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Vigilância à Saúde: uma Experiência de Integração Ensino/Comunidade/Serviço de Saúde para o Controle da Hipertensão Arterial

Resumo:

A partir do reconhecimento da hipertensão arterial como problema relevante de saúde no bairro de Alto das Pombas, em Salvador, vem sendo desenvolvidas, desde 1996, práticas voltadas à prevenção da doença e suas complicações, articulando alunos e docentes da disciplina Introdução à Medicina Social, do Departamento de Medicina Preventiva da Ufba, associação de moradores e centro de saúde do bairro. Em 1997, o trabalho desenvolveu-se por meio de visitas domiciliares e atividades coletivas, nas quais os estudantes de Medicina utilizaram recursos como dramatização, cartazes, música, jogos e história em quadrinhos para motivar a população. As práticas revelaram-se criativas e originais, permitindo aprendizado mútuo e demonstrando a iniciativa e o envolvimento dos estudantes, que superaram o obstáculo da transmissão de informações técnico-científicas aos moradores de maneira clara e compreensível, obtendo sua participação e interesse. Os resultados alcançados estimulam os docentes a continuar investindo nesse tipo de práticas de ensino.

Descritores:
Vigilância Sanitária; Educação em saúde; Medicina Comunitária - métodos

Summary:

Arterial hypertension has been recognized as a relevant health problem in the Alto das Pombas borough, Salvador City, Brazil. Since 1996 practices towards prevention of arterial hypertension and its complications have been developed by the staff and students of the discipline Introdução à Medicina Social from the Department of Preventive Medicine of Federal University of Bahia together with the dwellers association and the local health center. During 1997 domiciliary visits and collective activities were carried out, with the Medicine students using several strategies to motivate the population like dramatization, posters, music; games and cartoons. These practices have shown to be original and creative, allowing mutual learning and revealing initiative and commitment of the students, who have surpassed the obstacle of transmiting technical and scientifical information to local residents in a clear and understandable way. Dwellers have participated with high interest in this process. Results stimulate the University group to keep on investing in this type of teaching practice.

Keywords:
Health surveillance; Health education; Community medicine - methods

INTRODUÇÃO

Há cerca de três anos, lideranças comunitárias do bairro de Alto das Pombas e profissionais atuantes no serviço de saúde local identificaram a hipertensão arterial (HA) como um de seus principais problemas de saúde, O bairro está situado em área central de Salvador, Bahia, circundado por zonas nobres da cidade, e nele se desenvolve intenso trabalho de organização e mobilização social, fruto da luta de seus moradores. Possui uma população predominantemente de baixa renda, composta por cerca de sete mil habitantes, segundo informação colhida no IBGE, referente ao Censo de 1991.

No início de 1996, foi iniciado um Programa de Educação e Controle da Hipertensão Arterial no bairro, que passou a ser implementado por meio da articulação entre Universidade/Associação de Moradores/Serviço de Saúde, no bojo do Projeto UNI.

O Projeto UNI integra um elenco de 23 projetos financiados pela Fundação Kellogg no Brasil1 1 Em Salvador, o projeto desenvolve-se na área do Distrito Sanitário Barra/Rio Vermelho, onde se localiza o bairro de Alto das Pombas. e outros países da América Latina, e constitui-se numa proposta de parceria entre Universidade, instituições prestadoras de serviços de saúde e organizações comunitárias, para produzir mudanças no processo de formação do profissional de saúde, na participação social e na organização e funcionamento do sistema de saúde.

Idealizadores e analistas do Projeto UNI consideram que um de seus principais avanços em relação às experiências anteriores de Integração Docente-Assistencial foi a incorporação do segmento comunidade, por meio de suas diversas organizações, em todos os momentos de desenvolvimento das propostas. Esses autores consideram que a aplicação das diversas estratégias integrantes dos projetos UNI pode contribuir para viabilizar um processo de mudança na educação dos profissio­nais de saúde, como alternativa ao modelo flexneriano dominante até o momento, que venha a responder mais efetivamente às necessidades da sociedade contemporânea, além de influenciar mudanças nas políticas e práticas de saúde33. CHAVES, M. M. Educação das Profissões da Saúde: perspectivas para o século XXI. Revista Brasileira de Educação Médica , 20(1):21-27, 1996.),(55. FEUERWERKER, L. C. M. & MARSIGLIA, R. Estratégias para mudanças na formação de RHs com base nas experiênci­as IDA/UNI. Divulgação em Saúde para Debate, 12: 24-28, julho de 1996.),(66. KISIL, M. Uma Estratégia para a Reforma Sanitária: a iniciativa UNI. Divulgação em Saúde para Debate , 12: 5-14, julho de 96..

