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Percepção dos Profissionais de Saúde em relação à Integração do Ensino de Estudantes de Medicina nas Unidades de Saúde da Família

RESUMO

Introdução

O curso de Medicina do Centro Universitário de Votuporanga (UNIFEV), implantado em 2012 em acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Medicina (DCN) de 2001, insere os discentes nos cenários da atenção primária à saúde (APS) desde o primeiro período do curso até o final do internato, rompendo com o modelo tradicional de formação, centrado no hospital e segmentado em especialidades. Nesse contexto, a integração ensino-serviço-comunidade exerce um papel importante na transformação dos cursos de graduação em saúde, visando também à modificação do modelo assistencial vigente.

Objetivos

Compreender a percepção dos profissionais das Unidades de Saúde da Família (USF) quanto à inserção dos estudantes de Medicina nesses serviços e interpretar os reflexos desta integração para o serviço, a comunidade e a formação médica.

Métodos

Pesquisa qualitativa, realizada com profissionais de saúde de três USF de Votuporanga (SP), frequentadas pelos discentes da UNIFEV. Eles foram convidados a participar de grupos focais em que expressaram suas opiniões de acordo com perguntas disparadoras de discussão. O material gravado foi transcrito, organizado e submetido à análise de conteúdo de Bardin.

Resultados e discussão

Emergiram opiniões que permitem identificar o que segue: a integração ensino-serviço-comunidade contribui com a formação médica; a presença do aluno promove a integração e o autoaprendizado da equipe e promove o processo de trabalho; a integração do aluno tem impacto na comunidade. Entre as contribuições do aluno, os participantes destacaram as práticas reflexivas assistenciais e acadêmicas, as ações de educação em saúde e as atividades complementares que apoiam a equipe na resolução de problemas locais. Os participantes identificaram algumas situações de dificuldade, tais como: os estudantes dos períodos iniciais do curso necessitam adquirir domínios afetivos para uma adequada postura profissional na USF; o constrangimento de pacientes na consulta médica com a presença dos estudantes; e o curto tempo de permanência dos discentes para a necessária construção de vínculo.

Conclusão

Para os profissionais das USF, a inserção dos estudantes nestes cenários contribui para o desenvolvimento do serviço, a formação médica e o apoio à comunidade. Devido às relações solidárias existentes entre a instituição de ensino e a gestão do SUS, esta pesquisa pode contribuir para promover as adaptações necessárias e preparar a comunidade e os profissionais para a presença dos estudantes na APS.

Educação em saúde; Ensino; Integração à comunidade; Integração docente assistencial; Atenção primária à saúde

ABSTRACT

Introduction

The Centro Universitário de Votuporanga (UNIFEV) medicine course was implemented in 2012 according to the 2001 National Curricular Guidelines for Undergraduate Medical Courses. The practical module of Community Service Education Integration is the curricular unit that places students into Primary Health Care (PHC) scenarios from the first period of the course until the internship period, breaking with the traditional model of hospital-centered training, which is segmented into specialties. The module of medical skills and attitudes training also leads the student, in some cases, to PHC services, but with focus on the basic clinical procedures in controlled scenarios, which may be those from typical clinical practice, simulations or even those performed in laboratories. During internship, the student continues in PHC as an intern in general, family and community medicine. In this context, the integration of community-education-service plays a major role in the transformations undergone in undergraduate training in health, which are also aimed at modifying the current healthcare model.

Objectives

To understand the perception of professionals from the Family Health Care Units regarding medical student work placement and to interpret the results of this integration as far as the service, the community and the medical training are concerned.

Methodology

Qualitative research carried out with health professionals who work in three Family Health Care Units of Votuporanga, São Paulo, Brazil. They were invited to participate in focus groups to express their opinions about thought-provoking questions. The recorded material was transcribed, organized and analyzed according to Bardin’s content analysis, which allowed categories of analysis to emerge based on what the participants said. Results and discussion: The opinions that have emerged allow to identify the following aspects: teaching-service-community integration contributes to medical education; student presence promotes team integration and self-learning and promotes the work process; student integration has impact on the community. Among the student’s contributions, participants highlighted the academic and health care reflective practices, health education actions and complementary activities that support the health team in solving local problems. Participants also identified some situations of difficulty, such as: students in the early periods of the course need to acquire affective domains for an adequate professional posture at PHC units; the embarrassment of patients in the medical consultation with the presence of students; and the short length of stay of the students for the necessary bond building.

Conclusion

For PHC professionals, the inclusion of students in these scenarios contributes to the development of the service, medical training and community support. Due to the solidary relations existing between the educational institution and the PHC management, this research may contribute to promote the necessary adaptations and prepare the community and professionals for the presence of students in PHC.

Health Education; Teaching; Community Integration; Healthcare-Teaching Integration; Primary Healthcare

INTRODUÇÃO

O curso de Medicina do Centro Universitário de Votuporanga-SP (UNIFEV) foi implantado em 2012, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Medicina (Resolução CNE/CES nº 4, de 07/11/2001)11 Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES no 4, de 07 de novembro de 2001 [Internet]. 2001 [acesso em 12 jul. 2018]. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES04.pdf>.
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd...
, que determinam as competências e habilidades para a formação de médicos generalistas e apontam que os conteúdos essenciais estão relacionados com os determinantes do processo saúde-doença, integrados às realidades epidemiológica e profissional, e insere seus discentes desde o primeiro período do curso na atenção primária à saúde (APS).

