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A reconfiguração do ensino anatômico: tensões que incidem na disciplina básica

Reshaping the teaching of anatomy: tensions affecting the introductory undergraduate course

Resumos

Este artigo pretende iniciar a discussão da condição curricular da Anatomia Humana nos cursos médicos da atualidade frente a tensões que incidem sobre ela, que a podem estar levando a uma crise de manutenção de seu status sociocurricular. Baseamo-nos na análise bibliográfica e documental, conjugando as teorias sócio-históricas da construção dos currículos e disciplinas, a construção da Anatomia nos currículos médicos e condições gerais de apresentação da disciplina nestes currículos para elencarmos quatro tensões para a discussão: introdução de novas propostas de ensino-aprendizado; relação anatomia ensinada, anatomia pesquisada; expansão do ensino; reconfiguração do campo de inserção. Nossa análise nos leva a assinalar uma crise na retórica legitimadora da disciplina, com consequente redução do grau de importância sociocurricular e possível cristalização disciplinar.

Currículo; Anatomia; Ensino; Educação de Graduação em Medicina


This article aims to launch a discussion on the current undergraduate course curriculum in Human Anatomy and the tensions affecting it, which could be placing the course's social and curricular status in jeopardy. Our study is based on a literature review and document analysis, combining social and historical theories with the development of course curricula and disciplines, Human Anatomy in medical curricula, and the general conditions in which this course is presented in curricula, in order to list four tensions for discussion: introduction of new teaching-learning proposals; the relationship between anatomy as taught and anatomy as research; the expansion of teaching; and reshaping the field for inclusion of anatomy. Our analysis reveals a crisis in the underlying rhetoric of the course, resulting in a reduction in its social and curricular importance and a possible crystallization of the discipline.

Curriculum; Anatomy; Teaching; Education Medical Undergraduate


ENSAIO

A reconfiguração do ensino anatômico:tensões que incidem na disciplina básica

Reshaping the teaching of anatomy: tensions affecting the introductory undergraduate course

Patricia Teixeira TavanoI; Maria Isabel de AlmeidaII

IUniversidade Anhanguera-Uniderp, Osasco, SP, Brasil

II Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Patrícia Teixeira Tavano Rua Francisco Romeiro Sobrinho, 70 Santo Amaro -São Paulo CEP. 04710-180 SP E-mail: patricia@tavano.net

RESUMO

Este artigo pretende iniciar a discussão da condição curricular da Anatomia Humana nos cursos médicos da atualidade frente a tensões que incidem sobre ela, que a podem estar levando a uma crise de manutenção de seu status sociocurricular. Baseamo-nos na análise bibliográfica e documental, conjugando as teorias sócio-históricas da construção dos currículos e disciplinas, a construção da Anatomia nos currículos médicos e condições gerais de apresentação da disciplina nestes currículos para elencarmos quatro tensões para a discussão: introdução de novas propostas de ensino-aprendizado; relação anatomia ensinada, anatomia pesquisada; expansão do ensino; reconfiguração do campo de inserção. Nossa análise nos leva a assinalar uma crise na retórica legitimadora da disciplina, com consequente redução do grau de importância sociocurricular e possível cristalização disciplinar.

Palavras-chave: Currículo, Anatomia, Ensino, Educação de Graduação em Medicina

ABSTRACT

This article aims to launch a discussion on the current undergraduate course curriculum in Human Anatomy and the tensions affecting it, which could be placing the course's social and curricular status in jeopardy. Our study is based on a literature review and document analysis, combining social and historical theories with the development of course curricula and disciplines, Human Anatomy in medical curricula, and the general conditions in which this course is presented in curricula, in order to list four tensions for discussion: introduction of new teaching-learning proposals; the relationship between anatomy as taught and anatomy as research; the expansion of teaching; and reshaping the field for inclusion of anatomy. Our analysis reveals a crisis in the underlying rhetoric of the course, resulting in a reduction in its social and curricular importance and a possible crystallization of the discipline.

Keywords: Curriculum, Anatomy, Teaching, Education Medical Undergraduate

INTRODUÇÃO

Nos currículos médicos convencionais, que dividem as disciplinas em ciclo básico - anos iniciais de formação, contemplando as disciplinas laboratoriais - e ciclo clínico - anos finais da formação, composto de disciplinas aplicadas -, a Anatomia Humana é disciplina básica, constante e comumente alocada nos dois anos iniciais1,2, pois compreendida como fundamento anteprimeiro da profissão, já que é parte do processo de construção da racionalidade profissional.