Entre alguns elementos do ideário do Projeto UNI relacionados à Universidade, destacam-se a preocupação com a educação dos profissionais de saúde orientada para os problemas de saúde da sociedade e a diversificação dos locais e experiências de ensino-aprendizagem, ampliando a utilização de ambientes comunitários para experiências pedagógicas33. CHAVES, M. M. Educação das Profissões da Saúde: perspectivas para o século XXI. Revista Brasileira de Educação Médica , 20(1):21-27, 1996.),(55. FEUERWERKER, L. C. M. & MARSIGLIA, R. Estratégias para mudanças na formação de RHs com base nas experiênci­as IDA/UNI. Divulgação em Saúde para Debate, 12: 24-28, julho de 1996..

O modelo de referência utilizado para a intervenção sobre a HA no Alto das Pombas foi o da Vigilância à Saúde. Segundo Mendes88. MENDES, E. V. A construção social da vigilância à saúde no distrito sanitário. In: MENDES, E. V. (org.). A vigilância à saúde no distrito sanitário. OPAS. Série Desenvolvimento de Serviços de Saúde, nº 10: 7-19, Brasília,1993., a Vigilância à Saúde insere-se na perspectiva de uma resposta social, como modelo de intervenção sobre problemas, num dado território. Constitui uma prática sanitária que organiza os processos de trabalho em saúde sob a forma de operações para confrontar problemas de enfrentamento contínuo, num território determinado, abrangendo os diferentes estágios do processo saúde/doença.

Para Paim & Teixeira, Vigilância à Saúde constitui um conjunto de práticas sanitárias destinadas a controlar riscos, danos e determinantes, considerando os problemas e necessidades de saúde. Desse modo, admite diferentes níveis de controle: de danos (controle III), de riscos (controle II) e de "causas", ou seja, o controle dos condicionantes e determinantes (controle I)99. PAIM, J. S. & TEIXEIRA, M. G. L. C. Reorganização do sistema de vigilância epidemiológica na perspectiva do SUS. Informe Epidemiológico do SUS, 5:27-57,1993..

Para Mendes, a modelagem da prática da Vigilância à Saúde, num território singular, envolve a definição de um problema de enfrentamento contínuo, sua descrição, sua explicação em diferentes espaços, a identificação de nós críticos nos diferentes períodos do processo saúde/enfermidade e a montagem de operações integradas de promoção da saúde, prevenção de enfermidade e acidentes, e atenção curativa88. MENDES, E. V. A construção social da vigilância à saúde no distrito sanitário. In: MENDES, E. V. (org.). A vigilância à saúde no distrito sanitário. OPAS. Série Desenvolvimento de Serviços de Saúde, nº 10: 7-19, Brasília,1993..

Nesta perspectiva é que foram concebidas as práticas de controle da hipertensão arterial no Alto das Pombas, articulando atividades de ensino com a população e serviços de saúde para enfrentar um problema concreto, buscando-se intervir de maneira integral por meio das seguintes ações: detecção precoce de prováveis hipertensos na população e encaminhamento ao centro de saúde local; ações educativas de prevenção primária, dirigidas ao controle dos fatores de risco da doença junto à população adulta em geral; medidas de prevenção secundária, voltadas aos hipertensos; reorganização da unidade de saúde local, pertencente à rede pública estadual, para conferir maior resolutividade na assistência aos casos já instalados, detectar precocemente novos casos, realizar trabalho educativo com grupos de hipertensos e encaminhar paci­entes para o serviço especializado, quando necessário; atendimento de casos referidos pelo serviço local em ambulatório especializado da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Anteriormente à implantação do Projeto UNI já havia uma atuação do Departamento de Medicina Preventiva da Ufba junto à Associação Comunitária de Alto das Pombas, por intermédio da assessoria de um de seus docentes e da realização de práticas da disciplina Introdução à Medicina Social (TMS). Nesta disciplina complementar obrigatória oferecida a alunos do terceiro semestre do Curso de Graduação em Medicina pelo Departamento de Medicina Preventiva, são desenvolvi­das atividades práticas de educação em saúde, que ocupam uma carga horária correspondente a 30% do total do curso1212. UFBA. FAMED. Departamento de Medicina Preventiva. Programa do Curso de Introdução à Medicina Social. Salvador, Bahia, 1997. mimeo..