Em 2014, uma atualização destas DCN (Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de junho de 2014)22 Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES no 3, de 20 de junho de 2014 [Internet]. 2014 [acesso em 12 jul. 2018]. Disponível em: <http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdf>.
http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/r...
determinou o estágio obrigatório no Sistema Único de Saúde (SUS), na atenção primária à saúde (APS) e nos serviços de urgência e emergência.

O projeto pedagógico do curso de Medicina da UNIFEV é baseado em metodologias ativas de ensino-aprendizagem e privilegia as atividades educativas na atenção primária, além da atenção secundária à saúde e unidades complementares. A matriz curricular tem carga horária de 7.708 horas, sendo 4.248 horas em unidades curriculares teóricas/práticas, 100 horas de atividades complementares e 3.360 horas de estágio curricular obrigatório (internato). Os conteúdos foram agrupados e distribuídos em unidades curriculares que promovam o desenvolvimento de competências relacionadas à atenção à saúde, gestão em saúde e educação em saúde33 UNIFEV Centro Universitário de Votuporanga. Projeto pedagógico do curso de medicina. Votuporanga: UNIFEV; 2017.. Cada semestre é denominado “período” e corresponde a uma unidade temática de acordo com os ciclos de vida: 1º período – adolescência; 2º período – concepção e gravidez; 3º período – recém-nascido e infância; 4º período – adulto mulher; 5º período – adulto homem; 6º período – envelhecimento e morte; 7º período – cuidado integral em saúde I; 8º período – cuidado integral em saúde II; 9º, 10º, 11º e 12º períodos – estágio curricular obrigatório ou internato.

Os períodos são compostos pelas seguintes unidades curriculares: Práticas Laboratoriais (PL), Módulo Tutorial (MT), Treinamento de Habilidades e Atitudes Médicas (THAM), Prática de Integração Ensino Serviço Comunidade (PIESC) e Estudo de Caso Integrado (ECI).

Assim, a PIESC é a unidade curricular que tem a responsabilidade didático-pedagógica-social de proporcionar ao aluno a vivência do cotidiano da APS desde o primeiro período do curso.

O primeiro ciclo da PIESC ocorre nos três primeiros períodos letivos. No primeiro período, grupos de dez alunos acompanhados por um tutor identificam as necessidades de saúde de adolescentes e crianças na intersetorialidade (assistência social e educação) de uma Unidade de Saúde da Família (USF), tais como no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), escolas de ensino fundamental e médio. No segundo período, é elaborado um projeto de intervenção em saúde da criança com foco em uma necessidade de saúde levantada no semestre anterior. Esse projeto é elaborado com rigor científico para que o aluno entenda todos os passos de uma pesquisa e é, obrigatoriamente, submetido à aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição. No terceiro período, esse projeto é desenvolvido e avaliado. No segundo ciclo da PIESC, composto pelo quarto, quinto e sexto períodos do curso, os alunos identificam necessidades coletivas de saúde e desenvolvem um projeto de intervenção para um grupo populacional específico, correlacionado ao ciclo de vida do período letivo vigente. No último ciclo, que ocorre no sétimo e oitavo períodos, os alunos vivenciam aspectos relevantes de gestão e vigilância em saúde e refletem sobre eles em USF, Unidades de Pronto Atendimento (UPA), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços de Atenção Especializada (SAE - DST, AIDS e Hepatites) e Secretaria Municipal de Saúde.

Na unidade curricular THAM, o aluno também comparece com seus tutores médicos da UNIFEV em cenários controlados, simulados ou de prática clínica na USF, para treinamento de procedimentos clínicos básicos, específicos de cada período.

Chegando ao internato, o aluno mantém estágio por dois anos com carga horária de 672 horas na Medicina Geral, de Família e Comunidade (MGFC) e tem supervisão direta do preceptor, que é o médico da Equipe de Saúde da Família (ESF). Esse é o estágio de maior carga horária do internato.

Portanto, a UNIFEV inseriu os alunos nas USF com seus tutores no segundo semestre de 2012 até o segundo semestre de 2016, quando iniciaram o internato e passaram a ter como preceptores os próprios médicos de família dos serviços.

Pinheiro e Freitas44 Pinheiro SA, Freitas MA. Ensino médico e promoção à saúde em creche comunitária. Rev Ass Med Brasil. 2001;47(4):320–4.relatam que algumas escolas médicas do Brasil já estão fundamentadas na formação generalista, no modelo de saúde universalista e comprometidas com a busca da equidade social, pois a educação médica e o desenvolvimento de pesquisa devem acompanhar as transformações da sociedade e suas necessidades.

Entretanto, em muitas escolas médicas ainda se observa o enfoque do modelo flexneriano de ensino (tradicional), hospitalocêntrico e voltado às doenças e especialidades médicas, dificultando a compreensão da pessoa como um todo e a resolução dos cuidados na APS. Esta formação é reproduzida nos serviços de saúde onde os alunos se inserem e deve ser superada por educação permanente.

