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Reflexões acerca da iatrogenia e educação médica

Reflections about medical education and iatrogenesis

Resumos

A iatrogenia consiste num dano, material ou psíquico, causado ao paciente pelo médico. Todo profissional possui um potencial iatrogênico, e tal aspecto depende não somente da capacidade técnica, como também da relação médico-paciente estabelecida. A formação médica possui papel fundamental na constituição de sujeitos menos propensos a cometerem iatrogenias. Este artigo aborda o assunto sob a ótica conceitual, visando ampliar a discussão e gerar novas reflexões na comunidade médica.

Educação Médica; Iatrogenia; Medicina Psicossomática


Iatrogenesis refers to a psychical or physical harm, caused by medical treatment. However, any professional may commit a medical error, and this depends not only on his technical capacity but also on the doctor-patient relationship. Medical education plays therefore a primordial role in the construction of future physicians less subject to commit Iatrogenesis. This paper approaches the topic from a conceptual view, aiming at encouraging further reflections and discussions in the medical community.

Education, Medical; Iatrogenic Disease; Psychosomatic Medicine


ENSAIO

Reflexões acerca da iatrogenia e educação médica

Reflections about medical education and iatrogenesis

Felipe de Medeiros Tavares

Faculdade de Medicina de Caratinga, Minas Gerais; Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Felipe de Medeiros Tavares Instituto de Medicina Social – Uerj Rua São Francisco Xavier, 524 – 7º andar – Blocos D e E – Maracanã 20559-900 – Rio de Janeiro – RJ e-mail: felipemtavares@ims.uerj.br

RESUMO

A iatrogenia consiste num dano, material ou psíquico, causado ao paciente pelo médico. Todo profissional possui um potencial iatrogênico, e tal aspecto depende não somente da capacidade técnica, como também da relação médico-paciente estabelecida. A formação médica possui papel fundamental na constituição de sujeitos menos propensos a cometerem iatrogenias. Este artigo aborda o assunto sob a ótica conceitual, visando ampliar a discussão e gerar novas reflexões na comunidade médica.

Palavras-chave: Educação Médica; Iatrogenia; Medicina Psicossomática.

ABSTRACT

Iatrogenesis refers to a psychical or physical harm, caused by medical treatment. However, any professional may commit a medical error, and this depends not only on his technical capacity but also on the doctor-patient relationship. Medical education plays therefore a primordial role in the construction of future physicians less subject to commit Iatrogenesis. This paper approaches the topic from a conceptual view, aiming at encouraging further reflections and discussions in the medical community.

Key-words: Education, Medical; Iatrogenic Disease; Psychosomatic Medicine.

INTRODUÇÃO

Iatrogenia é uma palavra que deriva do grego: o radical iatro ("iatrós"), significa médico, remédio, medicina; geno ("gennáo"), aquele que gera, produz; e "Ia", uma qualidade.

A iatrogenia poderia, portanto, ser entendida como qualquer atitude do médico. Entretanto, o significado mais aceito é o de que iatrogenia consiste num resultado negativo da prática médica. Nesse sentido, um médico, ainda que disponha dos melhores recursos tecnológicos diagnósticos e terapêuticos, é passível de cometer iatrogenias. Michael Balint1 reformulou este conceito ao afirmar que todo médico é, em graus variáveis, iatrogênico, de modo que ele deve sempre considerar esse aspecto quando trata seu paciente. Outros autores enfatizam que o fato de os médicos lidarem com riscos os torna sujeitos a cometer iatrogenias2.

Nesse âmbito, a denominação mais adequada poderia ser "iatropatogenia", termo que enfatiza a noção maléfica do ato médico, isto é, um ato que provocará prejuízos ao paciente3. Iatrogenia (ou iatrogenose, iatrogênese) abrange, portanto, os danos materiais (uso de medicamentos, cirurgias desnecessárias, mutilações, etc.) e psicológicos (psicoiatrogenia – o comportamento, as atitudes, a palavra) causados ao paciente não só pelo médico como também por sua equipe (enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, nutricionistas e demais profissionais)4.

