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Educação Médica: Responsabilidade de Quem? Em Busca dos Sujeitos da Educação do Novo Século

Medical Education: Whose Responsibility? ln Search of the Subjects of 21 st Century Education

RESUMO

A educação encontra-se num processo de mudança, mas ainda é mais evidente a manutenção dos status quo do que as inovações, reformas ou transformações. Sujeitos da educação somos todos nós, educadores e educandos, e ser professor e estudante sujeito da educação é estar permanentemente comprometido com a educação: a dos outros (professores, estudantes, comunidade) e a própria. São, então , os educadores e educandos os maiores responsáveis pela educação médica , pois ninguém melhores que os docentes e discentes para conhecerem a realidade especifica de cada escola médica , suas fragilidades e fortalezas , vantagens e desvantagens, seus passos e lugar na comunidade, sua gente , e inexiste conhecimento profissional rigoroso, baseado na racionalidade técnica , que desconta da atuação no terreno pantanoso das relações interpessoais da educação ou das profissões da saúde . Por tanto, há que se resgatar o humano na nossa prática cotidiana, buscando o desenvolvimento de atitudes e competências favoráveis ao (RE) estabelecimento da confiança mútua e empatia nas relações educador- educando e profissional de saúde-paciente. Resgatar a dignidade na educação e na saúde envolve respeitar limites, mas avançando sempre no sentido das novas possibilidades.

Palavra chave:
Educação-Tendências; Educação Superior; Educação Médica-Métodos; Aprendizagem; Humanismo

ABSTRACT

Education is now in a process of change, but maintenance of the status quo is more evident than the innovations, reforms, or transformations. We are all the subjects of education as teachers and learners, and as such are permanently committed to the education of both others (teachers, students, community) and ourselves. Faculty and students are the main responsibility of medical education, since they more than anyone else are familiar with the specified reality of each given medical school, its weaknesses and strengths, its advantages and disadvantages, its place in the community, and its people . There is no rigorous professional knowledge based on technical rationality that can fully deal, on its own, with the complex field of interpersonal relationship in education or the health professions. Therefore, it behooves us to restore the human side of our daily practice by seeking to develop attitudes and competencies favoring mutual trust and empathy in the teacher-learner and health professional-patient relationship. To restore dignity in education and health care involves respecting limits, but also advancing towards new possibilities.

KEY-WORDS:
Education, Medical-Trends; Education-methods; Education, Higher; Learning; Humanism

A Educação e o Novo Século

“Não importa em que sociedade estejamos e a que sociedade pertençamos, urge lutar com esperança e denodo” P. Freire

Pensar na educação nesta virada do milênio exige reflexão sobre a história, os fatos e os acontecimentos que nos cercam.

Vivemos um momento de transição dos tempos e das atitudes, transição esta que torna apenas parcialmente visível o novo horizonte que desponta.

Discutir hoje os rumos da educação envolve discutir a mudança paradigmática, e a formação de uma sociedade da informação ou da era pós-industrial, e m busca de um difícil equilíbrio entre regulação e emancipação social.

Neste findar e início do séculos, estamos frente à desordem tanto na regulação quanto na emancipação social, e o nosso lugar/tempo ocorre em sociedades simultaneamente autoritárias e libertárias11. Santos BS. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Para um novo senso comum; a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez. 2000.. A valorização da liberdade e da igualdade, esteio da democracia moderna; não encontra ressonância no cotidiano dos povos e nações, especialmente nos com baixo índice de desenvolvimento humano. Persiste a concentração dos meios de produção, do conhecimento e da renda; a liberdade de escolha se expandiu, mas somente para os poucos que podem escolher; compras sem sair de casa e navegação num mar de informações pela interne o fim das certezas22. Prigogine L. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Unesp,1996., globalização como fábula, corno perversidade33. Santos M. Por uma outra globalização, do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. ou como possibilidade, mundialização; hierarquias rígidas, políticas ou corporativas, cm desintegração. Em paralelo, a criminalidade e a desordem social cresceram44. Fukuyama F. A grande ruptura· a natureza humana e a reconstituição da ordem social. Rio de Janeiro, Rocco, 2000..

