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Corpo e Descolonialidade em Composição Poética Cênica1 1 Este artigo é resultado de pesquisa de mestrado da primeira autora, intitulada Entre o corpo cotidiano e o corpo cênico: uma perspectiva pós-colonial, com coorientação do segundo autor. A dissertação foi defendida na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latinos-Americanos em Cultura e Sociedade na América Latina, no ano de 2017. Além da orientação do segundo autor, o trabalho contou com a orientação da Profa. Dra. Barbara Maisonnave Arisi.

Corps et Descolonialite dans la Composition Poetique Scientifique

Resumo:

O texto se situa entre as artes, a antropologia e a filosofia e pretende responder à questão: o processo artístico pode ser entendido como meio de descolonialidade do corpo cotidiano? Metodologicamente, realiza-se revisão de literatura e faz-se uma análise de um processo artístico de que os autores participaram. Resulta da experiência que a proposta de Sampaio (2007) a respeito do corpo atenso para a cena pode ser um frutífero caminho para se chegar à descolonialidade do corpo cotidiano.

Palavras-chave:
Teatro; Descolonialidade; Corpo; Composição Poética Cênica; Prática Cênica

Résumé:

Ce texte est placé entre les arts, l’anthropologie et la philosophie et vise à répondre à la question: le processus artistique peut-il être compris comme un moyen de décolonialisation du corps quotidien? Sur le plan méthodologique, nous avons effectué une revue de la littérature et nous analysons un processus artistique auquel les auteurs ont participé. Il ressort de l’expérience que la proposition de Sampaio (2007) pour le corps (pas)tendu de la scène peut être un moyen fructueux d’atteindre la décolonialité du corps quotidien.

Mots-clés:
Théâtre; Descolonialite; Corps; Composition Poétique Scénique; Pratique Scénique.

Abstract:

The text is situated between the arts, anthropology and philosophy and aims to answer the question: can the artistic process be understood as a means of decoloniality of the ordinary body? Methodologically, a literature review was carried out and it was analyzed an artistic process in which the authors participated. It emerges from Sampaio’s proposal (2007) concerning the atense body for the scene, which can be a fruitful way to reach the decoloniality of the everyday body.

Keywords:
Theater; Decoloniality; Body; Performing Poetic Composition; Performing Practice

Perspectiva Descolonial

Com este artigo buscamos contribuir com discussões a respeito de processos artísticos e pedagógicos que podem proporcionar (ou não) a descolonialidade do corpo cotidiano. De partida esclarecemos nossa escolha pelo termo descolonial e não por pós-colonial em virtude do que aponta Rivera Cusicanqui (2010, p. 54), “[...] não há nem ‘pós’ nem ‘pré’ em uma visão da história que não é linear nem teleológica, que se move em ciclos e espirais”. Metodologicamente transitamos entre as ciências sociais e as artes cênicas, por meio de revisão bibliográfica e de análise de experiências em teatro comum aos dois autores. A perspectiva descolonial, ainda que anterior a esta pesquisa, não conta com produção acadêmica no campo das artes cênicas em número relevante para embasar as discussões que se seguem e por isso recorremos a autores de outras áreas de conhecimento, que não a artística. Nesse sentido, afirmamos que o trabalho se insere em um campo ainda incipiente de pesquisa.

A experiência prática que abordamos neste artigo se refere a um processo de criação teatral em Composição Poética Cênica. Trata-se de uma perspectiva teórico-filosófica e metodológica para o ensino e criação em teatro, que vem sendo construída pelo segundo autor deste texto, desde 2010, em diálogo com outros pesquisadores2 2 Refere-se a uma revisão crítica de literatura sobre a pedagogia e a prática teatral em articulação com um amálgama transformativo de propostas construtivistas semiótico-culturais em psicologia, perspectiva criada no Brasil por Lívia Mathias Simão, e com as fenomenologias de Bergson e de Merleau-Ponty, com fins de se pensar o desenvolvimento afetivo-cognitivo da pessoa que se dedica a atividades cênicas. Para maiores informações sobre a perspectiva consulte (Sampaio, 2015a; 2015b; 2017a; 2017b; Sampaio; Diniz, 2017). . O foco da perspectiva tem sido os processos de experiência da alteridade de si para si mesmo, provenientes das diferentes naturezas de conhecimento emergidas das e nas práticas teatrais (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A teatralidade de si mesmo no ensino de teatro. Repertório Teatro e Dança , Salvador, Ano 20, n. 29, p. 233-257, 2017b.b). Implicados nesses processos estão os percursos pessoais e coletivos de significação e elaboração de sentido das experiências de criação.

Em suma, tanto na prática sociopedagógica, quanto na prática artística, a perspectiva pretende o desenvolvimento afetivo-cognitivo humano. É na escuta das subjetividades e na compreensão e incentivo à relação pessoa-pessoa-contexto que embasamos nossas propostas artístico-pedagógicas. Cada pessoa é (co)responsável pela construção de um espaço intersubjetivo sob o qual atua (Sampaio, 2015aSAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. Teatralidade e Narrativa - conhecimento e construção de sentido da experiência criativa. 1. ed. Palmas: EDUFT, 2015a.); no suporte à construção de espaços intersubjetivos férteis ao desenvolvimento humano é que vemos possibilidades reais de atuação a partir do campo artístico. Ou seja, não há atores e não pretendemos formá-los, há seres humanos agindo sobre o mundo e sendo agidos por ele; seres humanos que em algum momento podem ESTAR como profissionais da cena. Nossas conduções de vivências artístico-pedagógicas, ao propor caminhos de experimentação prática, (auto)reflexiva e compartilhada (coletiva), por meio de experiências, registros e análises desses, centra-se na possibilidade de se pensar o homem como um ser que precisa se posicionar intencionalmente frente ao seu campo de ação simbólica (Boesch, 1991BOESCH, Ernest. Symbolic Action Theory and Cultural Psychology. Berlin; Heidelberg; New York: Springer, 1991.), desde a perspectiva da prática, até a dimensão reflexiva desse campo acional.

Mais recentemente, a perspectiva tem se voltado para os processos pessoais de reconhecimento da historicidade sociocultural na constituição de um modo pessoal de operar no mundo. Aspecto crucial para as discussões que envolvem os binômios colonização/descolonização colonialidade/descolonialidade.

