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Relação Médico-Paciente no Ensino de Clínica Médica

A preocupação com a relação Médico-Paciente durante o aprendizado clínico, especialmente em seu período inicial, é inseparável da dinâmica psicológica que se desenvolve entre docentes, alunos e doentes no hospital de ensino. Nesse trinômio, a participação dos dois últimos elementos oferece algumas semelhanças: tanto o estudante como o paciente ingressam no hospital com a expectativa de novas vivências, antecedidas de incertezas e apreensões. Uns e outros terão de adotar padrões de relacionamento e adaptar-se a um grupo muito especial - seja a equipe profissional seja a comunidade de pessoas internadas. Ambos - aluno e doente - estarão em permanente interação com o staff médico, além dos contatos com as imposições operacionais e administrativas da instituição.

O conhecimento mais objetivo dos mecanismos envolvidos nesses processos adaptativos e sua valori2ação no contexto da assistência médica compreensiva levaram à inclusão da psicologia médica como disciplina curricular dos cursos de graduação e à implementação de programas destinados a facilitar o ajustamento do estudante às condições peculiares do aprendizado clínico. Durante os últimos anos, o Setor de Psicossomática da 4a Disciplina de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com sede no Hospital-Escola São Francisco de Assis, dedicou especial atenção às atividades relacionadas com esses problemas, tendo em conta a realidade dos três elementos básicos em constante interação.

Os métodos empregados e a experiência recolhida são resumidamente apresentados neste trabalho em que se analisam, sucessivamente, as práticas dirigidas ao aluno, ao paciente e ao corpo docente.

I - Aluno

Três objetivos principais nortearam as atividades do Setor:

  1. Preparação psicológica dos alunos que iniciam o aprendizado clínico no 5° período curricular (3° ano do curso médico) e passam a vivenciar realidades muito diversas do ciclo básico que, sob muitos aspectos, prolonga as condições do estudo pré-universitário. Essa preparação faz-se através de aulas informativas, seminários e grupos de discussão, com o máximo de 30 alunos, durante duas horas semanais, num total de 40 horas incluídas na carga horária da Disciplina de Clínica Médica I (Iniciação à Medicina Clínica).

Aí a atenção é dirigida, de início, para o paciente, suas ansiedades, expectativas, experiências prévias, personalidade etc. Ao mesmo tempo, focaliza-se a pessoa do médico, destacando-lhe as motivações na escolha da profissão, seus condicionamentos e limitações. Finalmente analisa-se o encontro médico-paciente e as configurações mais comuns com que as apresenta.

Nessa fase, exemplos breves e representativos, trazidos pelos próprios alunos, de relacionamento do estudante com os pacientes, especialmente referentes às dificuldades surgidas durante o treinamento semiótico, constituem excelente material de ilustração didática.

Alternadamente, realizam-se figurações sobre esse tema, com a presença de professores e alunos, simulando situações como a do doente que se nega a ser examinado, o doente hostil, rebelde, o doente que mente etc. Já então os alunos são preparados para fazer uma observação clínica integral, que inclua todos os dados importantes da vida pessoal e de relação do paciente, assim como a identificação dos seus principais problemas bio-psicossociais.

  1. Contínuo ajustamento ambiental e grupal, mediante discussões periódicas, em grupo, ao longo do curso de graduação.

  2. Alunos em crise que passam então a merecer atenção especial no sentido da identificação dos fatores de inadequada adaptação e recebem o apoio necessário até encaminhamento para tratamento eventualmente indicado.

II - Paciente

  1. O doente de hospital de ensino, além das interações usuais com o ambiente hospitalar, acha-se exposto a alguns componentes específicos ligados ao treinamento do corpo discente. Podemos dizer que a cooperação dos pacientes para essas atividades é muito maior e mais bem aceita quando recebem explicação prévia, com ênfase no caráter não obrigatório e no respeito à liberdade de recusa em participarem dos exercícios didáticos. Tem constituído ótima medida, estabelecer um contato do grupo de alunos com o doente em que vão praticar semio-técnica, orientando o diálogo para sua pessoa, enfermidade e relacionamento com a equipe hospitalar.

  2. Reuniões com os pacientes internados. - Revelaram-se de grande utilidade na experiência da 4a Disciplina de Clínica Médica. Efetuam-se semanalmente, sob a supervisão do Setor de Psicossomática, podendo ser assistidas por qualquer membro da equipe de saúde da enfermaria. Em geral, vêm à baila nesses encontros as dificuldades com médicos, com a instituição ou com outros doentes, problemas que aí mesmo resolvem ou são transferidos para interconsultas com o staff das enfermarias.