Antigos ou modernos, tradicionais ou inovadores, os projetos educacionais que definem ou tentam defini as práticas de ensino-aprendizagem trazem no bojo da intencionalidade educacional artefatos mais ou menos carregados de autoritarismo, alienação, arbitrariedade, determinismo, (uni)direcionalidade, (in)flexibilidade, reflexão, crítica, liberdade, autonomia.

A educação encontra-se num processo de mudança, mas ainda é mais evidente a manutenção do status quo do que as inovações, reformas ou transformações propriamente ditas.

No contexto da discussão teórica, novas emergências educativas surgidas nas duas últimas décadas - tais como o feminismo, a ecologia e o multiculturalismo55. Cambi, F. História Da Pedagogia. São Paulo: Unesp. 1999.),(66. Mclaren P. Multiculturalismo revolucionário: pedagogia do dissenso para o novo milênio Porto Alegre, ArtMed. 2000. - se contrapõem à /armação sexista" do masculino como superior e universal; à exploração, domínio e espoliação do meio ambiente, destacando novos valores na relação natureza homem; e ao etnocentrismo, ampliando o cenário educacional às múltiplas culturas, culturas outras em relação à cultura ocidental, branca e burguesa: O quanto tais debates atingem a prática educacional cotidiana é uma outra questão. Para que docentes e discentes passem do pensamento crítico à prática crítica, há uma distância a percorrer cujos caminhos os teóricos da educação não cartografaram, posto que é tarefa impossível apontar caminhos que têm que ser inventados e trilhados dependendo do contexto e da realidade peculiar a cada circunstância educacional.

Falta criação? Talvez nos sobre medo, e falta ousadia. Ousadia para reinventar a roda, no sentido de melhorá-la e aperfeiçoá-la permanentemente.

Quando imaginamos a concepção de novos currículos e o desenvolvimento de novas metodologias de ensino -aprendizagem, como a aprendizagem baseada em problemas da Faculdade de Medicina da Universidade de McMaster, Canadá, no final da década de 6077. Spaulding WB. The undergraduate curriculum (1969 model) at McMaster University. Canadian Medical Association Journal; 1969.1006. 59-664, pensamos na mistura de ingredientes educacionais de diversas correntes e teorias educacionais, tais como a influência do construtivismo, da psicologia cognitiva, da proposta de integração biopsicossocial. de Dewey e Rogers, aliados a uma boa dose de criatividade de um think-tank de aproximadamente 20 professores. Aperfeiçoamentos e versões diferenciadas da aprendizagem baseada em problemas são conhecidos no mundo todo três décadas após o início da experiência original, contudo não surgiram nas universidades outras metodologias ativas relevantes além da aprendizagem baseada em problemas e da problematização.

Há, portanto, nas escolas e universidades um amplo predomínio das aulas tradicionais, espelho da pedagogia da transmissão, com as carteiras todas em linha, voltadas para a lousa, o professor falando, e os estudantes tomando notas da apresentação, estudando “pelo caderno, para a prova”.

Debates sobre a modernidade e pós-modernidade trazem à baila questões como, o que preservamos e rejeitamos da modernidade? A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores, mas será que já fomos modernos?1212. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. [s.l.]: [s.n.], 1996.. Será que já fomos modernos na educação?

“A educação no mundo moderno está, cada vez mais, sendo denunciada como um dos últimos e minados bastiões de uma época cujos ídolos - a razão, o progresso e o sujeito autônomo - têm sido irreparavelmente maculados por guerras mundiais, totalitarismo, pobreza e fome em massa, destruição ambiental, e cujos próprios avanços científicos e sucessos produtos estão inextricavelmente entrelaçados com dominação e devastação de formações naturais e sociais”99. Deacon R, Parker B. Educação como sujeição e como recusa. In: Silva, T.T. (org.) O sujeito da Educação: estudos Foucaultianos. Petrópolis, Vozes,1994. p.99-110.. Se sequer fomos bem-sucedidos na proposta do projeto educacional moderno, seríamos agora capazes de implementar um projeto educacional pós-moderno?

