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O Lado B da História: o teatro popular da segunda metade do século XVIII nas Histórias do Teatro Português

B-side de l’histoire: le théâtre populaire de la second moitié du XVIIIe siècle dans les Histórias do Teatro Português

RESUMO

O Lado B da História: o teatro popular da segunda metade do século XVIII nas Histórias do Teatro Português O objetivo deste artigo é analisar os discursos de quatro Histórias do Teatro Português (HTP) sobre a segunda metade do século XVIII. Após discussão e delimitação dos aspectos estéticos que circulam por Portugal no período e dos problemas relativos ao teatro popular no corpus, estabelece-se uma análise quantitativa das variedades teatrais setecentistas em cada uma das HTP. Tal olhar quantitativo alavanca a análise qualitativa empreendida na parte central do artigo, que visa compreender a posição estético-ideológica do projeto discursivo de cada autor. Por fim, conclui-se que as HTP são marcadas por uma mirada que deve ser revista a partir do pensamento contemporâneo sobre o período.

Palavras-chave:
História do Teatro Português; Século XVIII; Análise Dialógica do Discurso; Teatro de Cordel; Teatro Árcade

RÉSUMÉ

B-side de l’histoire: le théâtre populaire de la second moitié du XVIIIe siècle dans les Histórias do Teatro Português – L’objectif de cet article est d’analyser les discours de quatre Histoires du théâtre portugais (HTP) sur la seconde moitié du XVIIIe siècle. Après avoir discuté et délimité les aspects esthétiques qui ont circulé au Portugal à l’époque et les problèmes liés au théâtre populaire dans le corpus, se établie une analyse quantitative des variétés théâtrales du XVIIIe siècle dans chacun des HTP. Certain regard quantitatif s’appuie sur l’analyse qualitative entreprise dans la partie centrale de l’article, qui vise à comprendre la position esthético-idéologique du projet discursif de chaque auteur. Enfin, on conclut que les HTP sont marqués par un regard qui doit être revu à partir de la réflexion contemporaine sur la période.

Mots-clés:
Histoire du Théâtre Portugais; 18ème Siècle; Analyse Dialogique du Discours; Teatro de Cordel; Teatro Árcade

ABSTRACT

The B-Side of History: the late 18th-century popular theater in the Histories of Portuguese Theater – The objective of this article is to analyze the discourses of four Histories of Portuguese Theater (HPT) about the late 18th century. After discussing and delimiting the aesthetic aspects that circulate in Portugal in the period and the problems related to popular theater in the corpus, we established a quantitative analysis of the eighteenth-century theatrical varieties in each of the HPTs. Such quantitative examination leverages the qualitative analysis undertaken in the central part of the article, which aims to understand the aesthetic-ideological position of the discourse project of each author. Finally, we concluded that the HPTs are characterized by a view that should be reviewed considering the contemporary thought about the period.

Keywords:
History of Portuguese Theatre; 18th century; Dialogic Discourse Analysis; Chapbook Theater; Arcadian Theater

Ler o variego século XVIII português

A segunda metade do século XVIII português é historicamente marcada por uma grande reviravolta na política portuguesa empreendida pelo Marquês de Pombal, que foi Secretário de Estado do Rei D. José I durante praticamente todo o seu reinado (1750-1777). Essa figura histórica foi tão importante à época que, diferentemente dos demais períodos monárquicos, o espaço de tempo coberto por sua atuação é chamado período pombalino. Dentre as muitas alterações promovidas pelo Marquês, uma que interfere diretamente em nossa discussão é o retorno dos chamados estrangeirados – cidadãos portugueses que, após terem contato com o Iluminismo vigente na Europa desde o início do século, tiveram que se esconder ou se ausentar do país para não serem capturados pela Inquisição ou pela polícia política portuguesas. Esse movimento promove uma renovação nas Letras portuguesas e, com elas, no teatro escrito e publicado1 1 A seu tempo se verá por que não se inclui o verbo representado aqui. em Portugal. É durante o governo do Marquês de Pombal que nomes como Correia Garção e Manuel de Figueiredo têm suas peças publicadas após serem aprovadas pela Real Mesa Censória.

Seguramente estas poucas linhas não apresentam propriamente a reviravolta social, política e cultural promovida nesse quarto de século, que corresponde ao secretariado de Pombal; tampouco evidenciam as tensões entre uma cultura florescida do obscurantismo que àquela sociedade era imposto e o eruditismo ilustrado importado. E aqui nos aproximamos um pouco mais de nossos objetos.

Tomaremos como corpus deste trabalho quatro livros fundamentais e bastante difundidos entre os estudiosos de teatro português: História do Teatro Português, de Luciana Stegagno Picchio (1969)PICCHIO, Luciana Stegagno. História do Teatro Português. Tradução de Manuel de Lucena. Lisboa: Portugália, 1969., cuja primeira edição, em italiano [Storia del teatro portoghese], é de 1964; História do Teatro Português, de Luiz Francisco Rebello (1967)REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro Português. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1967.; História do Teatro Português, de José Oliveira Barata (1991)BARATA, José Oliveira. História do Teatro Português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991.; e História do Teatro Português, de Duarte Ivo Cruz (2001)CRUZ, Duarte Ivo. História do Teatro Português. Lisboa: Verbo, 2001., os três últimos em sua primeira edição. Todos os autores traçam um panorama do teatro português em suas obras, chegando até próximo de sua data de publicação, em ordem diacrônica, divididas em capítulos cuja delimitação é, prioritariamente, a de escolas ou movimentos artísticos (que podem ou não ser depreendidos dentro de determinado século)2 2 Descrição um pouco mais detalhada de todos os títulos se encontra no verbete Teatro Português do Guia Bibliográfico da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) (Corradin; Silveira, 2017). . Importante notar, para seguimento da discussão, que todos os autores levantados organizam seus livros de maneira mais ou menos próxima. A concepção desses discursos e a forma em que se constituem são decorrentes, como não poderia deixar de ser, do pensamento humano vigente no período de sua escrita, a que chamaremos de pensamento contemporâneo, por ser coevo ao nosso próprio espaço-tempo discursivo.

E aqui começa a nossa questão com a escrita dessas obras nos capítulos que serão mais detidamente analisados neste artigo. Ao tratar do teatro dito popular da segunda metade do século XVIII, duas dificuldades se apresentam ao autor: a) o entendimento do pensamento vigente quando da escrita de um teatro tido como antigo, ou seja, que não corresponde ou tem pouco contato com os ideais de escrita atuais3 3 “A concepção estreita do caráter popular e do folclore, nascida na época pré-romântica e concluída essencialmente por Herder e os românticos, exclui quase totalmente a cultura específica da praça pública e também o humor popular em toda a riqueza das suas manifestações. Nem mesmo posteriormente os especialistas do folclore e da história literária consideraram o humor do povo na praça pública como um objeto digno de estudo do ponto de vista cultural, histórico, folclórico ou literário” (Bakhtin, 2010, p. 3). ; e b) a legitimidade e compreensão de obras pertencentes ao gênero cômico4 4 “[...] uma investigação profunda dos domínios da literatura cômica popular que tem sido tão pouco e tão superficialmente explorada” (Bakhtin, 2010, p. 3). É triste que tal observação, feita na década de 1920, fosse verdadeira até muito recentemente (e, em alguns redutos, ainda vigente). , ou seja, que não se encaixam nos padrões eruditos de escrita artística.

A esse respeito, debruçou-se Bakhtin (2014, p. 429)BAKHTIN, Mikhail. Rabelais e Gogól (Arte do discurso e cultura cômica popular). In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. quando analisou a obra de François Rabelais:

Uma das falhas essenciais da crítica literária moderna está no fato de que ela tenta colocar toda a literatura – em particular, a renascentista – nos moldes de uma cultura oficial, enquanto que só se pode compreender efetivamente a obra de Rabelais no fluxo da cultura popular, que sempre, em todas as etapas do seu desenvolvimento, tem resistido à cultura oficial e tem produzido o seu ponto de vista particular sobre o mundo e suas próprias formas de refleti-lo.

Da citação acima, primeiramente é importante explicar que Bakhtin compreende o Renascimento como um movimento mais amplo do que a escola artística a qual estamos habituados a delimitar até o final do século XVI. Para ele, faz sentido que o “pensamento renascentista” se prolongue até o final do período barroco – que, em Portugal, estender-se-ia até a segunda metade do século XVIII, quando entraria em embate e eventualmente seria suplantado pelas formas do pensamento humano seguintes (o qual Bakhtin chama de “pensamento ideológico da Europa burguesa”, 2010, p. 2). Tampouco Bakhtin propõe uma mudança súbita, mas gradativa, em que o pensamento iluminista-romântico inicia seu processo de estabelecimento já no século XVII europeu:

No século XVII, um processo muito importante afeta todas as esferas da ideologia: assiste-se a uma nítida acentuação de motivos como a generalização, a abstração empírica, a tipificação, que adquirem um valor capital na descrição do mundo. Esse processo completa-se no século XVIII. O próprio modelo do mundo é reorganizado. [...] Esse fenômeno manifesta-se com toda a sua força na obra criadora artística (sobretudo no século XVIII), dando origem à limitação específica do realismo do Século das Luzes (Bakhtin, 2010, p. 99BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 2010.).

