algumas vêm do próprio âmbito onde o tema tem sido tratado tradicionalmente, o terreno do direito criminal e da segurança pública. Desde que se constituíram, os Estados modernos assumiram para si o monopólio legítimo da violência, retirando-a do arbítrio dos indivíduos, tornando a sua coibição um serviço público exclusivo das polícias, milícias e exércitos, além decodificá-la no campo da justiça criminal66. Burke P. Violência social e civilização.Braudel Papers, 1995; 12: 1-8..

Outros motivos vêm dos fund amentos filosóficos da área, terreno de quase monopólio do modelo médico e biomédico, cuja racionalidade tende a incorporar o social apenas como variável ambiental da produção das doenças. No entanto, como disse William Forge, citado numa revista da OMS, comemorativa do Dia Mundial da Saúde em 1993, dedicada à prevenção de acidentes e traumas: "desde tempos imemoriais, as doenças infecciosas e a violência são as principais causas de mortalidade prematura"77. Organização Mundial de Saúde. Salud Mundial. Genebra: OMS;1993.. Até bem pouco tempo, porém, o setor saúde olhou para o fenômeno da violência como um espectador, um contador de eventos, um reparador de estragos provocados pelos conflitos sociais, (considerados externos a ele), tanto nas situações cotidianas como nas emergenciais, provocadas por catástrofes, guerras, genocídios e terror político.

Essa visão começa a mudar na década de 1960, numa das especialidades mais sensíveis do campo médico. Embora desde o século 19 existam registros de violê ncia contra as crianças e jovens, é nos anos 60 do século 20 que a pediatria americana passa a estudar, diagnosticar e medicar a chamada "síndrome do bebê espancado", situando-a como um sério problema para o crescimento e o desenvolvimen to infantil. Já uma década depois, vários países haviam criado, dentro dos setores sociais e de saúde, programas não apenas assistenciais como também preventivos de violência intrafamiliar, tornando público e passível de intervenção um problema até então tratado como de foro íntimo.

Outro processo importante que se inten sificou a partir de 1970, também influenciando o setor, foi o movimento feminista. Sua filosofia e método de trabalho, buscando sensibilizar as mulheres e a sociedade contra a opressão e a dominação proveniente da cultura patriarcal, têm gerado mudanças essenciais na abordagem da saúde. Desta forma, a violência fundamentada no gênero, incluindo agressões domésticas, mutilação, abuso sexual, psicológico e homicídios, em vários países, passou a fazer parte da agenda pública dos serviços de saúde. Tal conquista política propiciou a elaboração de muitas pesqui as e redw1dou na criação de métodos e estratégias de diagnósticos e de cuidados das lesões físicas e emocionais na atenção às mulheres, assim como incorporou estratégias de prevenção.

Em toda a América Latina, só a partir da década de 1980 a agenda do setor tem tendido a incorporar de forma mais ampla a problemática da violência. Essa direção pode ser compreendida e sintetizada sob dois parâmetros. Por um lado, observa-se a própria ampliação contemporânea da consciência do valor da vida e dos direitos de cidadania, sucedendo aos períodos de autoritarismo político na região. De outro, constatam-se as mudanças dos perfis de morbimortalidade na maioria dos países latino-americanos nos moldes apontados acima. A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) tem tido um papel fundamental na sensibilização para essa problemática e na inclusão do tema na agenda do setor, consoli­ dando documentos específicos, discutidos em suas assembléias anuais. De importância fundamental foram as de 1993 e 1994, que trataram especificamente do assunto. Também a Organização Mundial de Saúde (OMS), em sua 49a assembléia, reafirmou o tema como uma de suas prioridades de atuação. E colocou a violência como um dos cinco problemas principais a serem objeto de políticas específicas para a América Latina nos dez primeiros anos do século 2188. Minayo MCS, Souza, ER. É possível prevenir a violência? Ciência & Saúde Coletiva, 1999; 4:7-22..

O eixo central de qualquer reflexão sobre a violê ncia se fundamenta na complexidade, na polissemia e na controvérsia deste objeto: ele gera sobre si muitas teorias e, freqüentemente, quase todas são parciais. Para efeito deste trabalho e levando em conta o que acontece na prática, utiliza-se aqui a definição do documento denominado Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência, do Ministério da Saúde Brasileiro99. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001., elaborado por uma equipe de especialistas, que assim a define: "a violência consiste em ações humanas individuais, de grupos, classes, nações, ou omissões, que ocasionam a morte de seres humanos, ou afetam sua integridade física, moral, men tal ou espiritual". Apresenta profundos enraizamentos nas estruturas sociais, econômicas e políticas, bem como nas consciências individuais, mima relação dialética entre vítimas e agressores, e entre os aspecto s coletivos, objetivos e subjetivos.

Da mesma forma, esse documento conceitua acidente, outra categoria com a qual o setor saúde costuma trabalhar concomitantemente ao da violência, como "o evento não intencional e evitável, causador de lesões físicas e/ ou emocionais no âmbito doméstico e em outros espaços sociais, como o do trabalho, o do trânsito, o de esportes e lazer, dentre outros". Considerando a dificuldade de estabelecer com precisão o caráter de intencionalidade desses eventos, entende­ se neste trabalho que tanto os dados como as interpretações referentes a violências e acidentes comportam sempre certo grau de imprecisão.