Está lançado o desafio. O pós-moderno transcende - realmente transforma - o moderno, em vez de rejeitá-lo totalmente1010. Doll-Jr WE. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. Porto Alegre: ArtMed, 1997.. E o que seria uma educação na pós-modernidade? Consistiria, para Doll-Jr1010. Doll-Jr WE. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. Porto Alegre: ArtMed, 1997., em um:

“...relacionamento reflexivo entre professor e aluno, o professor não pede ao aluno que aceite a autoridade do professor: pelo contrário, ele pede que o aluno suspenda a descrença nessa autoridade, reúna-se ao professor na investigação, naquilo que o aluno está experienciando. O professor concorda em ajudar o aluno a compreender o significado dos conselhos dados, cm estar pronto a ser confrontado pelo aluno, e em refletir com o aluno sobre o entendimento tácito de cada um”.

Isto implica não somente um redirecionamento, reordenamento, reorganização da estrutura, dos processos e das práticas, mas uma profunda reflexão dos sujeitos, pelos sujeitos da educação. Onde estamos? O que desejamos? Para onde vamos?

Cremos que a educação do novo século deva aproximar-se de uma pedagogia da possibilidade1515. Libâneo JC. Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educacionais e prática docente. São Paulo: Cortez . 1998. Da possibilidade na ótica dos educadores e dos educandos. Da possibilidade de maior equidade, proximidade e afetividade na relação estudante-professor e professor-estudante. Da possibilidade concreta do desenvolvimento da educação como um processo permanente ao longo da vida, e não limitado por tantas instâncias formais e probatórias. Da, possibilidade que mulheres e homens, ao longo da longa história, criaram de inteligir a concretude e de comunicar o inteligido, de constatar e de encontrar as razões do constatado, de denunciar a realidade constatada e de anunciar a sua superação, onde a leitura crítica do mundo é um que-fazer pedagógico-político indicotomizável da sociedade e da educação1111. Freire P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp , 2000.. Uma utopia provisória.

Educação: Sujeito ou Sujeitos?

“A educação tem sentido porque, para serem, homens e mulheres precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem não haveria por que falar em educação”. P.Freire

A educação em massa produziu uma situação inusitada em que sujeitos foram reduzidos a meros objetos do processo educativo, objetos tanto quanto os conhecimentos a serem “dominados" ou os conteúdos a serem “adquiridos”. Instaurou-se a pedagogia da transmissão de quem supostamente detém mais saber e poder, para quem supostamente não os detém.

Para Deacon & Parker99. Deacon R, Parker B. Educação como sujeição e como recusa. In: Silva, T.T. (org.) O sujeito da Educação: estudos Foucaultianos. Petrópolis, Vozes,1994. p.99-110.:

“o poder da razão humana moderna que satura os discursos educacionais pode ser caracterizado como uma série de grades interconectadas de relações de saber e poder, no interstício das quais são constituídos sujeitos que são simultaneamente ambas as coisas, tanto os alvos de discursos (seus objetos e invenções) quanto os veículos de discursos (seus sujeitos e agentes). O sujeito moderno, sobre o qual a própria razão se baseia, e cujo status derivado é ocultado pelo excesso de objetificar outros, é assim denunciado como um paradoxo: um efeito instável, fragmentado e potencialmente contraditório (mas igualmente substancial) do saber e do poder”.

Pode-se falar em um sujeito da educação? Ou seriam sempre sujeitos?