Em Portugal, na segunda metade do século XVIII, vemos justamente esse processo ideológico proposto por Bakhtin. No teatro, em que claramente a corrente árcade se faz devedora do pensamento iluminista que chegou ao país com o governo pombalino, também a vertente anterior ainda se faz presente na esfera artística, nomeadamente no teatro de cordel.

Em segundo lugar, a cultura popular, para Bakhtin (2010, p. 2)BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 2010., é diferente da cultura oficial, porque nela não há “[...] dogmatismo, autoridade nem formalidade unilateral [...] [, ela é oposta] a toda perfeição definitiva, a toda estabilidade, a toda formalidade limitada, a toda operação e decisão circunscritas ao domínio do pensamento e à concepção do mundo”. Sendo assim, a cultura popular teria caráter não-oficial, cujas características escapariam à sistematização erudita. Seria como se nós (enquanto devedores do pensamento romântico) houvéssemos perdido a sensibilidade, o código necessário para conseguir interpretar uma obra pertencente ao âmbito da cultura popular e, mesmo tendo consciência disso, não é sempre que o historiador ou crítico consegue flexibilizar as coerções do seu próprio tempo.

Portanto, a análise dos discursos setecentistas e sua filiação a uma corrente de pensamento não-oficial no seu contexto histórico é parte maior desta pesquisa. Por ora, centralizamos nossa discussão na recepção da dramaturgia (e, eventualmente, cena) da segunda metade do século XVIII nas Histórias do Teatro Português circulantes atualmente. Uma vez que elas servem de porta de entrada para o entendimento e estudo desse período, e por não ser um período com abundantes estudos de fôlego, mor das vezes são as informações ali constantes que constituirão o saber dos estudiosos de teatro acerca da matéria. Daí surge nossa questão mobilizadora desta reflexão: como está sendo representado, nas Histórias do Teatro Português, o teatro popular da segunda metade do século XVIII, coetâneo à ópera e à Arcádia?

O problema do século XVIII português

Margot Berthold, no seu História Mundial do Teatro, publicado originalmente em 1968 – livro contemporâneo, portanto, dos de Picchio e Rebello –, dispõe seu livro por blocos temáticos, organizados de maneira diacrônica – também como são compostos os compêndios do nosso corpus. A introdução do capítulo que se centra no século XVIII assim o introduz ao seu leitor:

Em toda a Europa, o século XVIII foi uma época de mudanças na ordem social tradicional e nos modos de pensar. [...] Durante a primeira metade do século, [a Europa] sentiu-se unida na atmosfera otimista da Ilustração, ao passo que nas cortes principescas o fortissimo do barroco ia morrendo nos espelhos e molduras do rococó. [...] O teatro tentou contribuir com a sua parte para a formação do século que seria tão cheio de contradições. Tornou-se uma plataforma do novo autoconhecimento do homem, um púlpito de filosofia moral, uma escola ética, um tema de controvérsias eruditas e também um patrimônio comum, conscientemente desfrutado (Berthold, 2001, p. 381BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Tradução de Maria Paula V. Zarawski et al. São Paulo: Perspectiva, 2001.).

O excerto apresenta três aspectos relevantes para nossa discussão que já foram indicados no início deste texto: i) as mudanças no pensamento e na ordem social; ii) o gerúndio – “ia morrendo” – empregado sobre a estética barroca; e iii) o papel do teatro nessas mudanças. Uma vez que Berthold está se referindo ao teatro europeu de maneira geral, interessa-nos a intersecção desse movimento europeu com a realidade artístico-teatral vivida em Portugal no mesmo período.

A questão da mudança do pensamento humano em direção ao Iluminismo, que culminaria no pensamento romântico ou, através da metáfora proposta por Berthold (2001, p. 382)BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Tradução de Maria Paula V. Zarawski et al. São Paulo: Perspectiva, 2001., “a represa do século decorrido [que] inundou as correntes intelectuais e políticas do século XIX”, é fulcral para compreender o desmerecimento dos gêneros cômicos em meio à cultura erudita.

Com o Iluminismo e seu advento da razão ilustrada, a balança social se desequilibra e o riso vai perdendo seu espaço enquanto forma válida de compreender o mundo. Isso porque ele é oposto à razão preconizada pelos meios eruditos: ele é democrático, uma vez que todos os indivíduos que compartilham do mesmo ambiente social podem participar dele5 5 “O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo (esse caráter popular, como dissemos, é inerente à própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é ‘geral’; em segundo lugar, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (Bakhtin, 2010, p. 10, grifos no original). ; mas ele é também selvagem, como nos lembra Hansen (1992, p. 15HANSEN, João Adolfo. Uma arte conceptista do cômico: o “Tratado dos Ridículos” de Emanuele Tesauro. Referências, Campinas, CEDAE, jul. 1992., grifo no original):

Ora, de todos os vícios fracos, os mais vergonhosos são os da intemperança, nas devassidões e desonestidades, que implicam sempre os dois sentidos mais materiais e que são, aliás, os mais adequados à comédia. No caso, a aplicação das agudezas jocosas e pungentes provoca o cachinnus, a gargalhada, riso imoderado, diferentemente de outros vícios, que excitam um riso temperado com seriedade.

No comentário a Il cannocchiale aristotelico [A luneta aristotélica] (1663), de Emanuele Tesauro, o professor brasileiro entende o riso na chave medieval ou carnavalesca de que fala Bakhtin, uma vez que Tesauro é um comentador de Aristóteles cravado no coração do Renascimento. Sendo, portanto, “imoderado”, o riso deve ser, dentro da perspectiva ilustrada setecentista, retirado do ambiente social ou, na impossibilidade disso, relegado a um plano menor, mais circunscrito e limitado da vida social. A mudança do pensamento humano no século XVIII, portanto, interfere no valor cultural atribuído a determinados objetos artísticos, rebaixando-os ou elevando-os de acordo com a moralidade e eruditismo de cada momento.

Mas se engana quem pensa que tal mudança foi aceita e realizada com presteza e sem tensões. Não é por acaso que Berthold (ou, no caso, os tradutores) utiliza o gerúndio “ia morrendo” ao se referirem à estética barroca6 6 Acerca da inexistência de uma estética barroca em si, ver Hansen (2004). . A mundividência renascentista encontrava-se arraigada e perfeitamente ajustada à cultura popular europeia (e, porque não dizer, ocidental), uma vez que apresentava os elementos includentes apresentados acima e trazia o público para junto de si, levando-o em consideração7 7 Como já preconiza em 1609 Lope de Vega (2006) no seu Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo (v. 47-48): “porque, como las paga el vulgo, es justo / hablarle en necio para darle gusto”. . A estética iluminista, ao contrário, é uma construção da razão, ou seja, ela é primeiramente formulada como ideia e depois trazida à concretude da realidade em formas artísticas pouco acessíveis ao público teatral do século XVIII. Se foi mais fácil para esse teatro burguês cativar seu público em determinados países europeus, cujas conjunturas político-sociais propiciaram sua ascensão, certamente não o foi em Portugal.

Por fim, quanto ao papel do teatro nas mudanças que se instauraram no século XVIII, ele foi tomado como um veículo que seria capaz de fazer circular os ideais sociais, éticos e morais que floresciam dessa nova forma de entender a presença do homem no mundo. Numa perspectiva geral, Berthold (2001, p. 382)BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Tradução de Maria Paula V. Zarawski et al. São Paulo: Perspectiva, 2001. afirma que “[...] o palco viu-se convocado a ser o fórum e o baluarte da filosofia moral, e prestou-se a este dever com decoro e zelo”. Da mesma forma, determinada corrente do pensamento da dramaturgia portuguesa setecentista:

Uma ideia comum ressalta infalivelmente de todos estes textos: a da utilidade da arte dramática como meio de instrução. E esta concepção ‘utilitária’ do teatro está presente em todos os autores da Arcádia que escreveram textos teatrais, originais ou traduções, assim como nos censores da futura Real Mesa Censória, que fazem desta ideia uma condição sine qua non (Carreira, 1988, p. 18CARREIRA, Laureano. O teatro e a censura em Portugal na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988., grifos no original).

De acordo com a tese de Carreira, ficou a cargo dos árcades o diálogo do palco português com essa “forma mais elevada do pensar e do atuar humano” (Berthold, 2001, p. 382BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Tradução de Maria Paula V. Zarawski et al. São Paulo: Perspectiva, 2001.). Entretanto, pouco subiram à cena os textos escritos pelos autores “ilustrados” portugueses, inclusive porque a própria Arcádia Lusitana teve muito breve vida (1756-1776), e os poucos textos representados não cativaram seu público.

Além de sua utilidade enquanto forma de educação moral, os árcades almejavam suplantar as duas outras formas teatrais vigentes no cenário dramático português no século XVIII: a ópera, de clara influência italiana, e o teatro de cordel, em cuja miscelânea de referências se destaca a forma do teatro áureo espanhol. Especificamente contra o teatro de cordel reside uma “profunda aversão dos literatos da Arcádia e dos revedores da Mesa Censória” (Carreira, 1988, p. 20CARREIRA, Laureano. O teatro e a censura em Portugal na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988.), cujos ecos reproduzem o apagamento ou a minoração do gênero na história do teatro português.