Os acidentes e violências configuram, assim, um conjunto de eventos e lesões que podem ou não levar a óbito, reconhecidos na Classificação internacional das Doenças (CID) como "causas externas". Quanto à morbidade, aí se incluem lesões físicas e psíquicas, envenenamentos, ferimentos, fraturas, queimaduras e intoxicações. Embora de profundo impacto sobre o setor, constituindo em países como o Brasil e a Colômbia88. Minayo MCS, Souza, ER. É possível prevenir a violência? Ciência & Saúde Coletiva, 1999; 4:7-22.,1010. Agudelo SF. EI Quinto: no matar: contextos explicativos de la violencia en Colombia. Bogotá (BO): TM editores, 1999. a segunda causa de mortalidade, é impróprio falar sobre a violência como uma epidemia , pois isto seria reduzi-la a um conceito estrito do campo médico. Essa redução poderia repercutir inclusive nas formas instrumentais de abordá-la, na medida em que desconside rasse os múltiplos fatores eminentemente sociais que configuram suas expressões.

A VIOLÊNCIA COMO PA RTE DO PROCESSO HISTÓRI CO-SOCIAL

Um dos problemas enfrentados pelos que estudam e discutem a violência é a sua etiologia e pluricausalidade. Fenômeno eminentemente social, ela nasceu com a sociedade. Todos os mitos originários conhecidos da humanidade, em alguma medida, falam da luta fratricida como elemento constitutivo das organizações sociais. A história de Caim e Abel na Bíblia é exemplo de como é quase impossível falar de qualquer trajetória humana sem reconhecer a convivência com o uso da força, da experiência de dominação e das tentativas de exclusão do outro. No entanto, se é simples dizer que a violência se enraíza nos fundamentos das relações sociais, é muito difícil determinar suas causas e emitir um juízo de valor sobre seu sentido. Basta freqüentar as páginas dos grandes jornais que publicam debates de especialistas no tema para perceber a dificuldade de consenso nas interpretações. Mais que isso, em relação a ela, a soma das verdades individuais não reproduz a verdade social e histórica, e os mitos e as crenças que existem a seu respeito costumam distorcer a realidade. Isso retira de sua definição qualquer sentido positivista e lhe confere o status de fenômeno complexo.

TIPOLOGIA DA VIOLÊNCIA

Neste texto, a tipologia proposta para class ific ação da vi­ olê ncia acompanha o Relatório Mundial da OMS1111. World Health Organization. World report on violence and health. Geneve: WHO, 2002. Edited by Etienne G. Krug et al., que categoriza o fenômeno a partir de suas manifestações empíricas: (a)violência dirigida pela pessoa contra si mesma: auto-infligida; (b) violência nas relações: interpessoal; (c) violência no âmbito sociedade: coletiva.

Por violências auto-infligidas se entendem os comportamentos suicidas e os auto-abusos. No primeiro caso, a tipologia contempla suicídio, idenção suicida e tentativas de suicídio. O conceito de auto-abuso nomeia as agressões a si próprio e as auto mutilnções.

As violências interpessoais são classificadas em dois âmbitos: o intrafamiliar e o comun itário. Por violência intrafamiliar se entende a que ocorre entre os parceiros intimos e entre os membros da família, principalm ente no ambiente da casa, mas não unicamente. Inclui as várias formas de agressão contra crianças, contra a mulher ou o homem e contra os idosos. Considera -se que a violência intrafamiliar é, em geral, uma forma de comunicação entre as pessoas e, quando numa família se detecta algum tipo de abuso, com freqüência, ali existe, rotineiramente, uma Interrelação que expressa várias formasde violência. A violência comunitária é definida como aquela que ocorre no ambiente social em geral, entre con ecidos e desconhecidos. Consideram-se suas várias expressões como violência juvenil, agressões físicas, estupros, ataques sexuais e, inclusive, a violência institucional que ocorre, por exemplo, em escolas, locais de trabalho, prisões e asilos.

Em violências coletivas se classifica m os atos que causam danos, lesões e mortes, e que acontecem nos âmbitos macros­sociais, políticose econômicos, carac terizando a dommação de grupos e do Estado. Nessa categoria, no âmbito social, incluem-se os crimes cometidos por grupos organizados, atos terroristase de multidões. No campo político, são considerad as as guerrase os processosde aniquilamento de determinados povos e nações por outros. A classificação de violência coletiva abrange ainda ataques econômicos entre grupos e nações, geralmente motivados por intenções e Interesses de dominação. À classificação criada pelo Relatório da OMS1111. World Health Organization. World report on violence and health. Geneve: WHO, 2002. Edited by Etienne G. Krug et al. acrescenta­se um tipo de violência que se denomina "estrutural"1212. Minayo MCS. Pobreza, desigualdade e saúde. Forum Mundial de Ciências Sociais e Medicina, Caracas, 1999.(mimeo). Essa categoria se refere aos processos sociais, políticos e econômicos que reproduzem e cronificam a fome, a miséria e as desigualdades sociais, de gênero, de etnia e mantêm o domínio adultocêntrico sobre crianças e adolescentes. Difícil de ser quantificada, aparentemente sem sujeitos, a violência estrutural se perpetua nos processos históricos, se repete e se naturaliza na cultura e é responsável por privilégios e formas de dominação. A maioria dos tipos de violência citados tem sua base na violência estrutural.