Quem educa, educa alguém, e é educado ao educar, ou ·quem forma se forma e reforma ao formar, e quem é formado, forma-se e forma ao ser formado1212. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. [s.l.]: [s.n.], 1996.. Assim, sujeitos da educação somos todos nós, educadores-educandos, numa relação profícua de troca em dupla via educador-educando e educando-educador. Isto implica compartilhar tempo, comunicação e poder, trabalhando num processo diferenciado, no qual, para nos educarmos, não podemos passivamente esperar por sermos educados. Precisamos aprender, apreendendo ativamente informações num contexto de prática e realidade, associando a aprendizagem com a própria experiência vivencial, estimulando a reflexão crítica e a aprendizagem significativa. Realidade presente e futuro, realidade histórica, mas da história como possibilidade, que tem sempre a realidade como algo passível de mudança pela nossa intervenção organizada

Porque a educação não flui desta forma numa difusão permanente da anti-sujeição de professores e alunos à hierarquia da inflexibilidade de conteúdo, processos e práticas predeterminadas e descontextualizadas? Ora, porque “onde existe poder, existe resistência... e esta resistência nunca está em uma posição de exterioridade em relação ao poder”1313 . Foucault M. The history of sexuality I. Harmondsworth: Penguin, 1981. Apud Deacon R., Parker B. Educação como sujeição e como recusa In: Silva, T.T. (o rg.) O sujeito da Educação, estudos Foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994. p.99·110..

A resistência inercial que impera sobre todos nós é sermos professores e alunos "tradicionais'': professor ativo e loquaz, avaliador-inquisitor opressor; estudante passivo e calado, avaliado-inquirido-oprimido.

Para avaliar criticamente e até recusar parte do que somos, ou como somos, necessitamos minimamente descobrir o que somos, como somos constituídos e por que somos assim, e imaginar, conceber, criar novas maneiras de sermos sujeitos. Isto implica suplantar ortodoxias, pensamentos hegemônicos e paradigmas.

O professor e o papel do Educador

“Medo e ousadia: cotidiano do professor”. P. Freire

O papel do professor tem se reduzido ao papel de emissor - como fonte inesgotável de saber. Supostamente se trataria de um interlocutor, mas não há interlocução, ou há pouca interlocução. Predomina o monólogo em sala de aula, ao final do qual restaria apenas uma questão: alguma pergunta? Dúvidas?

Os estudantes- quando não dormem ou conversam nas aulas expositivas- devem pensar “o que é que insto - a matéria estudada - tem a ver comigo, com as outras pessoas (como os pacientes, familiares, profissionais de saúde), com a vida?”, ou na célebre pergunta de T.S. Eliot “onde está o conhecimento perdido na informação?”.

Este professor educa? É ele um educador? Ou simples detentor/reprodutor/transmissor de um “conteúdo técnico”, de uma matéria estanque ou assunto muito específico?

O professor do ensino superior se vê, muitas vezes, premido pelo tempo em razão de outras atividades, como a pesquisa, e, na área médica, a atenção à saúde. As universidades cobram uma produção científica, e as gratificações e promoções na carreira guardam relação direta com o que se publica, especialmente em periódicos estrangeiros. Publish or perish, e perecem os estudantes, ao menos os da graduação.

Há um baixo interesse dos docentes pela capacitação “didático pedagógica”, até há pouco matéria obrigatória dos cursos de pós-graduação. E dizer que algo é compulsório é o mesmo que dizer que é feito contra a vontade Programas de capacitação docente permanente, para não dizer que inexistem, raramente são vistos nas escolas. “O professor não se sente particularmente motivado para envolver-se com projetos pedagógicos visando a melhoria do processo de ensino-aprendizagem e pode, até mesmo, apresentar resistência, pordes acreditar ou por perceber que 'desvios' de suas atividades de pesquisa para aumentar suas atividades de ensino possam representar prejuízo para sua carreira acadêmica”1414. Batista NA, Silva SHS. O professor de Medicina: conhecimento, experiência e formação. São Paulo. Loyola. 1998.. Quem pode modificar este estado de coisas senão os próprios professores?