Agora, se o século XVIII é, em toda a Europa, um momento de crise, Marnoto (2014, p. 10MARNOTO, Rita. Il Settecento. In: LANCIANI, Giulia (Org.). Il Settecento e l’Ottocento. Roma: UniversItalia, 2014., tradução nossa) nos atenta para a situação específica de Portugal no período:

Mesmo assim, os ritmos da literatura portuguesa são muito lentos em comparação ao da restante literatura europeia: se a Arcádia Romana foi fundada em 1690, a sua homóloga portuguesa, a Arcádia Lusitana, terá suas primeiras sessões formais apenas em 1757. Um país geograficamente situado na extremidade ocidental do continente europeu, como Portugal, esteve sempre inclinado ao contato com outros povos da Europa e do mundo. Mas a intensificação progressiva dessas relações, já a partir do início do século [XVIII], não poderia não ter um forte impacto na circulação de novas ideias.

Sendo os árcades os representantes do pensamento iluminista no teatro português, a crise do pensamento vivida na Europa no século XVIII se circunscreve, em Portugal, à segunda metade do século XVIII, motivo pelo qual nos debruçaremos mais detidamente nesse trecho das Histórias do Teatro Português do nosso corpus.

Temos, portanto, uma divisão entre a primeira e a segunda metade do século XVIII português que pode ser delimitada pela troca do Rei de Portugal e Algarves. Na primeira metade do século, temos o longo reinado de D. João V (1706-1750). Dos aspectos de seu reinado que nos interessam nesta discussão estão uma religiosidade exacerbada de sua corte, uma Inquisição ativamente presente no território nacional e o gosto do monarca pela ópera, inclusive financiando bolsistas para estudos na Itália. Tais condições impediram o florescimento do pensamento iluminista em Portugal durante seu reinado, privilegiando a manutenção do pensamento e das formas artísticas barrocas, já em voga no século anterior, de origem espanhola:

[...] o sucesso foi tal que esse gênero de teatro continuou a prevalecer muito além da data em que foi restaurada a dinastia de Bragança, em 1640. A cautela face às reivindicações de hegemonia do reino vizinho se conciliaram, portanto, com grande entusiasmo. Essa moda continua, todavia, no século XVIII, encontrando em António José da Silva um de seus grandes revitalizadores (Marnoto, 2014, p. 31MARNOTO, Rita. Il Settecento. In: LANCIANI, Giulia (Org.). Il Settecento e l’Ottocento. Roma: UniversItalia, 2014., tradução nossa).

O nome de António José da Silva, desde o Romantismo, é sempre citado como um dos grandes autores da história do teatro português, ao lado de Gil Vicente e Almeida Garrett. Sua dramaturgia segue, como afirma Marnoto, uma linha claramente espanhola de composição dramática, já com influência da ópera italiana, presente em território português desde o começo do século8 8 Para mais informações sobre António José da Silva e o teatro barroco ibérico, ver Carnavalização no teatro ibérico barroco (Gontijo Rosa, 2019a). .

Essa linha do teatro português terá continuidade na segunda metade do século XVIII com o chamado teatro de cordel, o qual é unanimemente encarado pelos estudiosos de teatro não como um gênero teatral, mas sob a égide de sua materialidade (ser vendido pendurado em um cordel) e seus objetivos (ser um teatro escrito ou traduzido com o intuito de agradar aos seus leitores) – ou seja, estamos lidando com um conjunto heterogêneo de textos reunidos e nomeados a posteriori, e cuja nomeação parte da recepção contemporânea de tais textos (através do livro impresso) e desconsidera a função primeira do texto dramático, que é ser levado à cena (e esses textos foram representados no período). Aí começa nosso problema central, pois há uma tentativa de aplastar diferentes formas em um único molde, e um molde baseado na materialidade da publicação de tais obras, mesmo se sabendo ainda que “[...] inversamente, pelo menos na Espanha, o que mais constrangia a redação de uma peça eram as condições de sua performance” (Chartier, 2002, p. 80CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar texto e ler romances na época moderna (séculos XVI-XVIII). Tradução de Bruno Feitler. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002., grifo no original). Carreira (1988)CARREIRA, Laureano. O teatro e a censura em Portugal na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988. e o catálogo Teatro proibido e censurado em Portugal no século XVIII (Camões, 2015CAMÕES, José (Coord.). Teatro proibido e censurado em Portugal no século XVIII. Lisboa: Centro de Estudos de Teatro, 2015. Site. Disponível em: https://www.teatroproibido.ulisboa.pt/indexFirst.jsp. Acesso em: 02 maio 2021.
https://www.teatroproibido.ulisboa.pt/in...
)9 9 Disponível em: https://www.teatroproibido.ulisboa.pt/. Acesso em: 21 abr. 2021. dão mostras de que a situação real de produção, representação e circulação de peças era bastante mais complexa, mas basicamente toda solicitação de publicação de texto dramático se referia a um texto já representado, a se representar ou proibido de se representar10 10 Por vezes, ao mesmo texto era proibida sua representação e aprovada a publicação, ou vice-versa – ignorada algumas diferenças marcantes de datas do pedido, o que poderia levar a crer que outra política interna estaria regendo os critérios censórios, também em datas muito próximas ocorrem tais discrepâncias. .

D. José assume o trono português em 1750, com a morte do seu pai, o rei D. João V. Entretanto, é a ascensão do Marquês de Pombal11 11 O Marquês de Pombal, antes de subir ao cargo de que marcou seu nome na História, foi embaixador durante o reinado de D. João V e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra nos primeiros anos do reinado de D. José – experiências que certamente lhe prouveram de conhecimento para a abertura à Europa empreendida no seu governo. ao cargo de Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino (equivalente ao atual cargo de primeiro-ministro), em 1756, que marca uma virada no pensamento português, com a relativa abertura à Europa – coincidindo, inclusive, com a fundação da Arcádia Lusitana, no mesmo ano. Certamente não podemos deixar de mencionar que a atuação de Pombal perante a tragédia ocorrida com o Terremoto de Lisboa em 175512 12 Para mais sobre o Terremoto de Lisboa de 1755, veja-se o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=xLKNU5IZcuo. Acesso em: 22 abr. 2021. (e uma certa isenção do rei, segundo dizem) foi decisória para a liberdade conferida pelo rei ao seu secretário de Estado durante o restante do seu reinado.

No campo teatral, se na primeira metade do século tínhamos a ópera e o teatro de matriz áulica convivendo em razoável equilíbrio, pois ocupando diferentes espaços no tecido social português; na segunda metade, com o ingresso na equação de um elemento de oposição (o pensamento iluminista), cria-se uma polêmica entre as formas teatrais vigentes – polêmica essa que, como se vê nas peças e nos tratados, está muito mais presente no discurso árcade do que na ópera ou no cordel –, pois “[...] um dos projectos mais ambiciosos dos árcades era exactamente a restauração do teatro português, que se encontrava debaixo da influência do teatro espanhol e italiano, mas muito particularmente do último” (Carreira, 1988, p. 18CARREIRA, Laureano. O teatro e a censura em Portugal na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988.)13 13 Carreira (1988) ressalta a influência do teatro italiano porque é ele que ocupa o espaço primeiramente pretendido pelos árcades, seja este espaço o da cultura erudita. .

Toda essa questão reflete na forma como os autores do século XX leem e apresentam um período tão complexo. Destacamos, na Tabela 1, o espaço material conferido a cada uma das principais temáticas tratadas pelos autores sob a insígnia do século XVIII:

Tabela 1
Quadro comparativo entre as Histórias do Teatro Português analisadas. Fonte: Elaboração do autor.

Apesar da esterilidade que uma tabela pode representar perante o valor do conteúdo do texto, é sintomático que em todas as publicações o teatro árcade ocupe maior espaço do que o teatro de cordel. Se condescendentemente flexibilizarmos e o acrescentarmos ao número de páginas ocupadas com o tema de António José da Silva (primeira metade do século XVIII), alguma paridade é alcançada por determinadas obras – embora se deva destacar que Picchio reserva o mesmo número de páginas ao teatro árcade que a todo o restante do teatro do século XVIII (estranhamente, a autora italiana quase não menciona a ópera) e Cruz trata do teatro árcade em metade do espaço destinado ao século XVIII. Para entender o esdrúxulo de tal proporcionalidade, além do ínfimo tempo de duração e volume de produção da Arcádia, que gira em torno de 20 anos, há ainda a questão de que o pensamento árcade é um pensamento uno, cujos textos são escritos todos a partir de uma poética geral que unifica esteticamente as peças, enquanto o teatro de cordel é um amalgamado de variadas práticas cênicas e dramatúrgicas publicadas em determinada forma, os folhetos de cordel.

As arenas discursivas de cada autor

Não se pode mudar o aspecto efetivamente material do passado, no entanto o aspecto de sentido, o aspecto expressivo, falante pode ser modificado, porquanto é inacabável e não coincide consigo mesmo (ou é livre) (Bakhtin, 2017c, p. 60BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2017c. P. 57-80., grifo no original).

A citação de Bakhtin nos alerta para a individualidade de cada enunciado sobre os quais nos debruçamos neste artigo. Mesmo que pertençam ao mesmo gênero (compêndio histórico), partam do mesmo material (passado), compartilhem o mesmo corpus (teatro português) e tenham inclusive a mesma organização geral (cronológica) ou específica (um capítulo separado para o período), são enunciados diferentes, que partem de autores com diferentes relações com o mundo e com o corpus. Por isso, embora busquemos encontrar fatores em comum entre os livros, também os analisaremos em suas especificidades enunciativas.

Começaremos pelos títulos, todos eles História do Teatro Português.