Sob esta óptica, os "erros médicos", tais como os conhecemos no Código de Ética Médica (imperícia, imprudência, negligência) se enquadram na categoria de iatrogenias, no entendimento contemporâneo5.

Inúmeros são os trabalhos publicados na literatura acerca da iatrogenia entendida como falhas do médico relacionadas a procedimentos, efeitos colaterais de medicamentos prescritos, oriundas de procedimentos cirúrgicos, etc. (iatrogenia direta). Pretende-se aqui abordar o tema de maneira mais ampla, porque a iatrogenia envolve outros aspectos da prática médica, como, por exemplo, a iatrogenia indireta (exercida por meio do contato interpessoal), que possui elevado impacto social. A educação médica tem papel relevante na profilaxia de eventos iatrogênicos, ao fornecer instrumentos necessários a melhor compreensão do tema pelos graduandos.

Pretende-se, neste artigo, abordar de forma sucinta alguns princípios relacionados a esse tema, que é pouco trabalhado em nosso meio.

SITUAÇÕES QUE FAVORECEM A OCORRÊNCIA DE IATROGENIAS

São inúmeras as situações na prática clínica, e mesmo no ensino, que favorecem a ocorrência de iatrogenoses. De forma bastante sucinta, elas podem ser assim agrupadas:

Quanto ao Modelo Biomédico

A filosofia cartesiana, que inspirou a conduta médica ocidental, estabelece a dicotomia psique/soma que, corroborada por outra díade, doente/doença, contribui para o estabelecimento de uma visão fragmentada do paciente.

O médico perde, assim, a sensibilidade de enxergar esse paciente como um todo biopsicossocial (sujeito na sua integralidade), tratando apenas dos sintomas aparentes, como se o paciente fosse uma máquina que necessitasse de ajustes, um quebra-cabeça6.

A prática clínica ocidental está baseada apenas nas doenças, com a crescente desvalorização da escuta. Esse é um dos motivos pelos quais a sociedade vem exigindo o retorno do "médico de família" e mesmo o direito a serviços médicos não alopáticos. A superespecialização, acompanhando o progresso da tecnologia e o crescente fenômeno da medicalização da sociedade7, faz com que o paciente se sinta pressionado a visitar diversos profissionais para o acompanhamento de determinado transtorno. E o paciente torna-se cada vez mais carente. A quase exigência de uma receita médica ou pedido de exame cada vez que consulta um médico é uma prova disso. A questão da "eficiência e rapidez" no tratamento já está tão difundida entre os sujeitos que demandam o cuidado, que o profissional pouco se dedica às outras questões relevantes no estabelecimento da enfermidade em questão: os fatores sociais, ambientais, hereditários, psicológicos, culturais, religiosos e políticos6.

No Âmbito da Relação Médico-Paciente

Os aspectos psicodinâmicos da relação médico-paciente devem ser percebidos pelo médico a fim de que ele possa compreender que tais fenômenos interferem no cerne desta relação.

O futuro médico deve compreender que o paciente, pela condição em que se encontra, idealiza muito a figura do médico (como um demiurgo). O indivíduo que demanda cuidados traz ao encontro com o médico uma série de expectativas e fantasias quanto à figura deste e quanto ao desenvolvimento da consulta. Tais fatores, conforme veremos adiante, poderão contribuir para a ocorrência de iatrogenias.

Deve-se dar a importância devida aos fenômenos contidos em toda relação médico-paciente, os quais são estudados por alunos de Medicina mormente na disciplina de Psicologia Médica (transferência, contratransferência e mecanismos de defesa – negação, projeção, racionalização, repressão). Nesse sentido, determinados modelos de relação médico-paciente permitem que as iatrogenias aconteçam com mais facilidade. Um bom exemplo é o da medicina de urgência, onde por vezes o paciente está tão debilitado, que a relação é por si só assimétrica. Este paciente pouco participa da relação (paciente passivo, submisso), e o profissional assume uma posição de superioridade, sem consultar o paciente para qualquer procedimento. Quando o paciente "desperta" para a situação, mesmo sabendo que determinados procedimentos eram cruciais naquele momento, pois visavam sua sobrevivência, pode ser difícil admiti-la. É o caso dos pacientes vítimas de traumatismos que tiveram de ser submetidos a uma traqueotomia, por exemplo.

