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Ensino à beira do leito: relembrar para inovar

Teaching at the bedside: a call for innovation

CARTA AO EDITOR

Ensino à beira do leito: relembrar para inovar

Teaching at the bedside: a call for innovation

Adson Freitas de LucenaI; Rachel Vasconcelos TibúrcioI; Jonathas de Aguiar CavalcanteI

IUniversidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Adson Freitas de Lucena Rua 7 de Setembro, 32 Campo dos Velhos Sobral CEP. 62030-160 CE E-mail: adsonbr@gmail.com

Palavras-chave: Ensino; Educação de graduação em Medicina; Escolas médicas

Key words: Teaching; Education, medical, undergraduate; Schools, medical

Senhor editor,

No primeiro volume da Revista Brasileira de Educação Médica, em 2008, Maria Mônica Freitas Ribeiro e Carlos Faria Santos Amaral publicaram uma pesquisa singular sobre a medicina centrada no paciente e a importância de ensiná-la nas escolas médicas. Considera-se pertinente complementar a referida publicação com contribuições concernentes a este tema tão discutido na atualidade, dando ênfase à visão acadêmica do ensino à beira do leito.

As escolas médicas brasileiras buscam atualização curricular continuada, discutindo com frequência as mudanças que vêm ocorrendo no ensino do graduando em Medicina. A mais nítida premissa refere-se à melhoria da grade curricular médica, sob o risco de preencher o País com profissionais de pouco compromisso com a real situação da saúde popular brasileira. Uma comparação entre o número de habitantes e a quantidade de escolas médicas ilustra a mercantilização do ensino, em que o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial. Em 1997, 85 faculdades estavam instaladas no País; hoje, são 177. Até 2008, 32 não possuíam hospital-escola ou convênio com hospitais1. Pode-se imaginar que esta expansão indiscriminada das escolas médicas talvez seja reflexo da abertura de faculdades com critérios políticos e com base em interesses por vezes duvidosos.

Nos últimos anos, diversas instituições adotaram em seus currículos a fusão do clássico modelo biomédico de ensino com o protótipo de aprendizado baseado em problemas (PBL - problem based learning), considerando a união dessas duas modalidades o cerne de um currículo médico revolucionário.

Esta tendência de transformação no sistema de educação discente ocorreu devido à falha em conhecimentos básicos apresentada pelos graduandos de Medicina quando confrontados com problemas clínicos2. Entretanto, o escasso contato entre estudantes e pacientes, a falta de motivação relatada por alguns acadêmicos no primeiro ano de faculdade, o parco aprimoramento das habilidades de inteligência interpessoal, bem como a reduzida prática da anamnese e exame físico frente a uma situação clínica real fazem com que este modelo não atenda plenamente às necessidades exigidas para a formação de um bom profissional.

Na tentativa de sanar tais limitações, currículos alternativos têm sido criados visando à participação precoce dos acadêmicos na vivência médica em hospitais, ambulatórios e domicílios3. Uma boa relação acadêmico-paciente não só é decisiva para treinar a capacidade discente de determinar um diagnóstico ou uma terapêutica, como também representa uma oportunidade única de conciliar os conhecimentos éticos e científicos adquiridos durante a graduação.

O ensino à beira do leito vem per dendo espaço para os progressos tecnológicos integrados aos modelos educacionais das escolas médicas nacionais e internacionais, onde o campo da ar gumentação gira em torno de apresentações em computadores e projeções em multimídia. Certamente, tal evolução proporcionou benefícios para o desenvolvimento científico da Medicina, mas distorceu em parte a vertente humanística do médico, desvalorizando o contato com o paciente, principalmente no que tange à procura por nuances no exame físico. Segundo estatísticas norte-americanas, decai a cada ano a frequência do ensino à beira do leito durante as visitas nas enfermarias, passando de 75% nos anos de 1960 para menos de 16% atualmente3. Os momentos em enfermaria clínica foram substituídos por simulações em anfiteatros, laboratórios experimentais e sessões clínicas, distanciando o graduando da natureza holística do paciente e do estabelecimento precoce de habilidades relacionadas à abordagem destes indivíduos em toda a sua plenitude. Outro ponto que distorce a visão integral do enfermo, inclusive fundamentado na pesquisa que motivou esta missiva, é a tendência dos estudantes em direcionar sua atenção para casos com agravo clínico ilustrativo, havendo certo desinteresse pelos pacientes que não apresentam doença orgânica bem definida.