A partir do reconhecimento da hipertensão como prioridade, por quatro semestres consecutivos, o Departamento de Medicina Preventiva vem participando das ações de controle da doença em Alto das Pombas. As atividades envolvem a atuação dos alunos da disciplina IMS na busca ativa para detecção precoce de hipertensos e, principalmente, na realização de ações educativas voltadas ao controle dos fatores de risco da hipertensão.

As estratégias de atuação são sempre definidas em conjunto com representantes da população, a cada semestre em que são planejadas as práticas.

Este trabalho relata a experiência desenvolvida nos dois semestres de 1997 por três turmas de alunos. As práticas de Vigilância à Saúde foram realizadas em dois momentos (maio e setembro/outubro), envolvendo dois docentes, 42 alunos do curso médico, 23 adolescentes do bairro e membros da diretoria da associação comunitária. Foram visitadas cerca de 250 casas em três áreas do bairro, perfazendo uma média de 12 casas visitadas por cada dupla de alunos. As atividades discentes ocuparam, em média em cada semestre, cerca de 26 horas, entre preparo e execução, ocupando oito turnos nor­mais da disciplina (que se realiza às terças e quintas-feiras - manhãs e/ou tardes), além de um turno à noite em cada semestre. Todo o trabalho contou com a supervisão permanente do docente de cada turma.

OBJETIVOS

  1. Detectar, precocemente, "suspeitos" de hipertensão arterial (PA >= 140 e/ou 90 mmHg) e encaminhá-los à unidade de saúde local;

  2. Ampliar o grau de informação da comunidade a respeito de fatores de risco, consequências e formas de controle da HA, contribuindo para ampliar a consciência sanitária da po­pulação;

  3. Propiciar aos estudantes de Medicina o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos em educação e comunicação em saúde;

  4. Promover integração entre ensino, serviço de saúde e sociedade, por meio da realização de ações para controle de um problema de saúde;

  5. Contribuir para a reorganização do serviço de saúde do bairro, por intermédio da participação na implantação/implementação de um programa de prevenção, detecção e controle da HA.

METODOLOGIA

Para a execução do trabalho, foram dados os seguintes passos:

  • encontro dos docentes com a diretoria da associação comunitária para discutir a estratégia de trabalho; definiu-se pela cobertura completa de três áreas para visita domiciliar e ação educativa, segundo critérios de densidade populacional e carências acentuadas, com perspectiva de posterior expansão do trabalho para todo o bairro;

  • discussão da proposta com os estudantes e elaboração conjunta de objetivos, estratégias e instrumentos;

  • retorno para discussão dos objetivos, estratégias e instrumentos com a associação comunitária, o serviço de saúde e os adolescentes companheiros da saúde2 2 Adolescentes do bairro treinados e engajados nas atividades de saúde desenvolvidas pela Associação. do bairro;

  • treinamento teórico e prático dos estudantes de Medicina sobre hipertensão, incluindo a padronização da técnica de medida da pressão arterial (PA)11. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Controle da Hipertensão Arterial: uma proposta de integração ensino-serviço. RJ. CDCV /NUTES:201-212, 1993.;

  • produção de materiais educativos pelos estudantes de Medicina: folhetos, peças de teatro, história em quadrinhos, música, jogos e brincadeiras educativas;

  • visitas casa a casa, em duplas de estudantes de Medicina acompanhadas por um adolescente do bairro, para realizar: verificação da PA da população acima de 20 anos presente no momento da visita, pelo método auscultatório, com tensiômetros aneróides, em duas medidas, com intervalo de dois minutos11. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Controle da Hipertensão Arterial: uma proposta de integração ensino-serviço. RJ. CDCV /NUTES:201-212, 1993.; orientações individuais e familiares acompa­nhadas de entrega de material educativo sobre o controle dos fatores de risco e as principais consequências da doença; encaminhamento dos possíveis hipertensos ao serviço de saúde local, com uma ficha de referência, para confirmação diagnóstica e tratamento médico; distribuição de convite e estímulo à participação em atividade educativa de caráter coletivo;

