O Cinema como Recurso Educacional no Ensino de Atitudes Humanísticas a Estudantes de Medicina

RESUMO

Introdução

A educação médica contemporânea prioriza o desenvolvimento de conhecimento científico e habilidades técnicas, associados a atitudes profissionais. Atitudes são componentes da habilidade afetiva e influenciam a prática médica, por isso devem ser ensinadas sistematicamente durante a graduação. A utilização de filmes como recurso pedagógico na graduação médica possibilita uma reflexão no contexto biopsicossocial em que o paciente está inserido, contribuindo para desenvolver atitudes humanísticas entre estudantes de Medicina e futuros médicos.

Objetivo

Avaliar a eficácia do cinema como recurso educacional no ensino de atitudes humanísticas aos discentes do curso de Medicina.

Material e Métodos

Foi realizado um estudo transversal, exploratório, quantitativo, com 107 estudantes do primeiro ao sexto ano do curso de Medicina da Universidade Federal do Amapá. Foi utilizada a Escala de Atitude de Estudantes de Medicina (validada por Colares et al.¹ ) antes e depois da exibição de filmes relacionados a temáticas relevantes na área médica. Esta escala psicométrica é composta de respostas de múltipla escolha do tipo Likert e visa aferir atitudes de estudantes de Medicina em relação aos seguintes fatores: assistência primária à saúde; aspectos psicológicos e emocionais envolvidos nas doenças; aspectos éticos no exercício profissional; doença mental, situações relacionadas à morte; pesquisa científica. Foi empregado o Teste de Wilcoxon (Wilcoxon Rank Test) para comparar dados de amostras pareadas.

Resultados

Todos os fatores avaliados pela escala de atitudes dos estudantes de Medicina frente a aspectos relevantes da prática médica apresentaram aumento significativo na frequência de atitudes positivas (p < 0,05) após as sessões de cinema entre os alunos do primeiro ao quarto ano da graduação. Os alunos do quinto e sexto ano não apresentaram mudança significativa de atitudes nos fatores relacionados à morte, à doença mental e à contribuição com o avanço científico da medicina.

Conclusão

O cinema é uma ferramenta pedagógica eficaz no ensino de atitudes humanísticas a estudantes do curso médico.

Educação Médica; Cinema como Assunto; Humanização da Assistência

ABSTRACT

Introduction

Contemporary medical education prioritizes the development of scientific knowledge and technical skills, associated with professional attitudes. Attitudes are components of affective ability and influence medical practice, so they should be taught systematically during undergraduate training. The use of films as a pedagogical resource in medical training allows reflection on the biopsychosocial context in which the patient is inserted, contributing to the development of humanistic attitudes among students and future physicians.

Objective

To evaluate the effectiveness of cinema as an educational resource in teaching humanistic attitudes to medical students.

Material and Methods

A cross-sectional, quasi-experimental, qualitative and quantitative study was carried out with 107 students from the first to sixth year of the medical course of the Federal University of Amapá. The Medical Students Attitude Scale (validated by the author Maria de Fátima Colares, 2002) was used before and after the exhibition of films related to relevant themes in the medical area. This psychometric scale is composed of multiple-choice Likert-type responses and aims to assess the attitudes of medical students regarding the following factors: primary health care; psychological and emotional aspects involved in diseases; ethical aspects in professional practice; mental illness, death-related situations; scientific research. The Wilcoxon Rank Test was used to compare data from paired samples.

Results

All the factors evaluated by the medical students attitudes scale related to relevant aspects of medical practice showed a significant increase in the frequency of positive attitudes (p < 0.05) among the first- to fourth-year students following the cinema sessions. The fifth- and sixth-year students did not present significant changes in attitudes related to death, mental illness and contribution to the scientific advancement of medicine.

Conclusion

Cinema is an effective pedagogical tool in teaching humanistic attitudes in the preclinical series of the medical course.

Medical Education; Films as Topic; Humanization of Assistance

INTRODUÇÃO

O contexto da educação médica apresentou várias mudanças nas últimas décadas, visto que se constatou a deficiência dos cursos médicos tradicionais em formar estudantes com as características esperadas de um futuro profissional, tais como habilidade de comunicação, competência em realizar tarefas práticas, aptidão para o desenvolvimento pessoal e profissionalismo² . Deste modo, as faculdades de Medicina têm realizado reformas curriculares com o intuito de implementar metodologias ativas de ensino e propiciar aos estudantes o aprendizado dessas habilidades. Entre as habilidades requeridas para a formação dos futuros médicos, as habilidades afetivas representam um desafio no processo educacional, uma vez que não há consenso sobre um modelo de treinamento dos graduandos no que diz respeito a atitudes e comportamentos relativos à prática médica³ . Atitudes são componentes da habilidade afetiva e indicam a disposição do indivíduo para agir a favor ou contra um estímulo, e é em função delas que se podem avaliar sentimentos e comportamentos⁴ .

