Aprendizado da Anatomia Hepatobiliar pela Mesa Anatômica Virtual 3D

RESUMO

Objetivo

Avaliar a eficácia da mesa anatômica virtual 3D como recurso complementar ao aprendizado da anatomia hepatobiliar por estudantes de graduação em Medicina.

Metodologia

Trata-se de estudo randomizado e controlado que comparou a aprendizagem anatômica de estruturas hepatobiliares, apoiada por um modelo real versus por um modelo virtual, ambos tridimensionais (3D), por parte de estudantes de medicina. Avaliou-se também a percepção dos estudantes quanto aos recursos utilizados para o ensino da anatomia. Os alunos foram submetidos a um pré-teste e a duas avaliações após a aplicação das intervenções.

Resultados

Globalmente, tanto a mesa anatômica virtual 3D quanto o fígado real aumentaram o conhecimento dos estudantes sobre a anatomia hepatobiliar em relação ao conhecimento prévio deles (p = 0,001 e p = 0,01, respectivamente para a segunda e terceira avaliação). Na comparação longitudinal entre o pré-teste e a segunda avaliação (anatomia hepatobiliar e segmentação de Couinaud), esse aumento foi significantemente maior no grupo alocado para o fígado real (p = 0,002); já na comparação do pré-teste com a terceira avaliação (inclusão de órgãos anexos na mesa anatômica ou no fígado real), o aumento do conhecimento foi significantemente maior no grupo alocado para a mesa anatômica (p = 0,04). A percepção de satisfação dos participantes quanto aos recursos de aprendizagem foi considerada muito boa, com percentual mínimo de satisfação de 80%.

Conclusão

A mesa anatômica virtual 3D forneceu mais conhecimento de anatomia hepatobiliar que um fígado real para estudantes de medicina, em relação ao conhecimento prévio deles sobre essas estruturas. Na comparação transversal das avaliações pós-instrução, não houve diferença entre as duas intervenções. Além disso, a plataforma 3D teve um impacto positivo no nível de satisfação dos participantes do estudo. Este estudo mostra que a mesa anatômica virtual 3D tem potencial para melhorar tanto a compreensão quanto o interesse dos estudantes de medicina pela anatomia. Recomenda-se, no entanto, que futuros protocolos como este sejam realizados com amostras maiores e explorando outras estruturas anatômicas.

Anatomia; Imagem 3D; Educação médica; Transferência de aprendizagem; Tecnologia de informação em saúde

ABSTRACT

Objective

to evaluate the effectiveness of the 3D virtual anatomical table as a complementary resource to the learning of the hepatobiliary anatomy by undergraduate medical students.

Method

A randomized controlled study comparing the anatomical learning of hepatobiliary structures, supported by a real model versus a virtual model, both three-dimensional (3D), by undergraduate medical students. The students’ perception of the resources used to teach anatomy was also evaluated. The students were submitted to a pre-test and to two evaluations after the interventions were applied.

Results

Overall, both the 3D virtual anatomical table and the real liver increased students’ knowledge of the hepatobiliary anatomy in relation to their previous knowledge (p = 0.001 and p = 0.01, respectively for second and third evaluations). In the longitudinal comparison between the pre-test and the second evaluation (hepatobiliary anatomy and Couinaud’s segmentation), this increase was significantly higher in the group allocated to the real liver (p = 0.002); in the comparison of the pre-test with the third evaluation (inclusion of adjacent organs in the anatomical table or in the real liver), the increase in knowledge was significantly higher in the group allocated to the anatomical table (p = 0.04). The perception of participants’ satisfaction regarding the learning resources was considered very good, with a minimum percentage of satisfaction of 80%.

Conclusion

the 3D virtual anatomical table provided more hepatobiliary anatomy knowledge than a real liver for undergraduate medical students, in comparison to their previous knowledge about these structures. In the cross-sectional comparison of the post-instruction evaluations, there was no difference between the two interventions. Moreover, the 3D platform had a positive impact on the level of satisfaction of study participants. This study shows that the 3D virtual anatomical table has the potential to improve both medical students’ understanding and interest in anatomy. It is recommended, however, that future protocols such as this be carried out with larger samples and exploring other anatomical structures.