NATUREZA DA VIOLÊNCIA

Geralmen te, a natureza dos atos violentos pode ser classificada em quatro modalidades, que também são denominadas abusos ou maustratos* * Os termos ''violências, abusos, maus-tratos" não significam necessariamente mesma coisa. Há, inclusive, várias discussões teóricas à respeito, pois cada um deles carrega uma carga ideológica e histórica específica. No entanto, para os efeitos práticos e de divulgação que este documento tem, os termos serão utilizados como sinônimos e indiscriminadamente. : "física, psicológica, sexual e envolvendo abandono, negligência ou privação de cuidados".

O termo "abuso físico" significa o uso da força para produzir injúrias, feridas, dor ou incapacidade em outrem99. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001.. A categoria "abuso psicológico" nomeia agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar vítima, restringir a liberdade ou, ainda, isolá-la do convívio social99. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001.. A classificação "abusosexual" diz respeito ao ato ou ao jogo sexual que ocorre nas relações hétero ou homossexual e visa estimular a vítima ou utilizá-la para obter excitação sexual e práticas eróticas, pornográficns e sexuais impostas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças. Por "negligência" ou "abandono" se entende a ausência, a recusa ou a deserção de cujdados necessários a alguém qu e deveria receber atenção e cuidados.

Todas as tipologias descritas no item anterior comportam as classificações distribuídas no que aqui se considera "natureza da violência".

ABORDAGENS DA MAGNITUDE E DOS SENTIDOS DA VIOLÊNCIA

O Relatório da OMS propõe um modelo ecológico de explicação das "raízes da violência"1111. World Health Organization. World report on violence and health. Geneve: WHO, 2002. Edited by Etienne G. Krug et al.. O primeiro nível busca identificar os fatores biológicos e pessoais que cada pessoa porta em seu comportamento, concentrando-se nas características que aumentam a possibilidade de o indivíduo ser vítima ou perpetrador de violência.

O segundo nível nomeia os fatores relacionais, evidenciando as Interações sociais, nos âmbitos mais próximos dos companheiros, dos colegas, dos parceiros íntimos, dos membros da família, e sua influência na vitimização ou na perpetuação da violência. No caso dos jovens, o documento rea firma a importância dos amigos como incentivadores de atividades delinqüenciaise criminosas.

Em terceiro lugar são colocados os fatores comunitários e sua in fluência na dinâmica da violência. Nesses contextos comunitários são nomeados os locaisde trabalho, a escola e a vizinhança, e como problemas os altos níveis de desemprego, a presença de tráfico de drogas e de armas, e componentes de ordem relacional, como o isolamento social em que vivem determmad as famílias.

Em quarto lugar, o modelo ecológico enfatiza os fatores sociais mais amplos que contextualizam os índices de violência. Citam-se: normas culturais que a justificam como forma de resolver conflitos; atitudes que consideram a opção pelo suicídio como um direito de escolha individual; machismo e cultura ad ultocêntrica; normas que validam o uso abusivo da força pela polícia; interesses políticos e econômicos que apóiam conflitos políticos. O texto da OMS1111. World Health Organization. World report on violence and health. Geneve: WHO, 2002. Edited by Etienne G. Krug et al. refere- se ainda às políticasde educação, saúde, econômicas e sociais que contribuem paramanter desigualdades, ou se ja, a violência estrutural, lembrando que, numa perspectiva de desenvolvimento humano, são diferentes os elementos que influenciam a vitimização ou a perpetração de violência nas várias faixas etárias.

Assumindo a proposta ecológica, é preciso dar ênfase ao sentido dinâmico da produçãoda violência, cuja interpretação se adapta à teoria da causalidade complexa, em que "todas as coisas são causadas e causadoras" e em que se evidenciam a retroalimentação entre os fatores e a reflexividade dos fenômenos. Por isso, a tônica teórica e metodológica aqui proposta é a do imbricamento dos âmbitos biológico, subjetivo e social.

Sobre a causalidade da violência, no campo acadêmico há pelo menos três correntes em disputa. De um lado estão os que sustentam a violência como resultante de necessidades biológicas. Aí se encontram vários sociobiólogos, que, generalizando as descoberta s de Konrad Lorenz1313. Lorenz K. A agressão: uma história natural do mal. Lisboa (PT): Moraes;1979., consideram esse fenômeno como resultante dos condicionamentos biogenéticos que se processam nos indivíduos, sendo, assim, um fenômeno inerente à natureza humana** ** Em seu texto A violência dramatiza causas, no livro A violência sob o olhar da saúde Minayo (2003) apresenta e discute toda a argumentação desenvolvida nas correntes biologicistas, psicologicistas e sociais. . De outro, os que o explicam a partir exclusivamente do arbítrio dos sujeitos, como se os resultados socialmente visíveis dependessem da soma dos comportamentos individuais. Outros, por fim, o consideram um fenômeno de origem unicamente social, provocado ora por disrupção da ordem, ora pela vingança dos opr imidos, ora pela fraqueza do Estado.