III - Docentes

A presença do Setor de Psicossomática junto ao grupo docente, que é ao mesmo tempo, o corpo clínico das enfermarias e ambulatórios do Hospital-Escola São Francisco de Assis, obedece ao sentido da atenção médica compreensiva. Graças a essa associação amplia-se e enriquece-se o elemento fundamental em que se apóiam os dois outros componentes (doente e aluno) do trinômio figurado no início deste trabalho. As inter-relações com o pessoal docente desenvolvem-se seguindo as seguintes linhas de atividade:

  1. Assessoria direta à Equipe de Saúde ou Interconsultas. O Setor de Psicossomática é solicitado quando surgem problemas no relacionamento paciente-equipe de saúde. A questão é examinada por um membro do Setor e outro da Equipe, verificando-se que as dificuldades podem provir não só dos doentes, mas também de reações inadequadas da equipe ou de algum de seus componentes. Uma vez identificados, os focos de conflitos são trabalhados atrávés de esclarecimento e orientação. Quando a situação se apresenta mais difícil, o paciente é entrevistado por um membro do Grupo de Psicossomática, sempre na presença de um elemento da equipe de Saúde, para não enfraquecer o vínculo médico. Participação da família do doente e do Serviço Social com freqüência são importantes para resolver ou equacionar problemas de rebeldia, comportamentos psicóticos, dificuldade de alta, resistência a exames complementares etc.

  2. Supervisões coletivas tipo Grupo Balint. Os casos de doentes com dificuldades psicológicas são apresentados nas reuniões semanais do Setor de Psicossomática com a equipe médica, e aí discutidos globalmente. Os problemas mais interessantes e instrutivos são, eventualmente, levados à Sessão Geral do Serviço. Através dessa supervisão, acompanham-se casos de psicoterapia breve e de propósitos limitados, como obtenção de alta, melhora sintomática ou reintegração no meio familiar.

  3. Relação médico-paciente nos doentes de ambulatório. O Setor de Psicossomática nos ambulatórios, colabora nas tarefas assistenciais e nos aspectos formativos do curso de graduação. Do consenso com a Chefia de Clínica, firmou-se a norma dos pacientes serem atendidos, em todos os consultórios especializados, sempre pelos mesmos médicos de modo a não quebrar a continuidade essencial do relacionamento.

  4. Crítica a comportamentos iatrogênicos, como sejam a discussão médica dos casos diante do paciente ou de seus familiares ou a admissão de estudantes em grupos para assistirem demonstrações de determinados exames complementares, como retossigmoidoscopia etc.

Convocação da família, quando conveniente, e discussão das implicações psicossomáticas e psicossociais, como tópico relevante na avaliação pela equipe do trabalho diário representam também prática de rotina.

  1. Assessoria proporcionada pelo Setor de Psicossomática aos Coordenadores de Ensino da 3a, 4a e 6a séries, pois são esses os docentes que mais constantemente lidam com o problema de adaptação do aluno ao grupo didático e ao ambiente hospitalar.

  2. Participação em projetos especiais de pesquisa, nos quais aspectos psicológicos ou psicossomáticos constituem objetivo parcial ou integral da investigação como ocorre com os estudos em curso sobre asmáticos resistentes a tratamento e o paciente diabético-problema.

Em síntese, a metodologia de ensino e a orientação formativa quanto à Relação Médico-Paciente utilizada na 4a Disciplina de Clínica Médica, consiste de três atividades essenciais:

Esse triângulo poderá ser transformado em quadrilátero com a inclusão das Reuniões para discussão integrada de casos de enfermaria em que se dá ênfase à problemática da Relação Médico-Paciente.

Conclusão

A incorporação de conhecimentos e experiências referentes à relação médico-paciente, durante o curso de graduação em clínica médica, cuja primeira etapa corresponde ao ingresso do aluno no ambiente hospitalar, reveste-se de óbvia importância em qualquer formulação curricular de caráter formativo. O planejamento desse aprendizado, deve levar em conta não só os métodos dirigidos ao próprio aluno mas também a atuação do pessoal docente e os padrões de sua atenção compreensiva ao doente. Em verdade, nenhuma programação didática nesse particular dispensa o modelo da boa relação docente ou equipe de saúde-doente base insubstituível do processo educativo dos futuros médicos.

  • 1
    *trabalho da 4a Disciplina de Clínica Médica. Faculdade de Medicina - UFRJ.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1978
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