Em nossa opinião, o novo papel docente exigiria do professor: assumir o ensino -aprendizagem como mediação, aprendizagem ativa do estudante com o auxílio pedagógico do professor1515. Libâneo JC. Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educacionais e prática docente. São Paulo: Cortez . 1998.: transformar a escola das práticas multi e pluri disciplinares numa escola de práticas Inter e transdisciplinares, integradas à vida cotidiana; conhecer e aplicar estratégias e metodologias ativas. de ensinar aprender a pensar, ensinar-aprender a aprender, ensinar-aprender a cuidar, ensinar-aprender a avaliar; perseverar no empenho de apoiar os estudantes a buscarem e alcançarem uma perspectiva crítica dos conteúdos (cambiantes) e das práticas, rumo à apreensão das realidades presentes e futuras através de um exercício crítico-reflexivo sintonizado com as mudanças e os conflitos do mundo em que vivemos; aperfeiçoamento da linguagem, da comunicação verbal e não-verbal e da habilidade de mediar o trabalho em grupo, tornando-o não mais competitivo, mas produtivo e agradável; assimilar - com olhar crítico - as novas tecnologias, adaptando-as às necessidades efetivamente verificadas; compreender o multiculturalismo, respeitando crenças, valores, diferenças, atitudes, limites e possibilidades individuais; avaliar e auto avaliar-se de maneira sistemática e formativa, sendo cuidadoso e criterioso no seu feedback aos estudantes e ao programa; integrar no exercício da docência-deiscência a dimensão afetiva1515. Libâneo JC. Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educacionais e prática docente. São Paulo: Cortez . 1998..

Isto pressupõe uma mudança radical da forma de conceber os projetos educacionais ou as matrizes curriculares. Isto requer uma nova concepção do ser docente: facilitador, mediador e orientador da aprendizagem de cada estudante, e da sua própria aprendizagem, num processo de reflexão através da ação1616. Schon DA. Educando o profissional reflexivo, um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: ArtMed , 2000..

Ser professor sujeito da educação é estar permanentemente comprometido com a educação: a dos outros (professores, estudantes, comunidade) e a sua própria (professor).

O Estudante e o Papel do Educando

“É preciso que eu, incessantemente, mergulhe na água da dúvida”. Wittgenstein

Uma análise do que tem sido o papel do estudante nos mostra um interesse e um entusiasmo crescentes pelas questões educacionais. Na área médica, os congressos da Abem (Associação Brasileira de Educação Médica) e os fóruns e oficinas de trabalho da Cinaem (Comissão interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico) têm demonstrado a pujança da participação estudantil, seja nas apresentações e debates, seja na produção de pôsteres e temas-livres sobre educação.

No contexto das escolas médicas; no entanto, são frustrantes os relatos da efetiva contribuição dos estudantes em mudanças educacionais concretas. Seria a força de mobilização dos líderes estudantis suplantada pela resistência inercial da massa de docentes e discentes? A ruptura com as concepções tradicionais da educação é uma tarefa hercúlea, que exige um sincronismo é um somatório de forças docentes e discentes.

Certamente não é possível aceitar o estudante como um mero espectador passivo da educação.

Espera-se do estudante enquanto educando uma preocupação e atenção particulares com a sua própria capacitação e desenvolvimento na educação formal (escolas, cursos) ou informal (não institucionalizada), intencional ou não-intencional (não-sistemática, não-planejada), curricular ou extracurricular.

Tal preocupação deve expressar-se através da participação ativa e diferenciada no processo de ensino-aprendizagem onde, orientado pelos professores, deve desenvolver atividades de auto-aprendizagem que resultem numa gradação crescente - através de sucessivas aproximações - da aprendizagem significativa e autodirigida. Ampliando horizontes, o educando deve também participar do planejamento das próprias atividades de aprendizagem, dos conteúdos a serem explorados, das estratégias de busca, avaliação e seleção de dados e informações, e dos recursos de aprendizagem a serem utilizados.

O entendimento da construção, organização, avaliação crítica e utilização do conhecimento, o desenvolvimento de habilidades e atitudes, e a interação com o mundo, com as pessoas, a realidade, e a comunidade precedem em importância o domínio de conteúdos gerais ou específicos.