Nesse contexto, muitos são os debates sobre a integração ensino-serviço em consonância com os movimentos de transformação da graduação em saúde, que pretende impulsionar práticas profissionais e a modificação do modelo assistencial vigente55 Albuquerque VS, Gomes AP, Rezende CHA, Sampaio MX, Dias OV, Lugarinho RM. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais da saúde. Rev Bras Educ Méd. 2008;32(3):356–62., justificando esta pesquisa.

Pressupõe-se que a inserção de estudantes de medicina nas USF, além de desenvolver e qualificar habilidades e atitudes médicas generalistas, possa contribuir com a educação permanente dos profissionais e melhorar a qualidade da assistência à saúde da população daquele território, pois com base na realidade concreta das necessidades de saúde de uma população é que devemos desenvolver os conteúdos acadêmicos e as práticas dos serviços.

Espera-se com esta pesquisa apurar a percepção que os profissionais de saúde têm acerca da presença dos estudantes de medicina nas USF, identificando os benefícios e as dificuldades para o serviço, para a comunidade e para a formação médica. Assim, sob a ótica dos profissionais de saúde, será possível contribuir com eventuais adequações necessárias.

MÉTODOS

Optou-se por uma abordagem qualitativa, capaz de incorporar a intencionalidade inerente aos atos, às relações e às estruturas sociais, preocupando-se com a realidade que não pode ser quantificada e trabalhando um universo de significados, sentimentos e valores66 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014..

A pesquisa foi autorizada pela Secretaria Municipal de Saúde de Votuporanga e aprovada no Comitê de Ética e Pesquisa da UNIFEV, sob o Parecer nº 2154472/2017, não havendo conflito de interesses.

Os participantes da pesquisa foram 35 profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, dentistas, auxiliares odontológicos, farmacêuticos, agentes de saúde, gerente administrativo e recepcionista) de seis ESF de Votuporanga em 2016. Como critério de seleção, foram admitidos apenas profissionais com mais de seis meses de trabalho, por entendermos que é o tempo necessário para que o profissional tenha conhecimento e interação com estudantes de medicina no serviço.

Foram selecionadas três USF com três ESF cada. A escolha das unidades considerou o fato de serem cenários de práticas para a PIESC desde o primeiro período do curso de medicina e para o internato, iniciado em julho de 2016. Nos dois grupos focais realizados em duas destas USF, os dados se apresentaram semelhantes, demonstrando saturação. Assim, optou-se por realizar outro grupo focal apenas com os médicos generalistas destas USF, preceptores do internato, que ficam com os estudantes em período integral de suas atividades profissionais, exercendo a docência e a assistência. Este grupo homogêneo, com oito médicos, criou um ambiente protegido e propício ao debate das situações de preceptoria e assistência, inerentes a todos os participantes.

Nos dois grupos heterogêneos, o entrosamento foi mais difícil, cabendo ao mediador o papel de criar um ambiente propício ao debate. No entanto, bem explorados, esses grupos geraram relatos e discussões menos contidos e com grande riqueza de informações.

Os grupos focais utilizaram as seguintes perguntas disparadoras: (a) Você notou diferença em sua rotina de trabalho com a presença dos estudantes de medicina?; (b) Você percebeu diferenças no seu comportamento e no de outros profissionais de saúde com a presença dos estudantes? Na sua visão, quais foram os benefícios e as dificuldades para o serviço?; (c) Como você acha que deve ser a formação dos estudantes de medicina? Onde eles devem ser preparados?; (d) Como você acha que pode contribuir com a formação dos estudantes de medicina?; (e) Você considera que a população é beneficiada com a presença dos estudantes de medicina?; Quais seriam esses benefícios? Existem desvantagens? Quais?

Após a coleta, os dados foram organizados em consonância com as etapas propostas por Bardin77 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2004. por meio do método de análise de conteúdo: análise prévia, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Em seguida, foram expostos em categorias de análise e, para a apresentação dos dados, foram utilizados recortes de relatos dos profissionais de saúde. Nesses recortes, os participantes foram identificados por siglas que caracterizam sua formação e número de inscrição, sendo: M/médico, F/farmacêutico, AS/agente de saúde, E/enfermeiro, TE/técnico de enfermagem, AE/auxiliar de enfermagem, AB/auxiliar em saúde bucal, D/dentista, R/recepcionista, G/gerente administrativo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com base na análise das manifestações dos participantes, emergiram quatro grandes categorias de percepções, que serão consideradas os subtítulos desta seção.

O aluno promove a integração e o autoaprendizado da equipe de saúde

Uma das mudanças apontadas pelos participantes foi em relação ao comportamento do profissional médico enquanto preceptor. Com esta duplicidade de papéis, ele tem que refletir e explicar o que era automático e nem sempre detém o conhecimento para isso, tendo que estudar mais:

M3: [...] a gente tem que refletir e explicar.

M3: [...] tem que explicar o que era automático... tem que explicar para eles por que é que a gente chegou a esta conclusão, a este diagnóstico [...]

M7: [...] acaba tendo que estudar um pouco mais para responder.

