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A Educação Médica e as Atuais Propostas de Mudança: Alguns Antecedentes Históricos

Medical Education and Current Proposals for Changes: some Historical Background

Resumo:

A retomada dos estudos e debates sobre a educação médica observada nos anos 90 é acompanhada pelo surgimento de novas propostas de mudança. A compreensão destas nem sempre é fácil. A recuperação de alguns elementos históricos do movimento internacional da educação médica, particularmente do latino-americano, visa contribuir para esta compreensão e para a implementação das mudanças necessárias.

Descritores:
Educação médica - tendências; Educação médica - história; Ensino; Curriculum

Abstract:

The resumption of studies and debates on medical education in the 1990s was accompanied by new proposals for change. Understand such proposals is not always easy. Reviewing key historical issues in the international medical education movement, particularly in Latin America, may help shed light on the issues and foster the necessary changes.

Descriptores:
Education, medical - trends; Education, medical - history; Teaching; Curriculum

INTRODUÇÃO

Durante os anos 90, observa-se uma retomada dos estudos e debates sobre a educação médica em nosso país. O surgimento de novas propostas de mudança enriquecem o cenário e passam a fazer parte dos temários das reuniões e congressos, mobilizando centenas de professores, alunos e dirigentes das escolas médicas.

Na verdade, esta não é uma realidade somente brasileira. Com graus variados de intensidade e abrangência, o mesmo acontece nos demais países latino-americanos e em outros continentes. Quais as relações existentes entre a educação médica brasileira e a dos demais países, em particular os mais próximos geograficamente?

A história da educação médica na América Latina poderia mostrar o papel exercido pelas ações empreendidas ao longo do tempo, em nível continental e regional, sobre o processo atual de produção de médicos e seu impacto sobre as escolas. Contudo, esta história não está escrita. Embora exista documentação de muitos dos eventos e processos ocorridos, esse material bibliográfico não está sistematicamente organizado e não vem sendo objeto de análises, permanecendo a lacuna história, já apontada por Andrade11. Andrade J. Marco conceitual de la Educación médica en la America Latina. Washington, OPS, 1979. (Série Desarrollo de Recursos Humanos, 28)..

Não se pretende, nestg artigo, preencher este importante vazio de conhecimento, mas a compreensão das propostas de mudança na educação médica existentes nos anos 90 só pode ser alcançada tomando como referência os marcos históricos das décadas precedentes. Os registros encontrados e as informações obtidas permitiram recuperar os acontecimentos mais importantes, identificar as principais iniciativas, os sujeitos e os atores mais relevantes envolvidos no desenvolvimento da educação médica na América latina na segunda metade deste século.

NOVAS BASES PARA A EDUCAÇÃO MÉDICA

Com o término da Segunda Guerra Mundial, produziu-se uma mudança no tipo de influência sobre a educação médica latino-americana. Antes da metade do século, as escolas de medicina da maioria dos países recebiam influência principalmente da Espanha, Portugal, França, Alemanha e Reino Unido. A partir de 1945, novas relações econômicas e culturais foram estabelecidas no mundo todo, e a influência européia decresceu, passando a haver um predomínio norte-americano também na educação médica.

As relações externas e também as relações sociais internas sofreram transformações importantes nos países da América Latina, fruto da adoção de políticas de substituição das importações no desenvolvimento capitalista hemisférico. Iniciaram-se os processos de industrialização, acelerou-se a migração rural-urbana, houve a expansão dos sistemas educacionais. No que diz respeito à saúde, consolidaram-se os sistemas de assistência médica e de previdência social. promulgaram-se leis que passaram a regular o exercício da medicina, expandiu-se a rede hospitalar, e os médicos começaram a organizar-se em associações.

Portanto, é num contexto de profundas transformações econômicos, sociais, culturais e políticas, de âmbito interno e externo, que novas bases para o desenvolvimento da educação médica latino-americana são lançadas a partir da metade do século.

Até meados dos anos 50, a transmissão dos modelos de Educação médica estrangeiros - no início europeus e posteriormente norte-americanos - realizava-se por meio da ida e vinda de missões especiais, constituídas por professores e dirigentes universitários. A partir de 1955, a influência passou a ser exercida por intermédio da participação de representantes dos organismos internacionais, destacadamente da OPS e de fundações norte-americanas, em reuniões nacionais e regionais.

No decorrer dos anos, esta forma de influência se institucionalizou com a criação de associações nacionais e internacionais. Além destas, segundo Ferreira22. Ferreira JR. Educação médica. Rio de Janeiro, junho e agosto de 1997. 9 fls. (Entrevista concedidas a Márcio José de Almeida)., nesse processo deve ser registrado “(...) o movimento, que teve uma influência ‘silenciosa’ importante, de afluxo de médicos residentes que foram se especializar nos Estados Unidos e estabeleceram os ‘links’ para a americanização e apropriação indiscriminada de tecnologias (...) a longo prazo este é um fator da maior transcendência para o desenvolvimento do medicina moderna na região e pode ser entendido como a verdadeira extensão de Flexner à América Latina”.

Na região, os primeiros eventos nacionais sobre Educação médica de que se tem registro foram realizados em Lima (Peru) e Cali (Colômbia), respectivamente em 1951 e 1955. Em 1953, em Londres, realizou-se a 1a Conferência Mundial de educação médica, promovida pela Federação Mundial de Educação Médica (WFME). Nos Estados Unidos, dois acontecimentos importantes ocorreram em 1952. Um deles, no âmbito da Associação Americana de Escolas de Medicina (AAMC), diz respeito à aprovação dos objetivos da educação médica no ensino de graduação, elaborados com base em um documento33. Association of American Medical Colleges. The objectives of undergraduate medical education, eight revision, 1953. J. med. educ. 1994; 28(3): 57-59. sobre requisitos mínimos para o credenciamento das escolas de medicina, aprovado em 1951, pela Associação Médica Americana (AMA).