Para delimitar o que compreendemos como colonização, apresentamos a perspectiva de Bosi (1992BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras , 1992. ) sobre ciclos coloniais. Segundo o autor,

[...] a colonização não pode ser tratada como uma simples corrente migratória: ela é a resolução de carências e conflitos da matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condições, o domínio sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo civilizatório (Bosi, 1992BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras , 1992. , p. 13).

Quando se trata de colonização, o domínio e a imposição de novas condições políticas e econômicas dão espaço para a conquista. A ideia de conquista foi forte o suficiente para que a Europa substituísse o termo por descobrimento durante o século XVI, evidenciando a coação que os corpos e o meio sofreram à época. Para Bosi (1992BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras , 1992. ), as relações de poder das sociedades num ciclo de colonização são potencializadas dentro das esferas política e econômica.

O traço grosso da dominação é inerente às diversas formas de colonizar e, quase sempre, as sobredetermina. Tomar conta de, sentido básico de colo, importa não só em cuidar, mas também em mandar. Nem sempre, é verdade, o colonizador se verá a si mesmo como a um simples conquistador; então buscará passar aos descendentes a imagem do descobridor e do povoador, títulos a que, enquanto pioneiro, faria jus (Bosi, 1992BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras , 1992. , p. 12).

A passagem geracional, de que trata o excerto de Bosi, se refere a um processo de construção temporal simbólico-cultural envolvido na colonização. Ou seja, as forças envolvidas na colonização estão para além do ato de ocupar e explorar os territórios e bens. A colonização está atrelada a um processo cultural. Sendo a corporeidade (Merleau-Ponty, 2011MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011.; 2012MERLEAU-PONTY, Maurice. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 2012.; 2013MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013.) uma relação igualmente cultural, a colonização recai sobre a constituição das nossas noções de corpo, nossos modos de agir, nossos modos de ser-aí/estar-aí (Heidegger, 2009HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes , 2009.) no mundo. Sendo assim, a corporeidade, também constituída pelos processos de colonização, acaba recebendo as influências do contexto instaurado, reproduzindo “[...] sempre o mesmo, corpo e feições, e obedece aqui a uma necessidade interna de percepção social” (Bosi, 1992, p. 54).

A cultura não é algo dado de antemão sobre o que a pessoa não possui qualquer influência. Cultura é igualmente uma estrutura e um processo (Boesch, 1991BOESCH, Ernest. Symbolic Action Theory and Cultural Psychology. Berlin; Heidelberg; New York: Springer, 1991.). Há uma dimensão da cultura que está sempre se refazendo de acordo com as ações empreendidas pelas pessoas no mundo. Wagner (2002WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify , 2002.) propõe pensarmos a cultura como invenção. A compreensão de mundo ocorre por meio de uma cultura, da qual a pessoa não pode se desprender. No entanto, quando há uma relação entre pessoas de culturas distintas, para que possam interagir, cada uma deve se atentar para a sua própria cultura e usá-la como referência na mediação que faz em relação à outra cultura, de modo que consiga compreender a cultura do outro. Isto é, é necessário encontrar símbolos na sua própria cultura que tragam a equivalência do que procura entender sobre a cultura do outro. Para que isso ocorra, Wagner aponta que a criatividade precisa atuar como mecanismo para compreensão e comunicação.

De acordo com Wagner (2002WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify , 2002., p. 29), o termo “[...] cultura também reduz as ações e propósitos humanos ao nível de significância mais básico, a fim de examiná-los em termos universais para tentar compreendê-los”. Essa mediação é um processo individual ou coletivo de criatividade que permite o entendimento do outro, por meio da experiência de alteridade. Entretanto, a mediação somente é possível através dos símbolos reconhecidos dentro de seus contextos. Essa é uma das dimensões em que a cultura se apresenta como estrutura, no sentido de Boesch (1991BOESCH, Ernest. Symbolic Action Theory and Cultural Psychology. Berlin; Heidelberg; New York: Springer, 1991.), a partir do que os processos empreendidos pelas pessoas e grupos dentro de determinada cultura são possíveis na direção da criatividade wagneriana.

Quando trata sobre mediação cultural, Wagner (2002WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify , 2002.) entende por símbolos o sentido conotativo e metafórico que cada cultura estabelece para a realidade. Os símbolos se relacionam entre si e fornecem material em forma de analogias para a compreensão das demais culturais. Evidentemente que a aproximação por analogias tem seus limites e não permite a compreensão integral da outra cultura. Isso faz com que as relações culturais sejam sempre relações de alteridade.

Para Wagner (2002WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify , 2002.), os símbolos podem ser interpretados somente quando contextualizados. Caso fossem retirados de seu contexto, isto é, do espaço em que é permitido que se crie infinitas combinações, a compreensão seria aleatória e desconexa, perdendo de vista a alteridade das relações e o sentido para quem tenta compreender. A implicação desse fato para a cultura é que, para o autor, ela é a todo tempo inventada. A combinação dos símbolos decorre de uma mediação criativa e contextualizada, portanto. Ainda assim, por mais que aceitemos a ideia wagneriana de que a cultura se cria a todo instante, não perdemos de vista a noção boeschiana de que a cultura é também uma estrutura a partir da qual as transformações culturais são possíveis. Ou seja, a criatividade se dá na presença de alguma estrutura que a sustenta.

Podemos entender a invenção cultural como uma dinâmica de formação pessoal, coletiva e transpessoal, baseada em metáforas, associações e extensões simbólicas, que atuam na leitura e produção dos símbolos da própria cultura em que está inserida a pessoa ou de outra. Nesse processo, a cultura acaba por objetificar a realidade por meio de suas convenções, assim como, segundo o autor, ela inventa convenções a partir da simbolização. A cultura deve ser pensada como elementos heterogêneos que servem para a improvisação inventiva dela mesma e como base para uma cultura imaginativa. Ainda, “[...] a ‘cultura’ no sentido mais restrito consiste em um precedente histórico e normativo para a cultura como um todo: ela encarna um ideal de refinamento humano” (Wagner, 2002WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify , 2002., p. 81).