O ensino de atitudes humanísticas é considerado essencial na formação médica, sendo uma competência primordial requerida entre os profissionais de saúde⁵ . Várias estratégias têm sido propostas para fomentar o ensino de atitudes humanísticas durante a graduação médica, entre elas o incentivo ao conhecimento na área das ciências humanas, a fim de que os estudantes possam reconhecer os vieses socioculturais de cada indivíduo no intuito de praticar uma medicina centrada no paciente, bem como o desenvolvimento de métodos avaliativos com instrumentos eficazes capazes de mensurar o efetivo aprendizado das habilidades interpessoais preconizadas nas matrizes curriculares⁶ , ⁷ .

Uma forma de abordar o humanismo na medicina durante a graduação pode se dar por meio da adaptação de obras cinematográficas ao contexto educacional⁸ . A utilização de filme como recurso pedagógico no ensino médico tem-se mostrado uma ferramenta eficiente, uma vez que, por meio da dramatização de situações relacionadas ao processo de doença, os estudantes se tornam aptos a entender e refletir acerca do contexto biopsicossocial em que o paciente está inserido. Deste modo, a experiência com filme representaria, para o graduando, uma memória emocional que influenciaria sobremaneira o desenvolvimento de atitudes relacionadas ao tema abordado por meio desta metodologia de ensino⁹ .

Os processos avaliativos dos cursos de Medicina ainda estão muito voltados para a avaliação cognitiva, e, embora vários modelos de avaliação de habilidades técnicas tenham sido desenvolvidos recentemente, o processo avaliativo das habilidades afetivas ainda é deficiente. Deste modo, a avaliação de atitudes dos estudantes de Medicina assume relevância acadêmica, uma vez que, a partir da comprovação da eficiência das ferramentas pedagógicas adotadas, será possível propor um programa de intervenções necessárias para promover o desenvolvimento de habilidades afetivas de forma sistemática em todas as séries do curso.

MATERIAL E MÉTODOS

Tipo de estudo

Foi realizado um estudo exploratório, transversal, quantitativo.

População do estudo

Os participantes desta pesquisa foram estudantes do primeiro ao sexto ano do curso de Medicina da Universidade Federal do Amapá do ano de 2016, que se dispuseram a participar da intervenção proposta e a responder aos questionários. No total, 107 alunos compuseram a amostra do estudo, sendo 27 do primeiro ano, 23 do terceiro, 17 do quarto, 21 do quinto e 19 do sexto ano do curso.

Critérios de inclusão e exclusão

Foram incluídos na pesquisa estudantes devidamente matriculados no curso e que aceitaram participar do estudo.

Foram excluídos da pesquisa os estudantes que assistiram apenas a um dos filmes ou que não participaram das discussões.

Etapas e métodos da pesquisa

No primeiro dia da pesquisa, foram aplicados dois instrumentos para a coleta de dados: um questionário sociodemográfico e o “Instrumento de Avaliação de Atitudes de Estudantes de Medicina frente a Aspectos Relevantes da Prática Médica” (IAA), validado por Maria de Fátima Colares com base no trabalho “Construção de um Instrumento para Avaliação das Atitudes de Estudantes de Medicina frente a Aspectos Relevantes da Prática Médica”¹ . Em seguida, os alunos assistiram na íntegra ao filme Um Golpe do Destino , que narra a mudança de comportamento do protagonista, um médico bem-sucedido, após receber o diagnóstico de câncer. O protagonista passa, então, a interagir com a medicina, os hospitais e os médicos sob uma nova perspectiva, a de paciente.

Logo após a sessão de cinema, houve uma breve discussão que utilizou como exemplos algumas cenas do filme para contextualizar o aluno nos seguintes aspectos: a diferença entre o modelo biomédico e o modelo biopsicossocial de atuação médica; percepção e manejo das dimensões emocionais envolvidas na relação médico-paciente; sensibilização quanto ao reconhecimento das manifestações emocionais do paciente ao se defrontar com a perda de sua saúde; caracterização das fases do luto: negação, raiva, negociação, depressão, aceitação¹⁰ ; reconhecimento de atitudes médicas humanizadas.