A ideia do enunciado concreto, conforme concebido pelos pensadores do Círculo de Bakhtin, inclui o que se designa em outras perspectivas como paratextos, textos que se avizinham do texto principal, caso do título, subtítulos, dedicatórias, epígrafes, prefácio, posfácio, etc. e que, segundo vários teóricos, abrem caminho para o leitor adentrar os meandros do texto principal (Brait, 2019, p. 251BRAIT, Beth. Discursos de resistência: do paratexto ao texto. Ou vice-versa? Alfa: Revista de Linguística, São José do Rio Preto, v. 63, n. 2, p. 243-263, set. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-57942019000200243&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 02 maio 2021.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Os três elementos que compõem o título das obras são representativos de um gênero, uma materialidade e uma delimitação valorativa, respectivamente. Ao se falar em uma História de algo, especialmente quando acrescida do artigo definido (no caso, de + o), há um direcionamento objetivo da forma textual – comumente cronológica, diacrônica e segmentada. Essa formação é tão intrínseca que mesmo pequenos desvios devem ser alertados, para que o leitor não os encare como um deslize involuntário, mas uma escolha consciente do autor. Como quando Cruz (2001, p. 101)CRUZ, Duarte Ivo. História do Teatro Português. Lisboa: Verbo, 2001. alerta que “somos mais uma vez forçados a abrandar o rigor do esquema cronológico”, como se este fosse o único esquema aceitável no gênero em que escreve. Ademais, ao proporem uma História, há um compromisso tácito firmado entre autor e leitor de um relato que caminhe muito junto aos acontecimentos que de fato aconteceram. Veremos que esse pacto é por vezes quebrado pelos autores em função de uma coerência narratológica, como diz Certeau (1982, p. 101CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982., grifos no original):

[...] uma narrativização faz passar do conteúdo à sua expansão, de modelos acrônicos a uma cronologização, de uma doutrina a uma manifestação de tipo narrativo; inversamente, uma semantização do material faz passar dos elementos descritivos a um encadeamento sintagmático dos enunciados e à constituição de sequências históricas programadas.

Ou seja, alguns autores irão organizar seu processo de seleção e apresentação de acontecimentos, bem como suas ilações entre acontecimentos (inclusive de épocas diferentes) em prol de um projeto discursivo que não necessariamente prioriza um retrato das tensões da época. “Também a história é sempre ambivalente: o lugar que ela destina ao passado é igualmente um modo de dar lugar a um futuro” (Certeau, 1982, p. 93CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982., grifo no original), ou construir uma linha em relação ao presente.

Essa discussão nos leva ao terceiro elemento do título: Português. O próprio recorte geograficamente marcado estabelece uma relação com ideias iluministas de nacionalidade:

A ‘nação’ como comunidade de cidadãos, quer dizer, como entidade política, é criação da Revolução Francesa. Ao seguir a máxima ‘uma nação, um estado’, a realidade ‘nação’ veio a tornar-se, na Europa, uma entidade simultaneamente cultural e política e chegou-se à crença de que não só é natural uma nação ter um estado como também é necessário que o tenha, a fim de que a sua identidade cultural seja preservada (Miranda, 2008, p. 154MIRANDA, Joana. Portugal – construção e reinvenção da nação. Vivência, n. 34, p. 153-166, 2008.).

Baseada nos escritos de Oommen14 14 OOMMEN, T. K. Estado, nação e etnia: os laços processuais. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 39, p. 3-29, 1994. , Miranda estabelece a proximidade da construção da ideia contemporânea de nação e o pensamento iluminista. Para nós, essa ruptura é essencial, pois nos situamos no centro desse conflito de concepções de mundo, sendo que, retornando ao tópico teatral, o teatro árcade português é corolário do pensamento que vai constituir as bases fundamentais da escrita da história nos livros do nosso corpus. Ao estabelecer, portanto, a dicotomia entre teatro de cordel e teatro da Arcádia, os autores, conscientemente ou não, definem uma dicotomia entre o outro e eu, antigo e novo, ultrapassado e moderno, passado e presente, sendo que o leitor, conscientemente ou não, coloca-se ao lado dos segundos e em oposição aos primeiros elementos dessa dualidade:

Se analisarmos os processos de construção das nações do ponto de vista histórico, verificaremos que os mitos relativos às nações tendem a ser desenvolvidos como se a nação estivesse a ser criada em oposição a outras nações (Miranda, 2008, p. 158MIRANDA, Joana. Portugal – construção e reinvenção da nação. Vivência, n. 34, p. 153-166, 2008., grifo nosso).

O imaginário nacional, portanto, domina a escrita histórica nos livros analisados, seja de maneira objetiva ou presente nas raízes do discurso. Porque “[...] as nações são, assim, construídas pelo discurso, mediante processos de elaboração ideológica” (Miranda, 2008, p. 155MIRANDA, Joana. Portugal – construção e reinvenção da nação. Vivência, n. 34, p. 153-166, 2008.), há significado em que se determine o teatro apresentado nas publicações como português, mesmo que ele raramente remeta a espaços diferentes dos grandes centros citadinos e acadêmicos, nomeadamente Lisboa, Porto e Coimbra.

Retornando, pois, ao segundo elemento dos títulos, Teatro, que acaba por se constituir como a materialidade, aquele “aspecto efetivamente material do passado” de que fala Certeau na citação que abre esta seção. Mas aquilo que os autores consideram teatro, quando se trata da segunda metade do século XVIII, está intrinsecamente calcada na materialidade da publicação do texto dramático e, com menor importância, em demais anotações sobre cenografia ou bastidores. Essa visão não é errônea, visto que o teatro daquele período era centrado no texto, como noticia Roubine (1982, p. 43-44)ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Tradução de Yan Michalski. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.:

Pode-se, portanto, situar já nessa época [século XVII europeu] o início de uma tradição de sacralização do texto, que marcaria de modo duradouro o espetáculo ocidental, e especialmente francês. [...] Vemos assim esboçar-se, ao mesmo tempo, a especialização e a hierarquização das profissões teatrais: a cada um o seu métier, e todos a serviço do texto (e do autor)!

Entretanto, como ainda ressalta Roubine (1982)ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Tradução de Yan Michalski. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982., essa hierarquização deixa de fora toda uma espécie de teatro que não é subserviente ao texto.

Em Portugal, algo similar acontece entre o teatro da Arcádia e as demais formas teatrais do mesmo período, que são menosprezadas por aquele – pensamento que continuou vigente até muito recentemente15 15 Ver mais em Gontijo Rosa (2019b). . Quanto mais veemente é a defesa de um autor sobre um olhar muito específico da história, mais superficial (e até injusto) pode ser seu olhar sobre determinados movimentos históricos que não concorram para a afirmação de sua tese ou para a construção de sua narrativa. Portanto, o teatro na segunda metade do século XVIII para os autores das Histórias do Teatro Português analisados é uma produção calcada na escrita dramatúrgica saída de uma pena portuguesa, mormente em língua portuguesa e, quando for o caso, publicada e/ou representada em Portugal16 16 Não podemos deixar de lembrar do que escreve o historiador do teatro Veríssimo (1998, p. 371), sobre a peça António José, ou O poeta e a Inquisição (1838), de Gonçalves de Magalhães: “Atores brasileiros ou abrasileirados, num teatro brasileiro, representavam diante de uma plateia brasileira entusiasmadas e comovida, o autor brasileiro de uma peça cujo protagonista era também brasileiro e que explícita e implicitamente lhe falava do Brasil”, certamente calcado no que o próprio autor da peça diz dela, em seu prefácio: “Era preciso um texto nacional, de um autor consciente do sentido nacionalista do mesmo; era preciso um grupo de atores nacionais convictos do que interpretavam, temperados pela dificuldade de imporem-se como representantes de uma sociedade ciosa de suas prerrogativas nacionais, representando para um público ávido por uma mensagem que correspondesse aos anseios políticos de sua auto-afirmação como nação”. Tal projeto de afirmação, romanticamente nacionalista, também acaba por ser diagnosticado, de maneira abrandada, nos discursos dos livros aqui analisados. .

Podemos nomear o Romantismo como uma vertente literária que norteia a escrita da história em nosso corpus. O Romantismo, enquanto movimento estético-literário português, converge tanto à origem do pensamento humano vigente atualmente quanto à criação de um projeto nacional, como expusemos acima. No que concerne ao teatro, o norte perseguido é aquele estipulado por Almeida Garrett enquanto modernizador do teatro português17 17 “[...] o teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há” (Garrett, 1966, p. 1320). , cujas ideias já apontam Cruz (2001, p. 154)CRUZ, Duarte Ivo. História do Teatro Português. Lisboa: Verbo, 2001.:

A nova estrutura social não era compaginável com as leis do passado e reclamava, portanto, nova regulação jurídica, a par da formação ideológica, cultural e política dos cidadãos, que motivasse uma verdadeira regeneração nacional, à luz dos ideais românticos de reconhecimento de um passado histórico, de tradições castiças, de crenças, de costumes (Ferreira, 2008, p. 53FERREIRA, Maria Gabriela. Teatro ao gosto de Almeida Garrett. Teatro do mundo, v. 2, p. 53-60, 2008.).