A proposta de Wagner (2002WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify , 2002.) aponta para a construção simbólica da pessoa em relação ao coletivo. Nesse sentido, sustentamos a ideia de que nosso corpo não pode ser pensado descontextualizado da cultura em que a pessoa se constitui e das relações dessa cultura com as demais. Relações estas que incluem, evidentemente, as etapas coloniais da criação e desenvolvimento de uma nação, comunidade imaginada nos termos de Benedict Anderson (2008ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.). Nosso corpo não existe separado dos símbolos, sentidos e significados culturais nos quais está inserido e aos quais ajuda a construir e transformar. Ou seja, nosso corpo e a corporeidade que o contém e a partir de que se forma é também resultado da colonização que sofremos historicamente e das relações de poder que se estabeleceram desde então.

Pensar a cultura em relação ao corpo inclui a ideia de entraves culturais que este corpo pode sofrer em seu desenvolvimento. Parte do processo de colonização brasileira, e de muitos outros países, implicou no domínio dos corpos encontrados nas terras colonizadas. A colônia viu seus corpos sendo disciplinados por parte dos colonizadores. Se a cultura existe na medida do agir simbólico das pessoas, dos objetos simbólicos que produzimos e da historicidade construída (Boesch, 1991BOESCH, Ernest. Symbolic Action Theory and Cultural Psychology. Berlin; Heidelberg; New York: Springer, 1991.), domesticar, disciplinar e enquadrar os corpos ao modelo eurocentrista foi claramente uma significativa demonstração daquilo a que Foucault nomeou de biopoder.

Segundo Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. ), o poder é construído historicamente como prática, não como objeto, e se instaura nas redes de relações e nas microrrelações das pessoas. De acordo com o autor, o poder atravessa toda a sociedade e é onipresente nas relações do mundo. Sua rede atua para além do Estado, comunidade, família ou tecnologia e está em toda parte, porque provém de todos os lugares. Ele engloba tudo e todos, está presente nas relações estabelecidas em diferentes lugares, mesmo quando há resistência.

As práticas do poder, que segundo o autor operam em qualquer sociedade, amarrando, impondo limites e obrigações ao corpo, funcionam através de mecanismos e dispositivos normativos. Segundo Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. , p. 164),

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.

A disciplina age como tecnologia do biopoder, atua sobre o indivíduo diretamente, dominando-o, controlando suas aptidões e domesticando os corpos. Ela corrige e hierarquiza de acordo com suas necessidades. O biopoder é o elemento regulamentador da multiplicidade biológica e o disciplinar é o elemento regulamentador do corpo individual. Por um lado o biopoder atravessa instituições e órgãos do Estado, atua sobre o corpo coletivo, por outro a disciplina atua no âmbito individual, punindo e vigiando para o adestramento. O biopoder, segundo Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. ), traz uma série de mecanismos, que, através das características biológicas da espécie humana, cria estratégias de poder para o controle das massas.

Mas como o corpo age e reage a essas relações de poder? Uma das perspectivas teóricas que nos permite compreender esse fato é a proposição de corpomídia de Greiner (2005GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. 1 ed. São Paulo: Annablume, 2005. ), e seus desdobramentos nos escritos de Katz (2005KATZ, Helena. Por uma teoria do corpomídia. In: GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares . 1 ed. São Paulo: Annablume , 2005. P. 125-134.; 2010). Pensando historicamente as questões de poder, biopoder e nossa incursão pelo corpomídia em uma sociedade como a brasileira, em que o contexto da colonização é explícito, precisamos compreender como somos afetados pelas amarras e imposições da colonização, reconhecê-las e talvez desatar algumas delas, possibilitando uma identidade própria, ao contrário do que nos sujeita a colonização.

O substantivo “corpo vem do latim corpus e corporis, que são da mesma família de corpulência e incorporar” (Greiner, 2005GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. 1 ed. São Paulo: Annablume, 2005. , p. 17). Esse primeiro aspecto se refere à materialidade do corpo. No dicionário indo-iraniano, ainda segundo a autora, o termo tem procedência em krp, que sugere “forma” e, aponta, ainda, que a origem grega é soma - corpo morto - e demas - corpo vivo.

A partir da sua etimologia e de sua aplicação no campo das pesquisas histórico-filosóficas, notamos que há determinada convergência para a concepção de um corpo cindido, já que, segundo Greiner, durante muito tempo essa foi a forma usada para compreender o corpo e suas relações com o mundo que o cerca (Simão; Sampaio, 2014SIMÃO, Marina Fazzio; SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. O corpo nos processos de condução artístico-pedagógica: uma busca pelo corpo-em-interação. Expressão, v. 1 e 2, n. 1, p. 155-166, 2014., p. 155). Atualmente, a cisão vem perdendo força e o foco tem recaído sobre a interdependência entre suas dimensões biológica, social e cultural. Nas palavras de Greiner (2005, p. 37), “[...] a relação entre o corpo biológico e o corpo cultural é um aspecto para começarmos a mapear o corpo como um sistema e não mais como um instrumento ou produto”. Trata-se de um sistema que, ao interagir com outros sistemas, gera mudanças em si e no outro. Assim, o corpo afeta e é afetado pelo outro e o mesmo ocorre com o meio em que está inserido.

Katz (2010KATZ, Helena. O papel do corpo na transformação da política em biopolítica. In: GREINER, Christine (Org.). O Corpo em Crise: Novas Pistas e o Curto-Circuito das Representações . São Paulo: Annablume , 2010. P. 121-132., p. 124), a partir da concepção de Sebeok, e em diálogo com as proposições de Greiner, aborda o contexto na sua compreensão de corpo.

O contexto não é um recipiente povoado por coisas que o conformam; o contexto está sempre mudando porque o conjunto de coisas que o forma também se transforma. As atualizações são contínuas, articulatórias e descentradas, uma vez que o trânsito permanente instabiliza as noções de dentro e fora. Assim, o contexto e tudo que o forma passam a ser lidos como estados transitórios em um fluxo permanente de mudanças.