O paciente crônico, que percorre vários profissionais a fim de obter um diagnóstico "seguro" para a sua enfermidade ou uma "segunda opinião", costuma não estabelecer vínculos afetivos com o médico, o que pode contribuir para o estabelecimento de situações iatrogênicas.

O mesmo ocorre em ocasiões nas quais médico e paciente procuram não se envolver emocionalmente. Predomina a linguagem técnica, a frieza1. Outro exemplo de iatrogênese é a situação provocada pelo uso da anamnese dirigida, que camufla a hostilidade do médico, já nos dizia Perestrello8.

Situações nas quais, por outro lado, o envolvimento do médico com seu paciente se torna muito intenso, a ponto de enfraquecer os limites entre os egos de ambos, favorecem a geração de respostas emocionais no médico, como luta/submissão, indiferença ou ainda excesso de dedicação ao paciente. Pode-se dizer que existe aqui um desequilíbrio nos fenômenos de transferência/contratransferência, que se tornam patológicos. A relação passa então a ser assimétrica, com repercussões negativas na pessoa do paciente e na própria identidade médica. Este fenômeno é conhecido como indução iatrogênica9. Exemplificando, temos aquele paciente que insiste com o médico em realizar uma cirurgia absolutamente desnecessária e arriscada. Capisano10 salienta que conflitos neuróticos do médico podem se manifestar como iatrogenias, sendo eles a insegurança (manifestada pelo excesso de pedidos de exames complementares), o narcisismo (o paciente é tratado com desdém), o sadismo inconsciente (conforme ocorre com os pacientes submetidos a sucessivos exames invasivos) e, por fim, os conflitos inerentes às diferentes especialidades, como o pediatra, que pode induzir à hipocondria em virtude dos cuidados excessivos que prescreve ao paciente.

A sensibilidade diagnóstica, sobrepujada pelos excessivos pedidos de exames complementares, pode favorecer o estabelecimento de diagnóstico equivocado, com o conseqüente tratamento de uma enfermidade que o paciente não possui.

Finalmente, a linguagem não-verbal influencia sobremaneira a conduta terapêutica e é percebida pelo paciente: gestos, linguajar, trajes, disposição dos móveis, cor das paredes do consultório, etc.

Outras Situações Causadoras de Iatrogenia

Outros fatores concorrem com freqüência para a manifestação de iatrogenias. Por exemplo, as más condições de trabalho, queixa freqüente entre professores e médicos: o profissional trabalha mais tempo por dia, em diferentes locais, atendendo uma quantidade crescente de pacientes, em consultas rápidas. Além disso, as condições físicas do estabelecimento podem influenciar a conduta do profissional. O prontuário médico – que deveria ser o melhor "parceiro" do médico – acaba sendo preenchido de maneira inadequada, incompleta, não sendo registradas ali informações relevantes acerca das características do paciente e do seu processo de adoecer. A inexatidão dos dados contidos no prontuário, bem como a maneira como este é preenchido (a caligrafia incompreensível, por exemplo) favorecem a iatrogênese. A interdisciplinaridade e a busca da prática da integralidade no ambiente de trabalho, quando estabelecidas, atenuam o número de situações iatrogênicas.

A justificativa já consagrada de que o médico é humano como qualquer outro profissional e, portanto, tem as mesmas possibilidades de cometer falhas, embora seja pertinente, ainda não recebe o devido respaldo social. Como dito anteriormente, o fato de o paciente idealizar o médico não permite que ele tolere falhas justamente daquele que "deve ser capaz de curar e salvar vidas".

