Acessibilidade / Reportar erro

Transferências na formação médica

Transference during undergraduate medical training

Resumos

O aluno de graduação vive momentos intensos quando se depara com os primeiros pacientes durante a formação médica. Colocar-se à frente de um paciente, aflito, exige que o aluno compreenda as diversas demandas de seu paciente. O intuito deste trabalho é promover uma reflexão sobre os fenômenos psíquicos e emocionais presentes em qualquer relação assistencial e discutir suas implicações e efeitos. Buscou-se compreender melhor o que o estudante tem a oferecer ao paciente, ajudando-o a observar e a valorizar as reações que pode despertar em seus pacientes, apesar de seu conhecimento ainda incipiente dos aspectos biomédicos do adoecer. Foi feita uma tentativa de elucidar o fenômeno da transferência e explorar suas implicações na relação médico-paciente

Transferência (Psicologia); Relações médico-paciente; Psicologia médica


Undergraduate medical students experience intense feelings when faced with their first patients during medical training. Dealing with the patient's anxiety requires medical students to comprehend the patient's various demands. The current study aimed to foster reflection on the psychological and emotional phenomena underlying interactions between healthcare professionals and patients, and to discus their implications and effects, seeking a better understanding of what students can offer patients, helping them to observe and value the patients' reactions, despite their incipient knowledge of the biomedical aspects of illness. The study attempted to shed light on the phenomenon of transference and its implications for the physician-patient relationship

Transference (Psychology); Physician-Patient Relations; Medical psychology


ENSAIO

Transferências na formação médica

Transference during undergraduate medical training

Ana Cecilia Lucchese; Cristiane Curi Abud; Mario Alfredo De Marco

Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ana Cecilia Lucchese Rua Borges Lagoa, 570 - 3º andar Vila Clementino São Paulo CEP. 04023-900 - SP E-mail: aclucchese@uol.com.br

RESUMO

O aluno de graduação vive momentos intensos quando se depara com os primeiros pacientes durante a formação médica. Colocar-se à frente de um paciente, aflito, exige que o aluno compreenda as diversas demandas de seu paciente. O intuito deste trabalho é promover uma reflexão sobre os fenômenos psíquicos e emocionais presentes em qualquer relação assistencial e discutir suas implicações e efeitos. Buscou-se compreender melhor o que o estudante tem a oferecer ao paciente, ajudando-o a observar e a valorizar as reações que pode despertar em seus pacientes, apesar de seu conhecimento ainda incipiente dos aspectos biomédicos do adoecer. Foi feita uma tentativa de elucidar o fenômeno da transferência e explorar suas implicações na relação médico-paciente.

Palavras-chave: Transferência (Psicologia); Relações médico-paciente; Psicologia médica

ABSTRACT

Undergraduate medical students experience intense feelings when faced with their first patients during medical training. Dealing with the patient's anxiety requires medical students to comprehend the patient's various demands. The current study aimed to foster reflection on the psychological and emotional phenomena underlying interactions between healthcare professionals and patients, and to discus their implications and effects, seeking a better understanding of what students can offer patients, helping them to observe and value the patients' reactions, despite their incipient knowledge of the biomedical aspects of illness. The study attempted to shed light on the phenomenon of transference and its implications for the physician-patient relationship.

Key words: Transference (Psychology); Physician-Patient Relations; Medical psychology

Observando os alunos de graduação em Medicina na Unifesp, vemos como se surpreendem com o respeito com que são tratados pelos pacientes, bem como com o saber que estes lhes conferem. Os alunos se angustiam ao tentarem "disfarçar" para os pacientes que atendem que, na verdade, ainda não sabem quase nada. Estas mesmas vivências, certamente, estão na lembrança dos primeiros atendimentos de qualquer profissional de saúde. Os alunos se angustiam ao se depararem com os sentimentos de impotência despertados pela dificuldade de aliviar o sofrimento que lhes é apresentado. Em geral, tentam suprir suas falhas com muita conversa, muita atenção e dedicação. Fazem milhares de perguntas e correm para conversar com o supervisor para que possam prescrever algum tratamento aos que lhes pedem alívio. É uma situação emocionalmente intensa e que provoca angústia pela ambiguidade do lugar que lhes é conferido: um lugar de potência, já que são investidos de um saber; mas também um lugar de aprendizes, daqueles que ainda sabem pouco de seu ofício.