O outro evento foi uma conferência sobre o Ensino da Medicina Preventiva, realizada em Colorado Springs, da qual participaram as escolas de medicina dos Estados Unidos e do Canadá44. Preventive Medicine in Medical School. Report of Colorado Springer Conference, November 1952. J. Med. Educ. 1953; 28(10): 3.. Nessa conferência, criticou-se a separação entre a medicina curativa e a preventiva, para a qual, segundo os participantes, havia contribuído a reforma da educação médica americana, realizada na primeira metade do século com base no Relatório Flexner. Além disso, foram lançadas as bases do ensino de uma “medicina integral”, visando a consolidar os departamentos de medicina preventiva que já existiam e a estimular sua criação nas demais escolas médicas.

Quanto aos eventos nacionais pioneiros antes citados, com relação ao de Cali há registro da discussão e adoção das recomendações aprovadas nas reuniões norte-americanas referidas: os objetivos da educação médica em nível de graduação, a organização das escolas em departamentos, a criação de departamentos de medicina preventiva., a coordenação horizontal e vertical do ensino nas diversas disciplinas, o aumento do número de professores com tempo integral e dedicação exclusiva, o estabelecimento de internato hospitalar de um ano de duração e a adoção de sistemas de seleção de candidatos a vagas nas escolas.

Convém recordar que, no período compreendido entre 1910 e 1930, as escolas médicas norte-americanas sofreram importante transformação em sua organização e em seu processo de ensino. As modificações tiveram por base o Relatório Flexner, cujo conteúdo e impacto na prática e na educação médica, nos Estados Unidos e na América Latina, foram objeto de análise por vários autores55. Mendes EV. A evolução histórica da prática médica: suas implicações no ensino, na pesquisa e na tecnologia médica. Belo Horizonte: PUC, 1984.),(66. Schraiber LB. Educação médica e capitalismo: um estudo das relações educação e prática médica na ordem social capitalista. São Paulo: Hucitec, 1989..

As principais conclusões/recomendações do relatório consistem na criação de departamentos, na compartimentalização do ensino das ciências básicas (criação do ciclo básico), no desenvolvimento da pesquisa no âmbito destas ciências; na criação de hospitais-escolas, para serem utilizados como principais campos de treinamento clínico. Nos Estados Unidos, as recomendações do Relatório foram adotadas praticamente por todas as escolas durante a Reforma das década de 10 e 20.

Somente na segunda metade dos anos 40 é que surge, na escola de Medicina da Universidade de Case Western Reserve (Cleveland, Ohio), a concepção de ensino integrado das ciências básicas, que, para alguns, representou um afastamento parcial dos postulados flexnerianos e acabou se disseminando, nas décadas de 50 e 60, entre outras escolas norte-americanas.

As escolas de Medicina de Cali, de Ribeirão Preto e de El Salvador foram criadas no início dos anos 50, com apoio das fundações Rockfeller e Kellogg, seguindo o modelo flexneriano, acrescido das recomendações da Conferência de Colorado Springs e das idéias e principias contidos nos documentos das entidades norte-americanas mencionados anteriormente77. Rodriguez MI. Educação médica. El Salvador, março e agosto de 1997a. (Cartas enviadas a Márcio José de Almeida)..

O seminário precursor d e Cali, realizado em 1955, contou com o co-patrocínio da OPS, cujos esforços na época, no campo da educação médica, estavam orientados principalmente ao desenvolvimento das disciplinas básicas e ao estimulo à introdução do ensino dos aspectos preventivos, sociais e à criação de departamentos de medicina preventiva nas escolas médicas latino-americanas. Com este propósito, dois importantes seminários internacionais foram promovidos pela OPS: um em Viña del Mar (Chile) em 1955, e outro em Tehuacán (México) em 1956, que resultaram na disseminação das propostas da OPS em praticamente todos os países.

Nos anos seguintes, a OPS instalou, com o importante apoio da então Escola Paulista de Medicina, a Biblioteca Regional de Medicina (Bireme) e, por meio do Programa de Desenvolvimento de Recursos Humanos em Saúde, promoveu iniciativas relevantes no campo editorial, tendo iniciado, nos anos 60, a publicação dos livros de texto (Programa Paltex) e da Revista Educación Média, y Salud.

Outra importante iniciativa da OPS foi estimular e apoiar a realização de estudos nacionais sobre recursos humanos em saúde e educação médica em países da região - Peru, Chile, Argentina e Colômbia -, que representaram o começo do enfoque de planejamento de recursos humanos na formação de pessoal de saúde88. Chaves MM. Saúde e sistemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1978..

Nesta área da pesquisa em educação médica, destaca-se o estudo realizado por Carcía99. García JC. La educación médica en la America Latina. Washington. OPS, 1972. (Publicación Cientifica, 255). em 1967-68, em 107 das 135 escolas latino-americanas existentes na época. Inicialmente desenhado para ser uma avaliação dos primeiros dez anos de ação dos departamentos de medicina preventiva nas escolas médicas da região, terminou por resultar na pesquisa sobre educação médica na América Latina mais abrangente e aprofundada realizada até hoje. O estudo tratou a educação médica em sua totalidade e adotou um enfoque teórico-metodológico que possibilitou estabelecer as relações entre a educação médica e a estrutura social, no contexto da transformação histórica do processo de produção econômica.

Nesse trabalho, García situa pontos cruciais da educação médica. Referem-se eles, de um lado, ao caráter essencialmente “escolar” da produção de médicos e, de outro, às relações entre a produção de serviços e os objetivos que as escolas médicas se propõem. No primeiro, aponta-se a dissociação entre ensino e trabalho e, no segundo, ressalta-se a dualidade da escola médica, que enfrenta a problemática de ser inovadora, em consequência da sua “proximidade” corno desenvolvimento social e político-cultural, ao mesmo tempo em que é pressionada para se manter conservadora frente aos interesses e exigências do mercado de trabalho médico, do qual parcela significativa de seus professores faz parte.

Esse estudo e os demais trabalhos de García reunidos por Nunes1010. Juan Cesar García: pensamento social em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Cortez/ABRASCO, 1989., representam o início da construção do marco conceitual da educação médica na América Latina, processo contínuo que perdura até os dias de hoje.

FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO MÉDICA NA AMÉRICA LATINA

Em 1957, sob os auspícias da União das Universidades da América latina (Udual), realizou-se no México a 1a Conferência das Faculdades Latino-Americanas de Medicina. Nesta, aprovou-se a recomendação de estímulo à criação de Associações Nacionais de Escolas Médicas e o estabelecimento de intercâmbios entre elas.

Na 2a Conferência, realizada em 1960 em Montevidéu (Uruguai), aprovou-se uma recomendação favorável ao estabelecimento de uma Federação de Associações de Escolas de Medicina, Antes da 3a Conferência, um grupo de diretores de escolas foi convidado a participar da 72a Reunião Anual da Associação Americana de Escolas Médicas, realizada em 1961, em Montreal. Nessa ocasião, foi designado um comité organizador do projeto de uma federação pan-americana.

Durante a 3a Conferência de Faculdades Latino-Americanas de Medicina, realizada em Viña del Mar, em 1962, os estatutos foram aprovados e foi eleita uma diretoria provisória da Federação Pan-Americana de Associações de Faculdades (Escolas) de Medicina (Fepafem). A Reunião Especial dos Decanos e Presidentes de delegações que fundou a Fepafem contou com 103 participantes, que representavam 75% das escolas latino-americanas e a totalidade das norte-americanas, além de 25 observadores e convidados especiais de organizações internacionais (OPS, Fundação Rockfeller, Fundação Kellogg, Milbank Memorial Fund, Instituto Nacional de Saúde dos EUA).

Nos primeiros anos da década de 60 e após o exemplo pioneiro da Colômbia, que criou sua Associação Colombiana de Faculdades de Medicina (Ascofame) em 1959, foram criadas as Associações do México (Amfem) e da Argentina (Afacimera), seguidas pelas do Brasil (Abem) e Chile (Asofamech).

Todas essas entidades foram criadas sob a influência do primeiro diretor executivo da Fepafem - o professor Ernani Braga, ex-funcionário da Fundação Rockfeller - e contaram com recursos, canalizados via federação, provenientes do Milbank, Rockfeller, Kellogg e outros organizações, para custear as despesas de manutenção e salário dos diretores executivos em seus anos iniciais. Em 1967, além da associação norte-americana (88 escolas), criada em 1876, e da associação canadense (12 escolas), existiam nove associações nacionais ou sub-regionais latino-americanas, que agrupavam 99 escolas de um total de 1071111. Braga E. Editorial. Educ. Méd. Salud. 1967; 1(3): 173-175..

A instalação e a eleição da primeira diretoria regular da Fepafem ocorreram em 1964, em Poços de Caldas, durante a 4a Conferência Latino-Americana de Educação Médica, em evento paralelo ao 2° Congresso Brasileiro de Educação Médica. Registre-se que, no período 1962-66, a sede e a secretaria da Fepafem se situavam no Rio de Janeiro, inicialmente em dependências da representação da OPS e, logo em seguida, junto à Escola Nacional de Saúde Pública, compartilhando com a Abem a mesma infra-estrutura física e de pessoal.

Para o desenvolvimento de suas atividades até 1966, a Fepafem obteve o apoio de várias agências internacionais, principalmente da Usaid, do Projeto Hope, das fundações Rockfeller, Kellogg e Milbank, da OPS, do BID e da Common Wealth Foundation.

Em 1966, a Fepafem iniciou a convocação de conferências bianuais de educação médica de caráter pan-americano, e a Udual continuou patrocinando conferências, também bianuais, de caráter latino-americano.

Somente após muito tempo e várias conferências realizadas pela Udual, é que os participantes da 12a Conferência, realizada em Honduras, aprovaram a criação de uma entidade. Na 13a Conferência realizada na Nicarágua em 1984, durante a vigência do governo sandinista, foi eleita a primeira diretoria da Associação Latino-Americana de Faculdades e Escolas de Medicina (Alafem).

Identifica-se, portanto, a formação e desenvolvimento de um movimento de educação médica na América Latina composto por, pelo menos, duas grandes correntes e que, desde seu início, caracteriza-se por ser polêmico e conflituoso. Os processos de criação e de desenvolvimento das ações da Fepafem foram, até recentemente, alvo de polêmicas e de suspeição sobre sua condição de entidade manipuladora e manipulada por certos setores da sociedade e do governo norte-americano, em aliança com alguns líderes latino-americanos da educação médica, em defesa de interesses e políticas neocolonialistas. Em contrapartida, sempre houve referências veladas à Alafem como instrumento da política externa cubana.

As mesmas posições políticas existentes nas esferas dirigentes da Fepafem e da Alafem também ocorriam no nível das escolas, evidentemente com variados graus de conflito. No período 1983-87, de criação e estruturação da Alafem, são mais altissonantes as expressões das divergências, que se manifestam nos temários de suas conferências e em declarações do tipo: “(...) las universidades de América Latina debían unirse, coordinary actuar enforma conjunta (...) para hacer frente a la penetración y dominación cultural dei imperialismo de Estados Unidos de Norteamerica (...) con la excepción de la experiencia solidaria de Cuba (...) la cooperación que hasta ahora ha existido, ha obedecido a los intereses de los estados capitalistas dependentes y de la metrópoli imperalista, y no a las verdadeiras necesidades de las universidades y de la población latino-americanas1212. Udual. I Reunión del Consejo Directivo de ALAFEM realizada em Santiago em 29 e 30 de outubro de 1984. Universidades. 1984; 98: 250-253..

Como se verá mais adiante, ao se analisarem alguns dos acontecimentos da década de 80, as várias iniciativas tiveram, invariavelmente, conotações político-ideológicas, apesar de existirem também decisões decorrentes de divergências teórico-metodológicas e de desencontros pessoais entre líderes do movimento. Ou seja, nada mais do que a manifestação, no âmbito internacional, de divergências e conflitos que existiam nos âmbitos nacionais e no nível de cada escola médica.