Entender que o ambiente movimenta o corpo, conduz à suposição de que o corpo, por sua vez, movimenta/regula o ambiente. Para Greiner (2005GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. 1 ed. São Paulo: Annablume, 2005. ) e Katz (2005KATZ, Helena. Por uma teoria do corpomídia. In: GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares . 1 ed. São Paulo: Annablume , 2005. P. 125-134.) essa bidirecionalidade gera um processo de coevolução, em que toda informação não chega a um corpo sem sofrer alterações. Quando as informações são interiorizadas pela pessoa poderão ser utilizadas dentro de novos contextos afetivo-cognitivos, gerando sentidos e significações diversos dos primeiros.

O ambiente no qual uma informação é produzida, transmitida e interpretada, nunca é estático, mas uma espécie de contexto-sensitivo - por isso, as trocas entre os corpos e ambientes são possíveis, e o corpo, que está sempre transitando por vários ambientes/contextos, vai trocando informações que tanto o modificam como modificam os ambientes. Evidentemente, há uma taxa de preservação que garante a unidade e a sobrevivência de cada ser vivo, nesse processo de co-transformações que não estanca entre corpo e ambiente (Greiner, 2010GREINER, Christine. O Corpo em Crise: Novas Pistas e o Curto-Circuito das Representações. São Paulo: Annablume , 2010., p. 123).

Assumir essa perspectiva de contexto nos faz afirmar que as relações de biopoder de que fala Foucault seriam também (co)construídas pelas pessoas em seus cotidianos para além das relações de Estado ou econômicas. Entretanto, o poder como prática e força atua de forma mais presente e eficaz sobre a pessoa do que a pessoa sobre o poder. Uma pessoa sozinha não representa a força do coletivo, por isso a relação é díspar. Se os corpos resultam de suas interações com outros corpos e com o meio, eles afetam as práticas de poder às quais estão submetidos. Por esse ângulo, são os corpos que (co)regulam, alimentam e mantém a colonialidade; logo, podem igualmente encontrar caminhos que evidenciem ou minimizem tal influência na criação e recriação da cultura em que se inserem em direção ao reconhecimento da colonialidade e, quem sabe, de percursos de descolonialidade.

Quijano (2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). La Colonialidad del Saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. P. 121-151.) cunhou o conceito de colonialidade como sendo uma prática de poder que ultrapassa o colonialismo; que permanece no sistema-mundo mesmo após processos de independência e descolonização. O autor usa o termo para tentar explicar a modernidade como um processo diretamente ligado à colonização, ou seja, vinculado à experiência colonial. Com a independência da maioria das colônias europeias, Quijano demonstra que as estruturas de subordinação e exploração são agora reproduzidas pelo sistema-mundo capitalista. Para o autor, o sistema atual seria também colonial-moderno. Sendo assim, o processo histórico iniciado no século XVI está atrelado à noção de colonialidade, integrando colonizadores e colonizados no sistema atual de modo a perpetuar os papeis dos participantes em uma relação explorador-explorado.

Sistema-Mundo, por sua vez, se refere a uma estrutura que abarca as relações internacionais por meio da globalização; uma maneira como as relações políticas, econômicas e sociais se dão entre países, tendo o capitalismo como plano de fundo. Na busca pelo avanço capitalista mundial, as relações de trabalho, produção e demandas econômicas se tornam divisores de águas e ajudam a determinar a posição de cada país na relação mundial entre todos os outros. Como resultado ou objetivo o sistema-mundo proposto por Wallerstein (1979WALLERSTEIN, Immanuel. El Moderno Sistema Mundial: la agricultura capitalista y los origins de la economia-mundo europea em el siglo XVI. México: Siglo Veintiuno, 1979.) divide o mundo entre hegemônicos e dependentes. Entretanto, as disparidades nas relações não se aplicam apenas aos países, mas também internamente a cada nação, a cada grupo social, até chegar em relações pessoais que de alguma forma reverberam todas as outras relações de meso e macroalcance. Em suma, é sobre os modos de ação física e simbólica de cada pessoa que as interferências dessa monta têm impacto decisivo.

Se a colonialidade ainda é presente no sistema-mundo, ela revela em sua cultura a supremacia europeia sobre a asiática, africana e latino-americana. O debate descolonial (Quijano, 2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). La Colonialidad del Saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. P. 121-151.) aponta que a colonização pode ter findado em muitos países, mas que a colonialidade permanece ativa na forma capitalista em que o mundo é organizado. Isso porque o colonizador continuou sendo o conquistador e controlando os países antes invadidos e colonizados. As implicações da manutenção da colonialidade para as discussões a respeito do corpo e da identidade contribuem para que possamos construir, ainda que parcialmente, um panorama sobre o processo que estabeleceu o corpo cotidiano como também um corpo colonizado.

A colonialidade permanece nas práticas onde o poder está presente. Não se trata apenas de como era a colonização, relação entre colonizador e colônia, e sim de resquícios que permanecem intrínsecos na sociedade que foi colonizada. Hoje, a relação deveria ser entre descolonizado/mundo, mas, embora um país não seja mais colonizado, ele ainda sofre as consequências de ter sido/ser uma colônia. Seu povo e sua economia respondem ao capitalismo, que teve seu sistema construído após as colônias. Numa sociedade que funciona com aspectos advindos da colonialidade, ela detém seus valores sustentados na relação de explorador/explorado.

Se mesmo após a descolonização funcionamos em uma relação de colonialidade, a descolonialidade, então, seria um caminho para se construir perspectivas próprias, que consideram o percurso colonial, reconhecem seus traços operantes e decidem o que fazer com eles, dentro do escopo permitido pela cultura, que, como já dissemos, também responde a traços coloniais. Como não é possível excluir as influências de uma colonização, o que se espera com a descolonialidade é encontrar uma identidade que não aquela imposta pelos europeus, ainda que suas influências permaneçam. Talvez, em um primeiro momento, acreditava-se que os aspectos econômicos, culturais e políticos se configurariam de forma autônoma nos países latino-americanos após a descolonização. No entanto, isso não ocorreu e, de acordo com Mignolo (2005MIGNOLO, Walter. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo (Org.). A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Buenos Aires, 2005. P. 34-54.), tais aspectos respondiam aos interesses de países europeus. Pensar a descolonialidade é permitir a criação da cultura, no sentido wagneriano, através de um processo mais autônomo e menos forçado pelo estrangeiro, o que não significa puro, mas consciente.