  • processamento dos dados levantados;

  • realização de atividades coletivas, à noite, na escola municipal do bairro, utilizando recursos audiovisuais, como cartazes, diapositivos, história em quadrinhos, dramatização, música alusiva à temática da hipertensão, jogos e brincadeiras educativas, além de discussão e esclarecimento de dúvidas por profissional especializado;

  • apresentação do trabalho às outras turmas da mesma disciplina;

  • retorno de uma das turmas ao bairro para avaliar o impacto do trabalho a curto prazo junto aos moradores, cujos depoimentos foram registrados em vídeo.

O relato da experiência foi sistematizado a partir das seguintes fontes de dados: depoimentos de alunos, líderes comunitários e moradores; observação participante dos docentes; relatórios dos alunos; fichas de avaliação do curso.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No que tange à busca ativa de hipertensos, foram entrevistados 421 adultos maiores de 20 anos, de um total de 250 residências. Foram identificadas 157 pessoas (37,3%) com pressão arterial igual ou superior a 140 x 90 mmHg. Somando-se outros 41 indivíduos que se sabiam hipertensos, embora estivessem com a PA controlada no momento da visita, o número de "suspeitos" eleva-se para 198 (47%). Todos os prováveis hipertensos foram encaminhados ao serviço de saúde local, embora muitos deles revelassem já serem clientes de outros serviços de saúde, inclusive privados. Segundo informações obtidas posteriormente na unidade de saúde do bairro, poucos pacientes compareceram ao serviço para a confirmação do diagnóstico e tratamento.

A análise do conjunto dos dados coletados nas visitas não será objeto deste trabalho, que enfoca principalmente as práticas de educação em saúde.

As duas reuniões educativas programadas foram realizadas com a presença de 58 pessoas da comunidade em maio e 40 em outubro, além de membros da diretoria da associação comunitária e representantes da unidade de saúde. Nos dois momentos, foram apresentados os resultados dos levantamentos realizados nos domicílios, com o objetivo de informar os moradores sobre a dimensão do problema em suas respectivas áreas e no bairro como um todo. As atividades educativas se constituíram do repasse pelos estudantes de Medicina de informações científicas e técnicas sobre HA à população por meio dos recursos audiovisuais citados e da sessão de esclarecimento de dúvidas.

A avaliação dos resultados do trabalho pode ser realizada em três perspectivas, segundo a visão dos atores mais direta­mente envolvidos no processo:

a) Percepção dos estudantes de Medicina

Com base no depoimento dos alunos, foi possível perceber que a prática propiciou aquisições nos planos cognitivo, de habilidades e de atitudes, uma vez que: "proporcionou o primeiro contato com a população durante o curso, inexistente nessa etapa do ciclo básico; permitiu extrapolar os limites dos livros e participar de um processo de articulação saúde/sociedade, até então abordado apenas teoricamente; abriu portas para um horizonte pouco explorado até então - o caráter preventivo das práticas de saúde; forneceu uma noção mais real sobre a organização dos serviços públicos de saúde, revelando sua precariedade e baixa efetividade, reforçando a necessidade da efetivação de um sistema público de qualidade; aprimorou o conhecimento sobre a HA e técnicas de comunicação e educação em saúde".

Segundo os estudantes, o trabalho teve ainda algum impacto positivo sobre os moradores, pois ofereceu acesso a orientações relevantes para a sua saúde; possibilitou a ampliação da consciência sanitária da população; contribuiu para o aprendizado dos adolescentes da área, que constituirão futuros agentes multiplicadores.

Os alunos conseguiram também visualizar um resultado concreto relacionado ao controle da HA, expresso como "contribuição para viabilizar o controle precoce da doença, através do encaminhamento dos possíveis hipertensos ao serviço de saúde".