Entende-se, aqui, que a violência, por sua natureza complexa, envolve as pessoas em sua totalidade biopsíquica e social. Porém, o locus de sua realização é o contexto histórico­social e o ambiente cultural, ondeas particularidades biológicas se expressam nas idiossincrasias de cada um a partir de uma dinâmica estruturante das relações e das circunstâncias sociais. As explicações biológicas como determinantes podem ser assumidas apenas nos casos patológicos, nos quaisos indivíduos devem ser julgados a partir da compreensão de seus problemas específicos.

Isso significa que, para conseguir dimensionar e compreender o impacto da violência sobre a saúde, são imprescindíveis estudos interdisciplinares, que trabalhem com abordagens de triangulação de métodos e incluam uma visão quantitativa e qualitativa do fenômeno . Não basta quantificar os mortos, os feridos, as vítimase os agressores, poiseles fazem parte de uma realidade histórica e cultural, e possuem razões subjetivas, como extensamente já se mencionou. Saber a magnitude do fenômeno e seus sentidos é pré-requisito para a formulação de programas de promoção e de prevenção propostos pelosetor saúde.

Do ponto de vista quantitativo, é importante produzir conhecimento sobre: (a) a magnitude dos fenômenos em suas dimensões traduzidas em morbidade e mortalidade; (b) as diferenciações internase as circunstâncias das fatalidades, dos trnumas e das lesões que constituem as conseqüências da violência; (c) os fatores que aumentam o risco de vitimização; (d) os fatores que contribuem para a perpelrnção dos crimes e agressões; (e) a especificação demográfica e ambiental dos eventos; (f) as configurações de cunho local das expressões de violências que permitam a atuação por prioridades; (g) a triangulação de dados epidemiológicos com informações históricas, culturais e subjetivas de cunho qualitativo.

Do ponto de vista qualitativo, é fundamental criar: (a) a compreensão do momento histórico vivido pelo país e pelas regiões dentro do país, uma vez que a violência costuma ser um termômeh·o muito importante para medir as expressões dos conflitos, dos projetos, das crises e das expectativas sociais. Embora a violência seja um fenômeno permanente na história da humanidade, suas formas de manifestação são diferentes no tempo e no espaço; (b) a compreensão da dinâmica dos contextos locais, culturais e das razões subjetivas com que as tipologias de violência se expressam; (c) a articulação das informações compreensivas com dados quantitativos sobre os fenômenos, buscando responder a questõesda prática; (d) a integração da multiplicidadede atorescidadãose institu­ cionais na busca de formulação de políticas que afetem direta ou indi retamente a promoção de políticas e as propostas de ação.

SENTIDO PÓS-MOD ERNO DA VIOLÊNCIA CRIMINAL QUE INFLA AS ESTATÍSTICAS DE HOMICÍDIOS

Embora sejam múltiplos os tipos de violênciae complexa sua natureza, como já descrito, a forma hegemônica de sua manifestação e a que mais preocupa a todos no Brasil contemporâneo é a "delinqüência", que tem sua expressão final nas estatísticas de homicídios. Esses eventos cresceram 134% nas duas últimas décadas. Vários autores têm se perguntado os motivos de exacerbação desse fenômeno. E suas indagações os levam a buscar compreender o aumento da exacerbação relacional que afeta sobretudo a vida nas grandes regiões metropolitanas, provocando fortes sentimentos de insegurança e contribuindo para mudanças na subjetividade, especialmente dos jovens.

Um autor contemporâneo, Michel Wieviorka1414. Wieviorka M. O novo paradigma da violência. Tempo Social, Rev Sociol USP, 1997; 9: 5-42., tenta interpretar a violência pós-moderna e a diferencia das expressões de épocas anteriores, como, por exemplo, a que era característica dos anos1960 e 1970. Nessas décadas, em geral, os conflitos políticos, as formas de protesto e de subversão e até a luta armada na América Latina se vinculavam a projetos revolucionários de tomada do poder de Estado, em nome dos projetos de libertação e do desenvolvimentismo, fosse de países, fosse de contingentes populacionais. Havia propostas nacionais, e nelas, grande parte da juventude se engajava.

Diz o autor em sua análise que, embora em várias partes do mundo ainda ocorram experiências de violência política, hoje a tendência se desloca para fenômenos de ordem infra ou metapolítica. O caráter infrapolítico desse fenômeno está ligado à degenerescência do processo político em si, a favor de uma privatização ligada aos desejos de controle econômico, de possuir muito dinheiro rapidamente, de consumismo ou de vingança social.

Aestratégia da violência atual não é mudar o Estado, como queriam os revolucionários. É mantê-lo à distância, enfraquecê-lo, privatizá-lo ou corrompê-lo para criar uma autonomia de atividades econômicas à margem de todo o aparato legal. O jogo financeiro, especulativo, ou proveniente do tráfico de drogas, de armas, de objetos roubados ou contrabandeados, entre outros, sobrevive melhor sem regulação, aproveitando-se da fraqueza dos Estados nacionais. Lembra o autor que as guerrilhas dos anos 1990 (as das gangues, por exemplo) tendem a se apoiar em verdadeiros sistemas de troca e de produção. Por isso, suas mais expressivas organizações não estão nas áreas mais pobres, mas sim nas regiões mais dinâmicas, onde se processa a atividade econômica.