O pensamento romântico em Portugal surge do desdobramento do seu contato com o pensamento francês iniciado no século XVIII, através dos escritores da Arcádia Lusitana. Se, assim como Bakhtin, entendemos que Iluminismo e Romantismo participam de uma mesma vertente do pensamento humano, que por sua vez é diferente daquela do Renascimento, podemos associar, no campo teatral, o teatro árcade e o teatro romântico idealizado por Almeida Garrett – e, por associação, o teatro de cordel e a ópera como diferentes desse teatro, participantes de outra corrente do pensamento humano. Quanto dessa influência interfere na apreciação de nossos autores sobre um teatro não apenas calcado em outra vertente, mas contra a qual o Arcadismo investe?

Munidos com as perguntas até agora levantadas, vejamos mais de perto cada um dos textos analisados.

História do Teatro [Romântico] Português, de Duarte Ivo Cruz

Iniciando pelo título dedicado à seção do livro de Cruz, Dos clássicos aos neoclássicos, já é possível prever um olhar menos detido, intermediário, de percurso sobre o teatro coetâneo a essas correntes estéticas, mas que não seja subsidiário a elas. Em certa medida, tais previsões se confirmam no texto quanto a um olhar mais carregado de ideologias diferentes daquelas que prevaleciam no teatro de cordel: Duarte Ivo Cruz é em tudo um autor a quem discursivamente a centralidade da história do teatro português está localizada no Romantismo. Tanto é que, ao identificar as linhas de uma matriz cultural setecentista18 18 As linhas que o autor identifica são: “António José da Silva, ele próprio um valor-síntese; a ópera; o ‘teatro de cordel’; o teatro das Arcádias; o teatro de transição até ao princípio de Oitocentos” (Cruz, 2001, p. 97). , ele afirma que:

Essa matriz obriga-nos, designadamente, a mergulhar na obra dos dramaturgos que, melhor ou pior, cobrem o período pré-romântico do nosso teatro: dramaturgos muito pouco conhecidos e, na verdade, de baixa qualidade (Cruz, 2001, p. 97CRUZ, Duarte Ivo. História do Teatro Português. Lisboa: Verbo, 2001., grifos nossos).

Nesse ponto, há um descompasso entre a análise do historiador do teatro e o enunciado concreto que são os textos do teatro de cordel setecentistas. Não existe algo como um pré-romantismo nas linhas que compõem a matriz cultural setecentista identificada pelo autor – ou pelo menos não até os estertores finais do século. A esse respeito, Bakhtin (2017b, p. 40)BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2017b. P. 21-56.:

A primeira tarefa é compreender uma obra da mesma maneira como a compreendeu o próprio autor sem sair dos limites da compreensão dele. A solução dessa tarefa é muito difícil e costuma exigir a mobilização de um imenso material.

A segunda tarefa é utilizar a sua distância (vnienokhodímost) temporal e cultural. Inclusão no nosso (alheio ao autor) contexto.

Ou seja, parece que o autor passou diretamente à segunda tarefa, esquecendo-se de olhar para o contexto de produção do teatro de cordel e atendo-se a um projeto discursivo que visa a pavimentação de um caminho estético-cultural até a eclosão do Romantismo em Portugal – o que os próprios manuais de literatura apresentam como um movimento mais de fora para dentro do que o contrário. Retomando a tabela apresentada na seção anterior, tal perspectiva pode ser evidenciada, pois o autor dedica 48,39% de seu espaço ao teatro da Arcádia; 6,45% a António José da Silva e 16,13% ao teatro de cordel.

Por pertencerem à mesma forma do pensamento humano, não se nega que o teatro árcade seja o movimento estético mais próximo do posterior Romantismo19 19 “Os Árcades identificam-se pois com o despotismo iluminado. Mas burguesa é ainda a própria essência do seu pensamento, bem como dos ideais igualitários” (Cruz, 2001, p. 107). . Portanto, não apenas textualmente, mas na própria divisão do conjunto de páginas dedicadas ao século XVIII, Cruz privilegia a visão de mundo a qual defende. Isso contrariamente ao que afirma no seu texto: “a Arcádia Lusitana pouca ou nenhuma influência teve na evolução do teatro português” (Cruz, 2001, p. 106CRUZ, Duarte Ivo. História do Teatro Português. Lisboa: Verbo, 2001.). Se, como afirma, esse teatro não faz diferença para a história do teatro português, não foi representado nos palcos de antes ou de agora e não teve uma longevidade digna de nota enquanto movimento estético, por que dedicar tantas páginas (48%) a ele? Não encontramos outra resposta que não seja a legitimação de um projeto discursivo que, ao final, desconsidera a primeira tarefa bakhtiniana para a leitura de um texto e privilegia um projeto de formação do imaginário e construção da identidade nacional que se afasta dos movimentos da História e passa ao campo da idealização platônica.

Também a valorização de um movimento artístico em detrimento do outro pode ser vista na atribuição valorativa de ambos através de uma adjetivação que pejora ou aprecia subjetivamente cada linha, como as nomeia Cruz. Além do exemplo na citação acima, que trata da baixa qualidade de alguns textos, há ainda em:

Referimos a existência de duas linhas de apreciável individualidade – que não exclui, é claro, cruzamentos: uma, genuinamente popular e espontânea, erguida na genialidade do Judeu, e proliferada através do ‘teatro de cordel’; a outra, intelectual, elaborada, assente em premissas doutrinárias, muito menos viva, justamente envelhecida, mas interessante – o teatro da Arcádia, que só nos manuais, raramente nos palcos, chega até nós (Cruz, 2001, p. 105CRUZ, Duarte Ivo. História do Teatro Português. Lisboa: Verbo, 2001., grifos nossos).

Os adjetivos usados para caracterização do teatro árcade são mais abundantes e participam de um campo semântico mais positivo e erudito do que os que são atribuídos ao teatro popular – inclusive dando a António José da Silva um merecido lugar de destaque, mas que diminui o restante da produção. Também há que se notar que, no excerto acima, Cruz não se furta de apresentar as linhas gerais dos fatos históricos comprováveis, como a ausência do teatro da Arcádia nos palcos portugueses de então e de agora – mas mesmo aí há uma subvalorização e ofuscamento dessas informações em relação aos pontos considerados positivos pelo autor.

No que concerne aos autores de cada linha do século XVIII em que Cruz se detém, ele dedica aproximadamente duas páginas a cada um deles. Aí a diferença está no número de autores: enquanto ele trata de quatro autores árcades especificamente (Correia Garção, Reis Quita, Manuel de Figueiredo e Cruz e Silva), ele fala apenas de um dos autores do teatro de cordel (Nicolau Luís). Faz-se notar pela ausência o nome de Francisco Luiz Ameno, principalmente sob o pseudônimo Fernando Lucas Alvim, por suas traduções do teatro italiano ao gosto português e alguma menção à grande quantidade de produções anônimas que circulavam em Portugal no século XVIII.

História [Estrangeira] do Teatro Português, de Luciana Stegagno Picchio

O capítulo de Stegagno Picchio intitulado Setecentos busca um panorama desse século, fazendo esparsas referências aos séculos anteriores ou posteriores. No que concerne ao teatro de cordel, o subcapítulo é chamado Os continuadores do Judeu e o repertório do ‘teatro de cordel’, denotando que Picchio acredita que essas duas linhas propostas por Cruz pertençam a uma mesma vertente do pensamento artístico setecentista.

Na abertura do capítulo, Picchio (1969, p. 185)PICCHIO, Luciana Stegagno. História do Teatro Português. Tradução de Manuel de Lucena. Lisboa: Portugália, 1969. afirma que

A divergência entre dois níveis do espetáculo que já no século XVII se advertia, quando o auto religioso procurava o seu público entre o povo miúdo, ao passo que os espectadores social e culturalmente mais evoluídos corriam a aplaudir os heróis de capa e espada da comédia espanhola, essa divergência, dizíamos, transforma-se no século XVIII em nítida separação.

Tal afirmação nos diz que a autora pretende estabelecer uma dicotomia entre as formas teatrais setecentistas. No acompanhar de sua narrativa, tal dualidade parece se estabelecer primeiramente entre um teatro de matriz espanhola, calcada no Século de Ouro, e uma matriz francesa, com as traduções de tratados e peças de autores francófonos: “A literatura acompanha este desenvolvimento histórico. Afastando-se da cultura espanhola por razões de prestígio nacional, os Portugueses volvem os olhos para França, aureolada do esplendor da sua Corte e iluminada pelo pensamento dos seus sábios” (Picchio, 1969, p. 186PICCHIO, Luciana Stegagno. História do Teatro Português. Tradução de Manuel de Lucena. Lisboa: Portugália, 1969.).

Contudo, ao analisarmos a construção desse e de outros capítulos do livro de Picchio, constatamos uma forma constante de escrita da autora: ela apresenta os fatos em organização narrativa não cronológica, mas temática, no interior do capítulo e elege um autor, a partir do qual apresentará longas citações de trechos de uma de suas peças, e depois finaliza comentando outros autores de maneira menos aprofundada. No capítulo em questão, a autora fará tal movimento duas vezes, para apresentar cada lado da dicotomia que se propõe a perseguir no seu parágrafo inicial. A dicotomia à qual Picchio se referiu no início do capítulo só aparecerá, entretanto, nove páginas após o início do capítulo, quando pela primeira vez ela se refere ao teatro da Arcádia, nesses termos: “Nessa complicada aparelhagem confluíam diversas experiências teatrais (da espanhola à jesuítica e da cortesã à da ópera), e contra ela investirá toda a reacção neoclássica dos Árcades” (Picchio, 1969, p. 194PICCHIO, Luciana Stegagno. História do Teatro Português. Tradução de Manuel de Lucena. Lisboa: Portugália, 1969.).

