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O Prefixo des, a Prática e o Ensino Médicos: Humanizar É Preciso

The Prefix “de” and Medical Training and Practice: the need to humanize

Resumo:

Discorre-se sobre a desumanização das relações professor-estudante-médico-paciente e a necessidade de seu resgate. São apontados sinais da deformação do ensino e dadas algumas sugestões para preservar, no produto final da escola médica, o profissional comprometido com a pessoa do paciente.

Palavras-chave:
Humanismo; Relações médico-paciente; Relações Interpessoais; Docente de Medicina; Estudante de Medicina; Educação Médica

Abstract

The author comments on the lack of humanity in physician-patient and faculty-student relationships and the need to restore such values. She identifies some distortion in the physician training process and provides suggestions to keep professionals committed to the patient as a person.

Key-words:
Humanism; Physician-patient Relations; Interpersonal Relations; Faculty, Medicine; Students, Medical; Education, Medical

Em alguns simpósios e debates de que participamos - uns entre professores, outros para alunos -, foram propostos temas como “o humano na relação médico-paciente”, “o resgate das relações médico-paciente e estudante-paciente”, “o resgate das relações interpessoais na escola médica”.

Tem-se escrito e falado muito sobre a necessidade do resgate das relações professor-estudante-médico-paciente e da “humanização” da escola e da prática médica.

Resgate significa salvar o que está em perigo, trazer de volta, recuperar algo que se perdeu.

É sintomática essa preocupação de fazer o resgate: pressupõe que a relação entre duas pessoas, portanto, óbvia, básica, e intrinsecamente humana, esteja ferida na sua essencialidade.

O prefixo des torna desagradável o agradável, transforma conforto em desconforto leva ease à disease, doença. Parece, pois, estarmos hoje diante de uma relação médico-paciente des humanizada, doente. Nós, educadores médicos, temos que nos inclinar - lembremo-nos das raízes etimológicas da palavra clínica - sobre essa relação enferma, essa prática médica ferida, para uma observação e diagnóstico mais acurados e tentativa de desenhar uma terapêutica adequada.

Vemos quão insistentemente tem-se aplicado o prefixo des com relação à prática da medicina nos dias de hoje: des atenção, des cuido dos médicos no atendimento; des ilusão do paciente em relação ao esperado; des preparo do profissional emergente; des ânimo do médico com o sistema de saúde (ou de doença?); desesperança do paciente, des prestígio da classe.

Nossa vivência na Faculdade em que atuamos e relatos de colegas de outras escolas mostram que alunos dos anos básicos e intermediários são mais preocupados com o ideal de servir, com a qualidade da assistência, com a pessoa do paciente. Eles valorizam a relação médico-paciente e mostram mais compaixão que muitos internos ou médicos formados, que, seduzidos pela tecnologia, ou se “distribuindo” por vários empregos e plantões des humanos, ou se superespecializando, experimentam des continuidade e até des interesse no vínculo com o paciente.

Será que o desejo de ajudar, de ser útil ao próximo, que impulsiona os jovens à entrada da Faculdade, vai perdendo força quando deveria ser redobrado? Estaríamos diante de outro prefixo des, para des sensibilização progressiva e deformação do processo de vir-a-ser médico?

Os estudantes do básico e do intermediário nos parecem seixos isolados, lisos ou rombudos, com características ou peculiaridades muito próprias e que, ao correr dos anos, se transformam em argamassa homogênea, asfalto que sofreu impacto do rolo compressor, insensíveis e des sensibilizados doutores vestindo o avental como defensiva pele de aço.

VIVÊNCIA DE TERCEIRANISTAS QUE ADENTRAM O HOSPITAL

Perguntados sobre como têm percebido a relação médico-paciente, os alunos relatam por escrito que há docentes muito adequados na sua relação médico-paciente e “interessante a gratidão demonstrada pelo paciente para médicos que são exemplos de atitudes corretas”; por outro lado, referem “des caso” e “des respeito” ao cliente por parte de alguns médicos, “dis tanciamento” e “superficialidade” na relação de outros.

“O paciente não consegue estabelecer relação estreita com um médico.”

“(O paciente) Não sabe qual é seu médico, nem com quem falar.”

“O médico parece se preocupar só com a doença.”

Outros alunos consideram des prezível a atitude de discutir o caso na frente do paciente com afirmações como “mau estado” ou “estágio terminal”. Nessas circunstâncias, o médico des cuida do paciente; se lembrarmos que cuidar também significa curar, nesse momento se des cura do paciente, deixa-se de fazer terapia (cujo significado é serviço) para cometer um des serviço ao homem doente.