Porém esse tipo de violência delinqüencial tem uma forma muito peculiar de incluir os pobres. Ela os engaja nesses projetos, no front dos combates, oferecendo-lhes acesso a bens econômicos e de consumo, numa perspectiva autoritária. Isso ocorre numa conjuntura em que o desemprego estrutural (relacionado à reestruturação produtiva) e a exclusão (resultante da exacerbação da questão social) crescem em todo o mundo, de forma tão acelerada quanto as mudanças nas relações de produção. Assim, do ponto de vista político, as formas de violência hoje vividas em países como o Brasil em especial, mas também em outros países da América Latina, denunciam o fim de urna época desenvolvimentista e a decomposição dos sistemas sociais, políticos e estatais.

Tomando-se como exemplo o caso brasileiro, causa preocupação o persistente crescimento das taxas de homicídios na maioria das grandes cidades. Embora o perfil das mortes violentas siga tendência mundial, como se verá a seguir, ceifando, sobretudo, os jovens do sexo masculino, aqui as vítimas preferenciais são homens, pobres, de baixa escolaridade, com pouca ou nenhuma qualificação profissional, habitantes das periferias e, em sua maioria, negros e pardos.

A distribuição e as expressões dos homicídios no País não formam uma totalidade homogênea. Os resultados das investigações realizadas sobre o tema reafirmam os fortes componentes de classe, de gênero, de idade, de ocupação de espaços degradados da cidade e de exclusão social de suas vítimas. Mostram também que estão basicamente relacionados a conflitos com a polícia, desavenças entre grupos de narcotraficantes ou gangues organizadas e desentenctimentos interpessoais. A maioria deles é cometida com armas de fogo - cujo uso se multiplicou duas vezes nas duas últimas décadas-junto com o contrabando de muitos tipos de mercadoria, que também cresceu como um grande negócio ilegal e lucrativo. Sendo vítimas e atores preferenciais, esses jovens pobres acabam, conforme ressalta Vethencourt1515. Vethencourt JL. Psicologia de la violencia. Gaceta de la Asociación de Profesores de la Universidad de Venezuela 1990; 11: 5-10,, por se exterminarem entre si mesmos ou são vítimas das forças repressoras do Estado, mesmo quando não apresentam provas de delinqüência.

Por seu lado, a impunidade ea naturalização das infrações das classes abastadas reproduzem um tipo de cidadania forjada na arbitrariedade e nos privilégios que gozam. As raízes autoritárias e patrimoniais ainda presentes na dinâmica cultural do País permitem que elas preservem um lugar social considerado acima de qualquer suspeita, fora do controle legal e se impondo sobre a sociedade. Os crimes econômicos e políticos, os conluios da legalidade com a ilegalidade que alimentam e são alimentados pelas extremas desigualdades sociais, configuram as expressões contraditórias da vida social de parteda elite que se fecha com grades, vigias e sistemas de segurança, com medo dos que ela mesma exclui. Esse fenômeno cresce junto com a persistência e o aprofundamento das desigualdades sociais, que, além de já serem estruturalmente escandalosas, se aprofundaram mais na década de 19901212. Minayo MCS. Pobreza, desigualdade e saúde. Forum Mundial de Ciências Sociais e Medicina, Caracas, 1999.(mimeo).

O crescimento das mortes por violências no Brasil mostra, em sua síntese, um processo de exacerbação das relações sociais, afeta inexoravelmente a população mais pobre e indica o aumentodas desigualdades, o efeito do desemprego crescente, a falta de perspectiva do mercado de trabalho, o aumento do contrabando de armas, do número de armas em poder da população civil, da organização do crime, da impunidade, da arbitrariedade policial e a ausência, omissão ou insuficiência das políticas públicas. A violência se tornou um indicador negativo da qualidade de vida também nos espaços rurais, onde persistem os conflitos de terra, disputas por reservas indígenas e várias rotas de comercialização de drogas ilegais. É muito maior, porém, nas regiões urbanas, que concentram mais de 75% de todas as mortes por causas externas. São áreas que hoje convivem, ao mesmo tempo, com o dinamismo e a velocidade dos mercados globais que enriquecem elites estrangeiras e nacionais, aí se incluindo o mercado do crime organizado (narcotráfico, contrabando de armas, roubo de carro s e cargas, entre outros). Mas também abrigam ns rnaiores expressões da exclusão social e moral, que juntam problemas estruturais crônicos de desigualdade, pobreza e miséria, com novos processos trazidos pela reestrnturação produtiva, como o crescimento do desemprego e dn informalidade das ocupações.

Esse processo de exace rbação conflituosa, seguindo a hipótesede Wieviorka1414. Wieviorka M. O novo paradigma da violência. Tempo Social, Rev Sociol USP, 1997; 9: 5-42., deriva muito mais do enfraquecimento do Estado, do crescimento do crime organizado, da generalização crescente e desenfreada da criminalidade comum do que de conflitos sociais e políticos voltados para a mudança social como a história mostrou nos meados do século 20. Os crimes mantidos pelas armas, que se expressam nas elevadas taxas de homicídios nas periferias das cidades, vicejam junto com opiniões totalmente negativos por parte da população pobre que vive nessas áreas a respeito da ntuação do Estndo em geral e, sobretudo, de seu braço repressor, que é a polícia. Muitos traficantes ou chefes de gang ues freqüentemente são vistos nos locais ondevivem como benfeitores que têm recursos e são generosos com as necessidades da população, necessidades básicas não atendidas porsucessivos governos.