Todos esses cenários são arenas de lutas políticas decorrentes de contradições nas práticas médicas e na educação médica, baseadas em distintas concepções de sociedade, de políticas sociais, de políticas de saúde e de educação médica.

A EDUCAÇÃO MÉDICA LATINO-AMERICANA NOS ANOS 70/80 E O MOVIMENTO MUNDIAL DE EDUCAÇÃO MÉDICA NO FINAL DOS ANOS 80

O 2o Plano Decenal de Saúde das Américas, aprovado em 1972 pelos ministros da Saúde, identificou os recursos humanos como elementos fundamentais à atenção médica integral e dedicou muitas de suas recomendações à prática e à educação médica. Ressaltou que estas devem tratar a saúde como função biológica e social, serem multidisciplinares e estabelecerem relações dos organismos de saúde pública e privados com as universidades, por meio da regionalização docente­assistencial, da medicina de comunidade e da participação precoce do estudante nos serviços1313. OPS/OMS. Reunión Especial de Ministros de Salud de las Américas (Santiago de Chile, 2 - 9 de octobre de 1972). Informe Final. Plan Decenal de Salud. Washington, Doc. Oficial. 1973; 118..

Em consequência do crescimento econômico, do desenvolvimento das áreas sociais e da maior demanda do mercado de trabalho, em muitos países da região ocorreu o aumento acelerado do número de escolas médicas, principalmente no final dos anos 60 e início dos 70, cuja intensidade decresceu no decorrer da década de 80.

Em reuniões internacionais, foram considerados obsoletos muitos dos critérios estabelecidos até então como requisitos mínimos para o funcionamento das escolas, e em substituição àqueles se preconizou um modelo prospectivo, destacando-se os seguintes aspectos: o ponto de partida para o processo formativo reside no processo de atenção à saúde; deve haver a superação das dicotomias teoria/prática, básico/clínico e preventivo/curativo; precisam existir a integração multidisciplinar e a inserção do processo de ensino em toda a rede de serviços. Neste sentido, foi apontado que “entre las estrategias que llevan a transformaciones reales se pueden mencionar la integración docente-assistencial, que involucra una amplia participación de organismos responsables de la prestación de servicios, así como una apropiada distribución de las actividades educativas en todos los niveles de atención y no solo en el hospital especializado”.1414. Informe final del grupo de trabajo sobre requisitos mínimos para la creación de Escuelas de Medicina. Educ. Méd. Salud . 1979; 13(3): 274-286.

A estratégia de Integração Docente-Assistencial (IDA), conforme assinalam vários autores1515. Rodriguez MI. Notas de: “comentarios a la presentación del Prof. Cosme Ordónez: Integración de los Servicios de Salud, la Docencia y la Investigación Orientada a la Comunidad. Washington. 1983; 10p. mimeo.)-(1818. Marsiglia RG. Relação ensino/serviços: dez anos de integração docente-assistencial IDA no Brasil. São Paulo: Hucitec , 1995., apareceu durante os anos 70 como proposta substitua aos “laboratórios de comunidade” referidos a pequenos grupos populacionais, utilizados pela maioria dos departamentos de medicina preventiva como áreas de demonstração.

A IDA surgiu corno proposta alternativa, visando à inter-relação entre todos os setores da escola médica e parcela significativa dos serviços de saúde, num contexto regionalizado, com todos os níveis de atenção. Vários foram os projetos que buscavam superar o efeito demonstrativo dos “laboratórios de comunidade” e envolver a escola como um todo.

A temática sobre “integração docente-assistencial” e as relações entre instituições educativas e de serviços foi reiteradamente discutida nos anos 70 e 80. Constituiu uma das tendências da área de formação de recursos humanos na América Latina e foi levada em conta como critério essencial no planejamento de muitas mudanças educacionais, tendo apresentado enormes variações: desde a simples utilização dos serviços como espaços de prática, até tentativas de reorganização do processo educativo ao redor de um novo modelo de organização dos serviços.

Por outro lado, nesse período, além do trabalho de García já mencionado, realizaram-se importantes estudos sobre as propostas de medicina integral, desenvolvidas pelo movimento preventivista e de medicina comunitária1919. Arouca ASS. O dilema preventista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. [dissertação] Campinas, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, 1975.),(2020. Donnagelo MC. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira, 1975..

Por meio da análise dos conteúdos propositivos e dos processos desenvolvidos, foi possível identificar essas iniciativas como movimentos racionalizadores de reforma da educação médica, com potencial para introduzir modificações parciais, mantendo o essencial dos modelos hegemónicos de formação e de prática. A proposta de uma medicina integral permaneceu no âmbito da retórica, o que indicava a força de seus limites transformadores no contexto latino-americano, levando Arouca a definir a situação como própria de um “dilema preventivista”.

A proposta da medicina comunitária, surgida pouco depois do início do movimento preventivista, também se originou nos Estados Unidos, visando a reduzir tensões sociais em áreas marginalizadas das principais cidades do país. Com ela se recuperava parte do conteúdo do movimento preventivista, particularmente a ênfase nas ciências da conduta (Sociologia, Antropologia, Psicologia), destinadas “a possibilitar a integração das equipes de saúde nas comunidades ‘problemáticas’, através da identificação e cooptação dos agentes e forças sociais locais para os programas de educação em saúde (...) deixando mais uma vez intocado o mandato social da assistência médica convencional2121. Almeida Filho N, Paim JS. A saúde coletiva e a nova saúde pública: novo paradigma ou velha retórica? Salvador. 1997. (Texto para discussão, comissionado pela OPS)..

Com o endosso da OPS e o apoio de fundações norte-americanas, programas de saúde comunitária foram implantados, principalmente no Brasil, Colômbia e Chile, na expectativa de que seu efeito, demonstração pudesse influenciar positivamente o desenho de novos sistemas de saúde. Mas, segundo os autores referidos, os programas/projetos corriam o risco de contribuir para inaugurar modelos simplificados, baratos e de precária qualidade para segmentos marginalizados da população.