A presença do estudante expõe o profissional à prática reflexiva, ou seja, o convida a refletir criticamente sobre seus conhecimentos e dúvidas. Essas ações diminuem o automatismo e impulsionam o raciocínio analítico e a capacitação permanente88 Caldeira ES, Leite MTS, Rodrigues-Neto JF. Estudantes de medicina nos serviços de atenção primária: percepção dos profissionais. Rev Bras Educ Méd. 2011;35(4):477–85.. Portanto, a presença do estudante motiva o profissional médico a estudar quando seus conhecimentos não respondem às dúvidas apresentadas, contribuindo com seu autoaprendizado e melhorando a qualidade do trabalho.

Outros depoimentos dizem respeito ao intercâmbio de saberes e práticas entre os profissionais da equipe, principalmente entre o médico e agentes de saúde. O estudante parece ser um elo de comunicação interprofissional que motiva o médico a se relacionar e a valorizar os saberes da equipe para dar respostas às necessidades de saúde identificadas e às demandas dos estudantes.

Com a presença do estudante, o médico efetua mais frequentemente o trabalho interprofissional e interdisciplinar, trocando conhecimentos entre os diferentes profissionais da equipe e da rede de assistência, no intuito de qualificar o cuidado que o estudante vivencia.

Um médico fez a seguinte observação:

M14: Com o estudante, ficou muito mais frequente a sistematização de atendimentos (interprofissional) protocolados pelas cartilhas do Ministério [...] integrando o atendimento multiprofissional e realizando as classificações de risco e que eles (os alunos) têm que interagir com a equipe e se interessar pela vida do paciente [...] a gente ensina a dar atenção, abordar não só a doença, mas a questão social.

Para um efetivo trabalho em equipe, deve haver interdisciplinaridade, já que nenhum profissional detém todos os conhecimentos para atender às necessidades de saúde. No entanto, ações integradas e com objetivo comum entre os profissionais de diferentes áreas só são possíveis por meio de um diálogo contínuo que supere a fragmentação do cuidado99 Cavalcante Filho JB. Coletivos organizados para a produção do cuidado integral: um desafio para a regulamentação profissional. Rev APS. 2009;12(2):214–20..

Pelos depoimentos a seguir, nota-se que a integração do estudante na equipe possibilita a educação permanente dos profissionais por meio da troca de informações no processo de trabalho cotidiano:

AS7: contribuem com alguma coisa que a gente tem dúvida [...] orientam

AS7: tem uma dúvida, a gente já esclarece com o interno [...] é mais um aprendizado no dia a dia

M14: a medicina tem muitas descobertas, e o acadêmico traz também o conhecimento novo até para o próprio preceptor [...] paciente vai ser beneficiado.

Segundo Ceccim e Feuerwerker1010 Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Rev Saúde Coletiva. 2004;14(1):41–65., a educação permanente é a produção de conhecimentos no cotidiano das instituições de saúde com base na realidade vivida pelos atores envolvidos, tendo os problemas enfrentados no dia a dia do trabalho e as experiências desses atores como a base das interrogações e mudanças.

No internato, o preceptor é o médico da equipe, capacitado pela instituição de ensino superior, que, em contrapartida, oferece ao SUS essa atividade de educação permanente, contribuindo para a qualificação da rede de atenção à saúde.

Contrapondo-se aos benefícios apresentados, os entrevistados também apontaram algumas experiências negativas com a chegada dos estudantes. Alguns apresentaram atitudes de desrespeito com a equipe e com os pacientes, superadas no decorrer da integração, como observado a seguir:

E2: [...] no começo eles só riam, eram mal-educados [...] foi uma desvantagem para a unidade e para os pacientes.

AS11: no consultório é uma coisa, fora são prepotentes [...] isso é da pessoa [...] personalidade.

M3: ele é muito metido, quer mandar na equipe [...] a gente chegou a ter problema com dois acadêmicos; só queriam atender o paciente [...] não queriam vínculo com a equipe [...] aquela ideia de doença e tratamento [...] a gente orienta e logo se adaptam melhor.

Percebemos pelas falas dos participantes que os discentes chegam ao serviço com seu desenvolvimento afetivo por concluir, assim como é esperado para os domínios cognitivos. O comportamento, as atitudes, a responsabilidade, o respeito, a emoção e os valores se modificam rapidamente quando os estudantes são integrados à realidade do serviço. E, com base na Taxonomia de Bloom, é possível interpretar que a interação entre refletir e atuar em condições concretas faz com que o discente ascenda às categorias do processo educacional neste domínio afetivo1111 Ferraz APCM, Belhot RV. Taxonomia de Bloom: revisão teórica e apresentação das adequações do instrumento para a definição de objetivos instrucionais. Gest Prod. 2010;17(2):421–31..

Os estudantes também podem ser influenciados por profissionais que reproduzem o modelo hierarquizado e individualista, perpetuando a falta de integração com a equipe. No entanto, para vencer as barreiras historicamente impostas à formação em saúde, deve ocorrer a aproximação precoce entre os estudantes de medicina e a realidade do SUS. O ensino no serviço aguça o olhar crítico e reflexivo dos alunos frente à situação-problema vivenciada e os auxilia a atuar de modo a obterem bons resultados1212 Brandão ERM, Rocha SV, Silva SS. Práticas de integração ensino-serviço-comunidade: reorientando a formação médica. Rev Bras Educ Méd. 2013;37(4):573–7..