Os estudantes destacaram o alto grau de cooperação e receptividade da população, e o elemento "novidade" como estimulador da prática, traduzindo a mesma como uma "vivência única, que trouxe não só conhecimentos técnicos, mas a capacidade de comunicação". Propuseram a continuidade e o aprofundamento do trabalho na área. Identificaram como ponto problemático a articulação com o serviço de saúde do bairro, por suas deficiências.

Na avaliação do curso realizada pelos alunos, a execução das atividades práticas obteve média 4,8 (escala de 0 a 5), com sugestões de ampliação de sua carga horária e abrangência.

b) Percepção da população do Alto das Pombas

A percepção da população pode ser aferida pelo alto grau de receptividade e cooperação durante a realização do trabalho, bem como pelos depoimentos obtidos durante as visitas e reuniões comunitárias. Nessas oportunidades, as falas expressavam interesse pelo tema e aprovação à iniciativa da Associação e da Universidade, sugerindo-se a continuidade do trabalho. Nas mesmas ocasiões, um aspecto bastante enfatizado era a baixa resolutividade do serviço de saúde local.

Por sua vez, as lideranças comunitárias, que participaram de todas as etapas do trabalho, reconheceram a relevância da atuação da Universidade, mas ressaltaram seus limites para alterar a realidade. Segundo elas, esta mudança dependeria de uma intervenção permanente e efetiva por parte do sistema de saúde, inexistente no momento. Foi inclusive registrado que o baixo índice de procura do serviço local pelos hipertensos encaminhados pelos estudantes reflete o descrédito dos moradores. As lideranças ressaltaram também o anseio de ver a Universidade mais amplamente envolvida na discussão das políticas de saúde junto aos usuários, através de outras disci­plinas e Departamentos da área da saúde.

c) Percepção dos docentes de Introdução à Medicina Social

Mesmo sem o respaldo de uma avaliação específica, é possível presumir, pelos depoimentos e observação, que o trabalho propiciou à população e suas lideranças um maior grau de conhecimento sobre o problema da hipertensão arterial, apontando possibilidades científicas, tecnológicas, políticas e culturais para a prevenção e o controle da doença. As entrevistas realizadas durante a visita domiciliar detectavam o conhecimento dos moradores a respeito da HA, e, tanto nessa ocasião quanto na atividade coletiva, a preocupação principal era corrigir, fixar e ampliar o saber preexistente sobre a doença. O prosseguimento do programa, que constitui uma atividade contínua, possibilitará uma aferição mais precisa do alcance desse objetivo. Entretanto, os docentes avaliam que houve avanços no processo de democratização do saber sanitário, importante para a conquista da cidadania, especialmente tratando-se de uma população carente, de baixa escolaridade e reduzido acesso às informações de saúde.

Sob o ponto de vista dos objetivos relacionados às aquisições dos alunos em educação e comunicação em saúde, considera-se que foi superado o desafio de articular o conhecimento técnico-científico com urna realidade social e de saúde de modo geral desconhecida pelos estudantes, tendo sido os mesmos capazes de transmitir este conhecimento por meio de vá­rios mecanismos e instrumentos, de modo a ser apreendido pela população.

As práticas revelaram-se criativas e originais, demonstrando a iniciativa e o envolvimento dos estudantes, que superaram o obstáculo da transmissão de informações técnico-científicas aos moradores de maneira clara, compreensível e descontraída, obtendo a participação e interesse da população adulta e dos adolescentes durante as visitas domiciliares e na reunião comunitária. A peça teatral, a história em quadrinhos e a música composta especialmente para a ocasião usaram linguagem acessível e interessante, e os folhetos utilizaram ilustrações para melhor atingir o público.

A experiência propiciou ainda aos estudantes a construção de urna visão crítica sobre a situação de saúde, organização dos serviços de saúde e sua relação com a população, ensejando uma discussão sobre o papel da sociedade e do Estado na garantia dos direitos de cidadania e de assistência à saúde, em particular. Além disso, a observação do interesse e compromissos ético e social com que os alw1os conduziram as atividades indica também que elas tiveram algum papel na formação de uma consciência de cidadania nos mesmos.