Anatomy; 3D image; Medical education; Learning transfer; Health information technology

INTRODUÇÃO

A medicina possui domínios que requerem um aprendizado complexo. ¹ A complexidade do aprendizado envolve a compreensão de sistemas fisiológicos intricados, o que pode subsidiar o desenvolvimento de perícia adaptativa e a aquisição de competências técnicas necessárias à boa prática clínica, como a realização de um exame físico, a interpretação de exames de imagem e a adoção de um raciocínio clínico e/ou cirúrgico. ¹ , ² A anatomia é o cerne para alguns desses domínios de conhecimento e processos de racionalidade clínico-cirúrgica, e isso não deve ser discutido ³ . Ao longo dos últimos 400 anos, a anatomia constituiu, em todo o mundo, uma das principais ferramentas de aprendizagem em saúde, sendo tradicionalmente ensinada por meio de aulas convencionais, livros-texto, atlas ilustrados e dissecções cadavéricas. ⁴ , ⁵

Apesar desse escopo, ainda hoje existem importantes problemas educacionais relacionados ao ensino da anatomia: ⁴ , ⁵ 1. restrição à aquisição de cadáveres pelas instituições de ensino, principalmente por questões orçamentárias, éticas, culturais e sociais ou até mesmo pela sua indisponibilidade; ⁴ , ⁵ 2. importante escassez de profissionais capacitados para o método de dissecção; 3. risco de aquisição de doenças graves em função do uso de substâncias químicas (por exemplo, formaldeído); 4. grandes encargos logísticos e financeiros acerca das condições de armazenamento dos cadáveres; ⁶ e 5. profunda reformulação curricular pela qual muitas escolas médicas do mundo têm passado, essencialmente caracterizada pela introdução de metodologias de aprendizagem ativa. ²

Todas essas razões levaram a uma necessidade de se repensar a forma de ensino da anatomia. ² Além disso, elas têm permitido a adoção de uma ampla gama de recursos de aprendizagem, sobretudo os tecnológicos. ² Essas medidas têm resultado na proposta de uma série de abordagens inovadoras complementares para o ensino da anatomia, incluindo: softwares computacionais, situações-problema que simulam casos clínicos reais, modelos simuladores, modelos plastinados e modelos tridimensionais (3D). ⁷

Modelos anatômicos 3D contemplam uma íntima relação com o campo essencialmente visual, ¹ , ⁸ e essa natureza visuoespacial da aprendizagem é justificada pela presença de dois fatores: a estereopsia (noção de profundidade dada pela visão dos dois olhos em conjunto) e a exploração dinâmica. ² , ⁹ , ¹⁰ Quando bem aplicados, esses princípios podem melhorar a compreensão da relação espacial característica das estruturas anatômicas, sobretudo das mais complexas. ⁵ Dessa forma, recursos 3D podem favorecer o entendimento de estruturas anatômicas a partir de sua perspectiva global e contribuir para uma melhor assimilação de conhecimentos já adquiridos em aulas e atlas ¹ . Nicholson et al . descobriram que estudantes de medicina que pesquisaram a orelha interna com a utilização de um tutorial acompanhado por um modelo anatômico 3D marcaram 18 pontos a mais do que aqueles que estudaram apenas pelo tutorial. ⁹

Diversos sistemas 3D têm sido desenvolvidos para o ensino de anatomia. Um dos mais avançados sistemas de visualização da anatomia é a mesa anatômica 3D. Trata-se de uma plataforma de visualização digital que possui cadáveres virtuais dos sexos masculino e feminino, em tamanhos reais. Essa característica proporcionou a inclusão de uma potente ferramenta de edição de imagens, com características derivadas de um software aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) para planejamento cirúrgico. ¹¹ Essa ferramenta mescla modelos 3D customizáveis, derivados de imagens reais de pacientes, o que viabiliza simulações em tamanho real. ¹¹

Do ponto de vista acadêmico, a mesa anatômica pode ser útil como recurso complementar a estudos cadavéricos. Uma vez que os cortes axiais são devidamente registrados e segmentados na dissecção tradicional, eles são usados na mesa para criar imagens finais de qualquer sistema ou estrutura anatômica em todos os três eixos do corpo. ¹² A possibilidade de funcionar como uma estação de trabalho de imagenologia é uma característica particularmente relevante desse recurso, sobretudo quando se deseja estudar anatomia aplicada a um exemplo patológico ou simplesmente analisar exames. ¹¹ Por exemplo, tomografias computadorizadas (TC) e ressonâncias magnéticas (RM) de fígado podem ser visualizadas em 3D de forma interativa. ¹¹