A integração do aluno tem impacto na comunidade

Os participantes comentaram o constrangimento da população atendida, que ocorreu inicialmente pelo fato de não ter apenas a presença do médico na consulta. A equipe acolheu as queixas dos pacientes e se apoiou em seus saberes para explicar a necessidade de ter os estudantes na APS. Debateram também a importância de preparar melhor os pacientes para a presença dos estudantes. O trabalho da equipe, esclarecendo a população, apoiou a integração do aluno com a comunidade, minimizando as queixas iniciais. Identificou-se que esse constrangimento é menor quando o atendimento é feito com apenas um estudante e o médico.

M2: [...] tem alguns pacientes que não se sentem à vontade para falar de alguma queixa, principalmente se for uma mulher com queixa ginecológica, com um estudante homem [...] outros sentem falta quando os alunos estão em férias.

AS1: A maioria deles (pacientes) fica constrangida com o número de pessoas dentro da sala... dois estudantes e o médico. Se sentem constrangidos e acabam não falando tudo que querem falar e, depois, nas nossas visitas, eles relatam alguma coisa que não falaram na hora da consulta.

AS5: A gente orienta, fala que a pessoa está lá, mas que está sendo orientada pelo médico.

AS10: Toda mudança no começo gera estranheza, eu percebi isso na minha área, no começo gerou muita estranheza, mas com o tempo a aceitação veio, e isso praticamente não influencia mais a minha rotina de trabalho [...] não há muita reclamação [...] minha área está tranquila, tem muita aceitação.

M14: Alguns pacientes chegavam e falavam: “Ah, não vai ser o doutor que vai me atender, então eu não quero” [...] eu orientava, a gente finaliza o atendimento juntos [...] eles são pessoas da minha confiança [...] voltavam nos próximos atendimentos [...] se sentiam mais confiantes [...] estavam integrando esses novos alunos como se fossem da nossa equipe.

Para Oliveira et al.1313 Oliveira S, Alvarez D, Brito J. A dimensão gestionária do trabalho: aspectos da atividade de cuidado. Ciênc Saúde Coletiva. 2013;18(6):1581–9., o encontro dos profissionais com o usuário e também dos alunos e professores se associa a um movimento de nova normatização em busca de um novo modo de fazer, permeado pela dinâmica e organização do trabalho, pelo panorama epidemiológico e pela concepção dos envolvidos no cuidado.

Na percepção dos trabalhadores de saúde entrevistados por Trajman et al.1414 Trajman A, Assunção N, Venturi M, Tobias D, Toschi W, Brant V. A preceptoria na rede básica da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro: opinião dos profissionais de Saúde. Rev Bras Educ Méd. 2009;33(1):24–32., um ponto negativo da inserção dos estudantes no serviço é justamente o constrangimento do usuário. A insegurança do usuário acontece mais em procedimentos e exames físicos constrangedores, exemplificado em nosso grupo focal como sendo o exame ginecológico.

Portanto, podemos concluir que a relação médico-paciente é baseada na confiança que o médico inspira e na compreensão do paciente sobre a realidade do médico, que deve ser por ele apresentada para que se construa uma relação de vínculo e empatia. Essa conquista exige uma escuta sensibilizada, com atenção e interesse, corroborando os depoimentos a seguir:

D12: Faltou um pouco de instrução para o paciente, faltou explicar o que os alunos estavam fazendo ali com o médico.

AS6: Muitos que reclamam não sentem confiança porque nada foi avisado.

Embora tenham debatido o fato de o paciente ter mais atenção com a presença dos estudantes, os participantes também citaram que a rotatividade desses estudantes dificulta o estabelecimento de vínculo com os pacientes. Isso é percebido nos seguintes exemplos:

AS1: O que dificulta o vínculo dos pacientes com os estudantes é que eles ficam pouco tempo, tem uma rotatividade grande [...] se ficassem por um período maior... facilitaria o vínculo e confiança entre eles.

M14: Os que voltaram e ficaram mais tempo, os pacientes já conseguem se relacionar bem [...] o paciente fica mais à vontade e até pergunta pelo doutor. [...] Já houve uma melhora nesta rotatividade.

Esta rotatividade ocorre devido à necessidade do ensino de propor campos de estágios diversos aos 60 alunos de cada turma do curso de medicina. No entanto, devem ocorrer esforços no sentido de minimizar essa rotatividade quando possível.

O aluno contribui para o processo de trabalho

A integração dos alunos com a equipe e com a comunidade permitiu o fortalecimento de algumas atividades da APS, pois, quando o processo de ensino-aprendizagem é estabelecido a partir da integração do discente no serviço de saúde, pode induzir a novas formas de organização do trabalho, melhorando a qualificação do atendimento55 Albuquerque VS, Gomes AP, Rezende CHA, Sampaio MX, Dias OV, Lugarinho RM. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais da saúde. Rev Bras Educ Méd. 2008;32(3):356–62..

Os grupos de Educação em Saúde, por exemplo, passaram a ocorrer mais vezes e com maior adesão da população.

M7: [...] alunos davam palestras, e a adesão da população estava imensa [...] abolidas as palestras, a população se queixou porque aprendia muito com os alunos, era uma integração muito gostosa.

AO3: [...] as orientações que eles dão nos grupos têm sido um benefício para a população.

