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ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA AO ALUNO DE MEDICINA: O INÍCIO DE UMA EXPERIÊNCIA

Resumo:

Os autores, responsáveis pelo atendimento dado pelo Grupo de Assistência Psicológica ao Aluno da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, apresentam observações oriundas da atividade inicial com os primeiros e quintanistas. Foram identificadas dificuldades de adaptação ao novo sistema de estudo, em relação ao corpo docente e discente, ao paciente e à instituição.

Abstract:

The authors, responsible for the attendance given by the Psychological Assistance Group for Students for Medical School of the University of São Paulo, present observations originating from initial activity with first and fifth year students. Difficulties of adjustment to the new tuition system, toward the teaching faculty and the student body have been indentified, as well as in relation to the patient and the institution.

1. Introdução

A formação médica tem sido um tema constantemente discutido em nosso meio; questionamentos em relação ao currículo, especializações e campo de trabalho levaram à busca da formação de um médico mais generalista.

Essas discussões também resultaram na percepção da necessidade de atenção aos aspectos psicológicos envolvidos na aprendizagem médica. Isto levou a Comissão de Graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo a criar o Grupo de Assistência Psicológica ao Aluno (Grapal) que, desde março de 1986, desenvolve as seguintes atividades: atendimento na área de psiquiatria clínica, psicoterapia breve, orientação familiar, entrevistas e grupos de discussão.

O objetivo deste artigo é relatar observações e reflexões oriundas de atividades com os primeiros e quintanistas, durante o ano de 1986.

2. O aluno do primeiro ano

Os dados que serão expostos abaixo, foram obtidos através de entrevistas individuais com o psiquiatra do Grapal, as quais consistem de uma anamnese clássica, acrescida do motivo da escolha da profissão e de como o aluno vê a faculdade em relação ao ensino e ambiente. Isto permite, se necessário, uma intervenção precoce e é uma oportunidade para que o aluno conheça o Serviço, facilitando o acesso a ele no decorrer do curso. A convocação foi feita através de carta e os que faltaram foram reconvocados.

Predomina o sexo masculino (61,2%) e a média de idade é de 19,4 anos. Encontram-se, portanto, no final da adolescência e com frequência apresentam as dificuldades características dessa fase, como necessidade de autoafirmação, culpas, conflitos na área da sexualidade etc. Logo, não devemos esquecer, que as vivências dos alunos frente às vicissitudes de sua formação, são influenciadas pela fase em que se encontram. Os que vêm do interior (12,9%), enfrentam problemas de moradia, de adaptação ao ritmo de vida de uma cidade grande como São Paulo e necessitam realizar um maior esforço para obter uma qualidade de relacionamento interpessoal satisfatória. Os orientais (51%) formam a maior parte do grupo de nacionalidade estrangeira e, ao lado dos descendentes de 1a e 2a gerações, apresentam grandes contrastes culturais e educacionais em relação aos brasileiros, o que pode dificultar sue. adaptação psicossocial, levando-os a se relacionar em grupos fechados.

Dos 175 alunos convocados, 149 compareceram à entrevista (85,1%). Chama a atenção o fato de que os homens faltaram proporcionalmente quatro vezes mais do que as mulheres, dado que coincide com a experiência de outros Serviços22. KLIGFELD, M. & HOFFMAN, K. I. Medical student toward seeking professional psychological help. Journal Medical Education, 54:617-21, 1979.), (33. LLOYD, C. & GARTRELL, N. K. Psychiatric symptoms in medical students. Comprehensive Psychiatric, 25:552-65, 1984.. Parece-nos que ainda há um grande preconceito em relação a situações que envolvam uma abordagem psicológica, mais explicitado na população masculina.

Quanto aos motivos conscientes que levaram o aluno a escolher a profissão, prevalece o interesse pela biologia (46%) e a influência de terceiros (45%), principalmente de pais médicos. Muitos (43,3%) buscam poder ajudar, tratar, curar, salvar, ser útil ou atuar no campo social. Frequentemente esses objetivos são revestidos de uma grande idealização, que pode desfazer-se quando o aluno entra em contato com a realidade e os limites da profissão. 6% não sabem o motivo da escolha, enquanto 5% escolheram "por exclusão". A busca de uma boa remuneração financeira, de status ou atuação como profissional liberal foram respostas pouco frequentes (1,2%), o que mostra que os alunos estão conscientes das mudanças ocorridas na área médica nos últimos anos, quanto a esses aspectos.