Considerada como ponto de cisão de uma medicina pouco precisa e algo mística para uma medicina objetiva, que busca a compreensão dos processos patológicos a partir da realidade constitucional e funcional do corpo humano, sede da doença que se busca combater, a Anatomia é levada a ocupar lugar de destaque na construção da racionalidade da profissão médica a partir da Renascença, quando o "corpo humano ganha, no desenho preciso e na descrição detalhista, a objetividade do olhar que viu, na dissecação oculta dos cadáveres, a forma verdadeira dos órgãos e das veias"3 (p. 83).

Este processo de construção da racionalidade se reflete na fala dos profissionais médicos que se propõem a contar a história de sua profissão. Tais relatos traçam as origens da medicina a partir das condições de compreensão do corpo humano propostas em cada época, demonstrando grande similaridade entre os avanços da terapêutica médica e os avanços no conhecimento anatômico4-10. Desta relação que se firma na certeza da imprescindibilidade dos conhecimentos anatômicos para um sólido saber-fazer médico, emergem os elementos que fizeram a Anatomia uma disciplina curricular permanente dos cursos de formação médica até nossos dias.

Contudo, desde a década de 1990 intensificaram-se as propostas de reformulação dos currículos médicos11 como tentativas de alinhá-los às iniciativas didático-pedagógicas que buscam desenvolver um ensino mais próximo da realidade clínica do futuro médico, dando-lhe subsídios desde o início do curso para a reflexão acerca de sua intervenção terapêutica12, num movimento no sentido de substituição do modelo americano de hierarquização das disciplinas, divididas em ciclos básico e clínico13,14, por propostas mais dinâmicas e integradas15-17.

Este artigo trata de uma análise bibliográfica e documental que visa iniciar a discussão sobre a possível crise em que se encontram as disciplinas básicas. Consideramos a bibliografia publicada sobre o ensino da Anatomia Humana desde a década de 1990 e as análises acerca das modificações curriculares publicadas nos periódicos especializados. Sustentamos nossas argumentações em textos pertinentes à organização curricular e construção sócio-histórica das disciplinas, para consolidar proposições elencadas por meio da análise de livros didáticos, periódicos especializados, documentos e relatórios oficiais, na intenção de assinalar algumas tensões que incidem sobre o ensino da Anatomia Humana nos cursos de formação médica, que podem interferir não apenas nas condições de apresentação da disciplina, mas também na própria manutenção destes conteúdos enquanto disciplina curricular independentemente nomeada.

RECONFIGURAÇÃO DO ENSINO DA ANATOMIA DIANTE DE TENSÕES CURRICULARES

O reconhecimento de uma rubrica curricular enquanto disciplina passa pela identificação e análise da presença e consolidação dos elementos constitutivos desta. Tal ação é facilitada pelo reconhecimento de algumas categorias de análise elencadas por André Chervel18 e Ivor Goodson19-21, compondo os elementos constitutivos essenciais de uma disciplina: finalidades de sua presença curricular; conteúdos selecionados e ministrados; métodos de ensino; exercícios de treinamento e fixação; avaliações de verificação; comunidades disciplinares formadas pelos profissionais que se identificam, professam e defendem a disciplina; tradições historicamente construídas e que são a base da manutenção e proliferação da comunidade e da própria disciplina. Permeando tais elementos, a estabilidade de uma disciplina depende da retórica legitimadora que a comunidade disciplinar empreende, de tal forma que os elementos se consolidem e mantenham seu status curricular20.

Quando fatores internos ou externos pressionam o espaço currículo-disciplinar, estes elementos constitutivos tendem a se remodelar para responder às novas solicitações, firmando a disciplina por meio do sucesso na formação dos alunos e na manutenção e consolidação de seus objetivos, métodos, re-gras, procedimentos, manuais que se lhe tornam próprios18,20.

Designamos estas pressões, de forma genérica, como tensões curriculares. Na atualidade, a Anatomia estaria sujeita a uma série destas tensões, que colocariam em xeque a permanência da disciplina - de conteúdos, métodos, avaliações e tradições reconhecidos enquanto parte de seus fundamentos e essenciais na formação médica - como uma rubrica assim designada. Descrevemos a seguir algumas das tensões que acreditamos incidirem no espaço-tempo curricular da Anatomia.