O discente submetido às novas diretrizes curriculares parece estar mais sensível ao modelo de educação pelo diálogo, distanciando-se das práticas de educação verticalizadas, que ditam comportamentos a serem seguidos. Assim, ele aceita que o usuário é portador de saber diverso do técnico-científico, mas não deslegitimado, o que proporciona maior adesão da comunidade aos grupos de educação em saúde desenvolvidos na APS1515 Cardoso A, Souza MC. Contribuição das ações de educação em saúde para a qualidade de vida de diabéticos do bairro Ipiranga. Rev Flumin Extensão Univ. 2013;3(1/2):5–7..

Além de contribuir com os grupos de educação em saúde, discussões nos grupos focais revelam que os alunos, quando passam a integrar a equipe, auxiliam em tarefas diversas e multiprofissionais, por vezes até sendo uma alternativa à escassez de profissionais da APS:

M5: a equipe precisava organizar as receitas dos pacientes que usavam psicotrópicos, e eles ajudaram muito a farmacêutica.

M14: quando a escassez de profissionais da equipe técnica de enfermagem gera alguma dificuldade, eles podem ir lá e, por hora, resolver esta questão.

Nos serviços de saúde, as atividades de ensino são complementares e devem contribuir para solucionar os problemas apresentados pela realidade. No entanto, o aluno não deve apenas servir de mão de obra complementar para o serviço, mas deve ser capaz de refletir sobre a sua formação profissional à luz do sistema de saúde, pois a falta de reflexão crítica sobre o processo de trabalho instituído levaria à manutenção do cuidado em seu propósito produtivo, e o que se deseja é a mudança destas práticas1616 Caetano JA, Diniz RCM, Soares E. Integração docente-assistencial sob a ótica dos profissionais. Cogitare Enferm. 2009;14(4):638–44..

Outra mudança ocorrida no processo de trabalho foi no tempo da consulta médica. Inicialmente, as consultas ficaram mais demoradas na presença dos alunos. O médico, agora também preceptor, relata que o aluno executa a sequência da consulta médica e, em seguida, esta é repetida por ele. Por vezes, a queixa do paciente é reinterpretada na anamnese do profissional, já que, para desenvolver essa prática médica, é necessário que o aluno desenvolva habilidades na relação médico-paciente que dependem da prática e do conhecimento. O médico também checa o exame físico e explica os achados positivos, além de discutir as hipóteses diagnósticas e os exames complementares necessários, relacionando a terapêutica indicada:

M3: eu achei que [...] com os alunos, foi maior o tempo de consulta [...] eles examinam, e a gente tem que examinar de novo [...] tem a discussão [...] a gente tem que refletir para explicar por que chegou àquele diagnóstico.

M1: maior foi o tempo da consulta médica (na presença dos estudantes), já que com a prática a gente acaba atendendo mais rápido.

De fato, o estudo de Trajman et al.1414 Trajman A, Assunção N, Venturi M, Tobias D, Toschi W, Brant V. A preceptoria na rede básica da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro: opinião dos profissionais de Saúde. Rev Bras Educ Méd. 2009;33(1):24–32. mostrou falta de tempo dos profissionais de saúde para darem a atenção devida aos estudantes, e um estudo internacional observou que o ensino no cenário ambulatorial diminui a produtividade quantitativa do preceptor1717 Garg ML, Boero JF, Christiansen RG, Booher CG. Primary care teaching physicians’ losses of productivity and revenue at three ambulatory-care centers. Acad Med. 1991;66(6):348–53..

Nos grupos focais, os participantes relatam que o tempo de consulta com o aluno é maior, mas tende ao equilíbrio com o tempo de prática desses estudantes, sem prejuízo quantitativo. Além disso, na percepção dos profissionais ouvidos, consultas médicas mais demoradas, com a escuta desenvolvida pelos alunos, são positivas, pois o paciente é ouvido com mais atenção e demonstra satisfação:

M1: [...] mudou minha rotina porque o tempo de consulta com o estudante é maior.

M5: [...] isso foi resolvido conforme os estudantes foram adquirindo mais prática [...] ou [...] acaba que é o mesmo tempo de consulta que a gente gastaria.

E4: o aluno tem a atenção voltada para o paciente. Ele escuta mais, e muitas vezes o paciente precisa disso.

M6: [...] acaba que o paciente tem mais atenção, e os alunos têm mais paciência para conversar [...] e muitos gostam.

TE4: Ajudam nas consultas, com receitas, agilizou [...] enquanto um vai medindo a pressão, o outro vai vendo outra coisa e ajudou o médico com o fluxo da Unidade, que é muito grande [...] ajudam nos procedimentos [...] ajudam o médico e a enfermagem.

Com a organização do serviço e preparo prévio dos estudantes para desempenhar tarefas que contribuam para a formação e auxiliem a equipe, não há prejuízo para a produtividade do serviço, pois os estudantes compensam a equipe com outros atendimentos1818 Spencer J. Learning and teaching in the clinical environment. BMJ. 2003;326(7389):591–4..