Uma semana após a primeira sessão de cinema, foi exibido o segundo filme, Para Sempre Alice , que relata a história de uma professora universitária portadora de Doença de Alzheimer de início precoce, considerando as mudanças na vida profissional e pessoal da personagem com a progressão das limitações impostas pela doença neurológica degenerativa. A discussão que se seguiu à apresentação deste filme abordou a correlação do raciocínio clínico entre a doença física e o desenvolvimento de reações psicológicas; as transformações dos arranjos familiares de pacientes portadores de doença mental e a perda de autonomia sofrida pelos pacientes com transtorno mental. Após essa discussão, foi reaplicada a IAA, com o intuito de avaliar se houve mudança significativa nas atitudes dos estudantes que participaram da pesquisa após a intervenção realizada.

Os filmes foram exibidos em salas de cinema da cidade de Macapá.

Procedimentos éticos

O projeto está em consonância com os princípios éticos relativos às pesquisas envolvendo seres humanos, como exposto na Resolução 466/2012 da Conep e foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Unifap, sendo aprovado com o parecer n^o1.693.248.

Instrumentos de pesquisa

Foram empregados dois instrumentos para a coleta de dados. O primeiro foi um questionário sociodemográfico ( Apêndice A), elaborado para construir o perfil do estudante de Medicina da Unifap.

O segundo instrumento utilizado foi o IAA (Anexo A), escala que visa aferir atitudes de estudantes de Medicina em relação aos seguintes fatores:

• Fator 1: aspectos psicológicos e emocionais em doenças orgânicas e mentais. Composto por 11 questões, tem o objetivo de verificar a importância que os alunos atribuem ao estado emocional do paciente no curso da doença;

• Fator 2: manejo de situações relacionadas à morte. Constituído de oito questões, tem como objetivo avaliar a dificuldade dos alunos em situações relacionadas à morte e ao morrer;

• Fator 3: atenção primária à saúde. Engloba 11 afirmações sobre a importância do médico generalista e da prática de medidas preventivas;

• Fator 4: aspectos relacionados à doença mental. Avalia, por meio de oito afirmações, os sentimentos dos estudantes em relação à doença mental;

• Fator 5: contribuição com o avanço científico da medicina. Corresponde a seis afirmações e tem o intuito de saber o que os alunos pensam sobre a importância da pesquisa na carreira médica;

• Fator 6: outros aspectos da atuação médica. Analisa, por meio de oito questões, as atitudes dos estudantes diante de aspectos diversos, referentes à atuação médica em serviços de atenção primária e terciária.

Para cada item, existem cinco opções de respostas: 1 – estou totalmente de acordo; 2 – concordo em parte; 3 – estou em dúvida; 4 – discordo em parte; 5 – estou totalmente em desacordo.

Análise dos dados

Os dados sociodemográficos dos estudantes foram analisados descritivamente.

Os dados obtidos por meio do Instrumento de Avaliação de Atitudes de Estudantes de Medicina frente a Aspectos Relevantes da Prática Médica (IAA) foram reunidos em três grupos de respostas: um grupo constituído das alternativas 1 e 2, que indicam atitudes positivas segundo a conduta adotada em relação ao questionamento feito acerca de determinado fator; outro correspondente às alternativas 4 e 5, apontando atitudes negativas; e o último atribuído à alternativa 3, que sinaliza indecisão do estudante em qualquer que seja a questão.

Nesta escala, os escores dos fatores são escalonados numa posição negativa, sendo que os maiores escores denotam pior atitude. Deste modo, para analisar os dados de modo a obter uma média correspondente a cada fator, foi realizada a reversão das assertivas em frases negativas. Por conseguinte, as questões que estão na negativa (questões 2, 5, 9, 10, 14, 15, 16, 18, 20, 21, 22, 23, 28, 29, 31, 35, 38, 40, 41, 43, 47, 49, 50, 51 e 52) foram recalculadas de forma invertida: (1 = 5); (2 = 4); (4 = 2); (5 = 1).

Foi empregado o teste de hipóteses não paramétrico para analisar a diferença das respostas positivas dos alunos antes e depois da exibição dos filmes. Para isto, utilizou-se o Teste de Wilcoxon ( Wilcoxon Rank Test ) ou, em português, “Teste de Postos com Sinais”, para comparar dados de amostras pareadas. Considerou-se, então: H0: mediana = 0 (não existe diferença das medianas entre os momentos sem e com intervenção); H1: mediana ≠ 0 (existe diferença das medianas entre os momentos sem e com intervenção). O nível de significância utilizado em toda a análise foi α = 0,05.

Os dados do estudo foram analisados com o auxílio do programa Statistical Package for Social Science , versão 22.0 (SPSS).