Conteúdos e continentes transformam-se; a educação como processo para toda a vida exige mudanças no modus operandi dominante das escolas, e isto é também uma tarefa discente. Organizar-se, fazer-se representar, reivindicar, conquistar, participar: atitudes inerentes ao ser estudante.

Quem melhor que o estudante para identificar seus hiatos de conhecimentos e habilidades? A avaliação diagnóstica, formativa e somativa do estudante deve subsidiar a auto-avaliação feita por cada educando. É importante ressaltar que a avaliação deve ter como finalidade subsidiar a transformação da realidade. Antes de vigiar e punir, a avaliação do estudante deve subsidiar a identificação de qualidades e debilidades, sempre em tempo de corrigir o processo de aprendizagem.

Quem melhor que o estudante para ajudar a identificar as falhas de um programa educacional? A participação discente na avaliação do programa é fundamental. Anónima, confidencial e protegida dos “perigos da avaliação”, ela deve subsidiar o desenvolvimento permanente dos programas educacionais, envolvendo avaliação dos docentes, dos pares, das atividades pré-programadas, dos recursos de aprendizagem, e da organização.

Ser estudante sujeito da educação é estar permanentemente prometido com a educação: a sua própria (estudante) e a dos outros (estudantes, professores, comunidade).

Educação Médica: Responsabilidade de Quem?

“O que é bem conhecido, justamente por ser bem conhecido, não é conhecido”. Hegel

A educação é direito de todos, mas responsabilidade de quem?

Dewey, em sua obra “Democracy and education”1717. Dewey J. Democracy and education: an introduction of Philosophy of Education. New York: Macmillan, 1916. já tratava a educação como necessidade devida, função social, direção, crescimento.

Em todos estes sentidos, diríamos que a educação é responsabilidade, assim como direito, de todos. Responsabilidade da nação, do país, do governo, dos legisladores, dos juristas, das famílias, dos educadores, dos próprios educandos, dos cidadãos.

A responsabilidade do Estado sobre a Educação Médica no Brasil têm se manifestado como desdobramento da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, através do Ministério da Educação, Cultura e do Desporto (MEC e sua Secretaria do Ensino Superior (SESu), com a outorga de validade e fé pública através do reconhecimento de cursos de graduação e estabelecimento de políticas de avaliação e acreditação através do Exame Nacional de Cursos, avaliação das Condições de Oferta dos Cursos de Graduação, recredenciamento dos cursos, e à as diretrizes curriculares, assim como do Conselho Nacional de Educação (para escolas e universidades federais e particulares) e dos Conselhos Estaduais de Educação (para escolas e universidades estaduais e municipais), que definem normas e recomendações educacionais através de pareceres e resoluções.

São bem conhecidas as possibilidades, os limites e os propósitos governamentais na esfera da Educação, e da Educação Médica, especialmente os expressos pelo MEC. É claramente insuficiente apenas reprovar cursos de Medicina, como recentemente divulgado pelo MEC.

Há que se estabelecer uma política de desenvolvimento permanente e melhoria da qualidade da Educação Médica brasileira, e o provão - uma avaliação tradicional, referenciada em norma e não em critérios - certamente não dará conta disto. Em nossa opinião, existe ainda um enorme hiato na responsabilidade do Estado sobre a Educação Médica no Brasil.

A responsabilidade das instituições e órgãos representativos da Medicina e da Educação Médica expressa-se através das entidades médicas, como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e os Conselhos Regionais de Medicina (CRM), a Associação Médica Brasileira (AMB). a Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), os sindicatos dos médicos através da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem) e a Associação Nacional dos Médicos Residentes (ANMR), que têm participação destacada cm movimentos contra a abertura indiscriminada de escolas médicas, expressando a preocupação com a nova expansão dos cursos de Medicina no Brasil e com a qualidade da Educação Médica e da atenção à saúde oferecida no Brasil. Reúnem-se também na Comissão interinstitucional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem), juntamente com o Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes), Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, e Academia Nacional de Medicina, na avaliação e encaminhamento de propostas de mudanças na Educação Médica.