Estruturas complexas, como o fígado e a vesícula biliar, podem ser bem exibidas pela mesa. A visualização 3D do fígado facilita a visibilidade do seu conteúdo e permite a aplicação de métodos de percepção visual, como a imersão, navegação e interação. ³ Como o fígado é um dos principais órgãos vulneráveis a tumores, um maior conhecimento acerca de sua imagem 3D pode melhorar a perícia do médico em situações clínicas. Por exemplo, lesões hepáticas próximas a estruturas cruciais poderiam ser mais facilmente avaliadas por meio de imagens 3D, sobretudo por estudantes. ³ , ¹² Além disso, em eventuais casos cirúrgicos, avaliações de imagens hepáticas 3D poderiam levar a ressecções mais precisas, sem a remoção concomitante de tecido hepático saudável e comprometimento de estruturas adjacentes. ¹²

Apesar de os cortes de TC e RM conferirem os dados sobre a lesão, em algumas ocasiões, a sua localização precisa em relação aos grandes vasos sanguíneos não é evidentemente satisfatória (por exemplo, veia porta hepática ou vias biliares). ¹³ Além disso, essas imagens podem ser difíceis de entender e interpretar para uma equipe inexperiente e especialmente para estudantes de medicina ³ . A junção desses fatores nos leva a crer que o método tradicional de ensino da anatomia hepatobiliar nas escolas médicas pode não ser suficiente para garantir competências necessárias à boa prática clínica. Assim, é necessário avaliar se a mesa anatômica 3D é um recurso eficaz para apoiar o ensino da anatomia hepatobiliar aplicada em estudantes de medicina.

MÉTODOS

Este estudo foi aprovado pela Comissão Interna de Ética da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (n º 2015-55) e também pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Centro Universitário Serra dos Órgãos – UNIFESO (CAAE: 54519415.0.0000.5247). O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi obtido de todos os participantes antes da sua entrada no estudo. Não houve conflito de interesses nesta pesquisa.

Para este estudo, foram recrutados exclusivamente estudantes voluntários do quarto ano do curso de Medicina. Não se incluíram estudantes de outros períodos do curso nem os de outros cursos de graduação das instituições participantes. Entre os participantes, excluíram-se aqueles que deixaram de realizar quaisquer etapas da pesquisa. O protocolo de pesquisa foi todo aplicado na PUC-Rio, no município do Rio de Janeiro, detentora da mesa anatômica 3D. Os estudantes de medicina provieram do UNIFESO, sediado no município de Teresópolis, e da Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO), sediada no município de Caxias. Após o recrutamento, os participantes foram randomizados e alocados em dois grupos.

Os participantes foram avaliados quanto a dois desfechos:

• Aprendizagem: refere-se, neste estudo, à assimilação das informações passadas durante as aulas, ou seja, questões técnicas acerca da anatomia e de casos clínicos sobre a estrutura hepatobiliar. Refere-se também às dimensões da representação sobre a aprendizagem (referencial e processual), sendo avaliada de maneira quantitativa.

• Autopercepção: percepção própria do estudante quanto à satisfação da sua aprendizagem, em relação aos recursos utilizados.

A aprendizagem foi avaliada por meio de três questionários de múltipla escolha (opções de A a D), totalizando 30 questões. O primeiro questionário (“pré-teste”) possuiu dez questões de anatomia e fisiologia hepatobiliares. A aplicação dessa avaliação se deu antes que os estudantes recebessem quaisquer informações técnicas e se justificou para verificar o conhecimento prévio deles sobre o tema, com vistas a avaliar se possíveis diferenças nessa fase poderiam afetar os resultados finais da pesquisa. Em seguida, todos os participantes receberam conteúdo expositivo em uma aula com duração de 90 minutos, que versava sobre anatomia hepatobiliar e segmentação de Couinaud, além da apresentação de casos clínicos reais sobre as estruturas hepatobiliares (composta por aula expositiva e utilização de exames de imagem).

