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Tendências Curriculares na Área Profissional e a Formação do “Médico de Família”

Nos últimos cinco anos poucos temas foram tão proclamados quanto o relativo à formação do médico geral, de família, de primeira linha etc.

Tem sido unânime a recomendação para que as faculdades de medicina graduem profissionais que sejam suficientemente competentes para resolver os problemas mais comuns que afligem as comunidades. Embora não haja ainda consenso sobre quais situações deve o médico estar preparado para atender, afirma­se que para muitas delas, a presença do especialista seria dispensável, tivesse o médico formação adequada. Pretende-se assim preparar profissional capacitado a solucionar problemas comuns, evitando a dicotomização do atendimento, cujos benefícios maiores seriam a atenção médica menos onerosa e não atomizada.

Tarefa difícil será a de estabelecer até que ponto pode avançar esse médico de mil alcunhas, porém, aspirado por muitos. Os limites, creio, não devem ser fixados pois estarão regidos pelo bom senso e talento individuais.

A adoção e divulgação de doutrina de formação de médico de família têm sido por vezes deturpadas, crendo alguns que se trate apenas de campanha “antiespecialista”. Essa não é a concepção dos mais lúcidos, que continuam julgando indispensável a presença do especialista na evolução da ciência médica. O que se defende é a não proliferação indiscriminada de especialistas. Na falta de controle de fluxo de formação especializada, estaremos cada vez menos contribuindo para as soluções dos problemas de saúde do país além de promover indesejável saturação do mercado de trabalho, esta prejudicial à própria sobrevivência do médico.

Paralelamente corre-se o risco de retardar ainda mais a tão almejada interiorização de ações de saúde, visto que o diferenciado especialista tende, naturalmente, a se concentrar nas grandes metrópoles. A formação do médico de família em maior proporção e de elevada competência não é, entretanto, fórmula mágica, não sendo, portanto, garantia para a mobilização profissional rumo ao interior e tampouco solução definitiva para os problemas de saúde do país.

E fácil depreender que o plano de formação de médico de família é amplo demais para ser tratado apenas pelas escolas de medicina, exigindo transformações e estreita articulação entre os órgãos de Saúde, Previdência e Assistência Social, Trabalho e Instituições de Classe. Em trabalho de tamanha dimensão, a Universidade deve ocupar posição nuclear. Da mesma forma que cabe à Universidade captar os reclamos sociais e a eles se integrar, mostrará sua competência e eficácia quando conseguir incluir no meio social o produto que idealizou.

Diante de quase uma consciência universal a respeito da necessidade do médico de família, cabe analisar como vêm reagindo as escolas de medicina na tarefa de conciliar as idéias com o exercício de formação daquele profissional.

Dimensionado como foi o médico de família, espera-se que sua formação este já calcada em áreas amplas de aprendizado, tais como Clínica Médica, Clínica Cirúrgica, Pediatria etc., diminuindo a carga horária ou mesmo desestimulando disciplinas que tenham mais a dizer com as especialidades.

Assim pensando, solicitamos a todas as Faculdades de Medicina do País que nos enviassem seus currículos para analisar as coincidências e discordâncias entre a filosofia de formação médica e o que é oferecido ao aluno como prática daquela. Vale salientar que todas as escolas referem, como protótipo de profissional a ser formado, o médico não-especializado, geral etc. e, embora não refiram o termo “médico de família”, a filosofia geral aproxima-se deste.

Obtivemos respostas de 54 faculdades (72% do total de escolas existentes) de medicina e a análise do currículo demonstrou que, em 34 delas (63%), a disciplina de Clínica Médica não existia e aprendizado de Medicina Interna era oferecido pelas especialidades (Gastrenterologia, Hematologia, Endocrinologia Reumatologia etc.), passando o estudante, em média, duas semanas nas referidas áreas, período que pode ser reconhecido apenas “cosmético”, considerando esta o aluno em etapa de graduação. O quadro I mostra a distribuição das escolas pelas regiões fisiográficas brasileiras.