Em algumas visitas médicas, o des preparado paciente é abruptamente des nudado em frente à equipe, por médicos des preocupados com sua privacidade, que coisificam e des virtuam a relação, des conectando do paciente órgãos e sinais e examinando-o como se não pertencessem ao homem que sofre com eles.

Num trabalho de iniciação cientifica que orientamos, ainda não publicado, os alunos entrevistaram os pacientes com respeito à relação médico-paciente nas visitas médicas; dados apontam o des conhecimento por parte do paciente de quem é seu médico, seu cuidador (ou des cuidador), das razões dos vários procedimentos e des espero e angústia frente ao que discutem, o que constitui um flagrante des respeito à condição humana.

Sabemos que os terceiranistas se sentem preocupados em constranger o paciente, em expô-lo, e sentem certa culpa de estarem “usando o paciente”. Porém, para alguns internos e residentes, esse posicionamento muda, no sentido de que parecem estar “fazendo o favor” de atender o paciente, de “acordar” no plantão.

Há urna grande indagação sobre essa mudança, que pode ocorrer por inúmeras razões. Uma delas talvez seja que os estudantes também se sintam “usados” pelo sistema quando “tocam serviço” sem uma supervisão eficaz, sem modelos adequados para identificação e aprendizado.

É preciso que a experiência progressiva do estudante o capacite a lidar com sua própria angústia, com a do paciente e as vicissitudes da vida médica, porém sem que haja des sensibilização e distanciamento.

Como relata um aluno:

“Um outro problema é quando o médico fica dentro de sua carapaça branca.”

É preciso humanizar essa relação médico-paciente, estudante-paciente e, mais basicamente ainda, a relação professor-aluno, a relação entre duas pessoas, revestidas da característica de serem originais e únicas.

Hoje, professores e alunos são pressionados a atender a demanda curricular e assistencial em detrimento da qualidade e mesmo eficácia da atenção e interação médico-paciente e professor-aluno A repetição desse des atendimento des estimula os mestres e des encanta os discípulos.

Mas o apóstolo São Paulo exorta “não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos”. Notem que ele não diz “transformai o mundo”, mas “transformai-vos, renovai vossa mente”, pois é na mudança que cada um faz ocorrer em si que resta a esperança de um futuro melhor para todos.

Professores e alunos devem pensar juntos, criar juntos para urna escola de nova feição.

HUMANIZAÇÃO DO ENSINO: PREOCUPAÇÃO CRESCENTE

Humanizar o ensino é descobrir a pessoa do aluno, reconhecê-lo como igual na massa de cabelos raspados, felizes calouros de 17, 18 anos. É Individualizar o sonho que cada um traz em si e dar tempo e espaço para que esse sonho se amplie e tome forma ou se desfaça, dando lugar a outra aspiração mais profunda e mais autêntica, talvez mesmo noutra profissão.

Para acolher essas sementes de futuro, precisamos de docentes com paixão de formar, com disponibilidade e capacidade de reconhecer que alunos não são multidão de cérebros-esponja ou computadores que engolem dados e vomitam cópias. Não é dada ao professor a faculdade de simplesmente deletar o Imperfeito, mas tentar compreendê-lo, modificá-lo.

Veteranos devem reconhecer que calouros não são “bichos” que devam ser adestrados nas artes de submissão e de levantamento de copo, mas adolescentes que, além do aprendizado requerido pelos currículos sacramentados, estão no processo, mais difícil para uns que para outros, de assumir sua identidade, sua hierarquia de valores, sua definição de Homem ou Mulher com um sentido especial no Universo.

Humanizar o ensino significa interagir com pessoas, não coisificando a relação.

A escola deve prover meios pelos quais essas dificuldades pessoais, emocionais, intelectuais, crónicas ou agudas, situacionais ou permanentes, possam ter vazão na sadia competição esportiva, nas artes, no lazer adequado, quando não nos consultórios de psicoterapeutas competentes.

Humanizar significa respeitar o tempo, espaço e idéias e ideais, sugestões e críticas, fazendo do estudante um aprendiz mais ativo, num curso em que ele pode se manifestar e ser ouvido.