No Âmbito da Formação Médica

Ao longo da formação acadêmica, a identidade do médico vai sendo constituída, de tal sorte que essa identidade pode se tornar iatrogênica desde o momento em que o aluno optou pelo curso médico, época de grandes expectativas. A decisão pelo curso ocorre num momento de vários conflitos (adolescência), e geralmente faltam esclarecimentos ao vestibulando acerca da história do curso médico, de seus meandros, enfim, de seus propósitos. A vocação médica pode, nesse momento, ser sobrepujada por outros interesses em jogo, como busca de reconhecimento e prestígio social, satisfação dos desejos dos pais, ganhos financeiros, etc. Pseudovocações podem culminar em identidades frágeis, hostis, erradias, portanto iatrogênicas.

A medicina é, sobretudo, humana e requer do futuro médico capacidades para lidar com frustrações, paciência, perseverança, dedicação. Nem todos os indivíduos aptos no processo seletivo (vestibular) possuem inclinação para o curso médico. A avaliação do vestibular é falha, porque se baseia estritamente em critérios mnemônicos. É comum observarmos indivíduos portadores dos mais diversos distúrbios psicológicos e psiquiátricos optarem pelo curso como uma forma de ocultar tais situações. Indivíduos instáveis emocionalmente estão mais dispostos a cometer iatrogenias2;11.

Além disso, os professores possuem destacado papel na constituição de uma identidade iatrogênica ou saudável12. Os alunos identificam-se com a figura do mestre, e este deve estar atento a que suas atitudes, seus gestos, a maneira de lidar com os alunos e com os pacientes são aspectos introjetados pelos aprendizes e que poderão ser reproduzidos em suas relações com os sujeitos enfermos. A categoria da "didatopatogenia" ou "didatoiatrogênese" consiste justamente na construção de identidades iatrogênicas a partir das atitudes também iatrogênicas oriundas dos mestres. Por exemplo, os professores que discutem os casos clínicos na frente dos pacientes, gerando reações neuróticas nestes. Isso poderá prejudicar o aluno, especialmente aqueles que se encontram em plena "crise do terceiro ano" (reações emocionais provocadas pelo encontro com os pacientes pela primeira vez)9.

O ensino na maioria das instituições médicas tende a valorizar a especialização precoce. Isso pode ser constatado pelo fato de os nossos professores serem, na maior parte, especialistas, lecionando para indivíduos que se graduarão como generalistas. Depois, quando se gradua, o médico tem de fazer um esforço excessivo para reunir todos os conhecimentos (dispersos, saliento) adquiridos e lidar com aquele sujeito integral que se encontra à sua frente necessitando de cuidado. Os alunos por vezes recorrem à especialização precoce, ou seja, decidem que área irão seguir ainda durante o curso, pois assim se sentem mais seguros para lidar com o sofrimento alheio (ou melhor, para lidarem com uma parte do sujeito que requer cuidados). Assim, passam a freqüentar precocemente serviços especializados, participam de atividades na área e seguem algum dos professores, despreocupando-se com as demais disciplinas. Em nossa sociedade, tal aspecto é valorizado: o aluno sente-se pressionado para dar resposta a questões do tipo "em que área você vai atuar?".

A formação acadêmica é, ademais, atualmente deficiente sob diversos ângulos: questiona-se a qualidade de ensino, bem como os métodos, os conceitos da relação médico-paciente e a compreensão do processo do adoecer são pouco ou sequer abordados, a dedicação excessiva à abordagem organicista e fragmentada do paciente, a especialização precoce do aluno, dentre outros aspectos.

ALGUMAS REPERCUSSÕES DA IATROGENIA

A repercussão psicossocial que uma situação iatrogênica terá depende, em grande parte, da qualidade da relação médico- paciente outrora estabelecida.