Avaliação da confiabilidade interna da escala

A análise da consistência interna do IAA foi realizada utilizando-se o alfa de Cronbach, tendo como resultado 0,94 antes da intervenção e 0,80 após a intervenção, considerados um valor excelente e aceitável, respectivamente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dados sociodemográficos

Cento e sete alunos participaram do estudo, sendo 52 do sexo masculino (48,6%) e 55 (51,4%) do sexo feminino. As idades variaram de 18 a 38 anos, com média de 23,35 anos.

Entre os participantes da pesquisa, obteve-se uma taxa de participação de 39,64% dos alunos que cursavam do primeiro ao quarto ano do curso de Medicina em 2016. Ressalta-se que o segundo ano do curso foi excluído do estudo, pois a participação dos estudantes desta série foi inferior a 10%. Provavelmente, houve pouco interesse destes alunos em participar de atividade referente ao tema Humanização. Entre os alunos que se encontravam no internato, que correspondem ao quinto e sexto ano da graduação, 76,92% participaram do estudo.

Em relação ao perfil da população estudada, constatou-se que a maioria dos estudantes é natural do Estado do Amapá (54,2%), apresenta renda familiar acima de oito salários mínimos (38,3%) e reside com familiares (62,6%). O catolicismo foi apontado como a religião mais prevalente (55,1%). Quando questionados sobre a especialização que pretendem realizar após a conclusão do curso médico, 43,9% escolheram especialidades relacionadas à clínica médica.

Atitudes dos estudantes após a intervenção

Ao serem examinadas as atitudes dos estudantes após a intervenção proposta, pôde-se constatar a eficácia deste método de ensino, uma vez que todos os fatores avaliados pela escala IAA apresentaram aumento significativo na frequência de atitudes positivas (p < 0,05) ( Gráfico 1 ).

GRÁFICO 1
Representação gráfica das frequências de atitudes positivas e negativas dos estudantes de Medicina da Unifap antes e após as sessões de cinema em pesquisa realizada na cidade de Macapá no ano de 2016

Notas: Fator 1: aspectos psicológicos e emocionais em doenças orgânicas e mentais; fator 2: aspectos relacionados à morte; fator 3: atenção primária à saúde; fator 4: aspectos relacionados à doença mental; fator 5: contribuição com o avanço científico da medicina; fator 6: outros aspectos da atuação médica.

Estes dados estão de acordo com a pesquisa realizada por McNeilly e Wengel¹¹ , que também demonstraram um aumento significativo de conhecimento teórico e atitudes positivas em relação à aprendizagem de técnicas de psicoterapia entre estudantes do terceiro ano do curso de Medicina, utilizando como ferramenta pedagógica videoclipes de uma série televisiva que retrata a rotina de atendimentos médicos em um serviço de urgência e emergência. A efetividade do cinema em contribuir para o ensino de atitudes humanísticas na formação do médico pode ser explicada por um modelo conceitual descrito na literatura por Shapiro e Rucker¹² , denominado “Efeito Dom Quixote”. De acordo com os autores, o efeito provocado nos estudantes pelos filmes seria comparável à influência que o personagem principal da clássica obra literária Dom Quixote exercia sobre o comportamento do companheiro Sancho Panza. O convívio com o idealista Dom Quixote funcionaria como um deflagrador da mudança de valores e atitudes do pragmático Sancho Panza. Nesse sentido, ao assistirem às sessões de cinema, os estudantes seriam induzidos a um temporário idealismo.

Assistir a filmes que retratem nuances da prática médica pode contribuir mais para o desenvolvimento de empatia e altruísmo entre estudantes de Medicina e residentes do que o contato clínico rotineiro com os pacientes. Isto ocorreria porque em situações clínicas reais os estudantes se sentem sobrecarregados pela pressão em evitar erros técnicos no manejo dos pacientes e tentam não se envolver emocionalmente com eles, para que isso não os desvie da finalidade que julgam ser essencial na prática médica: curar a doença. Ao assistirem a um filme, os alunos ficam destituídos da responsabilidade iminente que a prática clínica lhes impõe e podem ficar mais suscetíveis à catarse emocional diante do sofrimento do paciente ao lidar com a doença, ainda que a situação e os personagens retratados sejam fictícios¹² .