No caso especifico do Brasil, nos anos 70, foi constituída uma Comissão de Especialistas do Ensino Médico no âmbito do Ministério da Educação. Ao mesmo tempo, segmentos renovadores da educação inédita participaram da construção das bases de um novo movimento sanitário.

Esses segmentos contribuíram com o trabalho teórico para a crítica ao sistema de saúde e para a formulação de propostas com vistas a sua reorganização. Apoiaram e participaram das experiências pioneiras de extensão de cobertura e participação comunitária na (re)organização de sistemas descentralizados e hierarquizados de saúde no nível municipal (Londrina, Campinas, Niterói), microrregional (Montes Claros), estadual (Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo) e macrorregional (Plano de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento - Piass, no Nordeste). Além disso, participaram da construção de entidades como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1976, e Associação Brasileia de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), em 1979, que desempenharam importante papel na mobilização nacional em torno da saúde nos anos 70 e principalmente nos anos 80.

No âmbito internacional, registrou-se ainda, no final da década de 70, o lançamento pela OMS da consigna Saúde para Todos no Ano 2000 (SPT-2000) - aprovada na Assembléia Mundial da Saúde de1977 - e o estabelecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) - aprovada na Conferência Internacional de Alma-Ata - como estratégia privilegiada de operacionalização das meros de extensão de cobertura e participação comunitária da SPT-2000. Mais tarde, nos anos 60, com o enfoque de um modelo distritalizado com níveis hierarquizados de atenção, a proposta dos Sistemas Locais de Saúde (Silos) integrou-se às iniciativas de reforma setorial da saúde no Brasil e em alguns outros países latino-americanos.

Em 1979, realizou-se em Kingston (Jamaica) uma reunião, promovida pela OMS e pela OPS, que congregou os dirigentes de aproximadamente vinte escolas médicas consideradas inovadoras, a maioria localizada em países desenvolvidos, e que resultou na criação da Network of Community-Oriented Educational Institutions for Health Sciences (Network).

Esta “rede” privilegia, em sua proposta de mudança na educação dos profissionais de, saúde, a construção de modelos de saúde orientados à comunidade (community-oriented) e a adoção da metodologia de aprendizagem baseada em problemas (problem-based learning - PBL).

Outros importantes estudos, acontecimentos e processos se destacam no período: a) estudos de avaliação da proposta IDA, com ênfase para o realizado pela Fepafem/OPS/Kellogg; b) aplicação de uma nova proposta, desenvolvida pela OPS, denominada Análise Prospectiva das Profissões de Saúde: c) convocação , pela Udual, de uma Conferência Integrada de Ciências da Saúde e realização de debates preparatórios pela Alafem e outras entidades, com apoio da OPS: d) convocação e realização, em 1988, da 1a Conferência Mundial de Edimburgo, precedida de estudos preparatórios realizados pela Fepafem, com apoio da Fundação Kellogg.

As contribuições de Kisil2222. Kisil, M. A comparative assessment of the ATS projects in Litin America and their Impact on the health sector. [Thesis] Washington, George Washington University, 1985. e Chaves et al.2323. Chaves MM. et al. Cambias En La Educación Médica, analisis de la IDA en America Latina Caracas: FEPAFEM, 1984. 161p. (Publicación, 3). têm por base, essencialmente, as mesmas experiências (33 projetos em oito países), distinguindo-se o primeiro por suas características mais acadêmicas. Das análises conclusivas de ambos, extrai-se que a IDA apresenta fortalezas: revela-se uma forma efetiva de racionalizar o uso de recursos; contribui para a formação de uma massa crítica de líderes nos setores de educação e de saúde; propicia o desenvolvimento do trabalho em equipe; contribui para desmistificar a exclusividade da atenção hospitalar. Algumas debilidades da proposta são, por ser inovadora, é desestabilizadora, sendo elevado o risco de rechaço por parte das estruturas tradicionais; sua dependência de líderes carismáticos; probabilidade de ser encarada como atividade, marginal, pois envolve na maior parte da experiências, apenas certos setores da escola médica, geralmente os departamentos de preventiva; o fato de ser excessivamente acadêmica; o de apresentar desenvolvimento insuficiente de novos modelos de práticas; dependência de recursos externos; ausência ou precariedade de processos de auto-avaliação.

Pouco antes do trabalho de campo do estudo de avaliação da IDA, a OPS desenvolveu a concepção e os instrumentos de outra proposta de mudança na educação médica e dos demais profissionais de saúde, denominada Análise Prospectiva2424. Ferreira JR. Análises prospectiva de la educación médica. Educ. méd. salud. 1986; 20(1): 26-42..

Essa proposta considera que a visão predominante quanto à qualidade da educação médica está vinculada ao grau de competência dos profissionais no desempenho de suas atividades junto ao mercado de trabalho existente. E que esta visão, por estar referida a uma situação momentânea, é limitada e limitante, não levando em conta as mudanças que, de forma permanente, se realizam em todas as esferas da realidade. A proposta pretende superar essas limitações em benefício de uma nova visão, referida a um marco conceitual que considere, prospectivamente, o contexto socioeconómico e político, o desenvolvimento técnico-científico, a situação de saúde os padrões profissionais, a estrutura e as normas de funcionamento dos serviços de saúde.

Durante o mesmo período de aplicação da Análise Prospectiva, houve no continente urna sucessão de debates em torno da convocação da 1a Conferência Mundial de Educação Médica, realizada em 1968, em Edimburgo. A conferência, convocada em 1985 pela Federação Mundial de Educação Médica, considerava que sem o apoio ativo dos médicos é inconcebível realizar as mudanças nos sistemas de saúde preconizados pela estratégia da APS e que o problema central das instituições formadoras e dos educadores médicos é como preparar os médicos para o papel que desempenharão em sistemas de saúde em transformação2525. Conferência Mundial de Educação Médica: seis temas principais para as reuniões nacionais. Rev. bras. educ. méd. 1986; 10(3): 157-169..