Mignolo (2008MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, Dossiê: Literatura, língua e identidade, Niterói, n. 34, p. 287-324, 2008., p. 292) explica que

Na América do Sul, na América Central e no Caribe, o pensamento descolonial vive nas mentes e corpos de indígenas bem como nas de afrodescendentes. As memórias gravadas em seus corpos por gerações e a marginalização sócio-política a qual foram sujeitos por instituições imperiais diretas, bem como por instituições republicanas controladas pela população crioula dos descendentes europeus, alimentaram uma mudança na geografia e na política de Estado de conhecimento.

Há nas narrativas históricas sobre a constituição cultural dos povos colonizados um enfoque unidirecional. Este inviabiliza que se reconheça a história dos povos colonizados por perspectivas que não se restrinjam ao enfoque europeu, ainda que incluam a perspectiva eurocêntrica. Certamente tal fato, que tem implicações drásticas para como pensamos e constituímos nossa cultura, também recai sobre a forma como vemos e idealizamos nossos corpos. Isto porque, para além de um corpo biológico, somos constituídos das construções simbólicas que produzimos sobre e com o corpo. Essas produções estão no cerne do que entendemos, por exemplo, como corpo saudável, corpo sexuado, corpo biológico, corpo jovem (adulto, velho), desenvolvimento corporal etc. Construímos, certamente, todas essas categorias desde uma matriz calcada em heranças coloniais.

Nas palavras de Quijano,

Na realidade, cada categoria usada para caracterizar o processo político latino-americano tem sido sempre um modo parcial e distorcido de olhar esta realidade. Essa é uma consequência inevitável da perspectiva eurocêntrica, na qual um evolucionismo unilinear e unidirecional se amalgama contraditoriamente com a visão dualista da história; um dualismo novo e radical que separa a natureza da sociedade, o corpo da razão; que não sabe o que fazer com a questão da totalidade, negando-a simplesmente, como o velho empirismo ou o novo pós-modernismo, ou entendendo-a só de modo organicista ou sistêmico, convertendo-a assim numa perspectiva distorcedora, impossível de ser usada salvo para o erro. Não é, pois, um acidente que tenhamos sido, por enquanto, derrotados em ambos os projetos revolucionários, na América e em todo o mundo. O que pudemos avançar e conquistar em termos de direitos políticos e civis, numa necessária redistribuição do poder, da qual a descolonização da sociedade é a pressuposição e ponto de partida, está agora sendo arrasado no processo de reconcentração do controle do poder no capitalismo mundial e com a gestão dos mesmos responsáveis pela colonialidade do poder. Consequentemente, é tempo de aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos (Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas . Buenos Aires: CLACSO , 2005. P. 116-142., p. 138-139).

Se por um lado a colonização representou historicamente a submissão e escravidão de povos, por outro, e de forma bastante expressiva para o discurso descolonial, criou a necessidade de ações desviantes, “[...] arenas de resistência e conflitos, estratégias envolventes, contra-hegemônicas e de novas linguagens e projetos indígenas da modernidade” (Rivera Cusicanqui, 2010RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax Utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. 1. ed. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010., p. 53).

A perspectiva descolonial não pretende sobreposição de culturas. Nela espera-se a equidade de mundos. Dessa forma, a opção descolonial é um mundo da coexistência, no qual percebemos a colonialidade intrínseca a nossos processos culturais e descobrimos como viver com ela. Assim,

[...] Descolonial significa pensar a partir da exterioridade e em uma posição epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia epistêmica que cria, constrói, erige um exterior a fim de assegurar sua interioridade. [...] Descolonial implica pensar a partir das línguas e das categorias de pensamento não incluídas nos fundamentos dos pensamentos ocidentais (Mignolo, 2008MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, Dossiê: Literatura, língua e identidade, Niterói, n. 34, p. 287-324, 2008., p. 305).

Nesse sentido, como seria um corpo que pensasse/atuasse de uma maneira subversiva em relação ao seu sistema-mundo colonial? Para responder a essa questão, propomos pensar como um processo artístico pode ser utilizado para que a pessoa em estado de atuação reconheça a colonialidade de seu corpo. Não nos referimos à desconstrução para buscar uma nova maneira de trabalhar o corpo, mas ao reconhecimento de aspectos de nosso corpo que são frutos de um cotidiano pautado também na colonialidade. Afinal,

[...] descolonialidade significa ao mesmo tempo: a) desvelar a lógica da colonialidade e da reprodução da matriz colonial do poder (que, é claro, significa uma economia capitalista); e b) desconectar-se dos efeitos totalitários das subjetividades e categorias de pensamento ocidentais (por exemplo, o bem sucedido e progressivo sujeito e prisioneiro cego do consumismo) (Mignolo, 2008MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, Dossiê: Literatura, língua e identidade, Niterói, n. 34, p. 287-324, 2008., p. 314).

Descolonialidade e Corpo Cênico3 3 Pedimos ao leitor que compreenda a quantidade de autocitações que fazemos nesta parte do texto. Esse fato resulta de ser a perspectiva e os conceitos uma criação nossa, ainda em desenvolvimento. Além do que, achamos justo trazer para o material a maior quantidade possível de ilustrações e apontamentos sobre a experiência analisada, com fins de facilitação da leitura.