Introdução de Novas Propostas de Ensino-aprendizado

Em alinhamento às novas propostas educacionais, muitos cursos médicos se veem em processo de reconfiguração de suas matrizes curriculares, de forma a oferecer um ensino mais direcionado e eficiente ao estudante, rompendo com a dicotomia dos ciclos, em que o estudante era inicialmente exposto a todo o conteúdo considerado básico para a construção de seu pensamento crítico-profissional, para só depois colocar em prática direcionada estes conhecimentos, hierarquizando as disciplinas conforme o modelo norte-americano. Isto pode levar à cisão no pensamento clínico-aplicado e ao distanciamento entre o que se aprende no início do curso e o que se utiliza ao final, gerando pensamentos que sinalizam erroneamente ao estudante que "na prática, a teoria é diferente"14-17.

Rompendo com a influência norte-americana, a proposta de currículos integrados - fortemente por meio da Aprendizagem Baseada em Problemas (PBL, na sigla em inglês) na área médica - visa expor o estudante a situações por ele reconhecidas como atuação de sua prática profissional. A partir delas, os conteúdos das disciplinas seriam resgatados para suportar as resoluções das problemáticas propostas, compondo um ambiente interdisciplinar de discussão e construção de saberes.

Tais reorganizações na matriz curricular geram conflitos, pois a fronteira entre as disciplinas é questionada, comprometendo a estabilidade de seus elementos constitutivos, já que pedem às comunidades disciplinares que deixem as separações fronteiriças entre os conhecimentos específicos e permitam o trabalho conjugado, interdisciplinar, propondo rupturas e superações na plena execução das tradições destas disciplinas22.

No espaço da disciplina de Anatomia, iniciativas como esta impactam diretamente a sua base fundante, as dissecações23. Enquanto base fundamental da disciplina, caracterizando-se como origem dos conteúdos, método de ensino, exercício de fixação e avaliação dos conteúdos, a dissecação é também a mais forte tradição morfológica e responsável pela captação de novos membros para a comunidade. Ainda que as novas tecnologias de ensino possam reduzir a prática diária dissecatória2,23,24, o contato com peças dissecadas é parte imprescindível da disciplina, o que afasta dela os indivíduos que não a tolerem.

Ao propor uma nova abordagem que abala estes elementos constitutivos, a plena execução da disciplina de Anatomia se vê em xeque, pois se ressente do redimensionamento e redirecionamento que a abordagem integrada das disciplinas impõe. Assim, cria-se uma tensão que pode ser compreendida na exata medida da posição curricular, do status que a disciplina sempre ocupou no curso médico e que se vê em recomposição.

A tensão da inserção de uma nova proposta de ensino, que abala as fronteiras disciplinares, é também uma tensão individual, pois os indivíduos que compõem a comunidade e professam a Anatomia são chamados a rever suas tradições e propostas metodológicas, e mudanças não são tão bem aceitas quanto esperado20.

Embora os currículos integrados sejam a nova tendência e se apresentem como mais adequados às novas expectativas do mercado de trabalho e da sociedade do conhecimento, podem gerar ressentimentos entre os membros das comunidades, que se veem preteridos em suas prioridades disciplinares e sentem seu status curricular e território de domínio questionados e redimensionados.

Relação Anatomia Ensinada, Anatomia Pesquisada

Os conteúdos programáticos da disciplina se voltam para a vertente tradicional/histórica - atualmente conhecida como Anatomia Macroscópica -, em contrapartida às pesquisas mais direcionadas às novas ideias do campo, como a Biologia Molecular. Tal situação se explicita na contraposição entre os livros didáticos e os periódicos especializados.