Apesar da angústia, os estudantes costumam ficar agradavelmente surpresos quando percebem este poder que a situação lhes confere, como podemos observar neste relato de um aluno:

Achei estranho no início quando comecei [uma entrevista] e pensei que éramos totalmente estranhos ao paciente e ele estava ali revelando tudo o que o perguntávamos: seus hábitos, costumes e atitudes.

Os alunos sentem-se bem por perceber a confiança que é depositada neles e, ao mesmo tempo, se sentem "traindo" os pacientes por "usá-los" em seu aprendizado e por acharem que podem lhes dar muito pouco em troca, o que notamos neste outro relato:

Uma coisa que me dava vontade durante todo o tempo [da entrevista] era ter já nesse momento mais conhecimento médico para poder auxiliar de alguma forma o sr. Leonildo.

Neste momento, os aprendizes se preocupam em oferecer algum alívio imediato e concreto - prescrevendo o tratamento mais correto -, sem se darem conta de que, naquele mesmo ato, oferecem algo mais a seus pacientes. Os alunos desconhecem os comentários ouvidos dos próprios pacientes: é comum ouvirmos de pacientes que estes preferem as consultas - longas e detalhadas - feitas pelos alunos aos atendimentos breves de profissionais mais experientes.

Mas, afinal, do que estamos falando? Por que estes pacientes, que são atendidos por jovens com pouca experiência, lhes atribuem tanta sapiência? Por que permitem que perguntem sobre suas intimidades e que toquem seus corpos? E o que os jovens aprendizes podem lhes oferecer? Oferecem, de fato, pouco?

O intuito deste trabalho é promover uma reflexão sobre os fenômenos psíquicos e emocionais presentes em qualquer relação assistencial, isto é, no encontro de duas pessoas em que uma delas busca na outra algum tipo de ajuda - o que é de grande valia na formação de profissionais de saúde. Intuito que caminha na contramão de uma relação que, segundo Foucault1, foi institucionalizada pelo discurso médico:

Médicos e doentes não estão implicados, de pleno direito, no espaço racional da doença; são tolerados como confusões difíceis de evitar; o paradoxal papel da medicina consiste, sobretudo, em neutralizá-los, em manter entre eles o máximo de distância para que a configuração ideal da doença, no vazio que se abre entre um e outro, tome forma concreta, livre, totalizada enfim em um quadro imóvel, simultâneo, sem espessura nem segredo, em que o reconhecimento se abre por si mesmo à ordem das essências.

Quanto à nossa primeira questão, a busca de uma resposta passa por tentar explicitar o lugar em que cada uma destas pessoas se coloca: geralmente, no primeiro contato com o médico, o paciente está passando por alguma crise. Ele procura atendimento esperando que o médico possa compreender seu problema e que possa curá-lo. O paciente provavelmente se depara com algum desconforto (seja ele físico ou psíquico), percebe-se como alguém que não sabe de si e que precisa de ajuda - percebe-se, portanto, numa posição impotente. Este estado provoca tensões elevadas no paciente, e seu modo de aliviá-las consiste em depositar suas emoções em um membro supostamente mais forte, no caso, o médico. Ao procurar este profissional, o paciente o investe de um saber/poder e procura descarregar nele suas angústias. Mas de onde vem tanta confiança? E o que o médico faz com estes sentimentos que lhes são dirigidos?

Estes sentimentos - presentes em qualquer consulta - podem confundir o médico se ele não tiver algum conhecimento sobre a origem deles. É diante deste cenário que se ressalta a importância do reconhecimento do sujeito do inconsciente nas práticas de saúde.