No entanto, as expressões de violência hoje relevantes não são apenas instrumentais. Existe também, mormente da parte da juventude brasileira - que hoje corresponde a 80% de toda essa faixa etária no Mercosul e a 60% de toda a América Latina, configurando o que osdemógrafos chamam "onda jovem" - , um gosto pelo risco, pela aventura, voltado para produzir algum sentido ou motivado pelo puro prazer de contestar. Essa rebeldia, antes canalizada pelas expressões políticas, hoje se manifesta, por exemplo, em conflitos em jogos de futebol, nas pichações de muros e edifícios, nos distúrbios em grandes ajuntamen tos, como bailes noturnos, nas infrações ao código de trânsito e outros. Tais expressões podem ou não ter ligação com outras formas organ izada s d e protestar ou transgredir.

A chamada violência tradicional, aquela que ressalta os conflitos comunsentre os cidadãos, as frustrações das paixões entre gêneros, os crimes contra o patrimônio com os roubos e-furtos, tudo isso continua a existir, mas seu lugar, seu espaço e sua gravidade estão subsumidos pelos elementos de um novo momento histórico, não ainda de todo claro e compreendido para ser enfrentado pelas forças políticas (novas forças políticas) renovadoras.

VIOLÊNCIA E SAÚDE

A violência, como mostra a argumentação ap resentada acima, é uma questão social pluridimensionale, portanto, em si, não é um objeto próprio do se tor saúde. Ela se torna um lema desse campo em dois sentidos: (1) pelo impacto que provoca na qualidade de vida das pessoas; pelas lesões físicas, psíquicas, espirituais e morais que acarreta e pelas exigências de atenção e cuidados dos serviços médicos e hospitalares; (2) porque atinge os temas tratados no conceito ampliado de saúde. Esse conceito é vinculado à idéia de "promoção", tão bem expressa na Carta da Conferência de Otawa em 19861616. BRASIL. Ministério da Saúde. Promoção da Saúde: Carta de Otawa, 1986. Brasília (DF): Ministério da Saúde ;1994., que inclui, no âmbito de sua definição, o ambiente e o estilo de vida, assim como a participação comunitária para o avanço do processo de construção de vida saudável. Além, é claro, de contemplar os marcos tradicionais do desenvolvimento da biologia, da biotecnologia e também do sistema médico, sem se restringir a eles. Desta forma, a vio lência é um problema da intersetorialidade na qual o campo médico-social se integra. Na medida em que o setor assume esse fenômeno como algo que também lhe diz respeito, tem o papel de elaborar estratégias de prevenção e superação, interagindo com a sociedade civil e com outros campos in s titucionais.

Diz Agudelo1010. Agudelo SF. EI Quinto: no matar: contextos explicativos de la violencia en Colombia. Bogotá (BO): TM editores, 1999. que:"a violência afeta a saúde porque ela representa um risco maior para a realização do processo vital humano: ameaça a vida, produz enfermidade e provoca a morte como realidade ou como possibilidad e próxima".

A Organização Pan-Americana de Saúde1717. Organização Panamericana de Saúde. Salud y Violencia: plan de acción regional. Washington (US): Opas, 1994. (mimeo) analisa que:

(...) a violência, pelo númerode vítimase a magnitude de seqüelas físicas e emocionais que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu num problema de saúde pública em vários países (...) O setor saúde constitui a encruzilhada para onde confluem todos os corolários dn violência, pela pressão que exercem suas vítimas sobreos serviços de urgência, de atenção especializada, de reabilitação física, psicológica e de assistência social.

O Brasil, comojá dito, é um desses países onde a violência se tornou significativa pelo impacto que provoca no campo da saúde. Desde a década de 1960, o quadro de mortalidade geral apresenta as "causas externas" (termo por meio do qual o Código de Classificação das Doenças da Organização Mundial de Saúde se aproxima do problema) como fenômeno relevante, acompanhando o processo de urbanização. Em 1930, 2% da s mortes se deviam à violência e a acidentes. Em 1980, esse percentual subia para 10,5%, em 1988, para 12,3%, e atualmente representa 13,5% do total dos óbitos. Na ampla faixa de 5 a 49 anos de idade, os eventos violentos ocupam o primeiro lugar co mo causa de morte. Os anos 1980 constituem o ponto central de inflexão dessa transição epidemiológica, apresentando um crescim en to de cerca de 29% na prop orção de mortes violentas entre o início e o final da década, passando essas a constituírem a segunda causa noobituário geral, abaixo, apenas, das doenças cardiovasculares.