Os livros trazem, habitualmente, a Anatomia Macroscópica expressa nas formas sistêmica, segmentar ou topográfica, ou ainda um misto das duas formas de apresentação, dividindo o conteúdo em capítulos destinados a cada segmento (cabeça, dorso, tronco, membros) ou sistema corporal (como esquelético, nervoso, digestório), precedidos por capítulo introdutório de ambientação do estudante ao universo anatômico dos termos, secções, fatores de variação, entre outros. Como exemplos desta apresentação do conteúdo da disciplina, citamos os livros didáticos mais utilizados das três maiores editoras médicas brasileiras: Anatomia Humana, de Kent Marshall Van de Graaff10, editada pela Manole, em sexta edição de 2003; a publicação nacional Anatomia Humana, de José Geraldo Dangelo e Carlo Américo Fattini25, editada pela Atheneu, em terceira edição de 2007; e ainda, editado pela Guanabara Koogan, o texto de Henry Gray, Anatomia, considerado clássico, de primeira edição datada de meados do século XIX, cuja 20ª edição de 191826 apresenta a mesma divisão sistêmica da 37ª edição de 199527; e, desta mesma editora, o livro didático mais "popular há mais de 25 anos", conforme consta na sua contracapa, Anatomia, de Keith Moore e Arthur Dalley28, em sua quinta edição de 2007.

Assinalamos basicamente a similaridade de apresentação dos conteúdos com décadas de intervalo, pois as primeiras edições destes livros se registram nas décadas de 1980-1990, exceto o clássico de Henry Gray26, acompanhado de semelhança significativa neste conteúdo discutido, excetuando-se o capítulo introdutório e algumas discussões clínicas, mais presentes em algumas obras que em outras. Evidentemente, há que assinalar os necessários avanços tecnológicos e midiáticos expressos nas edições dos livros.

Uma recente publicação da editora Guanabara Koogan, de primeira edição do segundo semestre de 2009, também denominada Anatomia, organizada por Gerhard Aumüller29, explicita em seu prefácio que, mesmo não tendo havido mudanças expressivas na Anatomia e apesar da quantidade de publicações em Anatomia já tradicionais e conceitualmente importantes, um novo livro sobre o tema se justifica, pois as exigências de inovação na área médica são constantes. Assim, a publicação propõe um novo tratamento da Anatomia, com "uma forte orientação dos conteúdos de aprendizado pré-clínico, de acordo com aspectos mais relevantes no cotidiano da atividade clínica"29 (p. 5). No entanto, salvo as discussões clínicas e os capítulos introdutórios, que também são fator de diferenciação nos livros mencionados, este livro didático se configura como seus pares em uma divisão sistêmico-segmentar de conteúdos tradicionais, reeditando abordagens.

De maneira distinta, os periódicos nos mostram a tendência de pesquisas em Biologia Molecular e Anatomia Animal. Como exemplos, citamos o Brazilian Journal of Morphological Science30 , periódico publicado desde 1984 pela Sociedade Brasileira de Anatomia, único em nosso país; o Journal of Anatomy31, publicado desde 1867 pela Sociedade de Anatomia da Grã-Bretanha e Irlanda; e o The Anatomical Record32, publicação da Associação Americana de Anatomistas, que inicia suas atividades em 1906.

O Brazilian Journal of Morphological Science30 traz, além de artigos de Anatomia Animal, Anatomia Comparada, artigos focados em Biologia Molecular, grande campo de interesse da atualidade, sem artigos especificamente direcionados à Anatomia Macroscópica, ainda que esta permeie a argumentação e ambientação de parte das comunicações.

Se observarmos o Journal of Anatomy31, considerada a mais antiga publicação ininterrupta da área, podemos acompanhar no século XX a modificação da linha editorial, que se desvia da abordagem macroscópica dos livros didáticos. Este periódico, através do qual podemos acompanhar modificações como a constituição do campo de estudos da Fisiologia como uma área independente, a introdução da microscopia, dos raios X, a emergência da teoria dos germes, entre outras, mostra uma trajetória que vai das comunicações em Anatomia Macroscópica à Biologia Molecular e Anatomia Animal, ao longo de sua centenária existência.

Já o The Anatomical Record32 marca a mudança da linha editorial de forma mais contundente em 1996, quando comunica a divisão de sua linha editorial em duas partes: a parte A ("discoveries in molecular, celular and evolutionary biology"), que marca a trajetória em direção às novas tendências da Anatomia, olhando para a Biologia Molecular; e a parte B ("new anatomists"), que aglomera as discussões tradicionais, com grande contribuição dos debates acerca dos processos de ensino, aprendizagem, tensões do ensino, currículo médico.