O Médico Omite Sua Falha

Especialmente nas relações pouco consistentes, cuja personalidade do médico é deveras narcísica, médico e paciente passam a ver no "erro" uma forma de fracasso, de modo que o paciente não vai tolerar isso, enfim, não concederá outra chance ou sequer aceitará um pedido formal de desculpas. A relação torna-se fragilizada ou mesmo cessa após o episódio. Geralmente, culmina com um processo jurídico no qual o paciente busca condená-lo por "erro médico".

Como exemplo, podemos citar o caso de uma paciente que, após ter sido submetida a uma cirurgia plástica reparadora nos seios, não foi totalmente esclarecida acerca dos cuidados que deveria manter no pós-operatório (evitar dirigir, movimentar-se, etc.). Ocorreram complicações com os pontos da cirurgia, de tal forma que surgiram cicatrizes que não mais desapareceram. Não satisfeita com os resultados, decidiu processar judicialmente o médico por erro médico. O processo arrastou-se por anos e não houve acordos. As perdas foram significativas para ambos, seja no âmbito do estresse, tempo desperdiçado com inúmeras audiências e até mesmo gastos financeiros relacionados às custas judiciais e advocatícias.

O Médico Admite a Culpa

Esse comportamento, ao contrário do anterior, predomina nas relações mais bem estruturadas. O profissional lança mão de sua capacidade para ver, na sua humildade, a falha como uma busca do conhecimento. O paciente concede nova oportunidade ao médico. São comuns reuniões de conciliação entre ambas as partes para que procedimentos éticos não necessitem ser instaurados. O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) criou uma espécie de instância em que médico e paciente em litígio são colocados frente a frente, de tal modo que os conflitos possam ser solucionados ali mesmo, sem que seja necessário dar início a um processo no Conselho ou mesmo Judicial.

Na psiquiatria, é comum pacientes processarem os médicos em virtude dos efeitos adversos dos medicamentos ou por terem de ser submetidos a sessões de eletroconvulsoterapia (ECT). Quando, na iminência de uma situação litigiosa, o psiquiatra tem uma oportunidade de explicitar com mais detalhes os porquês de tais procedimentos, o paciente compreende e concede nova oportunidade ao médico.

Não podemos olvidar que o médico possui significativa importância no processo. A despeito das grandes conquistas tecnológicas na área médica, reitero que a carência afetiva, a necessidade do toque e tantos outros aspectos relacionados ao contato humano são deveras valorizados pelo sujeito enfermo.

Quantos não são os pacientes que, mesmo tendo efeitos adversos ou não obtendo sucesso com o uso de determinados fármacos, retornam aos seus médicos para comunicar-lhes isso? Uma boa relação médico-paciente garante segurança ao paciente.

Outros aspectos valorizados pelos pacientes e que contribuem para o estabelecimento de uma boa relação são: atendimento nos horários corretos, escuta ativa dos sofrimentos do pacientes, isto é, não se limitar aos aspectos somáticos, disponibilidade para atender o paciente em situações de emergência, paciência e tolerância.

SOBRE A PREVENÇÃO DE IATROGENIAS: IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO MÉDICA

Frente a essas situações, os aspectos relacionados à profilaxia das iatrogenias carecem ser comentados. Não só os médicos e os professores como também toda a sua equipe de saúde são responsáveis pela prevenção da iatrogenose. O tema necessita estar na pauta dos educadores, não somente dos cursos de pós-graduação ou "perdido" em algumas disciplinas, tal como a Psicologia Médica.

O futuro médico precisa ser mais bem informado, e a educação médica lhe fornecerá instrumentos para refinar sua sensibilidade social e desenvolver responsabilidade pessoal e profissional, objetivando, igualmente, enfatizar o aperfeiçoamento do médico, entendido aqui como melhor tecnificação e especialização. Isso favorece o aumento dos acertos e a diminuição de falhas iatrogênicas13.