O fígado foi escolhido como órgão de estudo por apresentar algumas características que favorecem uma avaliação mais fidedigna da visualização 3D. Trata-se de um órgão cuja nomenclatura anatômica é abordada logo nos primeiros anos da graduação médica. No ciclo clínico do curso, os estudantes, já familiarizados com a estrutura anatômica, são apresentados à anatomia segmentar hepática de Couinaud. Esse modelo foi proposto por Couinaud na década de 1960, sendo amplamente aceito na prática clínica e especialmente na cirurgia hepática. ³ Além disso, anatomicamente, o fígado é um órgão globoso, o que facilita a comparação com modelos 3D, com vistas à localização específica de um tumor e melhor planejamento dos limites de ressecções hepáticas (os requisitos típicos na cirurgia do fígado são localizar o tumor e determinar suas relações com os sistemas vascular e biliar intra-hepático). ³

Os dados de imagem foram integralmente gerados pela mesa anatômica virtual 3D, pertencente ao Departamento de Medicina da PUC-Rio. A visualização interna do fígado virtual pôde ser realizada por meio de um controle de transparência e cortes em todos os seus eixos (sagital, coronal e transversal). Dois fígados reais formolizados foram transferidos do UNIFESO para a PUC-Rio dois dias antes da aplicação do protocolo do estudo mediante autorização específica para esse fim. Os fígados (um deles com e outro sem estruturas anexas) foram armazenados em caixas térmicas, permanecendo acondicionados até o momento da fase de instrução da pesquisa.

Randomização

Após a aula expositiva, os estudantes foram randomizados, sendo alocados para: 1. grupo experimental – anatomia hepatobiliar + segmentação de Couinaud (explorado exclusivamente na mesa anatômica 3D (Anatomage/ software 3.0)) versus 2. grupo controle – mesmo conteúdo do grupo experimental, porém visto em um fígado real. Essa etapa foi coordenada pelos mesmos docentes que ministraram as aulas na primeira etapa (eles receberam instruções prévias acerca da utilização da mesa anatômica 3D). Para que não houvesse a introdução do viés referente ao método de ensino do professor, ambos os docentes estiveram à frente da instrução nos dois grupos. Para permitir isso, as intervenções foram aplicadas em momentos diferentes.

Ao final dessa etapa, ambos os grupos foram submetidos à segunda avaliação, composta por dez questões técnicas sobre o conteúdo. O objetivo dessa avaliação foi verificar a eficácia comparada da mesa anatômica virtual 3D com o modelo real formolizado, além de questões quanto à percepção própria de satisfação sobre os recursos utilizados para o ensino da anatomia.

Finalmente, após a segunda avaliação, os estudantes foram submetidos à última etapa relacionada à instrução. Mantidos na mesma alocação, os estudantes de cada grupo retornaram, respectivamente, à mesa anatômica 3D e ao fígado real. Nessa fase, os participantes receberam instruções acerca do órgão hepático associado a estruturas e órgãos anexos. Para viabilizar esse objetivo, utilizaram-se recursos da mesa virtual que inserem e/ou retiram órgãos anexos. Quanto ao fígado real, adotaram-se no estudo duas peças frescas: uma simples (apenas fígado e vesícula) e outra com estruturas anexas. Nessa etapa, as instruções foram passadas novamente em momentos diferentes pelos mesmos docentes para evitar a introdução do viés relativo ao método de ensino. Após essa fase, aplicou-se a terceira e última avaliação do estudo, com duração total de 30 minutos. Nessa prova, além das dez questões técnicas, foram aplicadas também 12 questões referentes à percepção de autossatisfação acerca dos recursos de ensino. Um fluxograma representando todo o protocolo de pesquisa é demonstrado na Figura 1 .