Estes dados, ainda que brevemente relatados, nos indicam a existência de uma porção da Anatomia destinada ao ensino, e uma porção da Anatomia destinada à pesquisa, tendência explícita no periódico norte-americano. Ao avaliarmos a situação dos campos de estudo, veremos que esta dicotomia é frequente no ensino superior, onde se ensina o conteúdo consolidado e se destinam à pesquisa as fronteiras do conhecimento específico de cada área.

A grande questão a somar na situação específica da Anatomia é a característica centenária da obtenção dos conteúdos de ensino. Uma disciplina que tem como foco de estudos um objeto único, ainda que bastante complexo como o corpo humano, tende ao esgotamento com o correr das décadas de pesquisadores se dedicando a este objeto. Urge redirecionar o olhar do pesquisador por meio das possibilidades que o avanço das tecnologias permite e que se reflete na forma de pesquisas numa linha não contemplada pelo ensino habitualmente.

Contudo, é necessário analisar criticamente tal constatação, que parece a única possível. O ensino depende das pesquisas e é sustentado por elas. Se grande parte dos docentes migra para novas áreas de pesquisa, o ensino tende à cristalização por falta de revisão de seus conteúdos. Além disso, é importante compreender que a Anatomia não é apenas o conteúdo, mas também o método, as atividades comprobatórias, as tradições. Assim, a disciplina pode se beneficiar de avanços metodológicos, rompendo a dicotomia entre ensino e pesquisa observada em alguns centros.

O olhar do pesquisador-docente de Anatomia sobre as questões do método, do ensino, das possibilidades de aprimoramento e profundidade do aprendizado é uma realidade em alguns locais, como nos indica a linha editorial da parte B do periódico The Anatomical Record32, faz parte das recomendações da assembleia de encerramento do I Encontro Internacional de Ensino em Anatomia do ICB/USP, ocorrida em 13 de março de 2009, e deve ser o ponto de partida para a aproximação entre ensino e pesquisa33.

De um lado, a ampliação do campo de pesquisa, que se modificou nas últimas décadas, incorporando novas tecnologias, novos métodos e objetos, engordando a base; de outro, uma disciplina enraizada em um campo de pesquisa não mais revisitado e renovado, cristalizado em suas ideias e propostas, aproximando-o de um processo de secundarização. Tal fenômeno é descrito por Circe Bittencourt34 como a aproximação das disciplinas do ensino superior, em seus conteúdos e métodos, das disciplinas do ensino médio, devido à interrupção da produção de conhecimento pela ausência do ensino com pesquisa e em virtude de as próprias pesquisas do professor responsável serem inexistentes ou focadas em outro objeto que não o de sua disciplina.

A associação do ensino à pesquisa é elemento fundante do ensino universitário, e a Anatomia Humana não pode prescindir da pesquisa e se submeter à cristalização. É importante que se compreenda a amplitude da disciplina para além dos conteúdos, abrindo novas expectativas de pesquisa.

Expansão do Ensino

A expansão da quantidade de instituições de ensino superior, que leva ao aumento real da demanda por material anatômico e por profissionais docentes especializados nas questões e métodos da disciplina, que são distintos daqueles do campo de pesquisa, também é um ponto a considerar.

De acordo com os dados do Censo da Educação Superior do Brasil, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) na década compreendida entre 1996 e 2006, a quantidade de instituições de ensino superior no Brasil saltou de 922 para 2.270, expandindo de 861 para 2.963 os cursos da área da saúde, respectivamente. No mesmo período, a quantidade de alunos matriculados nos cursos da área da saúde nessas instituições saltou de 72.334 em 1996 para 766.317 em 200635.

Não é difícil concluir que também se estabelece maior necessidade de docentes para acompanhar esse incremento de vagas no ensino superior. De acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), tendo por base o ano de 2009, apenas três instituições universitárias, todas públicas, oferecem cursos recomendados de pós-graduação com as modalidades mestrado e doutorado em Anatomia Humana, designados na grande área da Morfologia36.

Apenas três cursos de formação específica não logram qualificar a quantidade necessária de profissionais para a atuação no ensino superior em expansão, que tem, obrigatoriamente, de contemplar as expectativas de ensino-pesquisa, formação consolidada nestes cursos, em especial para a pesquisa. A expansão da oferta de salas de aula não encontrou resposta na expansão da área de formação e qualificação específica dos profissionais para o seu ensino, gerando tensões em efeito dominó.