Algumas informações acerca do impacto da violência sobre a vida e a morte dos brasileiros ressaltam a dimensão desse tema no quadro complexo dos problemas sociais. Morreram 1.118.651 pessoas por essas causas de 1991a 2000. Desses óbitos, 369.068 foram por homicídios, 62.480 por suicídio e 309.212 por acidentes e violências no trânsito e nos transportes. As taxas de mortes por causas externas, que tiveram forte incremento na década de 1980, permaneceram muito eleva­ das e estáveis nos anos 1990: 69,5/100.000 em 1991 e 69,7/100.000 habitantes em 2000. No entanto, no interior das sub­ causas há mudanças importantes. Subiu o pesodos homicídios: 20,9/100.000 habitantes em 1991 e 26,7/100.000 habitantes em 2000; aumentou a taxa de suicídios: 3,5/100.000 e 4,00/100.000, respectivamente; diminuíram os índices de mortes no trânsito, 19,4/100.000 para 17,5/100.000, e de outros acidentes, de8,7/ 100.000 para 6,5/ 100.000. Cerca de 84% de toda a mortalidade por acidentes e violências em 2000, correspondendo à perda de 99.474 pessoas, ocorreram na população masculina, onde as taxas agregadas são de 119,0/100.000 habitantes. No grupo feminino, morreram 18.810 vítimas, numa proporção de 15,9% e 21,8/ 100.000 habitantes.

No ano 2000, chegaram aos serviços públicos de saúde 693.961 pessoas buscando tratamento hospitalar para lesões e traumas provenientes de acidentes e violências. Esses agravoso cuparam o 7° lugar no conjunto das internações, incluindo-se o capítulo que contabiliza internações por gravidez. Retirando-se essa rubrica, as causas externas sobem para o 6° lugar. O custo médio de tratamen to de pessoas feridas, traumatizadas ou lesionadas por acidentes e violências foi de R$ 506,52 (quinhentos e seis reais e cinqüenta e dois centavos), bem acima dos R$ 403,38 (quatrocentos e três reais e trinta e oito centavos), que correspondem ao custo médio das internações em geral.

O impacto dessas mortes pode ser analisado por meio de um indicador desenvolvido pela Epidemiologia relativo a Anos Potenciais de Vida Perdidos (APVP). Por incidirem particularmente nos grupos de adolescentes e jovens do sexo masculino, os acidentes e violências são hoje responsáveis pelo maior número de anos potenciais de vida perdidos, quando se analisa o quadro geral dos óbitos. No Brasil, esse indicador aumentou 30% entre 1981 e 1991, ao passo que todas as mortes pelas causas biomédicasse encontram em queda1818. Reichenheim M, Werneck G. Anos potenciais de vida perdidos no Rio de Janeiro. As mortes violentas em questão. Cad Saúde Pública 1994; 10, supl. 1: 188-198..

A preponderância do sexo masculino e das faixas etárias de 15 a 29 anos indica que esses eventos se devem, sobretudo, a lesões no trânsito, no trabalho e por conflitos interpessoais.

As internações por lesões dev idas a armas de fogo são muito expressivas, tendo tido um crescimento de 95% do início para o final da década de 1990.

As informa ções aqui contidas certamente não refletema magnitude e nem todas as expressões da violência hoje existen tes no País. Elas assinalam apenas o fenômeno em sua apresentação mais visível: as mortes, lesões e traumas. O espaço deste artigo não permitiu referência, por exemplo, ao peso dos abusos e maus-tratos intrafamiliares que ocorrem silenciosa e insidiosamente nos lares brasileiros, reproduzindo uma estrutura de pátrio poder e de raízes patriarcais muitas vezes extremamente cruel e que provoca lesões e mortes. Estudos realizados com base em amostras domiciliares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima­ ram em 20% o número de crianças e ado lescen tes que hoje são vítimas da violência. Nã o se discorreu também sobre a violência contra as mulheres, que, segundo Heise1919. Heise L. Gender-based abuse: the global epidemie. Cad Saúde Pública 1994; 10, supl.1: 135-145., correspondea cerca de 35% dos motivos que as levam a procurar os serviços de saúde. Não se desenvolveu a análise da violência contra os idosos, que se expressa nas institucionalizações em abrigos e hospitais, nos lares, por meio de maus-tratos, abandonos, omissões e abusos econômicos2020. Minayo MCS, Souza ER. As múltiplas mensagens da violência contra idosos. Minayo MCS, Souza ER, orgs. Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: FCOC RUZ; 2003 p. 223-242.. E, sobretudo, não se abordaram os efeitos das diversas formas de violência na saúde mental das vítimas e na sociedade em geral.

Por isso é preciso esclarecer que, além das notificações dos even tos que se tornam públicos, há um desconhecimento muito grande de todas as formas insidiosas, silenciosas e naturalizad as com as quais a sociedade convive e que, com certeza, têm impacto na saúde. É necessário, portanto, que se afinem os instrumentos e se exercite uma fina sin tonia para a compreensão e a transformação das condições sociais geradoras de todas as formas de lesões e traumas. Muitas delas são passíveis de abordagem no âmbito do setor saúde, que ao mesmo tempo, é a encruzilhada para a qual convergem, é vítima da exacerbação dos conflitos, mas é também parte na produção desse fenômeno.