No encontro de duas pessoas, uma relação afetiva é estabelecida, e entra em jogo o fenômeno da transferência - mesmo que este seja ignorado. O médico tem que lidar com uma enxurrada de sentimentos que pode atrapalhar seu raciocínio clínico se não puder compreender, minimamente, este lugar que o paciente lhe confere. A posição em que o médico é colocado não é um lugar fácil de sustentar, pois o paciente deposita nele projeções alheias à sua pessoa e sentimentos que foram dirigidos a outras figuras importantes em seu desenvolvimento psíquico. São estas projeções que reconhecemos como transferência. Os médicos não são os únicos alvos da transferência, "eles se inscrevem na 'série psíquica' bem conhecida do padre, do médico, do professor e do dono. Essas são figuras, menos de autoridade, como se diz apressadamente, do que de detentores de segredos: segredos da alma, do corpo, do saber, do poder sobre o espírito."2

Transferência não é um termo específico da psicanálise. "Possui, de fato, um sentido muito geral, próximo do de transporte, mas implica um deslocamento de valores, de direito, de entidades, mais do que um deslocamento material de objetos."3 Trata-se de uma reedição de cenas em que os personagens tendem a ocupar seus postos de origem, negando tempos, espaços e características físicas e, por isto, produzem-se - em realidade - vínculos. É um fenômeno psíquico presente em todas as relações humanas. Para a maioria dos pacientes, a transferência segue predominantemente um modelo parental, devido à posição impotente do paciente frente àquele que detém algum saber. Esta transferência contém sentimentos que foram, um dia, dirigidos a seus pais - percebidos como a principal fonte de saber na tenra infância.

Podemos ainda notar que a situação de uma consulta favorece no paciente uma retirada de seu investimento no mundo externo ou uma introversão da libido, como explica Freud: "é do conhecimento de todos, e eu o aceito como coisa natural, que uma pessoa atormentada por dor e mal-estar orgânico deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito a seu sofrimento"4. Vemos que o paciente, aflito, recolhe sua atenção para seu próprio corpo e para suas dores, num movimento que, ao mesmo tempo, investe energia em suas fantasias, mas "ele de modo algum corta suas relações eróticas com as pessoas e as coisas. Ainda as retém na fantasia, isto é, ele substitui por um lado, os objetos reais por objetos imaginários, ou mistura os primeiros com os segundos"5.

Este incremento de energia colocado nas fantasias favorece um movimento regressivo, que parece ser o motor do processo transferencial que se instala, favorecendo que a situação fique carregada por sentimentos que foram dirigidos a outras figuras importantes na vida do paciente. Cabe então ao médico reconhecer-se como suporte de todas estas projeções, sem acreditar que estes sentimentos sejam causados por seus atributos pessoais. Vale lembrar, principalmente aos aprendizes que se regozijam com o poder que lhes é atribuído, uma advertência de Freud6:

Ele [o médico] deve reconhecer que o enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica e não deve ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa; de maneira que não tem nenhum motivo para orgulhar-se de tal "conquista", como seria chamada fora da análise.

E o que se pode fazer? Amarrado por sentimentos que não lhe cabem, como o médico deve responder à demanda do paciente? Como conduzir uma consulta? Deve deixar a consulta mais "técnica" e fria para evitar qualquer mal-entendido?

Como se trata de duas pessoas - médico e paciente -, é impossível retirar a parte afetiva de cena, isto é, excluir conversas e sentimentos. Isto faz parte das consultas "curativas" desde o tempo de curandeiros, xamãs ou feiticeiros, que promoviam a cura por métodos muito diferentes dos hoje disponíveis. Estes "médicos" antigos sabiam fazer uso dos aspectos psíquicos envolvidos no processo de cura.