A seguir, trataremos da experiência da produção do espetáculo em Composição Poética Cênica (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a), Favores da Lua - o prólogo, veiculado em 2011 no estado de São Paulo, pelo Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica4 4 O Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica constitui-se como uma ação de extensão do CONAC, em desenvolvimento no Estado de São Paulo. É um centro de pesquisa sócio-artístico-cultural, que centra suas pesquisas na linguagem cênica após o que se reconhece como iluminura. Trata-se de um desdobramento das pesquisas que são realizadas no CONAC (Palmas-TO) e compõe um repertório artístico (criação de espetáculos em Composição Poética Cênica) de artistas com diferentes formações acadêmicas e técnicas residentes no Estado de São Paulo, mas que desenvolvem pesquisas cênicas em tempo contínuo sob a supervisão do coordenador do CONAC. O CONAC é o Laboratório de Pesquisa e Extensão em Composição Poética Cênica, Narratividade e Construção de Conhecimento, da Universidade Federal do Tocantins. Para mais informações consulte o site: www.conac.net . A obra foi dirigida pelo segundo autor deste texto, com atuação da primeira autora. No processo de criação do espetáculo foram levantadas algumas questões que aproximam a proposta de trabalho corporal para o ator da perspectiva descolonial abordada neste texto. Os documentos utilizados para análise são provenientes do diário de bordo escrito pelo diretor entre os anos de 2010 e 2012. Parte desse material encontra-se publicado no livro A constituição do ser(ator) entre a cotidianidade e as artes cênicas (Sampaio, 2017aSAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.).

Durante a elaboração do referido espetáculo, o diretor cunhou e desenvolveu com os membros do grupo a noção de corpo atenso. O corpo atenso se configura como aquele portador apenas de tensões necessárias à sua manutenção na situação cênica. O excesso de tensões na dimensão biológica do corpo dificulta a expansão das composições poéticas corporais para a cena. “Este “corpo atenso” [...] organiza-se com um mínimo de tensões necessárias à sua existência. Por essa razão, as expressões não-tenso e relaxado não davam conta do que estávamos pretendendo significar e buscar” (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 24). Foi a partir dessa constatação que o neologismo surgiu nas práticas do grupo.

Um dos aspectos cruciais dessa investigação cênica é que o ator precisa voltar o olhar para seu corpo, a fim de tirá-lo do automatismo cotidiano e tomar consciência da influência que as relações de poder, de colonialidade e de adestramento social exercem sobre o corpo, etapa inicial de qualquer proposta de descolonial - assumir que a colonialidade existe e opera coletiva e individualmente. A condução tem como fim permitir que a pessoa amplie seu campo de percepção sobre si mesmo, para então compreender como pode construir uma poética de cena. A pessoa se torna a matriz e o verdadeiro aporte estético da linguagem. Todas as outras materialidades levadas à cena têm como proposição a transformação da corporeidade da pessoa a ser fruída pelo espectador. Isso implica na qualidade da presença do ator.

Depois de constituído sobre as tensões necessárias, o ‘corpo atenso’ deve ser friccionado com as outras materialidades da cena, a fim de que possa, efetivamente, construir sobre si as tensões necessárias ao jogo instaurado na criação (e não somente na sua própria existência). As tensões necessárias devem surgir, assim, na medida em que a ação cênica vai sendo composta e os corpos são assumidos como uma das materialidades dessa composição (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 24).

Na direção da descolonialidade proposta com a noção de corpo atenso, o primeiro passo seria dialogar com seu corpo-próprio (Merleau-Ponty, 2011; 2012; 2013), para então tomar consciência de suas amarras. Essa iniciativa seria a etapa inicial para acabar com o automatismo de que fala Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. ) sobre a disciplina dos corpos e o biopoder. Dessa forma, o ator, além de estar atento ao seu corpo, busca uma consciência não cotidiana a respeito de si. Pelo que estamos construindo, tal consciência debruça-se sobre a cotidianidade automática imerso em relações pautadas por influências estrangeiras/coloniais invisibilizadas. Nessa direção, espera-se que o participante das práticas teatrais em Composição Poética Cênica leve seu corpo para um estado extracotidiano. Isto é, passa a ser-aí/estar-aí (Heidegger, 2009HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes , 2009.) no mundo de modo diverso do habitual. É nessa situação de extracotidianidade do corpo que o diretor acredita que o ator possa tomar consciência de suas amarras corporais, não só para a cena, mas também e, principalmente, para a vida cotidiana.

Se o ator passa a ter consciência de seu corpo e de seus modos de operar no mundo, e talvez reconheça seus automatismos, estaria no rumo de experimentar um corpo em processo descolonial. Isto é, ao vivenciar o corpo atenso o ator se permite ter uma postura descolonial frente a si mesmo, o que, talvez, o encoraje a ter a mesma postura frente a outros corpos/pessoas. Isto porque, quando o ator de algum modo retira tensões cotidianas para permitir que a cena mostre as tensões necessárias, está construindo um corpo que busca contrapor em sua prática o modelo edificado pelo cotidiano, decorrente em grande medida dos processos coloniais.

E não precisávamos para tanto partir para exercícios muito complexos. Em pouco tempo, percebemos que a caminhada, jeito particular de levar o corpo pelos espaços, era suficiente para, aos poucos, nos permitir acessar mais do que se esperava mostrar com o simples deslocar dos pés no chão. A caminhada, algo tão cotidiano, revelava, na medida em que íamos nos mapeando em caminhada, tensões, jeitos, pressões, absolutamente desnecessários para o simples fato de caminhar. Supúnhamos de modo tateante naquela época que aí se revelavam formatações cotidianas provenientes dos modos como habitávamos o mundo. Eram nossos corpos revelando para nós mesmos as amarras e as relações de poder com que lidávamos cotidianamente e que foram modelando o corpo que apresentávamos ao caminhar. O avanço das pesquisas do grupo em 2010 veio, em grande medida, desse processo de encontro de si consigo mesmo, com foco nas tensões corporais.

De uma coisa tínhamos certeza, o corpo precisa estar em interação com o meio (objetos, coisas, pessoas, simbolizações) para que possa ser afetado e pressionado pelas materialidades da cena (ator, luz, som, cenário, etc.) para aí realizar as mudanças necessárias. Isso implica, portanto, em se colocar também em diálogo com a historicidade das coisas e dos símbolos, que inclui a perspectiva europeia hegemônica, mas não se limita a ela.

Ou seja, o ‘corpo atenso’ é contextualmente construído e só é possível ser efetivamente experienciado se o ser-ator se abre para a dimensão biológica da sua própria existência; todavia, esse existir nunca é independente das dimensões sociais e culturais do corpo. Essa abertura, portanto, é uma abertura do ser para o corpo-em-si. [...] Supomos assim que, à medida que ele se aproxima de sua organização biofísica, é remetido à sua existência sociocultural. Ainda que o acesso à dimensão biológica do corpo nunca seja dada ao ser direta e isoladamente, é só porque ela existe que qualquer outra dimensão do fenômeno humano pode acontecer. Em função disso, com o passar do tempo e das experimentações, a maior parte dos seres-atores percebeu uma considerável diminuição da distância entre o ‘corpo atenso’ e o corpo cotidiano, relatando mudanças de tonicidade e percepção não no corpo em cena somente, mas também, e principalmente, no corpo em suas atividades cotidianas (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 24-25).