CONCLUSÕES

A violência, antes de ser um problema intelectual, é uma questão da práxis sociopolítica que afeta materialmente os serviços de saúde, seus custos, sua organização e envolve também os profissionais como vítimas (muitas vezes, alvos da delinqüência que penetra os espaços dos serviços). Mas, igualmente, os profissionais são atores que reproduzem, contribuem para superar ou exacerbam expressões de abusos, maus­ tratos e outras formas de violência. Compreendendo as expressões sócio-históricas do fenômeno e, portanto, as possibilidades de intervenção política e setorial, a área da saúde não pode compartilhar do imaginário da inevitabilidade e da falta de controle. Do ponto de vista social, o contrário da violêncianão é a não-violência, é a cidadania e a valorização da vida humana em geral é de cada indivíduo no contexto de seu grupo. Jean Claude Chesnais2121 . Chesnais, JC. Histoire de la violence en Occident de 1800 à nos jours. Paris: Robert Laffont Editor; 1981., estudando dois séculos de violência na Europa, mostra que as lutas dos trabalh adores por melhores condições de vida e ampliação de seus direitos e a institucionalização da educação formal do Estado democrático foram as variáveis fundamentais da diminuição inquestionavelmente significativa da criminalidade, da delinqüência e das mortes violentas em todo o Ocidente.

Noâmbito da saúde, é fundamen tal estabelecer um diálogo entre os serviços médicos, clínicos e de eme rgência e a saúde pública, ultrapassand o a tentação de medicalizar a violência e, ao mesmo tempo, buscando maior especialização no atendimento às vítimas. Essa foca lização é necessária para: monitoramento das ocorrências; sistematização, ampliação e consolidação do atendimento pré-hospitalar; assistência hospitalar às vítimas; estruturaçãoe consolidação do atendimento pós-hospitalar; capacitação de recursos humanos - tudo isso acompanhado por estudos e pesquisas que balizem as ações do se tor. Entre a saúde e outras áreas, dependendo das situações concretas, as ações coletivas demandam entendimento com a educação, os serviços sociais, a justiça, a segurança pública,o ministério público, o poder legislativoe, sempre, com os movimentos sociais, visando à promoção de uma sociedade cujo valor primordial seja a vida (e não a morte) e a convivência saudável de seus cidadãos.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Frederiksen H. Feedbaks in economic and demographic transition. Science 1969;166:837-847.
  • 2
    Omran AR. The epidemiologic transition. Milbank Mem Fund Q 1971;3:509-583.
  • 3
    BarretoML, Carmo H. Situação desaúde da população brasileira: tendências históricas, determinantes e implicações para as políticas de saúde. Inf Epidemiol SUS 1994; 3:5-34.
  • 4
    Barreto ML, Carmo H. Mudanças em padrões de morbimortalidade:conceitos e métodos. ln: Monteiro, CA, org. Velhos e novos males da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec/ NUPENS;1995 p. 7-32.
  • 5
    Arendt H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará;1994.
  • 6
    Burke P. Violência social e civilização.Braudel Papers, 1995; 12: 1-8.
  • 7
    Organização Mundial de Saúde. Salud Mundial. Genebra: OMS;1993.
  • 8
    Minayo MCS, Souza, ER. É possível prevenir a violência? Ciência & Saúde Coletiva, 1999; 4:7-22.
  • 9
    BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001.
  • 10
    Agudelo SF. EI Quinto: no matar: contextos explicativos de la violencia en Colombia. Bogotá (BO): TM editores, 1999.
  • 11
    World Health Organization. World report on violence and health. Geneve: WHO, 2002. Edited by Etienne G. Krug et al
  • 12
    Minayo MCS. Pobreza, desigualdade e saúde. Forum Mundial de Ciências Sociais e Medicina, Caracas, 1999.(mimeo)
  • 13
    Lorenz K. A agressão: uma história natural do mal. Lisboa (PT): Moraes;1979.
  • 14
    Wieviorka M. O novo paradigma da violência. Tempo Social, Rev Sociol USP, 1997; 9: 5-42.
  • 15
    Vethencourt JL. Psicologia de la violencia. Gaceta de la Asociación de Profesores de la Universidad de Venezuela 1990; 11: 5-10,
  • 16
    BRASIL. Ministério da Saúde. Promoção da Saúde: Carta de Otawa, 1986. Brasília (DF): Ministério da Saúde ;1994.
  • 17
    Organização Panamericana de Saúde. Salud y Violencia: plan de acción regional. Washington (US): Opas, 1994. (mimeo)
  • 18
    Reichenheim M, Werneck G. Anos potenciais de vida perdidos no Rio de Janeiro. As mortes violentas em questão. Cad Saúde Pública 1994; 10, supl. 1: 188-198.
  • 19
    Heise L. Gender-based abuse: the global epidemie. Cad Saúde Pública 1994; 10, supl.1: 135-145.
  • 20
    Minayo MCS, Souza ER. As múltiplas mensagens da violência contra idosos. Minayo MCS, Souza ER, orgs. Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: FCOC RUZ; 2003 p. 223-242.
  • 21
    Chesnais, JC. Histoire de la violence en Occident de 1800 à nos jours. Paris: Robert Laffont Editor; 1981.
  • *
    Os termos ''violências, abusos, maus-tratos" não significam necessariamente mesma coisa. Há, inclusive, várias discussões teóricas à respeito, pois cada um deles carrega uma carga ideológica e histórica específica. No entanto, para os efeitos práticos e de divulgação que este documento tem, os termos serão utilizados como sinônimos e indiscriminadamente.
  • **
    Em seu texto A violência dramatiza causas, no livro A violência sob o olhar da saúde Minayo (2003) apresenta e discute toda a argumentação desenvolvida nas correntes biologicistas, psicologicistas e sociais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2005

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2004
  • Aceito
    08 Dez 2004
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com