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MEDICINA GERAL COMUNITÁRIA: NOVOS RUMOS?

Os autores analisam os novos rumos do movimento dos médicos gerais comunitários.


Abstract:

The authors analyse the new orientation of the community geral physicians movement.

Introdução

O presente trabalho enfatiza a procura de uma maior definição conceituai, metodológica e político-ideológica da mais nova especialidade médica reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), a Medicina Geral Comunitária.1010. Resolução CFM n° 1232 de 11/outubro/86.

Não serão aprofundadas as diferenças conceituais entre Medicina de Família e Medicina Geral Comunitária (MGC), embora a mesma seja bastante polêmica no seio do movimento dos médicos gerais comunitários, visto os autores concordarem com o extenso apanhado realizado por PAIM, seja quando discute o aparecimento da Medicina de Família como mais um projeto de reforma da prática médica, "enquanto movimento ideológico visando responder aos impasses e questionamentos sobre o modelo dominante da assistência médica, sobretudo no que se refere a altos custos, sofisticação e superespecialização do cuidado"; ao abordar as várias tentativas de introdução desta proposta dentro do sistema de saúde brasileiro como, por exemplo, na criação de serviços e programas de Residência Médica, o surgimento da Associação Brasileira de Medicina de Família (ABRAMEF), passando inclusive pela utilização do termo Medicina Geral Comunitária como "estratégia para camuflar a expressão Médico de Família"; ao delimitar tal proposta como movimento de reforma médica "empobrecido conceitualmente quando comparado com outros movimentos que lhe precederam, tais como a Medicina Preventiva e a Medicina Comunitária"; ao situar as perspectivas de mudança por ele evocadas como "mais parciais e incompletas que as propostas pela Medicina Comunitária"; é, finalmente, ao analisar que a tendência de reorganização do sistema de saúde no Brasil a partir de políticas racionalizadoras e democratizantes não reforçaria uma configuração de prática médica liberal, tendendo a fazer com que a Medicina de Família passe a se incorporar às empresas de medicina de grupo e seguro saúde.66. PAIM, J. S. Medicina Familiar no Brasil: Movimento Ideológico e Ação Política. R. Bras. Educ. Med., 9(3): 207-215, set/dez/1985.

A Medicina Geral Comunitária

A Medicina Geral Comunitária surge em 1976 com a implantação no Brasil dos dois primeiros Programas de Residência Médica destinados à formação de médicos generalistas. "Eram os então chamados 'Subprograma de Internato e Residência em Hospital Regional Rural' do programa de Saúde Comunitária do Projeto Vitória da Universidade Federal de Pernambuco e o Programa de Residência em Saúde Comunitária da Unidade Sanitária Murialdo da Secretaria da Saúde e do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul". Chamam-se hoje Programas de Residência Médica em Medicina Geral Comunitária.11. ABATH, G. M. Medicina Geral Comunitária no Brasil. R. Bras. Educ. Med., 8(3): 166-176, set./dez. 1984,

Atualmente existem dez programas em todo o Brasil, sendo três deles no Rio Grande do Sul. Sistema de Saúde Comunitária Murialdo, Unidade de Medicina de Família do Grupo Hospitalar Conceição e Universidade Federal de Pelotas, os quais Já formaram cerca de 200 profissionais77. Relatório Final do I Encontro Sul-brasileiro de Medicina Geral Comunitária - Porto Alegre, 7 e 8/março/86..

ABATH22. ABATH, G. M. Medicina Familiar no Brasil. Educ. Med. Salud. 19(1): 48-72, 1985., em seu informe à Organização Panamericana de Saúde sobre a situação de Medicina de Família no Brasil, em 1984, descreve os conteúdos abordados nos Programas de Residência Médica, sendo os conteúdos, abaixo relacionados, desenvolvidos em maior ou menor grau nos mesmos:

  1. Prática de Medicina familiar;

  2. Programação e gerência dos serviços de saúde;

  3. Integração do médico em equipes multiprofissionais;

  4. Treinamento básico de investigação científica;

  5. Atendimento primário e secundário;

  6. Formação de docentes na área.

Em 05/dezembro/81, preceptores, supervisores e coordenadores dos PRM em MGC fundaram a Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária (SBMGC), visando promover o desenvolvimento da especialidade e o intercâmbio científico, técnico, cultural e social entre os profissionais da área. Entretanto, a mesma ficou desativada até o segundo semestre de 1985, até porque membros da Diretoria haviam se retirado para fundar a Associação Brasileira de Medicina de Família - ABRAMEF44. Boletim informativo da Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária (SBMGC) n° 01/86.. A reativação da SBMGC se deu em Assembleia Geral da Categoria em 19/março/86, durante a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde33. Ata de Reativação - Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária (SBMGC) - 19/março/86., destacando-se dentre seus objetivos a elaboração de um referencial teórico-definição de um marco conceituai, perfil profissional e campo de atuação da especialidade; medidas relativas ao mercado de trabalho em função do não aproveitamento do MGC pelo INAMPS, apesar deste ser o maior mantenedor das Residências; reconhecimento oficial da especialidade pelo CFM; pesquisar, estimular e desenvolver linhas de pesquisa, especialmente nas Residências, gerando conhecimento próprio da área; fundar, logo que possível, uma revista da especialidade e revisão da Resolução 07/81 da CNRM1212. Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária - Por quê? Arquivos da SBMGC..

Em setembro/86 ocorreu o I Congresso Brasileiro de Medicina Geral Comunitária (Sete Lagoas - MG) que, além de eleger a primeira Diretoria pós-reativação da SBMGC, caracterizou uma ruptura com a proposta de Medicina de Família, ao explicitar que a Medicina de Família "centra sua atuação sobre o núcleo familiar, que se constitui seu objeto de trabalho e, embora em alguns momentos suas técnicas sejam confluentes com a prática da Medicina Geral Comunitária, mantém uma tendência nitidamente privatizante, atuando de forma conservadora no campo do social, por apresentar uma compreensão restrita do macrossistema, prejudicando sua atuação transformadora, o que a distancia da Medicina Geral Comunitária na sua concepção atual. Portanto, a distinção entre a Medicina Geral Comunitária e a Medicina de Família se fundamenta nas diferenças das práticas sociais, que tornam seus objetivos divergentes", ao passo que a MGC "propõe um profissional com uma visão do coletivo, o qual é operacionalmente entendido como comunidades geográficas e/ou grupos sociais inseridos em um contexto sócio-econômico e político, de cujos conflitos ele tem consciência e no qual os determinantes do perfil de morbimortalidade. A sua abordagem é integral, continuada e participativa, utilizando recursos apropriados para o atendimento das necessidades de saúde das comunidades. Tem alto poder de resolutividade, trabalhando para a organização do sistema referencial que lhe dá suporte"88. Relatório Final do I Congresso Brasileiro de Medicina Geral Comunitária - Sete Lagoas - MG. 3 a 7/set/86 - Marcos Históricos e ideológicos..

Durante o mesmo congresso foi discutido o perfil profissional da MGC, entendido como profissional que dever-se-á capacitar em "clínica e nas muitas áreas que permitam plena compreensão do processo saúde-doença da coletividade (epidemiologia, sócio-econômica da saúde, política nacional de saúde), de acordo com as seguintes competências: a) conhecer e dominar o instrumental científico (metodologia científica), promovendo a realização de pesquisas na área; b) promover o planejamento participativo nas ações de saúde; c) dominar o método semiológico (clínico, epidemiológico, determinantes sociais); d) habilitar-se em gerência dos serviços no nível em que atua; e) atuar em docência, tanto em educação popular como na reprodução de conhecimentos para profissionais de nível superior; f) dominar a prática clínica, com um corpo de conhecimentos que inclua as nosologias prevalentes, respeitando as especificidades de cada área e/ou região, atuando preferencialmente em cuidados primários de saúde; g) ampliar a abordagem clínica para o campo da saúde mental; h) intervir nos determinantes sociais do processo saúde-doença buscando a solução dos problemas prioritários em conjunto com a população.

Com tal instrumental técnico, acima descrito, o profissional Médico Geral Comunitário constitui-se a nível local e/ou regional, no instrumento de execução de diretrizes gerais elaboradas a nível central e compatíveis com as prioridades locais e/ou regionais previamente definidas com a população. Com isto, elimina-se a dissociação do discurso com a prática. Articula-se, assim, com o setor de planejamento, complementando-o e retroalimentando-o"99. __________________. Perfil Profissional..