FIGURA 1
Fluxograma de delineamento do estudo

Análises

O desempenho dos estudantes (aprendizagem) foi avaliado quanto à pontuação geral nas avaliações e medido por meio de dois desfechos: taxa de respostas erradas e taxa de reprovação. Foi considerado reprovado o estudante que errou, pelo menos, 11 questões. As respostas só foram consideradas corretas ou incorretas. Todos os resultados (correto/não correto) e o tempo necessário para responder a cada avaliação foram automaticamente registrados. O número de acertos em cada avaliação foi testado em relação à sua normalidade, a partir dos valores de assimetria e curtose, sendo considerados normais. Em função disso, o número de acertos em cada avaliação (avaliações 1 a 3) e em cada grupo (G1 – mesa anatômica e G2 – peça real de fígado) foi sintetizado como média acompanhada do respectivo desvio padrão. A diferença absoluta entre duas médias foi apresentada. Comparou-se o número médio de acertos entre as duas avaliações por meio do teste t de Student pareado. Por sua vez, a comparação entre o número médio de acertos entre as duas intervenções foi realizada por meio do teste t de Student para amostras independentes. Adotou-se nível de significância de 5% ( p < 0,05).

Para investigar o efeito das intervenções sobre a percepção dos estudantes acerca do seu aprendizado, adotou-se a escala Likert, um questionário com 12 tópicos que utiliza uma abordagem indutiva, em que as respostas foram agrupadas em cinco subcategorias que podem ser quantificadas (concordo plenamente; concordo mais que discordo; não sei opinar; discordo mais que concordo; discordo plenamente). As seis primeiras questões são afirmativas, e as seis últimas constituem uma repetição das seis primeiras, mas na forma negativa. O objetivo desse modelo foi verificar a concordância lógica entre duas respostas contrárias referentes à mesma questão.

RESULTADOS

Um total de 20 estudantes de graduação (65% mulheres) participaram deste estudo. Dezesseis estudantes provieram do Unifeso e quatro da Unigranrio. Todos os participantes permaneceram no protocolo de pesquisa até o final. A distribuição de gênero foi semelhante entre os dois grupos ( Tabela 1 ). Não houve diferença estatisticamente significante quanto ao conhecimento prévio dos estudantes sobre a anatomia hepatobiliar ( p = 0,290), assim como também não foi significante a diferença entre os grupos nas demais avaliações (segunda avaliação: p = 0,572; e terceira avaliação: p = 0,414).

TABELA 1
Distribuição dos participantes por gênero e randomização

	N (%)	Gênero feminino
G1 Mesa anatômica	10 (50%)	6 (60%)
G2 Peça real	10 (50%)	7 (70%)
Total	20 (100%)	13 (65%)

Fonte: Elaborada pelos autores.

Globalmente, os recursos avaliados melhoraram a aprendizagem dos participantes. Na comparação longitudinal entre o pré-teste e as duas avaliações subsequentes, o aumento do conhecimento sobre a anatomia hepatobiliar e segmentação de Couinaud foi significante em ambos, sendo maior na segunda avaliação – aplicada após a aula expositiva e randomização para a mesa anatômica ou o fígado real ( p = 0,001), se comparada à terceira avaliação – após a inclusão de órgãos anexos na mesa anatômica ou fígado real ( p = 0,012) ( Tabela 2 ). Já na comparação longitudinal do desempenho entre os grupos, o grupo que utilizou o fígado real foi significantemente melhor que o grupo que usou a mesa anatômica na segunda avaliação ( p = 0,002). Contudo, quando a comparação longitudinal foi entre o pré-teste e a terceira avaliação, o grupo que utilizou a mesa anatômica apresentou desempenho significantemente melhor ( p = 0,040).

TABELA 2
Resultados das análises de aprendizagem

Grupo	Primeira avaliação Média ± DP	Segunda avaliação Média ± DP	Diferença entre a primeira e a segunda avaliação		3ª Avaliação Média ± DP	Diferença entre a primeira e a terceira avaliação
	(A)	(B)	(B-A)	Valor de p	(C)	(C-A)	Valor de p
Comparação entre duas avaliações
Todos	6,50 (1,64)	7,95 (1,15)	+1,45	0,001	7,70 (1,59)	+1,20	0,012
Mesa anatômica (G1)	6,90 (1,20)	7,80 (1,14)	+0,90	0,121	8,00 (1,49)	+1,10	0,040
Peça real de fígado (G2)	6,10 (1,97)	8,10 (1,20)	2,00	0,002	7,40 (1,71)	+1,30	0,122
Comparação entre as duas intervenções (G1 x G2)
Diferença	0,80	0,30	–	–	0,60	–	–
Valor de p	0,290	0,572	–	–	0,414	–	–

Fonte: Elaborada pelos autores.