Para aprofundar a noção de corpo atenso, Sampaio (2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a) apresenta a metáfora de um corpo cor-primária. O autor sugere que o corpo terá seu estado de cena formulado a partir das interferências por ele sofridas. E que não só os corpos humanos são passíveis de tensões, como todos os corpos físicos e simbólicos com que a pessoa interage.

Em alguns momentos [...] comparamos o ‘corpo atenso’ à ideia de uma cor primária. Cada ser-ator em criação e sob a perspectiva do ‘corpo atenso’, expõe uma base, um marco zero, para múltiplas interações criativas. Enquanto as cores primárias são apenas três, os ‘corpos atensos’, enquanto pontos iniciais, são infinitos, mas cada um possui um repertório potencial finito de criação (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 30).

Essa ideia de corpo-cor-primária se refere a um corpo que possui os elementos necessários para futuras combinações e que ganha suas tonalidades através do diálogo com os elementos e integrantes da cena. “[...] esse corpo quando disponibilizado para o jogo de pressões sofrerá o impacto de novas tensões e relaxamentos que o possibilitarão à composição do dito corpo cênico, segundo os princípios com os quais trabalhamos” (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 27).

No trabalho com o corpo atenso, os automatismos não são evitados, pelo contrário, no estado de representação buscam-se caminhos para que se reconheçam os automatismos e para que se permita uma construção identitária que, no mínimo, se paute na admissão da existência da colonialidade que constitui o corpo. Que se façam ver as marcas da historicidade dos corpos, de suas relações coloniais e de poder. Isto é, uma construção cênica que não nega a historicidade do corpo. Um corpo cênico, portanto, que é igualmente descendente de processos coloniais. Se o corpo atenso varia a cada indivíduo, poderia então estabelecer e buscar seu modo originário de estar; aquilo que o faz único e ao mesmo tempo integrante do corpo social, que a cultura constrói com e em torno da pessoa. Ou seja,

[...] não falamos, reitero aqui, de um corpo que se mantenha em um registro estritamente cotidiano, quanto à percepção, por exemplo, mas de um corpo que deveria ele mesmo estar lá, nas ações cotidianas. Por que na cena se deve ampliar os sentidos? Me parece mais lógico que pensemos pelo inverso: este corpo atenso de que falamos, e que pretendemos organizar com nossas atividades, considera a um só instante as dimensões do corpo de si, em seus aspectos físicos, mas também afetivo-cognitivos, e o outro como (co)construtor dessa dinâmica de ação simbólica, que, nos parece, é plausível para a cena e para a vida cotidiana. Quando digo outro, digo o outro como espaço, como iluminação, como sonoridade, mas também como outro-sujeito. Ou seja, o registro que buscamos para os corpos é potencialmente cênico e cotidiano ao mesmo tempo, dependendo, é claro, da inserção que fazemos dele em determinada cultura, se considerarmos a cena em seu funcionamento, como uma cultura interdependente e análoga àquela em que vivem os sujeitos em estado de não-atuação-cênica (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 50).

É nessa perspectiva do distensionamento do corpo (atensão corporal) em direção ao cotidiano que consideramos esse processo artístico como sendo um processo descolonial. Vale ressaltar que, como alerta o diretor em muitas passagens de seu diário de bordo, o corpo atenso e o corpo ordinário possuem um limite de separação muito tênue, mas não chegam a constituir uma dimensão única de existência corporal, ainda que se apresentem inseparáveis. No entanto, é preciso reiterar que o condutor do grupo não aponta, no período que analisamos seu diário de bordo de trabalho com o Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica, em seus relatos o corpo cotidiano como um corpo colonizado. Muito provavelmente porque esse não era um tema de interesse explícito na época das proposições das atividades que nos servem de ilustração.

Um dos caminhos adotados pelo diretor para se chegar ao corpo atenso foi trabalhar com a vertigem. Para Sampaio (2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a), ao diminuir o controle racional sobre o corpo, fruto do estado vertiginoso, alguns automatismos e linhas de força que agiam sobre o corpo se tornavam evidentes. Nesse sentido, a diminuição do controle racional permitia o mapeamento, ainda que inicial, das marcas do cotidiano e de suas relações de poder sobre o corpo (na busca pela ideia de corpo saudável, sexuado, belo, profissional etc..), constituintes silenciosas da pessoa que se dispunha à cena. Tal fato pode ser observado na seguinte passagem do diário de bordo:

Os relatos foram no sentido de que dessa maneira [no trabalho com a vertigem] as tensões dos corpos ficam ainda mais evidenciadas. Esse ponto me interessa muito. Será que a vertigem pode ser um caminho de descoberta das tensões e aí resultaria um trabalho intenso para se chegar a um corpo atenso? Elton, por exemplo, deixa evidenciar sua tensão nas pernas. Relato de mais de uma pessoa do grupo. Aninha, logo após o giro, coloca uma tensão no rosto que rapidamente é identificada por alguém (não me lembro quem foi) (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 38).

Os estudos da vertigem parecem ter se tornado muito importantes para os atores, como apontam vários de seus relatos transcritos por Sampaio (2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a). Talvez a importância percebida pelos atores vá ao encontro da proposta de Sampaio, nos termos a seguir:

A vertigem, de certa forma, impede que o ser-ator construa o ser-da-cena completamente sob os cuidados da razão. Ao confundir os próprios sentidos, no giro frenético, por exemplo, o corpo passa a se revelar ainda mais no turbilhão de sensações e na tentativa biológica de se (re)equilibrar. As tensões desnecessárias tendem a ficar consideravelmente mais evidentes para os olhos do observador e, assim, na condução, o orientador tem mais acesso aos passos a serem dados em busca do ‘corpo atenso’ (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 38).