No que concerne aos aspectos valorativos, encontramos um texto que se pretende neutro, o que já pode ser identificado na tabela de páginas: a autora dedica a mesma proporção (48,48%) ao teatro árcade e ao teatro de cordel – isso amalgamando os valores referentes a esse teatro e à obra de António José da Silva, posição legítima perante o texto de Picchio, porque, como vimos, ela considera que o teatro de cordel é uma continuação do teatro do Judeu. A autora também elenca um autor de cada vertente para uma análise mais detida e transcrição de longos excertos de suas peças: António José da Silva e a ópera joco-séria Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança; e Correia Garção e sua comédia Teatro Novo. Tal equilíbrio continua na escolha de palavras e organização do texto, no qual identificamos apenas uma adjetivação que atribui valor às vertentes do teatro setecentista português por ela analisado: “Todavia, muito antes destes últimos fiéis cultores de um género tão caro às massas terem composto os seus pobres textos, registrara-se em Portugal um interessante movimento de restauração teatral, por obra e graça da Arcádia” (Picchio, 1969, p. 202PICCHIO, Luciana Stegagno. História do Teatro Português. Tradução de Manuel de Lucena. Lisboa: Portugália, 1969., grifos nossos). Note-se que o excerto citado é o parágrafo inicial do subcapítulo A Arcádia Ulissiponense, que vai tratar justamente da segunda vertente da dicotomia proposta por Picchio, reavivando o aspecto dual entre o que foi apresentado e o que vai se tratar a seguir.

Mas, assim como o teatro de cordel, o teatro árcade também não escapa a algum comentário negativo à sua atividade, que é imediatamente subsequente a ser chamado interessante: “Armados com as poéticas de Boileau e de Luzán e providos de uma boa vontade igual à inexperiência, os Árcades tinham-se atirado ao trabalho” (Picchio, 1969, p. 202-203PICCHIO, Luciana Stegagno. História do Teatro Português. Tradução de Manuel de Lucena. Lisboa: Portugália, 1969.).

Se, à primeira vista, o texto de Picchio parece um texto equilibrado e que alcança certa neutralidade no discurso, mantendo o jogo dicotômico proposto sem favorecer nenhum dos lados da questão, é também pelas ausências que se podem identificar algumas questões quanto a seu projeto discursivo, pois ela minora a ópera no panorama proposto, que não chega a ser mais do que citada em algumas enumerações superficiais. A autora inclusive alude a ela em algumas linhas mais específicas não como ópera, mas como a moda da melomania, que compreende a companhia italiana de Alessandro Paghetti, os espetáculos do Teatro da Trindade, da Ajuda, do Forte e a Ópera do Tejo. Enfim, tudo aquilo que os demais autores nomeariam como a ópera que houve em Portugal, a autora nomeia como melodrama. Sobre essa postura, conjecturamos duas possibilidades de interpretação, entre tantas possíveis, e sobre as quais não nos alongaremos porque para ambas nos faltam subsídios concretos: ou a autora, por sua origem italiana e por ter primeiramente escrito o livro em italiano (ou seja, tendo um leitor italiano ou italianizado como interlocutor presumido), acredita desnecessários ou superficiais quaisquer comentários a serem tecidos quanto à ópera baseada na experiência portuguesa; ou, para concretizar um projeto discursivo calcado na dicotomia entre duas forças operantes no teatro setecentista portuguesa, a autora deliberadamente obliterou a presença da ópera enquanto uma terceira via teatral, fundindo-a ao teatro de cordel.

[Primeira] História do Teatro Português, de Luiz Francisco Rebello

No título do seu sexto capítulo, Rebello apresenta os dois principais eixos da discussão teatral no século XVIII: Do teatro de cordel ao teatro da Arcádia. Já pela disposição dos subcapítulos: A ópera, O ‘Judeu’ e o teatro de cordel e O teatro da Arcádia, podemos ainda depreender as três linhas de força que o autor entende fazerem parte da estrutura teatral setecentista – no que corrobora e é corroborado pela maior parte da crítica histórica. A proporção dedicada a cada um deles – 3,03%, 50% e 35,71%, respectivamente – parece denotar um nacionalismo em sentido lato, pois entende uma certa continuidade do teatro português na dramaturgia do Judeu e que “[...] os verdadeiros continuadores do teatro de António José da Silva foram os autores das ‘comédias de cordel’, apesar do esquematismo (muitas vezes grosseiro) das situações e tipificação das personagens” (Rebello, 1967, p. 76REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro Português. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1967.). Em seguida, o teatro árcade que, como se propõe à restauração do teatro português, carrega em si um sentimento nacional; e a ópera, importada da Itália, inclusive com companhias, cantores, cenógrafos e toda uma conjuntura que se mantém italiana, embora representada em Portugal. Quanto a isso, sabe-se, por exemplo, que apenas uma ópera foi escrita por portugueses e, mesmo assim, em língua italiana (La pazienza di Socrate, de Francisco António de Almeida).

O historiador português, coetâneo de Picchio e referência bibliográfica aos demais autores deste corpus, é um pouco mais incisivo em seus julgamentos valorativos, inclusive quando se coloca em relação àqueles que olharam para a história do teatro português antes dele – no caso, Teófilo Braga, ao falar de alguns autos setecentistas, “[...] ambos estignatizados por Teófilo Braga na medida em que sacrificavam o lirismo e a ingenuidade pitoresca da velha escola nacional aos ‘equívocos e arrebiques de um exagerado cultismo’” (Rebello, 1967, p. 79REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro Português. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1967., grifo nosso). Braga é um signatário de uma corrente do pensamento histórico diferente de Rebello e demais autores tratados neste artigo: seus textos se apegam muito mais a aspectos biográficos dos atores históricos – algumas vezes relacionando-os a suas produções artísticas. A ênfase biográfica é substituída, em Rebello e demais autores, por um viés analítico das obras, especialmente dramatúrgicas, que compõem o teatro português. Ainda assim, falta em Rebello e nos demais autores deste corpus um olhar para os demais aspectos cênicos do teatro português, que ficam em segundo plano perante a dramaturgia e, por vezes, a cenografia.

Ao negar a estigmatização de Teófilo Braga quanto ao teatro popular setecentista, Rebello inaugura um olhar para o teatro português que propõe a revalorização de algumas de suas vertentes: uma delas, o teatro de cordel, que, como já visto, ganha proeminência, ao menos em espaço, no texto de Rebello. Ainda assim, o autor recobra juízos de valor estético eruditos quando fala coisas do tipo: “[...] a centúria imediata [Setecentos] define-se por uma extraordinária proliferação da actividade teatral, em que todavia a quantidade nem sempre é sinónima de qualidade” (Rebello, 1967, p. 71REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro Português. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1967., grifo nosso), ou “Toda esta copiosa produção dramatúrgica [do teatro de cordel], apesar de credenciada pelo favor do público (é certo que não primando este pela exigência nem pela cultura)” (Rebello, 1967, p. 79REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro Português. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1967., grifo nosso). Tais demonstrações deixam patente que Rebello não apreciava o teatro de cordel enquanto produto artístico, o que não acontece com o teatro árcade, que, quando criticado, é-o nos seguintes termos: “A influência da Arcádia na evolução dos gostos do público foi praticamente nula” (Rebello, 1967, p. 82REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro Português. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1967.), em que mais diminui o gosto do público do que a dramaturgia árcade.

Apesar de alguma questão que hoje possamos ter acerca da escrita de Luiz Francisco Rebello, é importante ressaltar que sua História do Teatro Português é muito importante para a construção e estudo desse teatro. A obra é bastante concisa, sendo uma edição de bolso de apenas 166 páginas, e mesmo assim marcou e marca de maneira profunda as seguintes gerações de estudiosos do teatro português – o que pode ser visto não apenas por sua presença nas referências dos compêndios posteriores, mas também pelo tempo que levou até que outros surgissem.

História [Apetrechada20 20 Termo extraído do livro A experiência de ler, de C. S. Lewis (2000). No livro, o autor explica sobre um leitor-crítico, que se acerca ao máximo do contexto do texto, isentando-se do seu próprio para depois a ele voltar (de acordo também com as tarefas do leitor propostas por Bakhtin). ] do Teatro Português, de José Oliveira Barata

Diferentemente dos demais autores aqui analisados, Oliveira Barata é um especialista no teatro do século XVIII, mais especificamente na obra de António José da Silva21 21 Os dois principais livros portugueses sobre o dramaturgo são de sua autoria: António José da Silva: criação e realidade (1983) e História do teatro em Portugal (séc. XVIII): António José da Silva (o Judeu) no palco joanino (1998); além do Catálogo da literatura de cordel (2006), em coautoria com Maria da Graça Pericão. . Talvez por isso apresente um olhar mais detido sobre os acontecimentos teatrais setecentistas, descolando-se de uma historiografia narrativo-documental de aspecto mais geral em direção a uma leitura teórica calcada em conceitos atuais em sua análise.