Como explanado, a segunda avaliação priorizou questões que abordassem a visualização 3D do órgão. Entretanto, os enunciados componentes da terceira avaliação priorizaram as relações do fígado com outras estruturas do corpo. Diferentemente do fígado real, o fígado 3D permitiu a visualização das estruturas internas do órgão, como veias e artérias hepáticas. Essa técnica se deu de duas formas: por controle de transparência ou pelo uso do bisturi virtual, que “cortou” o órgão em vários eixos.

Os resultados da avaliação de autossatisfação são apresentados na Tabela 3 , os quais são expressos sob a forma de percentual de discordantes. Esse critério foi adotado porque partiu-se da premissa de que a maioria dos participantes considera, pelo menos, adequados os recursos adotados para a aprendizagem (sobretudo o fígado real, que é padrão de referência para o ensino da anatomia). Depois, esperou-se uma melhor visualização do efeito dos recursos quando da comparação entre os grupos. No geral, a percepção de satisfação dos estudantes perante os recursos utilizados no estudo para a aprendizagem da anatomia hepatobiliar foi considerada muito boa, com percentual mínimo global de satisfação de 80%. Quando o inquérito se referiu especificamente à facilidade de assimilação do conhecimento por esses recursos de aprendizagem, o percentual de concordância foi total (100%). No modo comparativo entre os grupos, 20% dos estudantes alocados no grupo de fígado real não se sentiram satisfeitos com esse tipo de recurso, contra 0% desse resultado no grupo da mesa. Por sua vez, 30% dos participantes alocados na mesa anatômica não se sentiram estimulados a aprender anatomia hepatobiliar pelo recurso 3D, contra 10% do grupo de fígado real.

TABELA 3
Resultado da avaliação de autossatisfação

TÓPICO/ QUESTÃO	Discordantes (%)*
	G1 Mesa anatômica	G2 Peça real de fígado	Total
1) Eu me sinto satisfeito com o recurso pedagógico que foi usado para a minha aprendizagem.	0,0	0,0	0,0
2) Eu considero que o professor explorou bem o recurso de aprendizagem usado para o ensino da temática em questão.	10,0	0,0	5,0
3) O recurso utilizado na aula facilitou a minha assimilação do conhecimento.	0,0	0,0	0,0
4) Eu me sinto capaz de reproduzir o conhecimento que aprendi a partir da aula que tive.	0,0	10,0	5,0
5) Eu me senti estimulado a aprender pelo recurso utilizado durante a atividade.	0,0	10,0	5,0
6) Eu me sinto motivado a voltar a explorar o recurso que foi utilizado na atividade.	0,0	0,0	0,0
7) Eu não me sinto satisfeito com o recurso pedagógico que foi usado para a minha aprendizagem.	100,0	80,0	90,0
8) Eu não considero que o professor explorou bem o recurso de aprendizagem usado para o ensino da temática em questão.	90,0	100,0	95,0
9) O recurso utilizado na aula não facilitou a minha assimilação do conhecimento.	100,0	100,0	100,0
10) Eu não me sinto capaz de reproduzir o conhecimento que aprendi a partir da aula que tive.	90,0	90,0	90,0
11) Eu não me senti estimulado a aprender pelo recurso utilizado durante a atividade.	70,0	90,0	80,0
12) Eu não me sinto motivado a voltar a explorar o recurso que foi utilizado na atividade.	90,0	90,0	90,0

Fonte: Elaborada pelos autores.

O inquérito de autossatisfação teve como alvo os recursos de aprendizagem adotados. Apesar disso, os instrutores também foram incluídos na avaliação, porque se considerou que a maneira como eles exploram os recursos pedagógicos pode interferir na percepção de satisfação dos estudantes. Com base nessa premissa, observou-se que 10% dos participantes alocados na mesa anatômica consideraram que os docentes não exploraram bem a capacidade de ensino desse recurso. A discordância sobre esse tópico no grupo de fígado real foi total. Quando a questão abordou a capacidade dos estudantes de reproduzir o conhecimento que obtiveram a partir das aulas que tiveram, 10% de cada grupo declarou não se sentir capaz de executar essa tarefa. Essa proporção foi a mesma alcançada quando os participantes foram questionados sobre a sua motivação em voltar a explorar o recurso utilizado na atividade.