Humanizar o ensino é respeitar a inteligência e capacidade do aluno e a possibilidade de colocá-lo como pessoa igual, mas respeitá-lo é também motivá-lo a desenvolver seu potencial, desafiá-lo e cobrar-lhe resultados; é assim que a ciência progride, é assim que deve guiar o mundo, sempre quebrando os recordes antigos, porque, como diz Gibran, a “vida não retrocede”.

Não se pode falar em humanizar o ensino sem cobrar do aluno a necessidade de se aperfeiçoar continuamente, como um Fernão Capelo dos dias atuais. Não se pode falar em humanizar o ensino “dando ao aluno nota para passar”, alimentando a inércia que, embora universal, tem que ser assumida, disciplinada e removido.

O aluno tem que ser motivado a atualizar-se, pois, diante da impossibilidade do homem de dominar conhecimentos, é preciso dominar os vias pelas quais lhe chegarão o saber novo, as técnicas mais sofisticadas, a excelência das inovações.

A pessoa-aluno, interagindo, com a pessoa-professor, cria um molde que pode sustentá-lo quando, na carreira desgastante, por vez cruenta, que escolheu, vai se relacionar com a pessoa-paciente, as pessoas-família, enfermeiro, ajudantes de limpeza, chefes ou subalternos, todos empenhados numa luta sem fim contra a morte, o sofrimento e a impotência.

Faz-se um aluno comprometido com o paciente se o professor o é.

Sem negar a importância de aulas expositivas com docente interessante e interessado, sabe-se que não se fazem discípulos em classes lotadas com um ensino massificante. A pedagogia médica deve continuar incluindo técnicas que facilitem estudos centrados no aluno, ativo no seu aprendizado com interação mais estreita, em pequenos grupos aluno-professor.

É preciso, porém, proporcionar estímulo, formação e retaguarda ao docente. O trabalho do professor junto ao aluno tem que ser valorizado na mesma medida em que o são suas publicações.

O próprio aluno já absorve a subcultura da escola médica e desde que nela ingressa se preocupa com trabalhos de iniciação cientifica como meio de ascensão à residência, em cujo exame essas publicações - de inegável importância - terão muito mais peso que a dedicação do aluno “ao pé do leito”, sua empatia com o paciente, sua visão humanística, atributos que deveriam ser estimulados, valorizados e premiados.

Como se expressam os próprios alunos:

“Muitas disciplinas des estimulam o aluno a aperfeiçoar sua forma de se relacionar com o paciente”.

“Docentes de outras áreas precisariam reconhecer como verdadeiras as implicações da relação médico-paciente, que não são “viagem” de psicólogos e psiquiatras”.

Pensamos que ciências do comportamento, como, por exemplo, a psicologia, podem ser instrumentos para concretizar os objetivos da formação do médico interessado na pessoa do paciente.

É nossa função fornecer-lhes condições que alimentem seu pensar e favoreçam sua adequação à vida.

Os alunos referendam essas afirmações, impressões dos ingressantes dos cursos de medicina sobre expectativas e necessidades em relação ao curso médico e à disciplina de psicologia indicam que eles desejam um curso eficiente e que os habilite a serem bons médicos. Além disso esperam que a disciplina lhes forneça subsídios fundamentais à compreensão do comportamento humano, condições de aperfeiçoarem sua relação consigo mesmos e com o outro (colegas, pacientes, membros da equipe), os ajude a se conhecerem melhor e os treine no manejo adequado de situações críticas da lida médica.

Relatos dos terceiranistas confirmam essas necessidades:

“A escola deve ajudar psicologicamente os alunos e nos preparar para o que enfrentamos.”

“Deveria haver contato com o paciente desde o início do curso médico.”

“Deveria haver grupos de discussão de problemas surgidos na relação médico-paciente, exemplos de situações críticas e como resolvê-las.”

“Para melhorar essa relação (médico-paciente), acredito que uma melhor formação humanística dada pela faculdade seria o ideal.”

“Deveriam se preocupar com a parte emocional do aluno.”

Nos cursos de humanidades, além de bases teóricas que incluiriam tópicos como “o homem no universo - o homem como universo - o homem como co-agente de seu destino - o mundo das relações interpessoais”, deveriam multiplicar-se os programas multidisciplinares junto à comunidade, profissionalizando o aluno como um agente de saúde, com conhecimentos de psicologia, sociologia, epidemiologia e saúde coletiva, pediatria e gineco-obstetrícia, iniciando precocemente seu treinamento, desenvolvendo sua segurança e aumentando a auto-estima do aprendiz de doutor.