O problema acima apresentado foi desdobrado pela Comissão de Planejamento da Conferência em seis temas: 1) prioridades educacionais para escolas médicas; 2) estratégias educacionais para escolas médicas; 3) integração da escola médica com o sistema de atenção à saúde; 4) recursos para a educação médica: físicos, financeiros e humanos; 5) ingresso no curso médico e necessidades dos países; 6) relações entre ensino de graduação, de pós-graduação e educação continuada.

Para encaminhar as discussões preparatórias à conferência de 1988, a Fepafem decidiu criar o projeto “Educação Médica nas Américas” (EMA) A participação de 18 dos países americanos foi decidida na XI Conferência Pan-Americana de Educação Médica, realizada no México em 1986, por proposição da Abem, que já havia discutido os tópicos do programa da conferência por ocasião de seu XXIV Congresso.

Nas palavras de Chaves e Rosa2626. Chaves MM, Rosa AR. Educação médica nas Américas: o desafio dos anos 90. São Paulo: Cortez, 1990, “(...) o EMA representou um verdadeiro corte transversal na educação médica ao final da década de 80, traduzindo talvez o mais amplo consenso de que se dispõe hoje, nas Américas, para um amplo esforço de melhoria da qualidade dessa educação (...)”.

A conferência foi finalizada com a aprovação de um documento, a Declaração de Edimburgo, que, segundo os coordenadores do EMA, incorporou as contribuições da América Latina por não existirem divergências ou diferenças significativas entre seus conteúdos.

Por outro lado, as atividades desenvolvidas pelas entidades criadas (Alafem, Ofedo, Aladefe) na primeira metade da década de 80 levaram à convocação, em 1986, pela Udual, com o apoio técnico-financeiro decisivo da OPS, de uma Conferência Integrada das Ciências da Saúde. Esta, como parte de um projeto denominado “Saludual”, teve os seguintes objetivos: “a) inserir o potencial da Universidade Latino-Americana na meta social SPT 2000 através da estratégia da APS; b) contribuir ao trabalho conjunto das Associações de Ciências da Saúde da Udual, aumentando sua capacidade técnico-científica em função da saúde da população; c) cooperar com a OPS/OMS e os países no fortalecimento e desenvolvimento dos Silos para avançar na transformação dos Sistemas Nacionais de Saúde”.

Verifica-se, portanto, que durante os anos 70/80 as propostas e experiências oriundas do preventivismo, da medicina comunitária, da medicina geral e/ou de família, da integração docente-assistencial e outras foram objeto de análises e reflexões. Numa crítica apreciação a respeito, durante o XXVIII Congresso Brasileiro de Educação Médica, em Cuiabá, 1990, Ferreira considerou:

“O fato é que o continente se debruçou sobre reformas curriculares que, em geral, funcionaram como tampão, ou como diversionistas dos problemas essenciais da educação médica (...) enquanto a periferia fazia seu barulhento piquenique curricular, promovendo ambulatórios integrais, ensino na rede, internato rural, o banquete estava sendo desfrutado dentro da rede hospitalar (...) o resultado não podia ser outro senão o baixíssimo impacto de todos esses movimentos sobre a essência da educação médica.2727. Ferreira JR. Pesquisa em educação médica [Washington], 1990 10p. mimeo.

Na linha de pensamento inaugurada por Juan César García, Ferreira considera que os movimentos de mudança da educação médica desenvolvidos no período não levaram em conta a contradição estrutural da educação médica, “que consiste na irreprodutibilidade social das práticas hegemônicas dos docentes de medicina que, no caso concreto da educação médica latino-americana, continua sendo o da prática médica liberal (...). Assim, o eixo da educação médica cumpre sua missão, que é a de amoldar o estudante à ideologia e às práticas socialmente mais valorizadas, das quais os professores de medicina são os principais protagonistas”. O grande “nó da questão” é que, enquanto os docentes são os profissionais de sucesso ou almejam sê-lo num seleto mercado e, portanto, reproduzem valores que conhecem, as perspectivas do mercado de trabalho para os futuros profissionais o outras.

Segundo Rodriguez2828. Rodriguez, M.I. Tendências de la educación médica en América Litina en los ullimos quince años: las profesiones en México. Medicina Méx. 1990; (3)., as principais tendências de reorientação da educação médica na América Latina nos anos 70 e 80 foram: a) redefinição do objeto de estudo, representada pela substituição de práticas educativas organizadas em torno de um corpo de conhecimentos centrados nos objetivos de cada uma das disciplinas (doença, atendimento individual e predominantemente curativo), por processos formados em tomo de conhecimentos referidos à saúde da população, nos marcos de uma concepção de processo saúde-doença; b) desenvolvimento de enfoques interdisciplinares; c) desenvolvimento da integração docente-assistencial, concebida como um verdadeiro processo de serviço à comunidade, no qual as ações de saúde devem ser vistas como objetos de pesquisa, geradoras de novos conhecimentos e de novas práticas de atenção, d) incorporação e reconceitualização das ciências sociais nos processos educacionais, ainda predominantemente complementar e fragmentada na maioria das escolas, mas cuja superação é apontada pelo desenvolvimento da medicina social; e) inserção da universidade, de forma crítica, nos processos de transformação dos sistemas de saúde.

Enfim, as décadas de 70/80 foram repletas de acontecimentos e de processos no terreno da educação médica, nos campos teórico e prático, em âmbito tanto nacional como internacional. E prepararam o terreno para o desenvolvimento, nos anos 90, de novas propostas de mudança da educação médica latino-americana.

ANOS 90: ACONTECIMENTOS RELEVANTES E SURGIMENTO DE NOVAS PROPOSTAS DE MUDANÇA

Nesta década, os acontecimentos relevantes na educação médica latino-americana são: em 1991, a coordenação do Programa para a América Latina e o Caribe, da Fundação Kellogg, comunicou e convidou as instituições universitárias da área da saúde detentoras, no mínimo, de cursos de graduação de medicina e de enfermagem a participar de “Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde: União com a Comunidade”, referida mais comumente pela sigla UNI2929. Kisil M, Chaves MM. Programa UNI: Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde Battle Creek : Fundação W. K. Kellogg, 1994. 125p.. Nesse mesmo ano, realizou-se em Havana a etapa final da Conferência Integrada “Universidade Latino-Americana y Salud de la Población”.