A ressonância da discussão da questão “Educação Médica” nos fóruns e oficinas de trabalho da Cinaem é muito favorável, mas o quanto os líderes estudantis e docentes conseguiram de fato avançar nas propostas de cada curso de Medicina participante da Cinaem e os resultados futuros rumo à transformação do ensino-aprendizagem nas escolas médicas brasileiras permanecem uma incógnita.

Quanto à responsabilidade das escolas e universidades, deve-se destacar, segundo Santos1818. Santos BS. Pela mão de Alice, o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez . 1995., que:

“...a universidade confronta-se com uma situação complexa: são-lhe feitas exigências cada vez maiores por parte da sociedade ao mesmo tempo que se tornam cada vez mais restritivas as políticas de financiamento das suas atividades por parte do Estado. Duplamente desafiada pela sociedade e pelo Estado, a universidade não parece preparada para defrontar os desafios, tanto mais que estes apontam para transformações profundas e não para simples reformas parcelares. Aliás, tal impreparação, mais do que conjuntural, parece ser estrutural, na medida em que a perenidade da instituição universitária, sobretudo no mundo ocidental, está associada à rigidez funcional e organizacional, à relativa impermeabilidade às pressões externas, enfim, à aversão à mudança”.

Assim, que responsabilidade sobre a Educação Médica esperar da universidade? Transformação ou simples luta pela preservação e manutenção? Todas as evidências parecem suportar a segunda possibilidade.

Seriam então os próprios educadores e educandos os maiores responsáveis pela Educação Médica? Em nossa opinião, sim. Ninguém melhor que os próprios educadores e educandos para conhecerem a realidade específica de cada escola médica, suas fragilidades e fortalezas, vantagens e desvantagens, seu espaço e lugar na comunidade, sua gente.

A responsabilidade que colocamos para reflexão é a de cada ação educativa. Os sujeitos da educação que mais importam à particularidade de cada prática pedagógica substancial são os sujeitos do polo docente e os sujeitos do polo discente, posto que ativos, congruentes ou divergentes, cada qual com sua óptica da realidade, sua perspectiva histórica, seus conhecimentos e experiências prévias, trabalhando o processo de construção de saberes, um processo essencialmente humano: educativo.

Docentes e discentes não podem se eximir da responsabilidade maior pela Educação, enquanto agentes não somente das atividades didáticas, mas também de suas mudanças e inovações.

À Guisa de Conclusão - Seria a Responsabilidade Maior dos Sujeitos da Transformação da Educação Médica: Resgatar o Humano no Cotidiano das Práticas?

“Me movo como educador porque, primeiro, me movo como gente”. P. Freire

A educação é lida como esteio da emancipação, da autonomia, da esperança e do desenvolvimento da humanidade. Não seria então exatamente dela, educação, a tarefa da humanização? Há que ser mais humano no cotidiano da educação, da saúde, da vida.

A ação e o pensamento educacional do findar e iniciar de século “não abandonaram absolutamente nem a paixão pelo homem, pelo seu resgate e pela sua realização, nem a consciência do rigor teórico que guiaram até aqui a sua história... a pedagogia continuará a ser uma ciência para o homem, cujo rigor deverá operar em torno do exercício de uma identidade crítica, desejosa e capaz de ser radical55. Cambi, F. História Da Pedagogia. São Paulo: Unesp. 1999.”.

A busca por uma racionalidade técnica imperou nos primórdios da Educação Médica com o nascimento da clinica1919. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.. A crise da confiança no conhecimento profissional surge com o questionamento da capacidade do “modelo clínico” em oferecer resposta ao raciocínio probabilístico e não determinista, às incertezas, às singularidades das expressões, manifestações e respostas, e à diversidade cultural e de valores da sociedade.