DISCUSSÃO

Este estudo demonstrou que uma plataforma digital 3D de alta resolução, com fígado e vesícula biliar virtuais e em tamanhos reais, representa um recurso adequado para o ensino da anatomia em medicina. Essa declaração – apoiada por outros estudos na literatura ¹⁴ , ¹⁵ – é suportada pelo fato de que a mesa anatômica virtual foi capaz de prover ao estudante de medicina a apreensão da informação tanto quanto um fígado real formolizado. Esse achado é demonstrado porque ambos os grupos aumentaram o seu conhecimento em relação à baseline . Ou seja, a aquisição de conhecimento longitudinal (comparação entre o pré-teste e a terceira avaliação) foi registrada nos dois braços do estudo, sendo significantemente maior por parte de quem esteve à frente da mesa anatômica ( p = 0,040). Transversalmente, no entanto, não houve diferença estatisticamente significante entre as duas intervenções nas duas avaliações que aconteceram após a fase de instrução do estudo.

Esses resultados podem ser justificados pelo fato de a mesa anatômica ter reproduzido características estruturais da peça real, facilitando a aprendizagem das relações visuoespaciais a um nível de detalhe que pode não ser atingível para visualização por qualquer outro meio (sobretudo os segmentos hepáticos internos), inclusive o órgão real ¹⁰ . Por exemplo, o grupo alocado para o fígado real não visualizou as ramificações da veia portal in loco (elas não foram exibidas em separado do parênquima hepático). Por meio do recurso de controle de transparência, o grupo alocado para a mesa pôde visualizar, na mesma imagem (silhueta hepática preservada), não somente o curso inteiro dos vasos intra-hepáticos, mas também a sua correlação espacial entre si ou com outras estruturas ¹⁵ , como um segmento de Couinaud.

Além do desfecho de aprendizagem, um achado relevante deste estudo foi o nível de satisfação com a mesa anatômica encontrado entre os estudantes. Pelo menos em teoria, é possível que recursos mais atraentes façam com que os estudantes se interessem mais pela anatomia e dediquem mais tempo a estudá-la. No entanto, o tempo adicional despendido no estudo e na revisão anatômica poderia introduzir uma interferência no uso do tempo dedicado ao estudo, visto que os estudantes poderiam deixar de priorizar outras áreas importantes do curso de Medicina. Esse paradoxo deve ser considerado na indicação da utilidade da mesa anatômica. Apesar disso, achados semelhantes foram relatados anteriormente ¹⁶ , ¹⁷ e podem representar um argumento mais convincente para o desenvolvimento de ferramentas de ensino interativas 3D.

Em pesquisa semelhante a este protocolo, Venis et al . ¹⁸ realizaram um estudo comparativo em que avaliaram a eficácia da mesa anatômica virtual 3D (Anatomage/ software 3.0) versus modelos anatômicos, com vistas à aprendizagem da anatomia do joelho em 12 estudantes de medicina. De forma similar, os pesquisadores aplicaram três testes: um pré-teste (antes da instrução), um pós-teste (com questões técnicas e sobre autossatisfação) e um último teste após duas semanas do fim do protocolo para avaliar a retenção da informação. Os participantes alocados no grupo da mesa anatômica foram significantemente melhores nas duas avaliações regulares pós-instrução ( p - 0,020 e p - 0,047). A percepção de satisfação também foi maior entre os estudantes que utilizaram a mesa anatômica (pontuação na escala Likert de 4,6 versus 3,2 pontos). ¹⁸

Em um contexto mais amplo, os resultados que expressam eficácia e satisfação quanto à utilização de recursos 3D trazem em paralelo um contraponto importante ante o paradigma da necessidade do uso de cadáveres e estruturas in situ no ensino da anatomia. Em primeiro lugar, não restam dúvidas de que as estruturas anatômicas reais representam o padrão de referência no que tange ao entendimento do componente 3D do corpo humano por meio da observação e descoberta ¹⁹ . Em segundo lugar, isso auxilia a formação do raciocínio espacial necessário ao entendimento e à interpretação da informação passada pela imagem. Entretanto, estruturas anatômicas reais preservadas nem sempre fornecem uma impressão acurada do corpo vivo, além de constituírem fonte de inquietação emocional para alguns estudantes. ¹⁹ Em uma outra perspectiva, o tempo reservado pelas instituições de ensino à aprendizagem tradicional da anatomia bruta, por meio da experiência visual e tátil da estrutura real, tem sido reduzido pela incorporação de métodos de aprendizagem ativa (como a aprendizagem baseada em problemas), ¹⁹ fato que tem obrigado os especialistas a repensar a forma de ensinar anatomia.