Um número maior de cursos, instituições e estudantes em curto espaço de tempo dificulta a obtenção de cadáveres humanos em quantidade e qualidade suficientes para o estudo, e a prática pedagógica desta disciplina se baseia na dissecação e utilização de peças cadavéricas para a compreensão e fixação dos conteúdos23. De difícil obtenção, preparação e conservação, o uso constante com muitos manipuladores pode levar à perda acentuada do material em intervalos menores de tempo e gerar déficits anuais. Tais déficits, mesmo numa situação utópica de disponibilidade de material, não seriam facilmente repostos, haja vista a falta de mão de obra especializada, já que não se formam profissionais docentes em Anatomia Macroscópica em número suficiente para suprir a expansão. Some-se aqui a tensão do envelhecimento natural dos especialistas em atividade, que, ao não encontrarem formação de base, não têm como serem substituídos em suas aposentadorias, aumentando o forame, em um trocadilho anatômico.

Reconfiguração do Campo de Inserção

O efeito dominó, que se configura na interface da capacitação e formação docente e manutenção do espaço de trabalho minimamente favorável e do ensino de qualidade, é acrescido em gravidade na tensão que se concretiza por meio do desenvolvimento técnico-científico das décadas de 1970 e 1980, que viram a Genética e a Biologia Molecular florescerem, impondo suas abordagens nos currículos médicos.

Em virtude da maior quantidade de conhecimentos a se-rem discutidos nas academias, as grades curriculares são incrementadas com novas disciplinas11. Porém, não se pode expandir indefinidamente o tempo de formação final do profissional médico, pois há a pressão do mercado de trabalho. A solução foi reduzir as cargas horárias das disciplinas tradicionalmente categorizadas como básicas, como a Anatomia Humana e a Fisiologia, o que permitiu redirecionar este tempo para as disciplinas emergentes e com importância clínica patente.

Segundo Aziz et al.37, a carga horária de Anatomia pode ter sido reduzida à metade do que era na década de 1980, com alguns cursos médicos deixando de realizar as dissecações de cadáveres humanos, as quais alavancam historicamente o conhecimento anatômico, permitindo à disciplina ser integrada como parte essencial do saber médico8. Inzunza et al.11 expõem a peculiaridade da situação em vista dos avanços tecnológicos, principalmente na área do diagnóstico por imagem, incorporados à área médica na década de 1990:

Ironicamente, neste momento em que os conhecimentos da Anatomia estão sendo intensamente abordados [ela está] em uma situação desagradável, caracterizada por: a) redução das horas dedicadas às aulas, b) redução dos pesquisadores das ciências morfológicas, c) reduzido acesso ao material cadavérico e d) um aumento do número de alunos em relação ao número de professores por curso. (p.825)

Para a pergunta crítica "Why teach anatomy?", o editorial de Mark Paalman38 do número 261 da publicação norte-americana The Anatomical Record (New Anatomists) traz as respostas de docentes não identificados vinculados a universidades nor-te-americanas. Eles dão conta de uma disciplina esvaziada de importância, com sinais de degradação no ensino da Anatomia Macroscópica em seu papel de formadora básica do pro-fissional médico. Além da redução da carga horária, o ensino da Anatomia sofre com a integração com outras disciplinas, como a Fisiologia, ainda às custas da abertura de espaço na grade curricular. E o autor acrescenta que a erosão da disciplina de Anatomia Macroscópica é tal que ela declina "de pedra angular no primeiro ano do currículo para quatro - ou cinco - semanas de aulas com testes de múltipla escolha e pouco tempo com o cadáver (se houver)"38 (p. 1).

Ao analisarmos o caráter empírico do método de ensino da Anatomia - o contato direto com o cadáver -, torna-se patente o dificultador da plenificação da disciplina, que tem de lidar com reduções de carga horária, de objeto de estudo e de supervisores para o trabalho discente.

O tempo necessário ao estudo, compreensão e sedimentação dos saberes dessa disciplina é que está em jogo, sujeitando os alunos a um estudo superficial, com contatos bastante restringidos com o objeto de estudos, o cadáver. Mas o mais preocupante não é a redução do tempo curricular, mas, sim, o esvaziamento de importância que conduz a esta redução.