Em estudo realizado na APS, Traverso-Yépez e Morais1919 Traverso-Yépez M, Morais NA. Reivindicando a subjetividade dos usuários da Rede Básica de Saúde: para uma humanização do atendimento. Cad Saúde Pública. 2004;20(1):80–8.sugerem que a comunicação entre o médico e o paciente tende a ser insatisfatória tanto pela limitação de tempo que a maioria desses profissionais enfrenta por ter que conciliar diferentes atividades, quanto pelo uso da linguagem técnica, difícil de ser compreendida pelo usuário. Já nos debates aqui analisados, parece existir uma satisfação da equipe com a disponibilidade que os alunos apresentam em ouvir os pacientes, dando-lhes mais atenção.

A integração ensino, serviço e comunidade contribui para a formação médica

Os participantes abordaram também outra categoria, que é a formação profissional dos estudantes. Eles concordam em que o aluno deve aprender na diversidade de cenários do SUS, com ênfase na APS. Destacaram positivamente o fato de a Faculdade de Votuporanga inserir o aluno desde o primeiro ano do curso em cenários reais da APS e apontaram a transformação e as habilidades empáticas e cognitivas adquiridas pelos alunos nas USF:

E1: [...] lógico que não existe prática sem teoria, mas este novo modelo que a faculdade tem em Votuporanga, de trazer os alunos desde o primeiro ano para campo, contribui muito para o crescimento deles. É importante a gente dar oportunidade para o aluno aprender, porque no dia de amanhã ele irá cuidar da gente.

E2: [...] poder passar este conhecimento que a gente tem contribui para conhecerem a realidade. E quando voltam já sabem como interagir com a população e como funciona a Unidade.

E1: A gente recebe dois grupos: os que ficam com as doutoras todos os dias e os que vêm uma vez por semana; a gente nota uma diferença grande entre eles. Os que vêm uma vez por semana têm um pouco menos de cuidado com a população, já os que vêm todos os dias têm uma postura diferente.

M2: A visita domiciliar enriquece a prática porque no consultório a gente não imagina que o paciente possa estar passando por outras necessidades; daí, na casa, a gente descobre outras coisas, se envolve mais e cria vínculo [...] e faz diferença depois, no diagnóstico.

AS5: Acho que a gente contribui muito na formação deles, informando sobre a realidade do local onde eles irão trabalhar com a população [...]

Podemos inferir que as habilidades empáticas nas relações interpessoais podem ser desenvolvidas pelos alunos quando são apresentados à realidade dos pacientes, pois o reconhecimento das necessidades de saúde favorece a relação médico-paciente, inclusive para identificar os principais diagnósticos.

Na USF, o processo educacional vai além de aprender a rotina do serviço e desenvolver procedimentos, pois o aprender a fazer acontece na realidade das necessidades de saúde, nos problemas que desafiam o aluno a buscar soluções. A reflexão e o agir criticamente nas ações desenvolvidas pela equipe, bem como as discussões e correlações da literatura sobre temas de relevância para a APS são elementos importantes para a formação do novo perfil profissional que se pretende alcançar2020 Pereira JG, Campinas LLSL, Martines WRV, Chueiri PS. Integração academia; serviço e comunidade: um relato de experiência do curso de graduação em medicina na atenção básica no município de São Paulo. Mundo Saúde. 2009;33(1):99–107..

A formação com foco na APS privilegia a comunicação e relações, uma vez que atuar nesse cenário requer habilidades de negociação e pactuação, pois se trata de um contexto de grande complexidade e diversidade, que exige uma prática reflexiva dos profissionais para lidar com situações não capturadas pela lógica biomédica2121 Mestriner Júnior W, Mestriner SF, Bulgarelli AF, Mishima SM. O desenvolvimento de competências em atenção básica à saúde: a experiência no projeto Huka-Katu. Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(suppl 1):903–12..

Significativas foram as falas que reconheceram que as atividades dos estudantes na APS favorecem uma formação focada no processo saúde-doença e não apenas nas doenças, o que contribui para o aprendizado das ações preventivas e resolutividade nos atendimentos da APS quando aproxima o aluno do paciente, favorecendo a compreensão da pessoa como um todo e possibilitando o diagnóstico e cuidados pela equipe multiprofissional:

M14: Nada melhor do que trabalhar aqui em estágio como observador do médico, pois o desloca do hospital e ele vai atingir o princípio da medicina atual, que não é mais aquela curativa, lá dentro do hospital, mas a preventiva. Então, aqui é o lugar ideal para ele realmente estar e participar por bastante tempo.

D12: Neste local, eles têm uma visão bastante multiprofissional, eles interagem com muitas áreas [...] além de colocar em prática a teoria, eles vão ter noção da responsabilidade que eles têm com o paciente.

M14: [...] passar para eles (acadêmicos de Medicina) a problemática do dia a dia [...] coisas diferentes, que não são discutidas nos protocolos técnicos. Aí, você está inserido numa grande equipe e cada um pode dar a sua contribuição de alguma forma para ele lidar com a realidade do paciente, que não é só aquela colocada nos livros de teorias.