Neste sentido, Schõn1616. Schon DA. Educando o profissional reflexivo, um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: ArtMed , 2000. considera que:

“Na topografia irregular da prática profissional, há um terreno alto e firme, de onde se pode ver um pântano. No plano elevado, problemas possíveis de serem administrados prestam-se a soluções através da aplicação de teorias e técnicas baseadas na pesquisa. Na parte mais baixa, pantanosa, problemas caóticos e confusos desafiam as soluções técnicas. A ironia desta situação é o fato de que os problemas do plano elevado tendem a ser relativamente pouco importantes para os indivíduos ou o conjunto da sociedade, ainda que seu interesse técnico possa ser muito grande, enquanto no pântano estilo os problemas de interesse humano. O profissional deve fazer suas escolhas. Ele permanecerá no alto, onde pode resolver problemas relativamente pouco importantes, de acordo com padrões de rigor estabelecidos, ou descerá ao pântano dos problemas importantes e da investigação não-rigorosa? Tal dilema tem duas fontes: em primeiro lugar a ideia estabelecida de um conhecimento profissional rigoroso, baseado na racionalidade técnica, e, em segundo, a consciência de zonas de prática pantanosa e indeterminadas, que estão além dos cânones daquele conhecimento”.

Evitar o pântano e restringir-se ao terreno alto é negar a complexidade humana e, por conseguinte, a complexidade da prática médica e da educação.

A Medicina e as ciências da saúde são de natureza antes mesmo que biológica, humana. Alegar que com o Projeto Genoma teríamos uma ciência exata reduzir a teia da vida a algo previsível e certo.

Emerge a proposta da humanização da prática médica através da humanização da Educação Médica. Mas resgatar a Educação Médica seria responsabilidade de quem? Dos sujeitos da Educação Médica.

A responsabilidade da transformação e desenvolvimento permanente da Educação Médica, portanto, tem como protagonistas educadores e educandos.

Cabe aos educadores não o centro de maior importância do desenvolvimento permanente da Educação Médica, nem resta aos educandos a periferia destas mudanças, pois ambos, docentes e discentes, necessitam engendrar esforços, reunir forças, afinar estratégias e oferecer suporte logístico para mover a enorme pedra que cerra o acesso das escolas médicas às inovações, reformas e transformações curriculares.

Parle substancial destas mudanças na Educação Médica envolve o resgate do humano na relação docente-discente-paciente.

Mas onde se perdeu o humanismo na Medicina?

No modelo médico: biomédico ou clínico, no distanciamento e na rejeição ao humano em nossas atitudes cotidianas, substituindo sempre que possível o (Inter)pessoal (caloroso) pelo impessoal ('frio'), trocando a proximidade (do domicílio, da família) pela distância (do ambulatório/hospital, inacessível), o diálogo pela tecnologia “de ponta”, o trabalho, a reflexão, a recomendação e decisão conjunta (equipe de saúde, paciente, cuidador/familiar) pela decisão isolada (“ordem médica”).

Inexiste conhecimento profissional rigoroso, baseado na racionalidade técnica que dê conta da atuação no terreno pantanoso das relações interpessoais da educação ou dos profissionais da saúde, especialmente se tal conhecimento não se plasmar com a prática e a realidade em atitudes e competências favoráveis ao (re)estabelecimento da confiança mútua e empatia nas relações educador-educando e profissional de saúde-paciente.

Resgatar a dignidade a educação e na saúde passo por respeitar limites, mas avançando sempre no sentido das novas possibilidades, rompendo com o existente em busca do imaginário, do ideal, do utópico. Mas uma compreensão profunda da realidade é essencial ao exercício da utopia, condição para que a radicalidade da imaginação não colida com o seu realismo (1818. Santos BS. Pela mão de Alice, o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez . 1995..

Há que haver utopia em nossas vidas, pois: “quando secam os oásis utópicos estende-se um deserto de banalidade e perplexidade”2020. Habermas J. Apud Moreira, A.F.B. Currículo, utopia e pós-modernidade. In: Moreira, A.F.B. (org.). Currículo questões atuais. Campinas, Papirus, 1997. p. 9-28..

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    1Ensaio vencedor do Prêmio Abem 2000-Categoria Docentes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2002

Histórico

  • Recebido
    Set 2000
  • Aceito
    Set 2000
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