A maior parte (65,8%) refere gostar do ambiente acadêmico. As queixas mais frequentes foram relativas à competição (5,3%), excesso de "panelas" (grupos fechados) (6,0%), individualismo (4,7%), desunião (3,4%) e política institucional (4,0%) existentes na Faculdade. Sabemos que muitos alunos eram os primeiros da classe no colégio e que essa era uma forma de se sentirem valorizados. Na faculdade, vários "primeiros" disputam as melhores notas. Alguns que se destacavam, passam a ser "medianos" ou "fracos" e reagem a isso apresentando um grande desânimo e até quadros depressivos. Outros passam a lutar obstinadamente na tentativa de obter destaque através das notas ou do "currículo paralelo" (cursos, plantões, participação em trabalhos científicos). A perspectiva de um exame para entrar na residência e as dificuldades cada vez maiores em relação ao mercado de trabalho, acirram a competitividade. Alguns chegam a privilegiar o "currículo paralelo", o que pode prejudicar a sua formação.

Em relação ao curso, aparecem em primeiro lugar (24,9%) queixas quanto à didática. A nosso ver isto reflete, além das limitações didáticas de alguns docentes, a grande diferença entre a metodologia de ensino existente no colegial, no cursinho e na Faculdade. As aulas deixam de ser dadas de forma "mastigadas" o que obriga o aluno a reaprender a estudar. A grande quantidade de novas informações recebidas torna praticamente impossível o "saber toda a matéria", o que acontecia no passado, desencadeando sensações de "não ter aprendido nada" e de estar sendo submetido a uma sobrecarga de estudos (12,1%).

As matérias do curso básico são sentidas como "maçantes", "desinteressantes" (12,7%) e "desligadas da medicina" (20,2%). Os alunos querem "pôr a mão na massa" mas encontram um curso teórico, o que os fazem procurar as atividades práticas oferecidas pelo "currículo paralelo". Para muitos torna-se difícil a percepção da importância dessas matérias no sentido de serem o alicerce de sua formação. O fato de grande parte das aulas serem ministradas na Cidade Universitária e não no prédio da Faculdade, incomoda o aluno (8,7%), que sente aquele ambiente como "impessoal", ou "de Deus e o mundo". O primeiranista, ao entrar na Faculdade, sente grande ne­cessidade de conhecer o seu ambiente e de fazer parte dele, o que contribui para o início da formação de sua identidade médica.

Um curso em período integral e a vivência de uma sobrecarga de estudo fazem com que o aluno (6,7%) se sinta "totalmente absorvido" pela faculdade, que tema ficar "bitolado" e "isolado do mundo lá fora". Vive, dessa forma, um conflito muito grande, pois ao mesmo tempo em que obteve um ganho por ter passado no vestibular, sente que está perdendo amizades, lazer e a possibilidade de manter as atividades que realizava anteriormente. A má elaboração desse conflito pode permear a dinâmica de quadros depressivos, ansiosos e o desejo de abandonar o curso. O fato de ter passado por um vestibular desgastante pode colaborar para a vivência de sobrecarga, sendo que alguns acabam por prolongar suas férias durante o primeiro semestre, dedicando-se pouco aos estudos, o que leva a uma nova sobrecarga na época das provas. No decorrer do ano, à medida que o aluno reaprende a estudar, passa a ter mais tempo para outra atividade apesar de não haver uma redução de carga horária ou da quantidade de matéria.

Os quadros clínicos mais frequentes - depressão (6,0%) e ansiedade (2,7%) - não mostram discordância em relação à literatura11. FOGEL, B. J. & BISHOP, F. E. Attending to the emotional problems of future physicians. Journal of the Florida Medical Association, 70:1111, 1983.), (33. LLOYD, C. & GARTRELL, N. K. Psychiatric symptoms in medical students. Comprehensive Psychiatric, 25:552-65, 1984.), (4SALMONS, P. H. Psychiatric illness in medical students. British Journal Psychiatric, 143:505, 8, 1983.. Este é um tema que necessita de estudo mais aprofundado, uma vez que foram avaliados apenas os primeiranistas e a amostra não seguiu uma distribuição randômica.