As obras cinematográficas utilizadas na intervenção deste estudo têm sido utilizadas em vários cursos médicos de diversos países. O filme Um Golpe do Destino ( The Doctor ) tem sido amplamente empregado como ferramenta pedagógica no ensino de padrões de comportamento a estudantes de Medicina, destacando-se aspectos inerentes à relação médico-paciente¹³ , à habilidade de comunicação¹⁴ , à morte e ao luto¹⁵ . Ao assistirem ao filme, os estudantes podem ter sido movidos a apresentar atitudes altruístas por terem passado por um fenômeno psicológico denominado “elevação”, descrito por Haidt¹⁶ para designar a experiência emocional positiva vivenciada por uma pessoa ao presenciar outro indivíduo desempenhando um ato virtuoso. Schnall et al .¹⁷ relatam que a exposição, mesmo que breve, ao comportamento pró-social de outros indivíduos estimula a elevação, que, por sua vez, motiva o altruísmo. Durante o filme, o personagem principal demonstra solidariedade com uma amiga que também está se submetendo ao tratamento de uma doença oncológica em estágio avançado, sendo benevolente com o sofrimento emocional dela. Possivelmente, o fenômeno psicológico de elevação foi o responsável pelo resultado encontrado neste estudo. Os alunos no geral e, particularmente, os dos anos pré-clínicos do curso apresentaram uma mudança significativa de atitudes humanísticas em todos os fatores avaliados na escala IAA após assistirem ao filme por terem internalizado o ato virtuoso do médico representado na obra cinematográfica.

O outro filme utilizado durante a intervenção, Para Sempre Alice ( Still Alice ), vem sendo usado como instrumento de reflexão acerca da percepção que se tem do paciente portador de Doença de Alzheimer, da perda de autonomia que estes pacientes experimentam e dos efeitos provocados na dinâmica familiar decorrentes da necessidade de cuidado despendido ao paciente portador de uma patologia neurológica progressivamente incapacitante¹⁸ , ¹⁹ . Possivelmente, os alunos dos anos pré-clínicos, que apresentaram mudança significativa das atitudes em relação à doença mental após a intervenção, apesar de ainda não terem entrado em contato com pacientes psiquiátricos, conseguiram ter empatia pela história de vida da personagem quando ela começa a perder seu status social, sua carreira e seu papel na família em consequência da doença mental que a acomete.

Ao se analisarem as atitudes dos estudantes do internato em relação ao fator 4 (aspectos relacionados à doença mental) após a intervenção ( Gráfico 3 ), constatou-se que não houve diferença significativa (p > 0,05) em relação aos valores iniciais. Possivelmente, o envolvimento emocional dos alunos com o filme, que retrata uma paciente acometida por uma doença mental, não teve o impacto necessário para afetar as atitudes dos alunos em relação ao estigma associado aos pacientes com psicopatias. A diferença de comportamento dos alunos dos anos pré-clínicos ( Gráfico 2 ), que responderam satisfatoriamente ao filme, em relação aos alunos do internato sugere que possivelmente o contato com o ambiente hospitalar no setor de Psiquiatria pode moldar as atitudes dos estudantes.

GRÁFICO 3
Representação gráfica das frequências de atitudes positivas e negativas do grupo de estudantes do quinto e sexto ano do curso de graduação em Medicina da Unifap de acordo com pesquisa realizada em Macapá no ano de 2016

Notas: Fator 1: aspectos psicológicos e emocionais em doenças orgânicas e mentais; fator 2: aspectos relacionados à morte; fator 3: atenção primária à saúde; fator 4: aspectos relacionados à doença mental; fator 5: contribuição com o avanço científico da medicina; fator 6: outros aspectos da atuação médica.

GRÁFICO 2
Representação gráfica das frequências de atitudes positivas e negativas do grupo de estudantes do primeiro, terceiro e quarto anos do curso de graduação em Medicina da Unifap de acordo com pesquisa realizada em Macapá no ano de 2016

Notas: Fator 1: aspectos psicológicos e emocionais em doenças orgânicas e mentais; fator 2: aspectos relacionados à morte; fator 3: atenção primária à saúde; fator 4: aspectos relacionados à doença mental; fator 5: contribuição com o avanço científico da medicina; fator 6: outros aspectos da atuação médica.

Ressalta-se que, no momento da intervenção, os alunos do quinto e sexto ano estavam fazendo rodízio justamente no módulo de Psiquiatria. Estudos demonstraram que a cultura de estigmatização de pacientes psiquiátricos existe entre os profissionais de saúde no ambiente hospitalar e que o estigma é um fator que influencia negativamente as atitudes dos estudantes em relação à Psiquiatria²⁰ , ²¹ . Totic et al. ²² , ao realizarem uma pesquisa para avaliar as atitudes e comportamento de estudantes de Medicina antes e depois do rodízio no setor de Psiquiatria, observaram que os alunos do sexto ano do curso, que já haviam completado o estágio neste setor, apresentaram maior tendência a estigmatizar os pacientes com doença mental. Kerby et al .²³ encontraram resultados comparáveis aos constatados neste estudo ao investigarem as atitudes de estudantes do quarto ano do curso de Medicina em relação à saúde mental e à Psiquiatria após sessão de cinema com filmes com conteúdo antiestigma. Os autores evidenciaram um aumento significativo de atitudes empáticas relacionadas à doença mental após a intervenção com filmes, porém esse efeito se esvaiu após a finalização do estágio no setor de Psiquiatria. Possivelmente, o mesmo fenômeno observado no presente estudo pode ser atribuído ao fato de que os alunos nos anos pré-clínicos, por não terem tido contato com pacientes portadores de psicopatologias no ambiente hospitalar, experimentaram o efeito esperado do filme, que seria maior empatia em relação a esses pacientes. Entretanto, os alunos que já estavam estagiando no setor de Psiquiatria do hospital não conseguiram mudar a visão estigmatizante que já haviam presenciado durante o convívio com outros profissionais de saúde neste setor, mesmo após a intervenção com os filmes.