O capítulo quatro, que abrange os séculos XVII e XVIII, intitula-se A Dramaturgia Portuguesa em busca de identidade – título que, também diferentemente dos anteriores, já denota não uma trilha histórica, mas uma perspectiva teórica, sem qualquer tentativa de neutralidade. Também nos subtítulos do capítulo pode já ser depreendida essa vertente teórica adotada por Oliveira Barata quando ele reserva um subcapítulo para cada uma das três influências ao teatro português setecentista – a castelhana, a italiana e a francesa; quando nomeia de O Projecto de António José da Silva ao subcapítulo dedicado ao Judeu; quando agrega o nome de Correia Garção ao subtítulo dedicado ao teatro árcade; ou ainda quando a porção dedicada ao teatro de cordel são apenas breves considerações. As 17 páginas dedicadas a António José da Silva, em torno das quais giram as restantes discussões levantadas no capítulo, de um projeto do autor, dizem que:

A produção de António José da Silva obedece a um plano – ‘interrompido’ pelas vicissitudes de sua vida pessoal – que procurava modalizar, na versão joco-séria, uma ópera portuguesa cuja temática mergulharia em dois vectores fundamentais: por um lado, ainda e sempre a herança castelhana (bem como a italiana filtrada por modelos espanhóis) e, por outro, um novo tratamento dramático na tradição portuguesa de matriz vicentina (Barata, 1991, p. 230BARATA, José Oliveira. História do Teatro Português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991., grifo no original).

Assim, Oliveira Barata apresenta sua tese acerca da produção dramática do Judeu, que, sob seu ponto de vista, interfere em toda a produção pos-terior setecentista. Com isso, subvertendo uma organização estabelecida nas outras Histórias do Teatro Português, Oliveira Barata começa discutindo o século XVIII a partir do conceito de festa, o qual coaduna com as ideias expressas por Bakhtin (2010)BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 2010., embora não apresente o crítico russo como parte de sua bibliografia:

Ainda que expressando-se através de linguagens diversas, o homem português da primeira metade do século XVIII, tal como o homem europeu, exteriorizava na festa não o que de facto era mas sim o que gostaria de ser (Barata, 1991, p. 208BARATA, José Oliveira. História do Teatro Português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991., grifos no original).

Através da ‘representação’ procura-se preencher o horror vacui. Consciente da transitoriedade da vida e, igualmente, da efemeridade do prazer, assiste-se à procura da volúpia imediata, traduzida no gosto do fare presto. ‘Não adiar’ era a forma de encurtar, ainda que aparentemente, a distância entre a ‘realidade’ da vida quotidiana e a ilusão que só a festa podia proporcionar (Barata, 1991, p. 209BARATA, José Oliveira. História do Teatro Português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991., grifos no original).

A festa marcava de alguma forma uma interrupção provisória de todo o sistema oficial, com suas interdições e barreiras hierárquicas. Por um breve lapso de tempo, a vida saía de seus trilhos habituais, legalizados e consagrados, e penetrava no domínio da liberdade utópica. O caráter efêmero dessa liberdade apenas intensificava a sensação fantástica e o radicalismo utópico das imagens geradas nesse clima particular (Bakhtin, 2010, p. 77BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 2010.).

Num e noutro a festa é percebida como espaço de liberdade. Ela acrescenta à leitura tanto de António José da Silva quanto do teatro de cordel uma explicação que pode justificar tanto o apreço do público popular pelas obras quanto a animosidade da Inquisição e da Arcádia: enquanto a cultura oficial, erudita, hierarquiza e estamenta as posições sociais e os benefícios de certas classes; a festa planifica essas relações. No teatro, promove um divertimento equânime, em que riem tanto uns quanto outros, enquanto o teatro erudito, elevado, é inacessível em termos sociais, mas também do próprio entendimento, à grande parte da população.

Ao chegar à segunda metade do século XVIII e ao teatro de cordel, ao conceito de festa levantado ao tratar do século XVIII (textualmente em sua primeira metade, mas de expansível significado), agrega-se a ideia de um teatro marginal: “Muitos dos trabalhos já realizados neste domínio registam ainda hoje as marcas da persistente pesquisa iniciada pelos estudiosos positivistas” (Barata, 1991, p. 248BARATA, José Oliveira. História do Teatro Português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991.)22 22 Essa citação também evoca o ataque realizado por Oliveira Barata aos estudos positivistas da literatura (nomeadamente, na p. 225 e duas vezes na p. 222). Na mesma página 248, Oliveira Barata nomeia “Carolina Michaëlis, Leite de Vasconcelos, Teófilo Braga, Forjaz Sampaio, são apenas alguns dos nomes mais importantes que obrigatoriamente temos que ‘revisitar’ quando se pretende abordar a nossa produção de cordel”. Anteriormente, Oliveira Barata (1991, p. 225) deixa explícito que não considera Teófilo Braga um historiador positivista: “Na esteira do legado positivista e dos trabalhos de Teófilo Braga [...]”. . Entre os dois, Oliveira Barata encaixa o teatro árcade, metaforicamente o localizando pontualmente entre a vasta produção de cordel do século XVIII.

Após apresentar suas bases teóricas para a discussão do teatro de cordel enquanto literatura marginal, ou seja, quando de fato vai enveredar por uma análise desse conjunto de textos, Oliveira Barata faz uma afirmação que causa impressão: “À falta de estudos que melhor nos possam esclarecer, avançamos a nossa própria opinião” (Barata, 1991, p. 249BARATA, José Oliveira. História do Teatro Português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991.). Se tal assertiva pode nos indicar uma ausência de bibliografia crítica sobre o tema que irá desenvolver, também é certo que existe uma opção de escrita do autor em não seguir os [mesmo que poucos] críticos que tenham se debruçado sobre o teatro de cordel até aquele momento. Oliveira Barata assume uma postura autoral, original e interpretativa, quando analisa esse teatro, reforçando sua posição como autor cujo projeto discursivo extrapola a sequência narrativa de fatos, mas que constrói teses e pensamentos únicos, os quais visam a reflexão sobre a história do teatro português.

Se o autor propõe novos olhares sobre a dramaturgia do Judeu ou sobre o teatro de cordel – mesmo que, sobre este último, ele mais apresente impressões de caminhos equivocados do que uma vertente analítica forte –, o mesmo acontece com o teatro árcade. Oliveira Barata, diferentemente dos demais autores analisados, não propõe uma dicotomia entre o teatro de cordel e o teatro da Arcádia, mesmo porque essa disputa é unilateral. Ele propõe a revisão das “referências depreciativas à actividade da Arcádia” (Barata, 1991, p. 238BARATA, José Oliveira. História do Teatro Português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991.), analisando também esse movimento com um olhar ao mesmo tempo distanciado e contextualizado, como preconizou Bakhtin sobre as tarefas do leitor.

Ao buscar entender o lugar em que o teatro setecentista português se insere no complexo contexto cultural da sua época, que tem diferentes implicações a nível local (Lisboa, Porto ou outra), nacional (Portugal) e continental (Europa), percebemos um diálogo com o que afirma Bakhtin (2017a, p. 12)BAKHTIN, Mikhail. A ciência da literatura hoje. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2017a. P. 9-20., que “[...] o chamado processo literário de uma época, se estudado isoladamente de uma análise profunda da cultura, reduz-se a uma luta superficial entre as correntes literárias”. Por negar perceber uma disputa entre as formas de teatro setecentistas, mas concretizá-las textualmente de forma mais ampla que uma dicotomia redutora, Oliveira Barata amplia as possibilidades de compreensão de ambas as vertentes literárias do século XVIII português.

Não-solução do problema do século XVIII português

Na acepção original portuguesa, a expressão [‘teatro de cordel’] designa os textos teatrais impressos ou manuscritos em cadernos de aproximadamente 20 x 15cm, in-quarto, com 16 páginas (ou 32, raramente mais), que eram postos à venda pendurados em um barbante – o cordel – pregado nas paredes ou nas portas, pelas ruas de Lisboa. Os cegos, que tinham autorização para vendê-los, expunham não apenas teatro, mas também poemas, narrativas, vida de santos, folhetins, anedotas. Esse tipo de literatura aparece também em outros países da Europa, como Espanha e França (Guinsburg; Faria; Lima, 2006, p. 97GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto de; LIMA, Mariangela Alves de. Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva/SESC-SP, 2006.).

O recorte proposto neste artigo buscou os capítulos ou subcapítulos específicos ao assim chamado teatro de cordel para compreendê-los em suas relações com as problemáticas que circundam tal teatro, sejam elas: sua multiplicidade, sua representação na trilha histórica, sua relação com outros movimentos artístico-literários ou mesmo a coerência de uma designação incoerente no interior da narrativa e do projeto discursivo proposto por autores de Histórias do Teatro Português. Não tivemos por intenção o estabelecimento de uma escala valorativa entre os autores, embora devamos concordar que alguns deles soam mais consonantes com as teorias que defendemos ao longo de nossa carreira acadêmica. Mais que isso, achamos importante chamar a atenção para as formas como os autores constroem seus projetos discursivos, de forma a melhor compreender o gênero a que essas Histórias estão circunscritas. Ainda, como discurso que busca ser histórico e que analisa objetos estéticos distanciados temporal e espacialmente, aprendemos que

A literatura é parte inalienável da integridade da cultura, ela não pode ser estudada fora do contexto integral da cultura. Não pode ser separada do restante da cultura e correlacionada imediatamente (passando por cima da cultura) com fatores socioeconômicos e outros (Bakhtin, 2017b, p. 32BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2017b. P. 21-56.).