É imperioso insuflá-lo com o temor do erro grosseiro e também atendê-lo na quebra do narcisismo e onipotência.

É importante que haja um tempo físico e psíquico para que esse aluno se coloque como sujeito da história, reconhecendo com humildade suas limitações e trabalhando para aperfeiçoar-se sempre.

Treinamento em serviço propicia formação de equipe com seus colegas, relacionamento com médicos e líderes de comunidade, compreensão da doença como adaptação do paciente, às vicissitudes pelas quais passa no contexto em que vive, sofre, se alegra e ama.

Tem havido na administração de grandes empresas uma preocupação maior com os ingressantes, no intuito de ajudá-los na fase de adaptação ao novo emprego, possivelmente com a finalidade de torná-lo mais produtivo, mas já com a convicção de que trabalha melhor e rende mais quem se sente melhor e está mais adaptado.

O sistema de mentoring coloca pessoal mais graduado à disposição para orientar os que chegam, contribuindo de maneira eficaz para uma integração mais rápida e menos sofrida.

Pode-se fazer um paralelo com a figura do tutor dentro dos programas de tutoria que têm sido implantados em algumas escolas médicas, facilitando a adequação do aluno à escola e assistindo-o nas vicissitudes que a formação e a carreira impõem.

Ao indagarmos de alunos dos anos básicos suas expectativas quanto à tutoria que se inicia em nossa escola, sob nossa orientação, eles expõem, verbalmente e por escrito, que concordam (salvo raras exceções) com o programa apresentado, esperando ter um professor tutor que principalmente os “escute... seja receptivo... partilhe suas experiências.”

Aparecem com mais frequência expectativas de serem orientados em dificuldades como: problemas de aprendizado; adaptação ao método de ensino; habilidade para se organizarem no tempo; orientação quanto à vida universitária, projetos científicos, opções de especialidades. Porém essas logo são seguidas por outras de caráter mais pessoal, como: problemas no relacionamento com colegas, professores e com quem dividem moradia; problemas relacionados ao fato de viverem longe dos pais e da casa; problemas emocionais.

Alguns exemplos de relatos mostram essas diferentes aspirações dos alunos como futuros tutorados:

“Esse projeto parece ser uma ótima idéia; mostra que os professores se importam com os alunos, o que não é percebido normalmente...”

"Adoraria participar desse projeto porque muitas vezes eu me senti perdida e sem saber de ninguém que pudesse me ajudar aqui. Quando chegamos, as dúvidas são bem maiores que as certezas a respeito do curso, da faculdade, do hospital das especializações... Seria bom contar com alguém que já passou por isso.”

“O tutor deve estar atento não só às dificuldades acadêmicas, como também aos problemas pessoais, discernir até onde ele pode ajudar e em que momento deve procurar a ajuda do especialista.”

"Amigo do grupo, que conseguisse amparar os alunos nas dificuldades encontradas dentro e fora da faculdade... como um guia.”

Parece-nos que esse projeto professor-tutor é um passo importante para a saúde da instituição como comunidade viva em que membros se relacionem melhor, se ajudem e se complementem.

A nosso ver, a tutoria pode ser outra alternativa para assistência da pessoa do aluno, desse aluno que, dentro de um curso e ambiente em que se sinta compreendido e valorizado, possa se sentir estimulado a se conhecer melhor, a se aperfeiçoar e a desenvolver relações interpessoais mais harmônicas e adequadas.

O curso médico deve ser tão humano ou humanizado que só possa permanecer nele quem puder e tiver a coragem de ser e se sentir como gente, a capacidade de se equilibrar frente aos desafios sem tirar a cadeira para que o paciente não se sente no consultório, sem colocar pele de aço e armadura de médico robô, sem tratar casos e números, sem enxergar o paciente como o pagamento da duplicata de amanhã.

Humanizar o ensino é criar condições para a sobrevivência de valores, hoje racionados, porém inarredáveis, como solidariedade, respeito e honestidade. O perfil desejado para o médico do novo milênio, que inclui postura ética, visão humanística, compromisso com a cidadania, senso de responsabilidade social, pressupõe um produto que se forme num contexto que privilegie esses valores, numa ambiência de respeito com a vida e com o outro.

Queremos formar técnicos, peritos, experts, até gênios, mas que não percam o coração, e que sejam, basicamente, médicos de homens e de almas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2002

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2001
  • Aceito
    21 Mar 2002
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