Tomáz Tadeu Silva nos indica que um currículo não é construído por "conhecimentos válidos, mas de conhecimentos considerados socialmente válidos"39 (p. 8, grifo do autor). Assim, temos de questionar a importância social da Anatomia neste currículo médico que reduz e quase impossibilita sua completa execução como disciplina. Tal currículo, por questões espaço-temporais, impede a disciplina de Anatomia de se apresentar integralmente por meio das dissecações de cadáveres humanos ao estudante de Medicina, de forma a lhe permitir experienciar a plenitude dos saberes anatômicos, praticamente impedindo que se promova o ensino com pesquisa, estimulando a simples transmissão e fixação de conteúdos, reduzindo a disciplina a um de seus elementos constitutivos (os conteúdos) e eliminando a vivência do método (tradicionalmente a dissecação) por falta de tempo disponível na grade curricular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentamos algumas tensões sobre a disciplina de Anatomia que se potencializam nos currículos médicos, geradas por reformulações de abordagem de ensino, descompasso do ensino em relação às pesquisas e amplidão do efeito da expansão do ensino superior. Ao mesmo tempo em que aumentam o acesso dos brasileiros ao ensino, esses fatores geram um efeito cascata de falta de profissionais e de material de estudos, com grave déficit de formação docente. Além disso, também consideramos uma questão mais crucial: a manutenção da posição da Anatomia nos currículos médicos, o que reflete a importância social da disciplina.

Ao somarmos as tensões aqui brevemente apresentadas, podemos aventar que parte da crise da Anatomia estaria na constituição de uma retórica legitimadora por parte da comunidade disciplinar que represente e defenda esta comunidade e esta disciplina.

O redirecionamento do olhar do pesquisador, a cristalização da disciplina, a restrição das possibilidades de formação específica, a ampliação do mercado de trabalho, tensões mediadas por uma reforma curricular que tende ao esmaecimento das fronteiras disciplinares, podem estar enfraquecendo a retórica da comunidade, que vê seu espaço restringido e não mais encontra meios de defesa de seu território, deixando que o prestígio curricular de sua disciplina se reduza, desencadeando a reação de defesa de seus integrantes, que migram em busca de novas fronteiras socialmente mais relevantes.

A Anatomia Humana tem trajetória de cumplicidade com a profissão médica, já que constitui um dos fundamentos da racionalidade profissional. Contudo, sua importância social nos currículos médicos da atualidade não pode se pautar qua-se exclusivamente em sua importância sócio-histórica.

Esses conhecimentos e saberes, que muito fizeram para alavancar a ciência e as técnicas médicas, não podem se reduzir e se conformar em defender o que foi. Devem ser redimensionados e ressignificados, recebendo o devido grau de importância que o conhecimento do corpo humano deve ter na formação do profissional competente e hábil para o cuidado do ser humano. Devem se reconhecer enquanto disciplina curricular, com conteúdos, métodos, avaliações e tradições que regulam e ditam a disciplina, porém não são cristalizados, mas constantemente invadidos por solicitações externas - e internas - que devem ser analisadas e respondidas para que a disciplina se torne mais próxima da função social que se lhe possa atribuir na atualidade.

A disciplina iniciada por Andreas Vesalius sempre se baseou na capacidade de integração clínico-terapêutica, o que a tornou essencial nos currículos médicos. Porém, a possível falta de revisão da comunidade disciplinar sobre sua própria disciplina, e não sobre o campo de pesquisa, a torna fixada em preceitos não mais revisitados, sujeitando seus conteúdos e métodos convencionais à apropriação por outras disciplinas emergentes, onde terão morada e possivelmente frutifiquem, preocupando os indivíduos e as tradições disciplinares acerca de um futuro não necessariamente promissor enquanto rubrica curricular.

Recebido em: 15/07/2010

Reencaminhado em: 24/01/2011

Aprovado em: 24/03/2011

CONFLITO DE INTERESSES

Declarou não haver.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Patrícia Teixeira Tavano contribuiu na coleta e análise dos dados, produção e revisão do texto final. Maria Isabel de Almeida contribuiu na análise dos dados, produção e revisão do texto final.

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  • Endereço para correspondência:
    Patrícia Teixeira Tavano
    Rua Francisco Romeiro Sobrinho, 70
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011

    Histórico

    • Recebido
      15 Jul 2010
    • Aceito
      24 Mar 2011
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