3. O aluno do quinto ano

Na Faculdade o 5° ano marca o início do internato: a aprendizagem prática, o contato direto com o paciente e com a doença. É um momento esperado com entusiasmo pelo aluno e representa uma ruptura a um só tempo desejada e temida. A expectativa é de que, agora sim, se aprende medicina de verdade. Se por um lado o sair da posição passiva de aluno-ouvinte é desejado, por outro, o ser interno, ter um doente e enfrentar as atividades do internato criam situações de muitas dúvidas e conflitos, acirrados por vezes, pelas exigências curriculares e dificuldades pessoais.

No ano anterior acontece a formação e definição das "panelas": grupos de trabalho compostos por 15 alunos aproximadamente, que juntos farão os diversos estágios, tendo sob sua responsabilidade a divisão das tarefas, a distribuição dos plantões e as discussões de caso; mas acima disso, será com e na "panela", que o aluno vivenciará as situações de aprendizagem prática básicas para o exercício da medicina.

Objetivando atuar em relação às dificuldades específicas do internato, são realizados grupos de discussão nas enfermarias da Clínica Médica, que corresponde ao estágio, tendo duração de 3 meses. São reuniões semanais de aproximadamente 1 hora e meia de duração, sob a coordenação da psicóloga do Grapal. E uma atividade optativa para os internos e aberta aos residentes responsáveis pelo estágio.

A Clínica Médica subdivide-se em PSM 5°, Propedêutica II, II e Grupo Geral, cada qual com sua própria enfermaria. Em 1986 foram atendidas cinco "panelas". Três no Grupo Geral, com a frequência oscilando entre 50 e 70% nas duas primeiras, havendo um decréscimo no final da terceira (25%). Um desses grupos teve continuidade por mais dois meses após o término do estágio, agora nas dependências do Grapal, onde a presença foi de 70%. No PSM 5°, realizaram-se grupos com duas "panelas", havendo comparecimento de 40%. As tentativas para a implantação da atividade na Propedêutica I e II foram frustradas, por dificuldades de horário ou desinteresse dos alunos.

Os grupos são abordados dentro de um enquadramento psicopedagógico. É a dinâmica grupal que orienta a utilização e escolha de alguns recursos técnicos, como jogos dramáticos, desenhos e colagens. Tem-se como norma o sigilo, objetivando-se criar um clima mais descontraído para as discussões; a presença de residentes é condicionada ao consentimento dos internos.

Já nas reuniões iniciais evidenciaram-se questões como a sobrecarga de tarefas e a dificuldade de conciliar as atividades de enfermaria como as aulas teóricas; a escolha da especialidade; o papel do interno, sua função e "status" na instituição; a relação interno-residente, interno­assistente e interno (médico)-paciente.

A necessidade de obtenção de um bom currículo é tida pelo aluno como garantia para ingresso na Residência e justificativa para as atividades extracurriculares, que reforçam o acúmulo de tarefas. Isto ocorre mesmo quando há indefinição pela especialidade, pois para ele o que importa é a posse de certificados que possam ser apresentados como testemunho de participação e dedicação à vida acadêmica. Além da questão da escolha da especialidade e do exame para a Residência, que constituem fatores de pressão no cotidiano do interno, somam-se exigências e expectativas enfrentadas em cada uma das enfermarias, que nem sempre são identificadas, dificultando localizar-se no ambiente hospitalar.

É frequente a expressão "tocar serviço", significando uma carga de trabalho muito grande e obrigações que caberiam a funcionários do Hospital. Os plantões, principalmente os noturnos, são considerados cansativos e numerosos. São situações vistas pelo aluno como pouco produtivas, comprometedoras do aprendizado. Essas queixas, associadas às críticas em relação às manifestações de poder e autoridade presentes no hospital-escola, constituem-se numa das posições mais ambíguas dos internos. De um lado, manifestam certa revolta com suas condições de aprendiz, pois sentem serem pouco reconhecidos seus esforços e suas dificuldades; de outro, há certa resignação, na qual o desgaste, a dedicação e as privações são tidas como necessárias para sua formação e encaradas como parte de um ritual que possibilitará uma transformação quase mágica do aprendiz em médico.

É no emaranhado dessas e de outras questões que ficam postas as primeiras vivências do interno na relação médico-paciente. As dúvidas começam no como colocar­se nesta relação: como interno, como aluno ou como médico. As dificuldades de localização dos limites da responsabilidade com o doente é um dos pontos mais controvertidos, uma vez que os procedimentos e condutas são decididos pelos residentes e assistentes e nem sempre o interno é solicitado a participar ou se sente em condições para tanto.