Deve-se priorizar o resgate de um ensino médico pautado na busca da integralidade, em que o aluno possa lidar com diferentes profissionais de saúde, isolando-se menos e aprendendo com eles as suas formas de atuação, introjetando ademais o fato de que o trabalho em equipe é importante para o estabelecimento da integralidade. Esta é uma prática em afinidade com a boa medicina, posto que tende para o estabelecimento da escuta, valorizando os diferentes atores envolvidos no processo do cuidado (profissionais, estabelecimentos de ensino e pacientes)6.

Adotando uma posição de humildade, o futuro médico se equivoca menos, pois possui discernimento suficiente para questionar e trabalhar em equipe numa perspectiva integradora.O aluno deve compreender e respeitar o paciente como pessoa, identificando os reais fatores que o levaram a buscar os serviços médicos, conforme comentamos. Os professores de disciplinas como Psicologia Médica, Semiologia, Introdução à Prática Médica, Deontologia, Ética Médica e demais cadeiras clínicas e cirúrgicas devem abordar a questão, contribuindo para que o futuro médico possa, ainda em seus primeiros contatos com os pacientes, assimilar uma visão biopsicossocial destes, aprimorando-se dessa forma a relação estudante-paciente.

Perestrello8 nos fala da necessidade de se adotar uma "visão transpessoal" do paciente e salienta que o profissional deve ser autêntico. Sustenta que é válida a prática da psicoterapia "implícita" durante a anamnese. É preciso que os profissionais aprendam a "ouvir" o paciente (mas não silenciá-lo, acrescento) e, nesse sentido, condena a anamnese dirigida.

Balint1, um dos maiores estudiosos da relação médicopaciente, reforça a importância do clínico geral (médico de família), sobretudo pela melhor qualidade do vínculo que é criado entre ambos (médico e sujeito enfermo) nesse tipo de prática médica. Este profissional está mais capacitado para tratar doentes e não apenas doenças.

Uma grande contribuição de Balint consiste nos "Grupos Balint" (também conhecidos como Grupos de Reflexão)9,14, espaço onde se pretende discutir a atitude médica, incluindo a participação de outros profissionais. Nesse ambiente, os aspectos psicológicos são valorizados. Praticados na formação universitária (permitindo a discussão de problemas inerentes à prática médica e ao ensino, como os conflitos psicológicos do aluno) e no cotidiano da equipe médica, esses grupos constituem importante fonte de enriquecimento dos valores humanísticos a serem resgatados. Os Grupos Balint, dessa forma, contribuem para tornar a relação médico-paciente mais saudável e consistente.

Finalmente, devem ser resgatados os demais atributos do médico, como intuição, empatia, humildade, capacidade de comunicação e resiliência. O professor possui destacada importância nesse processo. A escolha de determinada conduta terapêutica deve ser precedida de ampla discussão, numa perspectiva de horizontalidade, de modo que todos os benefícios e riscos em questão sejam considerados.

O debate deste tema é inesgotável. Acreditamos que a abordagem do assunto durante a formação médica contribui sobremaneira para a construção de sujeitos impregnados de uma identidade médica ética, saudável, e, portanto, menos iatropatogênica.

DEDICATÓRIA

Dedico este ensaio ao professor José Luiz Furtado Curzio, grande educador que perpetuou seus ensinamentos sobre ética e princípios da prática médica entre os acadêmicos da Faculdade de Medicina de Valença (RJ); e ao professor Júlio de Mello Filho, pioneiro da Medicina Psicossomática brasileira, que resgatou o tema da iatrogenia, influenciando a formação de muitas gerações de médicos em nosso país, a quem agradeço pelo incentivo à pesquisa.

Recebido em: 06/06/2006

Reencaminhado em: 14/02/2007

Aprovado em: 13/04/2007

Conflito de Interesse Declarou não haver.

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  • Endereço para correspondência:

    Felipe de Medeiros Tavares
    Instituto de Medicina Social – Uerj
    Rua São Francisco Xavier, 524 – 7º andar – Blocos D e E – Maracanã
    20559-900 – Rio de Janeiro – RJ
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Aceito
      13 Abr 2007
    • Revisado
      14 Fev 2007
    • Recebido
      06 Jun 2006
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