É importante, contudo, ajudar o estudante a discriminar a pessoa e o papel, de forma que ele tenha presente que as reações que lhe são dirigidas - tanto as amorosas quanto as agressivas - são estimuladas pelo papel profissional que está desempenhando e não devem ser tomadas como estritamente pessoais. Isto lhe será de grande utilidade tanto para não ficar "tomado" por sentimentos de onipotência, quanto para lidar com a frustração despertada por pacientes que vivenciam sentimentos negativos na transferência, conforme podemos observar nos seguintes relatos de nossos alunos:

A princípio, [a paciente] me pareceu um tanto quanto hostil em relação à nossa presença. Isto pois tivemos de acordá-la para conduzirmos a entrevista e ela estava repousando. Quando perguntamos o motivo de ela estar ali internada, ela soltou o seguinte comentário: "Mas eu já respondi isso várias vezes!!!" Depois disso, fiquei muito tensa, e as minhas expectativas com relação à atividade mudaram completamente. Do otimismo, pulei direto para o pessimismo total. Eu não queria ser um fardo para aquela senhora que já estava sofrendo imensamente. Eu só queria ter um aprendizado consistente e queria que ela pudesse fazer parte disto.

A boa notícia é que este quadro hostil se reverteu ao longo do processo. à medida que nós conversávamos com ela, as expressões corporais, o humor e o modo como ela falava mudaram completamente. De introspectiva e desanimada, ela passou para cooperativa e falante. Acho que uma espécie de princípio de vínculo foi criado. Pelo menos comigo tenho certeza que sim. O modo como ela me olhava no início da entrevista e o modo como ela me olhou ao final, na despedida, denunciaram isto.

Adquirir os conhecimentos técnicos necessários para diagnosticar uma doença e prescrever um tratamento é uma tarefa indispensável para ser um bom médico. Entretanto, há que considerar outros elementos presentes numa consulta médica que escapam à objetividade da ciência. Colocar-se à frente de um paciente, aflito, exige que o médico compreenda as diversas demandas do paciente, que se coloque como suporte e como um facilitador de descarga e elaboração de tensões - o que deve fazer parte de sua "terapia", já que pode intensificar o processo de cura do paciente. Estas habilidades só podem ser conquistadas quando se consegue prestar atenção aos aspectos invisíveis7 de uma consulta médica, dar o devido valor à "cura pela palavra" e aos efeitos da presença e da escuta daquele profissional que atende.

Na formação médica é importante que o estudante tenha clareza quanto a um princípio que Balint formulou com muita propriedade: "o remédio mais usado em medicina é o próprio médico, o qual como os demais medicamentos precisa ser conhecido em sua posologia, efeitos colaterais e toxicidade"8. A atenção e a observância a este preceito seguramente ajudarão o estudante a compreender melhor o que ele tem a oferecer ao paciente, a observar e a valorizar as reações que pode despertar no paciente, muitas vezes intensas, apesar de seu conhecimento ainda incipiente dos aspectos biomédicos do adoecer.

Recebido em: 10/10/2008

Reencaminhado em: 02/03/2009

Aprovado em: 14/04/2009

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Ana Cecilia Lucchese, Cristiane Curi Abud e Mario Alfredo De Marco participaram da discussão, levantamento da bibliografia e na redação do artigo.

CONFLITO DE INTERESSES

Declarou não haver

  • 1. Foucault M. O nascimento da clínica, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p.8.
  • 2. Pontalis J-B. A força de atração. São Paulo: Zahar, 1991, p.87.
  • 3. Laplanche&Pontalis. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.514.
  • 4. Freud S. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, v.14, 1974, p.98.
  • 5. Freud S. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, v.14, 1974, p.90.
  • 6. Freud S. (1915) Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III) In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, v.12, 1974, p.210.
  • 7. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
  • 8. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu, 1988.
  • Endereço para correspondência:
    Ana Cecilia Lucchese
    Rua Borges Lagoa, 570 - 3º andar Vila Clementino
    São Paulo CEP. 04023-900 - SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Revisado
      02 Mar 2009
    • Recebido
      10 Out 2008
    • Aceito
      14 Abr 2009
    Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
    E-mail: rbem.abem@gmail.com