Em 1992, a OPS difundiu, por meio das Associações Nacionais de Educação Médica e da Fepafem, um documento de referência com o título “As mudanças na profissão médica e sua influência sobre a educação médica”3030. OPS. As transformações da profissão médica e sua influência sobre a educação médica. Rev. bras. educ. méd . 1992; 16(1/3): 48-52., especialmente elaborado para as discussões preparatórias da 2a Conferência Mundial de Educação Médica.

Em 1993, realizou-se a 2a Conferência Mundial de Educação Médica, em Edimburgo, e a 8ª Reunião Bianual da Network, em Sherbrook (Canadá). Em Edimburgo, a OMS apresentou a proposta “Changing medical education and practice: an agenda for action”3131. Boelen C. Interlinking medical practice and medical education: prospects for international action. Med. Educ. 1994; 28(suppl 1): 82-85., e com a reunião de Sherbrook a proposta da Network3232. Bouhuijs PAJ, Schmidt HG, Van Berkel HJM. (ed) Problem-based learning as an educational strategy. Maastricht, 1993. passou a ter maior visibilidade no Brasil e demais países da América Latina.

Ainda em1993, em Cartagena (Colômbia), realizou-se a Conferência Andina sobre Educação Médica, promovida pela Ascofame e pela OPS. Esta, a exemplo de reuniões ocorridas no Brasil, México, Cuba e Peru, se inseriu no processo de aprofundamento das discussões preparatórias do Encontro Continental de Educação Médica, promoção conjunta da Fepafem e da Alafem, realizado em Punta del Este, em 1994. Nesse encontro, foi apresentada a proposta “Gestão de Qualidade na Educação Médica”3333. OPS. Uma proposta de gestão de qualidade em educação médica. In: Santana J P, Almeida MJ. Contribuições para a gestão de qualidade em educação médica. Brasília, 1994. (Série Desenvolvimento de Recursos Humanos, 7)., que, conforme aponta Gallo3434. Gallo E. Inovação, planejamento estratégico e gestão de qualidade nas escolas médicas brasileiras. Cad. FUNDAP. 1996; (19)., guarda algumas semelhanças com o Projeto Cinaem.

Alguns dos acontecimentos mencionados fazem parte ou se relacionam estreitamente com uma ou mais das quatro propostas de mudança referidas. Dois eventos têm papel destacado: a “Conferência Integrada Universidade Latino-Americana e a Saúde da População” e a 2a Conferência Mundial de Educação Médica”.

A Conferência integrada “Universidade Latino-Americana y la Salud de la Población”, que contou com centenas de participantes provenientes de 23 países latino-americanos, teve forte caráter multiprofissional e interdisciplinar, representando o momento de sistematização e aprofundamento dos estudos e análises produzidos na etapa preparatória (1988-91).

Em 1991, tendo por base a 15a Conferência Latino-Americana de Faculdades e Escolas de Medicina, promovida pela Alafem, realizou-se a etapa final desta Conferência Integrada, em Havana, Cuba.

De seu relatório geral, embasado numa análise crítica do contexto socioeconómico e político da região, destacam-se os seguintes trechos:

“La comunidad debe ser objeto y sujeto de la acción de la Universidad, esto es, debe ser protagonista, participante y destinataria de las atividades universitárias; llevar adelante uma consecuente incorporación de lo social en el abordaje teórico y práctico de los problemas de salud implica avanzar en la búsqueda de la integralidad del conocimiento biológico y social para implementar metodológica y estratégicamente la atención de los problemas de salud; articulación docencia, servicio e investigación, fundamentada en el principio de aprender haciendo y aprender transformando en las condiciones reales de los servicios. En este proceso la investigación será el eje orientador de cambio y transformación de la realidad; actitud de autocrítica permanente de la Universidad en el cumplimiento de su misión, frente a su trabajo conceptual, metodológico y operativo”.3535. Conferencia Integrada Universidade Latinoamericana y Salud de la Población, 3-7 junio 1991, La Habana, 1991. Memórias. La Habana: UDUAL,1992. 372p.

A conferência foi, sem dúvida, um processo importante de (re)afirmação ideológica e aprofundamento teórico-conceitual das questões vigentes na América Latina no contexto do amplo temário tratado. Mas, decorridos oito anos de sua realização, não se tem conhecimento de avaliações acerca do significado desse evento latino-americano no contexto do setor saúde, particularmente da educação médica, nos países da região.

Não há sinais de que os objetivos mencionados anteriormente, do projeto Saludual, tenham sido alcançados. No caso particular da Alafem, sua fragilidade atual pode ser vista como sinal de que o “aumento da sua capacidade cientifico-técnica”, propiciado pelo processo de realização da conferência integrada, não foi suficiente para imprimir maior inserção e dinamismo de sua intervenção junto às escolas médicas. Mas sua maior visibilidade política, ainda que transitória, foi suficiente para estabelecer, no decorrer dos anos seguintes, uma ação colaborativa com a Fepafem. A aproximação entre Alafem e Fepafem ocorreu no contexto da realização da 2a Conferência Mundial de Educação Médica.

Esta realizou-se em Edimburgo (Escócia) em 1993 e contou com 240 participantes. Provenientes de 80 países, 42 deles (17%) pertenciam à região das Américas, constituindo, dentre as seis regiões da OMS e da WFME, a delegação mais numerosa. Dentre os 42, havia 21 latino-americanos, na maioria diretores de escolas médicas, convidados e financiados pela OPS/Fepafem e pela Fundação Kellogg.