Na contramão dessa perspectiva, Costa e Lins ²⁰ relataram que o uso de cadáveres humanos, mesmo que apenas para a demonstração das estruturas anatômicas em aulas, foi considerado indispensável ao processo de ensino-aprendizagem no estudo da anatomia humana por 542 estudantes de diferentes cursos de saúde, principalmente por considerarem que o manuseio do cadáver representou uma forma de fortalecer a humanização da conduta dos futuros profissionais de saúde. ²⁰ Apesar de a mesa anatômica ter conseguido prover um nível de informação semelhante ao fígado real e constituir um dispositivo que apresenta algumas vantagens em relação ao órgão in situ (por exemplo, ela não utiliza formol, permite uma “dissecção virtual” quantas vezes forem necessárias etc.), esses achados não suportam a hipótese de que a mesa anatômica possa substituir as estruturas in situ no ensino da anatomia, sobretudo porque este estudo apresenta limitações importantes.

A eficácia de recursos tridimensionais no ensino da anatomia hepatobiliar é demonstrada em diversos trabalhos ³ , ¹⁵ com algumas nuances entre eles. Diferentemente deste estudo, Beerman et al . ¹⁵ e Jurgaitis et al . ³ não adotaram a realização de um pré-teste em seus protocolos de pesquisa, o que traz à tona a possibilidade de que a diferença encontrada nos resultados desses estudos tenha sofrido influência de um maior conhecimento prévio dos estudantes alocados no grupo 3D. Em nosso estudo, embora o desempenho no pré-teste tenha sido medido (não apresentando diferença estatisticamente significante entre os grupos ( p = 0,290)), não avaliamos outras variáveis que poderiam interferir nos resultados finais da pesquisa.

Tomemos como exemplo o caso da habilidade espacial inata. ²¹ As habilidades espaciais consistem na visualização, orientação e manipulação de estruturas no espaço. ²² As habilidades espaciais têm sido relacionadas ao conhecimento de anatomia 3D, sendo aplicadas em exames práticos (identificação), questões topográficas, entre outros ²⁵ . Com base nessas informações, Hegarty et al . ²³ identificaram um modelo capaz de expressar diferenças individuais quanto ao desempenho em algumas dessas áreas, atribuídas às habilidades espaciais inatas. É possível, portanto, que os estudantes apresentem diferentes níveis de habilidades espaciais e que isso possa ter afetado os resultados desta pesquisa. Além disso, a nossa amostra foi consideravelmente pequena, possivelmente incapaz de demonstrar de forma fidedigna as diferenças nas estimativas de efeito das intervenções.

Em conclusão, a mesa anatômica virtual 3D melhorou o conhecimento de anatomia hepatobiliar para estudantes de medicina, em relação ao conhecimento prévio que eles tinham sobre essas estruturas. Na comparação transversal das avaliações pós-instrução, não houve diferença entre as duas intervenções. Além disso, a plataforma 3D teve um impacto positivo no nível de satisfação dos participantes do estudo. Este estudo mostra que a mesa anatômica virtual 3D tem potencial para melhorar a compreensão e o interesse dos estudantes de medicina pela anatomia. Recomenda-se, portanto, que futuros protocolos como este sejam realizados com amostras maiores e explorando outras estruturas anatômicas.

AGRADECIMENTO

Agradecemos à Milene Couras da Cruz a capacitação necessária à equipe de pesquisa, quanto ao uso da mesa anatômica 3D.

REFERENCES

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  13 Jan 2020
• Data do Fascículo
  2019

Histórico

• Recebido
  10 Mar 2019
• Aceito
  20 Maio 2019