ENTRA TABELA

REGIÃO APRENDIZADO EM CLÍNICA MÉDICA (EXISTE DISCIPLINA APRENDIZADO EM ESPECIALIDADES (NÃO EXISTE CLÍNICA MÉDICA) TOTAL Norte % % Nordeste 8 14,8 7 12,9 15 Sudeste 7 12,9 11 20,3 18 Sul 5 9,2 15 27,7 20 C. Oeste - - 1 2,1 1 Total 20 37% 34 63% 54 (100%)

A presente singela investigação revel tendência nítida das escolas em suprimi ou retalhar a Clínica Médica nas várias especialidades que a compõe, dificultando o aprendizado da integralização da conduta médica.

É de se notar igualmente que, em alguns currículos e na área de Clínica Cirúrgica, surgem como obrigatórios créditos em cirurgia plástica, protológica, torácica, cardíaca etc.

Configura-se um mundo de visíveis contradições, onde uma política institucional de graduação (quando existe além do impresso nos Estatutos e Regimento) parece não resistir às influências provenientes de prestígio pessoal de professores e profissionais de determinados setores da ciência médica quando da organização curricular. Imagino, dentro em breve, a inclusão obrigatória no curso de graduação da disciplina - medicina aeroespacial.

Se a idéia é a de efetivamente formar médico que esteja habilitado a conduzir problemas e doenças prevalentes rumo aos caminhos do alívio ou cura, seria mais conveniente que o aprendizado durante a graduação estivesse a cargo das denominadas áreas fundamentais do ciclo profissional.

Creio que boa parte das experiências educacionais desenvolvidas até hoje (em todos os níveis) tem conduzido o aluno mais a labirintos do que aos caminhos da simplificação do aprendizado (o que não significa rebaixamento de nível).

Nesse momento, quando se pensa em retomar a idéia de formação do médico de família, deve-se ter em mente alguns pontos fundamentais que podem acelerar os acertos.

  1. Partir do princípio de que é mais difícil formar o “médico de família” do que outro tipo. O “médico de família” ou “generalista” não é um “superficialista”, mas médico de ampla e sólida formação.

  2. As especialidades ligadas à Clínica Médica (Cardiologia, Pneumologia, Gastrenterologia etc.) e à Clínica Cirúrgica (Oftalmologia, Otorrinolaringologia, Urologia etc.) poderiam ser suprimidas como disciplinas isoladas, nas quais a passagem do aluno fosse compulsória. Seriam ministrados os tópicos pertinentes a cada uma em dois programas apenas - de Clínica Médica e Clínica Cirúrgica. O especialista deve ser reservado para atuar predominantemente na Residência e no aprimoramento dos docentes vinculados às grandes áreas da ciência médica.

  3. Dedicar esforço no sentido de que ao final do curso o graduando esteja preparado para exercer a profissão. Afinal o curso de graduação tem essa obrigação. Caso os tradicionais seis anos forem julgados insuficientes para formar o médico, que se prolongue o curso, mais que se formem médicos, e em especial, de família.

  4. Atentar para dificuldades que existirão na identificação de docentes para execução dos programas.

  5. Sem negar a importante contribuição das ciências sociais no preparo do médico de família, cuidar de equilibrar harmoniosamente sua formação para que não vivamos novas e futuras angústias - a de formar sociólogos incompetentes e médicos despreparados.

  6. Estudar com incansável carinho as diferenças, às· vezes tênues mas existentes, entre projetos de saúde comunitária, medicina social, sanitarismo, preventismo, epistemologia médico-social te., e os programas de formação do médico de família. Expor sem excessos as doutrinas sociológicas que mais se cor­ relacionem com a medicina e propiciar amplo e diversificado campo de aprendizado prático aos alunos, a fim de que se estimule o juízo crítico evitando possíveis posturas tendenciosas, radicais ou estereotipadas.

Esses são alguns alertas. Tarefa mais difícil, contudo, será a de conscientizar a população docente que, para se engajar na filosofia de trabalho de formação do médico de família, terá que se despir de vaidades, exigências e intolerâncias pessoais.

Tudo isso valerá a pena pois o “médico de família” terá importante papel na humanização da medicina e por que não admitir, na humanização da civilização.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1978
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