O estudo junto ao paciente é uma atividade com grandioso potencial educativo, que merece incentivo das escolas médicas2. Para isso, propõe-se a adoção de estratégias que busquem otimizá-la, como, por exemplo, seleção criteriosa de casos a serem discutidos; realização da visita em horários e dias predeterminados no cronograma curricular; formação de grupos com pequeno número de acadêmicos; estabelecimento da rotina de discussão ao lado do paciente e, a posteriori, numa sala estruturada que fomente a discussão em grupo; escolha de um profissional competente capaz de incentivar o raciocínio clínico acadêmico e de solucionar dúvidas prementes, além de incluir temas de cunho social e cultural no debate.

Durante a abordagem do paciente à beira do leito, o professor e o residente devem apresentar-se em conjunto com os acadêmicos e iniciar uma anamnese sumária, lembrando-se de chamar seu cliente pelo nome. Ademais, o paciente tem o direito de ser informado sobre o contexto da discussão clínica, sendo competência do médico residente, bem como do interno que o acompanha, as elucidações do seu agravo em um momento posterior, tentando, assim, manter concreto o elo entre paciente-residente e paciente-interno. A seguir, realiza-se o exame clínico, extraindo-se informações e dados clínicos decisivos para o diagnóstico final, evitando qualquer constrangimento do paciente. Pode-se ampliar a abordagem do caso fora da enfermaria, iniciando com uma breve revisão dos principais tópicos observados, seguida por diagnóstico diferencial e observação dos exames de imagem pertinentes, afora análise bioquímica elucidativa. Encerrada a explanação, é necessário o enfoque para questões de aspecto preventivo e dimensões coletivas concernentes, a fim de incutir nos discentes e residentes ideais de transformação pessoal e promoção de saúde.

Discutindo-se o caso de um paciente, por exemplo, por cetoacidose diabética, pode-se perpassar a fisiopatologia desta disfunção metabólica, direcionando para temas relacionados a bioquímica, genética, anatomia, farmacologia, histologia, fisiologia e embriologia, até os fatores que desencadearam a crise, a evolução do quadro clínico, o tratamento que está sendo aplicado, as medicações a serem determinadas para a alta hospitalar, os diagnósticos diferenciais, o prognóstico do paciente, bem como as orientações para evitar recidivas.

Somam-se ao debate assuntos ligados a aspectos gerais, como a globalização da obesidade; a árdua missão de modificar hábitos humanos; a dificuldade de adesão aos tratamentos; o acompanhamento cotidiano por vezes deficitário na unidade básica de saúde; e a abordagem inicial complementar com os exames necessários a serem selecionados.

Desta maneira, o paciente à beira do leito torna-se uma fonte inesgotável de ensinamentos e aprendizados, exercitando habilidades fundamentais da Medicina, como o desenvolvimento do raciocínio clínico, a perspicácia na diferenciação de situações que simulam determinada disfunção, a prática da abordagem ao paciente no leito, bem como a destreza de ver, ouvir e sentir um paciente. É fundamental a ressalva de que a medicina centrada no paciente pode melhorar a atenção médica individual e coletiva, trazendo à discussão aspectos culturais singulares e tornando o paciente um coparticipante do cuidado com sua saúde2.

Tentando atender às necessidades do ensino centrado no aluno e voltado para o paciente, em consonância com a ressalva dos autores Maria Mônica Freitas Ribeiro e Carlos Faria Santos Amaral, que advogam a mudança de abordagem da semiologia com enfoque no paciente e não na doença, propõe-se a adoção de um modelo de aprendizado baseado em casos reais, em que a discussão das sessões clínicas ocorra de fato com o paciente à beira do leito, incentivando o contato precoce com o hospital de ensino a partir do primeiro ano da graduação.

Por outro lado, esse tipo de estrutura ressalta a transmutação de pontos decisivos da graduação médica, merecendo um corpo docente necessariamente treinado, acadêmicos motivados e, essencialmente, tutores e aprendizes inspirados pela secular arte de aprender a ser médico.

Recebido em: 21/07/2008

Reencaminhado em: 12/11/2008

Aprovado em: 27/11/2008

  • 1. Nassif ACN. Escolas Médicas do Brasil. [on li ne]. [acesso em 17 jul 2009]. Disponível em: http://www.escolasmedicas.com.br/quem.php
  • 2. Ribeiro MMF, Amaral CFS. Medicina centrada no paciente e ensino médico: a importância do cuidado com a pessoa e o poder médico. Rev Bras Educ Med. [online]. 2008. 32(1) [acesso em: Set. 2009]; 90-97. doi: 10.1590/S0100-55022008000100012.
  • 3. LaCombe MA. On Bedside Teaching. Ann Intern Med. 1997; 126(3):217-220.
  • Endereço para correspondência:
    Adson Freitas de Lucena
    Rua 7 de Setembro, 32 Campo dos Velhos
    Sobral CEP. 62030-160 CE
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009
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