Por outro lado, apesar do apoio de alguns dos profissio­nais do serviço às atividades, não se alcançou a absorção da proposta pela unidade de saúde local, o que comprometeu a integralidade da assistência e a proposta de integração dos três segmentos. Os problemas estruturais do sistema de saúde, refletidos no pequeno grau de resolutividade da unidade e do distrito onde ela se insere, revelaram ser este o elo mais frágil na proposta de vigilância da hipertensão, aspecto este reconhecido por todas as instâncias participantes. Entretanto, é possível que a continuidade da atividade articulada ao ensino, a pressão do encaminhamento de pacientes e a manutenção da discussão com a população sobre o papel dos serviços de saúde, numa perspectiva mais processual, estimulem a reorganização dos mesmos para dar conta do controle deste e de outros problemas de saúde priorizados na área.

Para os docentes, porém, o elemento diferencial da experiência foi, sem dúvida, o intenso controle social exercido durante sua execução por parte das lideranças comunitárias. Nessa atividade foi possível construir uma relação diferenciada com a população, na qual a mesma sempre constituiu sujeito do processo, participando ativamente de todas as suas etapas - definição de conteúdos, objetivos, estratégias e sistematização dos resultados-, com poder de intervenção e ampla Liberdade de formulação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta experiência da disciplina Introdução à Medicina Social atingiu os objetivos planejados em relação ao processo de for­mação dos alunos, de modo criativo e mantendo elevado nível de interesse, além de subsidiar a população para melhor conduzir suas formas de enfrentamento de um importante problema de saúde.

No que diz respeito à aplicação do enfoque da Vigilância à Saúde, acredita-se que foi possível demonstrar aos alunos e à população a viabilidade de praticar um tipo de intervenção em saúde que privilegia não apenas a doença já instalada, mas abrange momentos anteriores do processo saúde/enfermidade, com ações de caráter preventivo, educativo e coletivo, além do estímulo ao autocuidado pela população.

A Vigilância à Saúde, enquanto prática sanitária, admite diferentes espaços sociais de estruturação e propõe uma nova dimensão para as ações de saúde, introduzindo o conceito de promoção à saúde. Este se fundamenta na noção de integralidade, que busca a superação das práticas sanitárias fragmentadas -que se apresentam como regra no âmbito tanto da escola médica como do sistema de saúde-, na perspectiva de urna concepção integralizadora na busca da qualidade de vida dos sujeitos sociais44. FERRAZ, S. T. Promoção da saúde: viagem entre dois paradigmas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, 32 (2):49-60, mar/abr, 1998..

Por outro lado, por enfatizar um processo de aprendizado calcado na interpretação crítica da complexa realidade de saúde e suas contradições (envolvendo condições de vida da população, organização social e de serviços de saúde), a abordagem utilizada nesta experiência contrapõe-se ao modelo médico hegemônico - individual, biologicista, curativo, centrado no hospital e na doença - no que se refere tanto a seu objeto, quanto às práticas pedagógicas. Nesta perspectiva, a ampliação de práticas como esta pode contribuir na direção de um novo modelo pedagógico que privilegie a inserção precoce do aluno na realidade de saúde e desloque o objeto da educação médica para o campo da Vigilância à Saúde, atuando sobre problemas concretos e prioritários, onde os estudantes têm oportunidade de discutir propostas de solução, interagindo com os outros sujeitos sociais.

Esta possibilidade encontra reforço na opinião de Paim1010. PAIM, J. S. O SUS no Ensino Médico: Retórica ou Realidade? Divulgação em Saúde para Debate , 14:59-65, agosto de 1996., segundo o qual a expansão de campos de práticas e a constituição de espaços criativos e dialógicos de aprendizagem como esses podem sustentar as críticas ao modelo médico hegemônico e aos próprios modelos de SUS ainda vigentes.

O desenvolvimento dos projetos UNI no Brasil tem estimulado ou catalisado processos de reforma curricular nos cursos da área de saúde, inclusive Medicina, em vários locais, a exemplo de Botucatu, Marília e Londrina, incorporando novas abordagens e práticas pedagógicas, tendo como eixo o ensino centrado no aluno e orientado à comunidade, privilegiando o contato precoce do aluno com a realidade de saúde e a solução de seus problemas. Tais experiências ainda são recentes e só poderão ser avaliadas com o decorrer do tempo, mas seus primeiros resultados já apontam possibilidades de renovação no ensino médico, segundo relatos de seus representantes22. CAMPOS, J. J. B. et alii. Novo currículo do curso de Medicina de Londrina. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 22, supl.1 :39-40,1998.),(77. MACHADO, J. L. M. et alii. Reformulação do Ensino Médico rumo à formação profissional de qualidade. Divulgação em Saúde para Debate , 11:11-19, set.1995.),(1111. SILVA FILHO, C. R. & CONTERNO, L. O. Construindo o projeto acadêmico. Divulgação em Saúde para Debate , 11: 71-74, set.1995..