O que, sem dúvida, propõe mudanças frente à atual resolução da CNRM que rege a MGC e aponta para um amplo processo de discussão dentro da especialidade e na reorganização dos conteúdos dos programas de Residência Médica em Medicina Geral Comunitária. Entretanto, estas mesmas resoluções são frágeis ao definir o Médico Geral Comunitário no plano conceituai e político­ideológico, à medida que:

  1. não se posiciona em relação à estrutura social, abstraindo a determinação desta sobre o processo saúde­doença, não considerando a "doença como um processo que se relacione com a estrutura da sociedade, o homem como ser histórico e social, e o exercício das ações de saúde como prática permeada por uma prática "técnica que atua sobre o corpo, instrumento de trabalho"55. PAIM, J. S. Desenvolvimento teórico-conceitual do ensino em saúde coletiva. In: ABRASCO. Ensino de saúde. Rio de Janeiro, fevereiro/82, p. 3-17..

  2. tal fato repercute na inexistência de propostas metodológicas, embora se veicule a preocupação com a aquisição de instrumental metodológico e produção de conhecimento na área;

  3. também em decorrência, o conceito de comunidade desenvolvido restringe-se a formas de agrupamento geográfico e/ou por interesse, deixando para trás a conceituação filosófica social;

  4. embora situe seu locus de atuação nos níveis primário e/ou secundário, local e/ou regional, seu perfil profissional não deixa claro quais seriam tais níveis ou os níveis de intervenção do profissional em tais locais;

  5. por fim, existe uma sobreposição dos termos multipro­fissionais e multidisciplinar, empregados como sinôni­mos em alguns casos, bem como a indefinição do nível em que se dariam estas relações.

Conclusão

Apesar de tais indefinições, os autores consideram que o movimento dos Médicos Gerais Comunitários vem evoluindo na busca de uma maior consistência dos conteúdos abrangidos pela especialidade, como atesta a crescente discussão e separação das propostas emanadas da Medicina de Família, e a busca de uma melhor caracterização de sua identidade profissional, principalmente após a reativação da SBMGC.

Ao mesmo tempo, em saneadas algumas indefinições, anteriormente citadas, o papel dos Médicos Gerais Comunitários poderá vir a ser importante para a proposição de "novas práticas médicas que, como tentativa de resposta a contradições reais da prática e da educação médica (...) podem levar ao encontro de formas de superação destas mesmas contradições"1111. SCHRAIBER, L. B. Contribuição ao estudo da educação médica - São Paulo, 1980. Dissertação de Mestrado - USP..

Salientam, entretanto, da necessidade premente de se definir. um marco conceitual que norteie a intervenção do profissional frente aos determinantes do processo saúde-doença, buscando uma resolução do que vem a ser o "comunitário" do seu nome, haja vista a prioridade dada, tanto na resolução em vigor da Comissão Nacional de Residência Médica sobre MGC, quanto nas discussões e propostas para a nova resolução (atualmente em discussão), aos temas clínicos compreendidos em sua esfera de atuação em detrimento dos conteúdos das áreas de epidemiologia sócio-econômica da saúde e política nacional de saúde, além dos trabalhos denominados como comunitários, apenas listados e não aprofundados, embora no discurso sobrevalorizados e usados como diferencial frente aos demais especialistas da área médica.

Referências Bibliográficas

  • 1
    ABATH, G. M. Medicina Geral Comunitária no Brasil. R. Bras. Educ. Med., 8(3): 166-176, set./dez. 1984,
  • 2
    ABATH, G. M. Medicina Familiar no Brasil. Educ. Med. Salud. 19(1): 48-72, 1985.
  • 3
    Ata de Reativação - Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária (SBMGC) - 19/março/86.
  • 4
    Boletim informativo da Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária (SBMGC) n° 01/86.
  • 5
    PAIM, J. S. Desenvolvimento teórico-conceitual do ensino em saúde coletiva. In: ABRASCO. Ensino de saúde. Rio de Janeiro, fevereiro/82, p. 3-17.
  • 6
    PAIM, J. S. Medicina Familiar no Brasil: Movimento Ideológico e Ação Política. R. Bras. Educ. Med., 9(3): 207-215, set/dez/1985.
  • 7
    Relatório Final do I Encontro Sul-brasileiro de Medicina Geral Comunitária - Porto Alegre, 7 e 8/março/86.
  • 8
    Relatório Final do I Congresso Brasileiro de Medicina Geral Comunitária - Sete Lagoas - MG. 3 a 7/set/86 - Marcos Históricos e ideológicos.
  • 9
    __________________. Perfil Profissional.
  • 10
    Resolução CFM n° 1232 de 11/outubro/86.
  • 11
    SCHRAIBER, L. B. Contribuição ao estudo da educação médica - São Paulo, 1980. Dissertação de Mestrado - USP.
  • 12
    Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária - Por quê? Arquivos da SBMGC.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1988
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