A doença, antes um conhecimento a ser adquirido, agora se apresenta concretizada na pessoa do doente com seus sofrimentos e queixas, aos quais nem sempre é possível dar uma resposta eficaz. A descoberta de que a cura não é tão frequente como se espera, que a medicina não possui soluções definitivas e nem paliativas para inúmeras enfermidades, deixa o interno "desencantado". Isto fica maximizado ao defrontar-se com situações limites, tais como a morte inesperada do paciente, os entraves burocráticos e as carências institucionais; casos de negligência e/ou erro profissional, a convivência com dúvida se determinados procedimentos visam mais a atender ao interesse acadêmico do que ao paciente, atitude que refletiria uma "desumanização" do profissional. Essa crítica é acompanhada pelo modo de no futuro atuar dessa maneira.

O interno assume como sua função conversar com o paciente, tirar a história, fazer a evolução, tolerar suas queixas e reclamações. O contato menos formal e mais simpático é encarado como uma tarefa, onde a proximidade compensaria, em certa medida, a falta do conhecimento médico e a ausência de uma ajuda clínica, considerada mais efetiva.

A inexperiência e imaturidade, próprias desse momento da formação do médico, levam o aluno a oscilar entre os dois extremos do emocional e do racional. Este último é visto pela instituição como modelo a ser seguido e sinônimo de maturidade; em contrapartida há uma visão de que manifestações emocionais são reflexos da imaturidade que devem ser eliminadas, ao invés de superadas no decorrer do desenvolvimento pessoal e profissional. A eliminação é tida como necessária em função da conotação pejorativa dada à imaturidade e a seus equivalentes emocionais.

Diante de tal contexto resta pouco espaço para que o interno vivencie e elabore suas reações, mas ele tenderá a buscar "fórmulas" e modelos no sentido de se adequar e atender às expectativas institucionais. Assim, aquela proximidade, em verdade tão pouco vivenciada, tende a ser esvanecida e substituída pelo ambicionado conhecimento técnico; se por um lado se reconhece nisso uma "desumanização" do profissional, do outro, representa uma solução para as dificuldades de relacionamento com o paciente.

A ênfase na doença torna-a uma entidade autônoma e desvinculada do doente e de seu sofrimento. É a doença em detrimento do doente. Foi assim nos quatro anos anteriores. Quando a realidade coloca o aluno em contato direto com a pessoa do doente, a relação mantém-se ainda, muitas vezes, médico-doença. Reconhecer a pessoa do paciente é esbarrar em dúvidas, incertezas e conflitos.

Acontecendo no momento em que essas questões ganham dimensão de realidade, os grupos abrem espaço para a discussão de temas controvertidos da relação médico-paciente: proximidade-distância, aceitação-rejeição; a participação do doente no diagnóstico, tratamento e cura; o "direito" de decisão do médico no tocante à escolha de determinadas condutas e terapêuticas; o "enfrentar" a família do paciente; a decisão de comunicação dos prognósticos desfavoráveis, quando tomá-las, como fazê-las e as suas possíveis repercussões; as visitas e discussões de caso na presença ou não do paciente e que atitude tomar quando nada mais pode ser feito em seu benefício.

4. Conclusão

Qualquer proposta de atuação junto ao aluno de Medicina deve levar em conta a complexidade que envolve a formação médica, que efetivamente não pode restringir-se a seus aspectos acadêmicos ou pedagógicos, sendo de fundamental importância a consideração dos aspectos psiclógicos.

Os dados expostos neste artigo reforçam a necessidade e importância da existência de um Serviço com a finalidade exclusiva de dar assistência psicológica ao aluno de medicina, no sentido de auxiliá-lo nas vicissitudes que encontra no transcorrer de sua formação.

Referências Bibliográficas

  • 1
    FOGEL, B. J. & BISHOP, F. E. Attending to the emotional problems of future physicians. Journal of the Florida Medical Association, 70:1111, 1983.
  • 2
    KLIGFELD, M. & HOFFMAN, K. I. Medical student toward seeking professional psychological help. Journal Medical Education, 54:617-21, 1979.
  • 3
    LLOYD, C. & GARTRELL, N. K. Psychiatric symptoms in medical students. Comprehensive Psychiatric, 25:552-65, 1984.
  • SALMONS, P. H. Psychiatric illness in medical students. British Journal Psychiatric, 143:505, 8, 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1988
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