De acordo com Feuerwerker & Marsiglia55. FEUERWERKER, L. C. M. & MARSIGLIA, R. Estratégias para mudanças na formação de RHs com base nas experiênci­as IDA/UNI. Divulgação em Saúde para Debate, 12: 24-28, julho de 1996., a força gerada pelas experiências UNI bem-sucedidas possibilita a construção de articulações mais amplas, capazes de interferir no processo de formulação das políticas públicas de saúde e educação, uma vez que a articulação dos três segmentos envolvidos nos projetos favorece a reunião dos esforços dos diferentes atores comprometidos com a transformação.

No caso da presente experiência, a despeito de não se haver logrado uma articulação efetiva entre os três segmentos, há que ressaltar a parceria com a comunidade, exercida de modo livre e democrático, e na qual a população sempre se colocou como sujeito, de modo qualitativamente diferenciado das formas utilitárias e tradicionais. O processo foi sempre conduzido na perspectiva de reforçar a autonomia da população para o enfrentamento de suas questões de saúde.

Deste modo, apesar de tratar-se de uma atividade restrita a uma disciplina do curso médico, os resultados alcançados e as propostas de continuidade enfatizadas pelos estudantes e população estimulam os docentes a continuar investindo neste tipo de iniciativa, que, por meio da articulação do aparelho formador, serviço de saúde e sociedade civil organizada, e tendo como característica principal um processo permanente de controle social, pode construir práticas de saúde criativas, propiciando aprendizado e crescimento mútuos.

AGRADECIMENTO

Os autores agradecem aos estudantes de Medicina e adolescentes da comunidade relacionados a seguir, os quais participaram ativamente do trabalho.

Estudantes de Medicina

Adilson Filho; Adriana Macedo; Alessandro Nilo; Aline Soares; Allan Santana; Ana Carolina Barroso; Andréa Dantas; André Bionde; André Oliveira; André Ywata; Artur Filho; Carla da Silva; Antonedson França; Dilson dos Santos; Eduar­do Freire; Eli Pontes; Fabiana Costa; Guilherme Casimiro; Guilherme Ribeiro; Gustavo Lima; Heleno Augusto da Silva; Igor Maldonado; Iury Melo; João Andrade; José Oliveira; Juliana de Almeida; Juliana Salem; Lívia de Almeida; Mabel de Souza; Marcelo Ferreira; Marcelo Santos; Marcel Tadeu Silva; Marconi de Abreu; Nelson Tanajura; Patrícia Serravale; Paulus Fabrício Ramos; Renata Bispo; Rena ta Miranda; Sergio Dias; Tiago Sil­va; Tony Silva; Vanessa Pimentel.

Adolescentes da comunidade

Adriana Jesus; Adriano Ribeiro; Alan da Silva; Alberto Souza; Aleandra Souza; Agmar Neto; Aline de Jesus; Ana Paula Lopes; Carla da Silva; Cleuza da Silva; Diana Costa; Edilene Barbosa; Edivaldo Souza; José de Jesus; Kelly Caribé; Maria Paula Trindade; Mário M. Filho; Marizélia Cruz; Rafaela Moreira; Regina de Jesus; Rosana Ribeiro; Rosiléia da Silva; Suzana Rego.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Controle da Hipertensão Arterial: uma proposta de integração ensino-serviço RJ. CDCV /NUTES:201-212, 1993.
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    Em Salvador, o projeto desenvolve-se na área do Distrito Sanitário Barra/Rio Vermelho, onde se localiza o bairro de Alto das Pombas.
  • 2
    Adolescentes do bairro treinados e engajados nas atividades de saúde desenvolvidas pela Associação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1999
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