As práticas profissionais estabelecidas pelo modelo flexneriano, predominantemente hospitalar, não valorizam a compreensão e ação sobre os determinantes do processo saúde-doença88 Caldeira ES, Leite MTS, Rodrigues-Neto JF. Estudantes de medicina nos serviços de atenção primária: percepção dos profissionais. Rev Bras Educ Méd. 2011;35(4):477–85.. Já a relação de troca de saberes formada entre discentes, docentes, profissionais do serviço e usuários pode contribuir para a formação de um novo perfil de profissionais comprometidos com a qualidade na saúde e que atenda às reais necessidades da população55 Albuquerque VS, Gomes AP, Rezende CHA, Sampaio MX, Dias OV, Lugarinho RM. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais da saúde. Rev Bras Educ Méd. 2008;32(3):356–62..

Os participantes também falaram muito sobre a atuação dos alunos nos grupos de educação em saúde, enfatizando o fato de serem importantes espaços de treinamento para o estudante de medicina aprender outras maneiras de produzir saúde que não apenas em consultas:

AE7: [...] estarem na ação de (saúde) coletiva ajuda bastante (na formação do estudante), treinados com pacientes diferentes, lugares diferentes [...] participando de grupos.

Essas atividades com a comunidade ajudam os alunos a desconstruir a ideia de educação em saúde como prática de transmissão de conhecimentos, na qual o profissional de saúde detém o conhecimento e fornece orientações descontextualizadas aos usuários. Permitem que os acadêmicos compartilhem conhecimentos com as experiências dos pacientes e compreendam que podem assim fazer em sua ação médica diária1515 Cardoso A, Souza MC. Contribuição das ações de educação em saúde para a qualidade de vida de diabéticos do bairro Ipiranga. Rev Flumin Extensão Univ. 2013;3(1/2):5–7..

Outra contribuição para a formação médica citada pelos participantes foi o trabalho em equipe:

D12: Eu acho que neste local (USF) eles têm uma visão bastante multidisciplinar, eles interagem com muitas áreas. Eu acho que isso é uma bagagem bastante grande para eles.

TE4: Eu acho que uma grande contribuição também na formação desses médicos (estudantes) é o trabalho em equipe [...], pois cada um tem uma personalidade, cada um faz um serviço, cada área tem uma realidade [...] e tem a oportunidade de conhecer [...] vários níveis sociais diferentes, acho que isso ajuda muito [...] a aprender a ouvir [...]

Cada integrante da equipe possui um saber, uma história de vida diferente, uma formação. Com isso, a tendência é a de não considerarmos tais diferenças e trabalharmos como em uma fábrica, onde cada um faz uma parte do trabalho. No entanto, para desenvolvermos um trabalho em equipe, precisamos articular todas essas características sem perder a finalidade do trabalho e a especificidade de cada trabalhador2222 Fortuna CM, Mishima SM, Matumoto S, Pereira MJB. O trabalho de equipe no programa de saúde da família: reflexões a partir de conceitos do processo grupal e de grupos operativos. Rev Latino-Am Enfermagem. 2005;13(2):262–8..

O trabalho em equipe requer diálogo e elaboração de planos de atendimento em conjunto, definindo mais claramente o fazer de cada um em relação ao paciente. Assim, os estudantes participam das reuniões de equipe e vivenciam com mais intensidade os trabalhos interprofissionais.

CONCLUSÃO

Analisando a percepção dos profissionais de saúde da APS, podemos concluir que, na visão desses profissionais, a integração do aluno nas USF contribui tanto para o serviço quanto para o ensino e para a comunidade. Entre os benefícios destacam-se: as práticas reflexivas, que melhoram tanto a qualidade do atendimento quanto a formação do médico; as atividades desenvolvidas pelos discentes com a comunidade, principalmente as de educação em saúde, que promovem a qualidade de vida; as atividades discentes complementares e reflexivas para apoiar a equipe na resolução de problemas locais; o aprendizado para realizar o trabalho em equipe, respeitando os saberes dos diferentes profissionais e garantindo um novo perfil de profissional médico, como determinado nas DCN.

Como situações de dificuldades, os profissionais de saúde apontaram: o constrangimento de pacientes na consulta médica com estudantes, principalmente nas ocasiões de queixas íntimas que necessitam exame físico com maior exposição; e, no início do curso, a falta de domínio afetivo para uma postura profissional nos serviços. Outra situação de dificuldade relatada diz respeito ao período de permanência dos estudantes nas USF, que deveria ser maior para favorecer o vínculo com os pacientes e com a própria equipe de saúde.

Este estudo aponta ajustes necessários no período de permanência dos estudantes nos cenários da USF para diminuir a rotatividade e melhorar o vínculo com a equipe e a comunidade. É importante também reavaliar a infraestrutura da APS, identificando novos cenários para reduzir o número de alunos nas consultas médicas.

É necessário esclarecer e preparar a comunidade local para receber os alunos, pois se trata de uma formação importante para a continuidade de uma boa assistência médica no município. A instituição de ensino poderia contribuir divulgando e instruindo a comunidade sobre a importância de ter os futuros profissionais integrados à realidade de saúde durante seu processo de formação.

Vale ressaltar ainda a ausência de um programa de educação permanente multiprofissional, pois somente os médicos preceptores recebem essa contrapartida da instituição de ensino.

Esperamos que os resultados aqui apresentados possam motivar os profissionais de saúde e a escola médica a refletir sobre a APS, tanto no enfoque de saúde da comunidade quanto no enfoque educacional, valorizando o SUS em sua assistência e cenário de ensino.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    3 Mar 2019
  • Aceito
    26 Jun 2019
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