A conferência, organizada e coordenada pela WFME, contou com o apoio da OMS/OPS, do Unicef, da Unesco, do Programa de Desenvo1vimento das Nações Unidas, do Banco Mundial, da Fundação Kellogg, da Fundação Robert Wood Johnson e de várias outras organizações do Reino Unido. Seu tema central foi “A mudança na profissão médica, implicações para a educação médica”.

Esse documento aborda os temas da conferência, a) a crise econômica; b) o desenvolvimento tecnológico; c) a necessidade da equidade. Nele, a prática e a educação médica são abordadas como realidades sociais, intimamente relacionadas com os processos de desenvolvimento. É em função da organização e dinâmica do Estado, da economia, do desenvolvimento cientifico, tecnológico e das necessidades sociais que a prática médica é estruturada ou modificada. Por sua vez, estes mesmos condicionantes, seja diretamente ou por meio da prática profissional, orientam e moldam os conteúdos, as estratégias e os mecanismos do processo da formação médica.

São feitas críticas ao Projeto EMA e à 1a Conferência realizada em Edimburgo, segundo as quais, neles, a análise foi centrada nas dimensões educacionais (curriculares) da prática universitária, nas implicações individuais da prática profissional e na extensão dos espaços institucionais de formação, e suas conclusões significavam, essencialmente, linhas para uma maior eficiência educacional no marco de um modelo educativo não questionado.

A situação institucional da educação médica na América Latina é caracterizada como crítica, orientada basicamente à busca de inovações educativas e de recursos financeiros, preocupações que respondem mais às necessidades de funcionamento e requerimentos corporativos internos das escolas, que às efetivas necessidades de seu entorno social, Ressalta-se que as escolas vêm revelando uma crise de liderança e de governabilidade, de baixa capacidade de planejamento e de gestão administrativa, além de falta de autocrítica sobre a própria educação médica, restringindo-se a eventuais e superficiais reformas curriculares.

Nesse documento a OPS e a Fepafem tecem críticas ao modelo de integração docente-assistencial, com a ressalva de que, na América Latina, em muitos casos, encontram-se experiências que caracterizam um compromisso global da universidade com os serviços e com a população.

A “aprendizagem baseada em problemas” e o “ensino orientado à comunidade” são vistos como abordagens mais integradoras que as tradicionais, mas insuficientes e sujeitas a distorções, pois “(...) o ensino orientado à comunidade não pode significar uma medicina diferenciada, de médicos pobres para populações pobres (...) nem substituir um imprescindível arsenal cientifico, teórico e metodológico, necessário para permitir que os estudantes conheçam as realidades sociossanitárias, pelo mero contato com a comunidade, como se este, por si só, tivesse o poder de revelar a dinâmica social”3030. OPS. As transformações da profissão médica e sua influência sobre a educação médica. Rev. bras. educ. méd . 1992; 16(1/3): 48-52.. Quanto à aprendizagem baseada em problemas, é ressaltado que esta não pode se restringir às manifestações superficiais de fenômenos isolados, mas devem, necessariamente, aprofundar as explicações dos problemas de saúde, discutindo-os em sua integralidade, o que requer a incorporação e fortalecimento das ciências básicas e sociais.

Em suas conclusões, o documento de posicionamento das Américas, de autoria da OPS e Fepafem, registra que:

  1. é preciso gerar um novo modelo cientifico, biomédico e social que projete e fundamente um novo paradigma educativo, em função do indivíduo e da sociedade;

  2. há necessidade de um novo sistema de valores, que transcenda a influência da mudança da prática, reconstrua a ética do exercício profissional e garanta a função social do atendimento às necessidades da saúde da população;

  3. há vantagens no desenvolvimento de trabalho interdisciplinar e de metodologias problematizadoras;

  4. é fundamental que o desenvolvimento da integração docência-assistência-pesquisa tome a estratégia da APS como objeto de pesquisa e aprendizagem, e verifique o compromisso da universidade com a sociedade, afastando-se da utilização dos espaços comunitários como campos de prática unicamente;

  5. a superação da contradição entre formação de especialistas e médicos gerais exige que a educação médica enfrente criticamente a determinação tecnológica do critério médico de qualidade, que envolve tanto a ética profissional como a eqüidade. E nesse sentido que se dão as possibilidades de resolver este velho dilema da educação médica. É necessário continuar a formar melhores especialistas e, ao mesmo tempo, resgatar e fortalecer a formação geral na graduação, colocando-os adequadamente nas equipes de saúde, promovendo igualmente suas funções e reconhecimento sociais.

Nesse documento, a OPS e a Fepafem convocam as escolas de medicina a assumirem um novo contrato social, que legitime sua razão de ser perante a sociedade, e a se comprometerem a levar adiante, com a contribuição esperada dos debates da 2a Conferência de Edimburgo, um intenso processo que permita construir novas relações entre a universidade, os serviços de saúde e a sociedade.

A conferência, em suas conclusões, além de reafirmar os princípios norteadores de urna preconizada “Reforma da Educação Médica”, contidos na “Declaração de Edimburgo”, de 1988, aprovou várias recomendações no sentido de superar os obstáculos, devido ao conservadorismo da profissão médica e da universidade e às complexidades da mudança necessária. Com o intuito de contribuir para o avanço das mudanças, foram aprovadas 22 recomendações, agrupadas em cinco temas: Prática Médica e Política de Saúde; Resposta Educacional; Continuum da Educação Médica; Parcerias na Aprendizagem e Cenários para a Aprendizagem.

Estes dois importantes cento processos internacionais no campo da educação médica - o de Havana, em 1991, e o de Edimburgo, em 1993 - serviram para acumular conhecimentos e recursos de poder por parte de atores do movimento latino-americano de educação médica. Trata-se de acontecimentos que possibilitaram a construção e/ou divulgação das propostas de mudança, que fazem parte, nem sempre de forma explicita e/ou consciente para muitos, das disputas no movimento brasileiro de educação médica. Creio que os elementos históricos recuperados e aqui registrados podem ajudar na compreensão das propostas e seus encaminhamentos teórico-práticos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2001

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 1999
  • Aceito
    29 Maio 2001
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