Os alunos do internato também não apresentaram mudança significativa de atitudes após a intervenção no que se refere ao fator 2, que corresponde a questões relacionadas à morte ( Gráfico 3 ). Este fator esteve relacionado a um percentual elevado de atitudes positivas entre estes alunos antes das sessões de cinema (60,9%). O percentual de respostas positivas deste fator foi superior aos resultados encontrados em outras pesquisas. Alves et al. ²⁴ aplicaram a escala IAA a alunos do internato de Medicina e constataram que os estudantes apresentaram maior percentual de atitudes negativas nas questões relacionadas à morte (49,3%). Mascia et al. ²⁵ encontraram maior percentual de atitudes conflitantes (55%) neste mesmo fator ao avaliarem alunos do sexto ano da graduação médica. Esses resultados demonstram que, neste quesito, os alunos do internato da Unifap apresentam desempenho superior ao de alunos das instituições em que as outras pesquisas foram realizadas. Possivelmente, os filmes tiveram pouco impacto na mudança dessas atitudes porque os alunos já apresentavam alta tendência a agir de maneira positiva em situações que envolvem a morte, deixando pouca margem para aumento dessa tendência com a intervenção realizada. As atitudes positivas no fator 2 dos alunos dos anos finais do curso mostraram-se superiores às apresentadas pelos alunos dos anos iniciais ( Gráfico 2 ). Uma possível explicação para esse achado seria o contato mais próximo dos internos com pacientes durante os estágios nos hospitais, pois a literatura já demonstrou que os estudantes que tiveram a oportunidade de presenciar a morte de pacientes foram mais propensos a apresentar atitudes positivas acerca da responsabilidade do médico de cuidar de pacientes em fase final de vida e dar suporte emocional ao luto dos familiares²⁶ .

O fator 5, que corresponde à contribuição com o avanço científico da medicina, também não demonstrou mudança significativa no percentual de atitudes positivas após a intervenção entre os alunos do internato ( Gráfico 3 ). Uma possível justificativa é que este grupo de alunos já apresentava um percentual elevado de atitudes positivas neste fator antes mesmo da intervenção, pois foi estimulado durante todo o curso a realizar pesquisas e a ler textos científicos com frequência ao se preparar para discutir os temas nos tutoriais e nas demais atividades práticas realizadas nas quatro primeiras séries do curso, bem como nas discussões de casos clínicos e de artigos que ocorrem na programação teórica do internato. Este fato justificaria a diferença no comportamento desse grupo de estudantes em relação aos alunos dos anos pré-clínicos, que apresentaram aumento de atitudes positivas após a intervenção.

Um achado surpreendente desta pesquisa é que, ao se analisar o grupo geral de todos os alunos do primeiro ao sexto ano ( Gráfico 1 ), observou-se que eles apresentaram mudanças de atitudes em relação ao fator 3 (atenção primária à saúde) e ao fator 6 (outros aspectos da atuação médica) após a intervenção, acrescido ao fato de os alunos do primeiro ao quarto ano ( Gráfico 2 ) também terem apresentado aumento significativo de atitudes positivas no fator 5 (contribuição com o avanço científico da medicina). Isto ocorreu embora estes assuntos não tenham sido abordados diretamente nas obras cinematográficas.

Uma possível explicação desse resultado seria a de que a intervenção tenha exercido um efeito psicológico nesses alunos que não se restringiu apenas aos temas abordados nos filmes e nas discussões. Nesse sentido, pode-se inferir que a formação de atitudes positivas em relação aos fatores abordados nas obras cinematográficas pode ter se generalizado a outros estímulos que estão dentro de uma área restrita de comparabilidade, como afirma Doob²⁷ .