Olhando os textos por outro aspecto, e retomando a ideia do projeto discursivo de cada autor, não é sem propósito que cada um deles articule os elementos constituintes do teatro português setecentista de maneiras distintas – e por vezes opostas:

É, pois, impossível analisar o discurso histórico independentemente da instituição em função do qual ele se organiza silenciosamente; ou sonhar com uma renovação da disciplina, assegurada pela única e exclusiva modificação de seus conceitos, sem que intervenha uma transformação das situações assentadas (Certeau, 1982, p. 71CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.).

Enquanto pessoas do século XXI, não lançamos sobre as produções de cordel setecentistas um olhar técnico, que vai analisar se uma tradução de Metastásio ou Molière foi adequadamente realizada, autêntica, ou se foi propriamente representada nos palcos portugueses. Nosso olhar, acreditamos, é mais distanciado, de forma a enxergar todo o contexto em que tal enunciado foi produzido no mundo – que, certamente, é diferente daquele de que o autor original participava (pelas questões já expostas neste trabalho). Ao olhar para o todo da cultura em que vem à luz tais textos, podemos bakhtinianamente identificar esse anônimo tradutor enquanto também autor do discurso, que dialoga com um auditório específico, também este diferente do auditório original do texto primeiro. Se o objeto, seja ele a peça George Dandin ou Artaserse, tem autor e interlocutor diferentes, o próprio objeto não poderia ser o mesmo, ou não representaria um diálogo entre as partes. Ou, como diz Bakhtin (2017a, p. 19BAKHTIN, Mikhail. A ciência da literatura hoje. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2017a. P. 9-20., grifo no original): “Nesse encontro dialógico de duas culturas, elas não se fundem nem se confundem; cada uma mantém a sua unidade e a sua integridade aberta, mas elas se enriquecem mutuamente”.

Notas

  • 1
    A seu tempo se verá por que não se inclui o verbo representado aqui.
  • 2
    Descrição um pouco mais detalhada de todos os títulos se encontra no verbete Teatro Português do Guia Bibliográfico da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) (Corradin; Silveira, 2017CORRADIN, Flavia Maria; SILVEIRA, Francisco Maciel. “Teatro Português”. In: FARIA, João Roberto (Coord.). Guia Bibliográfico. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em: https://fflch.usp.br/sites/fflch.usp.br/files/2017-11/teatroportugues.pdf. Acesso em: 23 abr. 2021.
    https://fflch.usp.br/sites/fflch.usp.br/...
    ).
  • 3
    “A concepção estreita do caráter popular e do folclore, nascida na época pré-romântica e concluída essencialmente por Herder e os românticos, exclui quase totalmente a cultura específica da praça pública e também o humor popular em toda a riqueza das suas manifestações. Nem mesmo posteriormente os especialistas do folclore e da história literária consideraram o humor do povo na praça pública como um objeto digno de estudo do ponto de vista cultural, histórico, folclórico ou literário” (Bakhtin, 2010, p. 3BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 2010.).
  • 4
    “[...] uma investigação profunda dos domínios da literatura cômica popular que tem sido tão pouco e tão superficialmente explorada” (Bakhtin, 2010, p. 3BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 2010.). É triste que tal observação, feita na década de 1920, fosse verdadeira até muito recentemente (e, em alguns redutos, ainda vigente).
  • 5
    “O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo (esse caráter popular, como dissemos, é inerente à própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é ‘geral’; em segundo lugar, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (Bakhtin, 2010, p. 10BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 2010., grifos no original).
  • 6
    Acerca da inexistência de uma estética barroca em si, ver Hansen (2004)HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. (1989) 2. ed. São Paulo; Campinas: Ateliê Editorial; Editora da UNICAMP, 2004..
  • 7
    Como já preconiza em 1609 Lope de Vega (2006)VEGA, Lope de. Arte nuevo de hacer comedias (1609). Madrid: Cátedra, 2006. no seu Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo (v. 47-48): “porque, como las paga el vulgo, es justo / hablarle en necio para darle gusto”.
  • 8
    Para mais informações sobre António José da Silva e o teatro barroco ibérico, ver Carnavalização no teatro ibérico barroco (Gontijo Rosa, 2019aGONTIJO ROSA, Carlos. Carnavalização no teatro ibérico barroco. Bakhtiniana, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 101-138, jul./set. 2019a. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/38281. Acesso em: 02 maio 2021.
    https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
    ).
  • 9
    Disponível em: https://www.teatroproibido.ulisboa.pt/. Acesso em: 21 abr. 2021.
  • 10
    Por vezes, ao mesmo texto era proibida sua representação e aprovada a publicação, ou vice-versa – ignorada algumas diferenças marcantes de datas do pedido, o que poderia levar a crer que outra política interna estaria regendo os critérios censórios, também em datas muito próximas ocorrem tais discrepâncias.
  • 11
    O Marquês de Pombal, antes de subir ao cargo de que marcou seu nome na História, foi embaixador durante o reinado de D. João V e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra nos primeiros anos do reinado de D. José – experiências que certamente lhe prouveram de conhecimento para a abertura à Europa empreendida no seu governo.
  • 12
    Para mais sobre o Terremoto de Lisboa de 1755, veja-se o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=xLKNU5IZcuo. Acesso em: 22 abr. 2021.
  • 13
    Carreira (1988)CARREIRA, Laureano. O teatro e a censura em Portugal na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988. ressalta a influência do teatro italiano porque é ele que ocupa o espaço primeiramente pretendido pelos árcades, seja este espaço o da cultura erudita.
  • 14
    OOMMEN, T. K. Estado, nação e etnia: os laços processuais. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 39, p. 3-29, 1994.
  • 15
    Ver mais em Gontijo Rosa (2019b)GONTIJO ROSA, Carlos. Apropriação e invenção na dramaturgia de Antônio José da Silva: uma leitura de “Anfitrião ou Júpiter e Alcmena”. Revista do Centro de Estudos Portugueses, Belo Horizonte, v. 39, n. 62, p. 177-200, jul./dez. 2019b. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cesp/article/view/15763. Acesso em: 02 maio 2021.
    http://www.periodicos.letras.ufmg.br/ind...
    .
  • 16
    Não podemos deixar de lembrar do que escreve o historiador do teatro Veríssimo (1998, p. 371)VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1998., sobre a peça António José, ou O poeta e a Inquisição (1838), de Gonçalves de Magalhães: “Atores brasileiros ou abrasileirados, num teatro brasileiro, representavam diante de uma plateia brasileira entusiasmadas e comovida, o autor brasileiro de uma peça cujo protagonista era também brasileiro e que explícita e implicitamente lhe falava do Brasil”, certamente calcado no que o próprio autor da peça diz dela, em seu prefácio: “Era preciso um texto nacional, de um autor consciente do sentido nacionalista do mesmo; era preciso um grupo de atores nacionais convictos do que interpretavam, temperados pela dificuldade de imporem-se como representantes de uma sociedade ciosa de suas prerrogativas nacionais, representando para um público ávido por uma mensagem que correspondesse aos anseios políticos de sua auto-afirmação como nação”. Tal projeto de afirmação, romanticamente nacionalista, também acaba por ser diagnosticado, de maneira abrandada, nos discursos dos livros aqui analisados.
  • 17
    “[...] o teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há” (Garrett, 1966, p. 1320GARRETT, Almeida. Obras completas de Almeida Garrett. Porto: Lello & Irmão, 1966.).
  • 18
    As linhas que o autor identifica são: “António José da Silva, ele próprio um valor-síntese; a ópera; o ‘teatro de cordel’; o teatro das Arcádias; o teatro de transição até ao princípio de Oitocentos” (Cruz, 2001, p. 97CRUZ, Duarte Ivo. História do Teatro Português. Lisboa: Verbo, 2001.).
  • 19
    “Os Árcades identificam-se pois com o despotismo iluminado. Mas burguesa é ainda a própria essência do seu pensamento, bem como dos ideais igualitários” (Cruz, 2001, p. 107CRUZ, Duarte Ivo. História do Teatro Português. Lisboa: Verbo, 2001.).
  • 20
    Termo extraído do livro A experiência de ler, de C. S. Lewis (2000)LEWIS, C. S. A experiência de ler (1961). Tradução e notas de Carlos Grifo Babo. Porto: Porto Editora, 2000.. No livro, o autor explica sobre um leitor-crítico, que se acerca ao máximo do contexto do texto, isentando-se do seu próprio para depois a ele voltar (de acordo também com as tarefas do leitor propostas por Bakhtin).
  • 21
    Os dois principais livros portugueses sobre o dramaturgo são de sua autoria: António José da Silva: criação e realidade (1983) e História do teatro em Portugal (séc. XVIII): António José da Silva (o Judeu) no palco joanino (1998); além do Catálogo da literatura de cordel (2006), em coautoria com Maria da Graça Pericão.
  • 22
    Essa citação também evoca o ataque realizado por Oliveira Barata aos estudos positivistas da literatura (nomeadamente, na p. 225 e duas vezes na p. 222). Na mesma página 248, Oliveira Barata nomeia “Carolina Michaëlis, Leite de Vasconcelos, Teófilo Braga, Forjaz Sampaio, são apenas alguns dos nomes mais importantes que obrigatoriamente temos que ‘revisitar’ quando se pretende abordar a nossa produção de cordel”. Anteriormente, Oliveira Barata (1991, p. 225)BARATA, José Oliveira. História do Teatro Português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991. deixa explícito que não considera Teófilo Braga um historiador positivista: “Na esteira do legado positivista e dos trabalhos de Teófilo Braga [...]”.

Referências

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Editado por

Editor responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2021
  • Aceito
    05 Jul 2022
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