Diante dos achados desta pesquisa, podemos inferir que o cinema é uma metodologia pedagógica eficaz no ensino de habilidades afetivas aos estudantes de Medicina, porém não se pode afirmar que o efeito provocado nos estudantes se perpetue durante toda a graduação ou mesmo durante a futura prática profissional. Nesta perspectiva, Coulehan²⁸ assevera que doses repetidas do efeito Dom Quixote podem contribuir para o desenvolvimento do caráter e sugere que, para manter o surto temporário de sentimento de altruísmo desencadeado pelas sessões de cinema, os alunos precisam identificar outras situações da prática clínica rotineira que simulem este efeito, apontando a responsabilidade dos professores e preceptores em representarem um modelo de profissional a ser seguido por seus aprendizes. No entanto, o que acontece com frequência durante a graduação médica é que os estudantes passam por um conflito de valores, pois o currículo explícito que vigora no ensino médico tem como objetivo o ensino de empatia, profissionalismo e desenvolvimento moral, porém estes mesmos estudantes são expostos, principalmente durante os anos clínicos do internato, ao currículo oculto. E este tem um impacto maior em repassar posicionamentos inadequados, tais como desrespeito na relação com o paciente, abuso de poder na hierarquia estabelecida entre professor e aluno, além de desalinhamento entre a idealização da prática médica, geralmente transmitida como modelo de profissionalismo pelo currículo formal, e as experiências clínicas reais que os alunos vivenciam nos hospitais²⁹ , ³⁰ .

Portanto, o cinema deve ser usado na educação médica como uma ferramenta de ensino de atitudes humanísticas, porém, para otimizar seu efeito nos anos do internato e prolongá-lo nas séries iniciais do curso, os docentes precisam entender a importância de uniformizar um padrão de comportamento que demonstre competência e virtude, condizente com os valores morais que a formação em Medicina objetiva transmitir aos futuros médicos.

LIMITAÇÕES DO ESTUDO

Apesar dos resultados satisfatórios obtidos, aponta-se como limitação deste estudo a não realização de uma avaliação atitudinal sequencial desses estudantes durante toda a graduação para avaliar seu comprometimento em manter uma postura humanizada na relação com os pacientes, inclusive após a conclusão do curso, durante a atuação profissional. Deste modo, não se pode inferir que esta medida pedagógica realmente tenha um impacto significativo na mudança do perfil dos médicos que passam por essa experiência durante o ensino médico, tendo em vista o delineamento transversal do estudo.

CONCLUSÃO

O cinema é uma ferramenta pedagógica eficaz no ensino de atitudes humanísticas durante a graduação médica e deve ser inserido sistematicamente nos currículos de cursos de Medicina nas séries pré-clínicas como recurso educacional complementar para educar as habilidades afetivas dos graduandos. No internato, esse recurso educacional pode ser usado, porém é preciso associar a essa metodologia uma mudança de comportamento entre os profissionais de saúde no ambiente hospitalar, pois a convivência com padrões de comportamento que demonstrem estigma e falta de empatia com os pacientes sobrepuja os efeitos psicológicos benéficos desencadeados pelos filmes nos estudantes de Medicina.

AGRADECIMENTO

Agradecemos à autora Maria de Fátima Avieiro Colares, por gentilmente disponibilizar o instrumento utilizado nesta pesquisa.

REFERÊNCIAS

• ¹
  Colares MF, Troncon LE, Figueiredo JF, Cianflone AR, Rodrigues ML, Piccinato CE, et al. Construção de um instrumento para avaliação das atitudes de estudantes de medicina frente a aspectos relevantes da prática médica . Rev Bras Educ Med. 2002; 26 (3): 194-203.
• ²
  Rennie SC, Rudland JR. Differences in medical students`attitudes to academic misconduct and reported behavior across the years- a questionnaire study. J Med Ethics. 2003 Apr; 29 (2): 97-102.
• ³
  Woloschuk W, Harasym PH, Remple W. Attitude change during medical school: a cohort study. Med Educ. 2004; 38:522-34.
• ⁴
  Smith RC, Dorsey AM, Lyles JS, Frankel RM. Teaching self-awareness enhances learning about patiente-centered interviewing. Acad Med. 1999; 74(11): 1242-8.
• ⁵
  Cohen LG, Sherif YA. Twelve tips on teaching and learning humanism in medical education. Med Teach. 2014; 36: 680-4.
• ⁶
  Liao L. Opening our eyes to a critical approach to medicine: the humanities in medical education. Med Teach. 2017;39 (2): 220-1.
• ⁷
  Schwartzstein RM. Getting the right medical students - nature versus nurture. NEJM. 2015; 372 (17): 1586-7.
• ⁸
  Alexander M, Hall M, Pettice Y. Cinemeducation: a comprehensive guide to using film in medical education. Fam Med. 1994; 26:430-3.
• ⁹
  Blasco PG, Gallian DM, Roncoletta AF, Moreto G. Cinema para o estudante de medicina: um recurso afetivo/efetivo na educação humanística. Rev Bras Edu Med. 2005; 29 (2): 119-28.
• ¹⁰
  Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 9th ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2008.
• ¹¹
  McNeilly DP, Wengel SP. Teaching psychotherapeutic techniques to medical students. Acad Psychiatr. 2001; 25(4):193-200.
• ¹²
  Shapiro J, Rucker L. The Don Quixote effect: why going to the movies can help develop empathy and altruism in medical students and residents. Families, System & Health. 2004; 22(4):445-52.
• ¹³
  Baños J. How literature and popular movies can help in medical education: applications for teaching the doctor-patient relationship. 2007. Med Educ;41: 915-20.
• ¹⁴
  Alexander M. The doctor: a seminal video for cinemeducation. Fam Med. 2002; 34(2):92-4.
• ¹⁵
  Byrne P. Why psychiatrists should watch films (or what has cinema ever done for psychiatry?). Advances in Psychiatric Treatment. 2009; 15:286-96.
• ¹⁶
  Keyes CL, Haidt J. Flourishing: positive psychology and the life well-lived. Haidt J. Washington DC: American Psychology Association; 2003. Elevation and the positive psychology of morality; p. 275-289.
• ¹⁷
  Schnall S, Roper J, Fessler DM. Elevation leads to altruistic behavior. Psychological Science. 2010; 21(3): 315-20.
• ¹⁸
  Güércio NH. A arte de perder: os silenciamentos do mal de Alzheimer na maturidade feminina protagonista em para sempre alice. Revista de Comunicação da Universidade Católica de Brasília. 2016; 9(2):221-35.
• ¹⁹
  Mullard A. The art of losing. The Lancet. 2015; 385 (9970):764.
• ²⁰
  Aydin N, Yigit A, Inandi T, Kirpinar I. Attitudes of hospital staff toward mentally ill patients in a teaching hospital. International Journal of Social Psychiatry. 2003; 49:17-26.
• ²¹
  Dixon RP, Roberts LM, Lawrie S, Jones LA, Humphreys MS. Medical students’ atitudes to psychiatric illness in primary care. Med Educ. 2008; 42(11): 1080-7.
• ²²
  Totic S, Stojiljkovic D, Pavlovic Z, Zaric N, Zarcovic B, Malic L, et al. Stigmatization of ‘psychiatric label’ by medical and non-medical students. International Journal of Social Psychiatry. 2011; 58 (5): 455-62.
• ²³
  Kerby J, Calton T, Dimambro B, Flood C, Glazebrook C. Anti-stigma films and medical students’ attitudes towards mental illness and psychiatry: randomized controlled trial. Psychiatric Bulletin. 2008; 32:345-9.
• ²⁴
  Alves TL, Alves FV, Melo EV, Oliva-Costa EF. Evaluation of medical interns’ attitudes towards relevant aspects of medical practice. Rev Assoc Med Bras. 2017; 63(6):492-9.
• ²⁵
  Mascia AR, Silva FB, Lucchese AC, De Marco MA, Martins MC, Martins LA. Atitudes frente a aspectos relevantes da prática médica: estudo transversal randomizado com alunos de segundo e sexto anos. Rev Bras Edu Med. 2009; 33(1): 40-8.
• ²⁶
  Wendy GA, Williams BS, Bost JE, Bernard D. Exposure to death is associated with positive attitudes and higher knowledge about end-of-life care in graduating medical students. J Palliat Med. 2008; 11(9):1227-33.
• ²⁷
  Doob LW. The behaviour of attitudes. Psychological Review. 1947; 54:135-156 apud Torres C., Neiva ER. Psicologia social: principais temas e vertentes. Porto Alegre: Artmed, 2011.
• ²⁸
  Coulehan J. The possible dream: a commentary on the Don Quixote effect. Families, System & Health. 2004; 22(4): 453-6.
• ²⁹
  Coulehan J, Williams PC, Van McCrary S, Belling C. The best lack all conviction: biomedical ethics, professionalism, and social responsibility. Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics. 2003; 12: 21-38.
• ³⁰
  Gaufberg EH, Batalden M, Sands R, Bell SK. The hidden curriculum: what can we learn from third-year medical student narrative reflection? Acad Med. 2010; 85 (11):1709-16.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  13 Jan 2020
• Data do Fascículo
  2019

Histórico

• Recebido
  4 Abr 2019
• Aceito
  3 Jun 2019