Reiteramos, no entanto, que com essa atividade não estávamos preocupados com qualquer tentativa de desconstrução total do arcabouço simbólico-acional que cada participante tinha sobre si, até porque não acreditamos que tal objetivo seja efetivamente alcançável. Mas sim procurávamos desvelar algumas das características da escritura do corpo no espaço. Por conseguinte, almejávamos tornar parte da colonialidade evidente e abrir caminhos para a descolonialidade (quando ela fosse interessante para a pessoa e para a criação), que é, em grande medida, uma iniciativa pessoal e não está vinculada com a cena a ser criada, estrito senso.

A construção do corpo atenso é possível também por meio de outras naturezas de jogo, que não os de vertigem, tais como no exemplo a seguir, que se pauta exclusivamente na caminhada e em jogos de imaginação sobre o corpo ideal para a cena:

Corpo Ideal: Caminhem! Esse é o corpo que vocês julgam ideal para a cena? Se sim, reparar qual é esse corpo. Se não, como chegar ao corpo ideal? Realizar a passagem de um a outro - passo-a-passo! O que realmente é necessário nesse corpo ideal? O que realmente é necessário nesse corpo ideal (atenso)? Por que o corpo ideal da Larissa tem o queixo para frente? Por que alguns corpos ideais possuem braços destacados do corpo? Por que quando falamos em corpo ideal tanta gente coloca tensão? O corpo ideal não deveria ser o corpo ‘Atenso’ ou ‘Atento’? (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 20).

O que essa passagem parece evidenciar é que também a cultura teatral produz relações de colonialidade. Técnicas e modos de se fazer e pensar o teatro são não raramente importadas e subsumam as práticas locais e as propostas mais particularizadas dos grupos. Isso justificaria, por exemplo, algumas escolhas de atores do grupo sobre o que consideravam, até esse trabalho, como um corpo ideal para a cena. O corpo ideal (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a) se refere a um registro de tensões e demais qualidades corporais que sejam justas e necessárias à cena de acordo com a estética que organiza a criação. Em resumo, um corpo adequado à cena, sem excessos ou faltas da dimensão biológica do corpo na construção da presença cênica. Para tanto, para desvelar esse estado de presença pertinente e justo à cena, faz-se necessário que se revelem os automatismos, tensões desnecessárias edificadas no cotidiano, e modos ideacionais prévios de estar em cena. Reiteramos que é nessa dimensão que o processo passa a se constituir como descolonial.

Muitas das técnicas e perspectivas teatrais estabelecem parâmetros de comportamento corporal que independem da pessoa a que ela se destina, assumindo, nos nossos termos, uma relação de poder e mais valia que subjuga a pessoa aos ditames de cena pré-estabelecidos. Já em Composição Poética Cênica, a perspectiva que vem sendo construída por Sampaio (2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a) e que embasa a criação do espetáculo cujo processo analisamos, o pressuposto é investigativo e não de resultados:

[...] Eu prefiro dizer que a adaptabilidade é o fator que permite a existência dessa estrutura especulativa a que nos dispomos enquanto pesquisa cênica. Só há a possibilidade dessa investigação ser validada porque não trabalhamos do ponto de partida de um processo normativo e tampouco desejamos estruturar um. Ao propor a investigação coletiva de um corpo atenso, pensamos na ideia de se construir individualmente, e segundo características específicas a cada corporeidade, um caminho de se entender praticamente a existência cênica dessa ‘atensão corpórea’ (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 24).

Ainda que discutamos sobre a descolonialidade em um processo artístico, não pretendemos, com isso, criar outros parâmetros a serem seguidos por diretores, atores ou artistas em geral. Trata-se, ao contrário, de um horizonte almejado e que pode ser compartilhado como perspectiva teórico-filosófica e metodológica, mas que tanto o percurso quanto o ponto de chegada será sempre individual e dependerá dos trajetos no jogo, na cena e na vida cotidiana, de cada um e do coletivo da iniciativa que se empreenda.

É preciso cuidar para que as propostas que vimos fazendo não se tornem manuais de práticas a serem replicados por outros profissionais. Isso nos levaria a criar discursos descolonizadores e descoloniais sem efetiva prática descolonizadora e descolonial. Princípio que Rivera Cusicanqui reconhece em muitos discursos multiculturalistas, incluídos aí os de Quijano e Mignolo, que nos servem como referências neste texto.

O discurso do multiculturalismo e o discurso da hibridez são leituras essencialistas e historicistas da questão indígena, que não tocam em temas de fundo da descolonização; ao contrário, encobrem e renovam práticas efetivas de colonização e subalternização (Rivera Cusicanqui, 2010, p. 62).

Ainda que concordemos com as críticas da autora aos referenciais teóricos que utilizamos neste texto, a respeito de esses autores considerarem como pré-políticos os movimentos campesinos indígenas, isso não exclui a valia das proposições de Quijano e Mignolo no que tange à díade colonialidade-descolonialidade, para além das questões indígenas estrito senso. Ao particularizar as iniciativas descoloniais em nossos trabalhos e ao focalizar os modos de agir da pessoa no mundo, queremos, em grande medida, evitar o discurso totalizante e universalizante que implicaria em subalternizações, provavelmente a partir de padrões nortistas, e nos desviar da concepção da historicidade linear a que estão vinculados os dois autores, aspectos oportunamente também criticados por Rivera Cusicanqui.

Igualmente concordamos com a autora quanto à necessidade de se construírem diálogos entre as epistemologias, culturas, éticas e estéticas do sul (Rivera Cusicanqui, 2010, p. 73), mas não acreditamos na possibilidade de se excluir do fluxo cíclico temporal das experiências humanas influências e diálogos com epistemologias, culturas, éticas e estéticas do norte. Afinal, também estas últimas fazem parte da nossa constituição. Ao assumirmos nossos corpos como mídias, no sentido já exposto neste texto, estamos supondo jeitos pessoais e particulares de lidar com as diferentes influências.

O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a ideia de mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia a qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo (Greiner, 2005GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. 1 ed. São Paulo: Annablume, 2005. , p. 131).

Nosso trabalho, nesse tocante, ao reconhecer o corpo tanto como receptor-construtor quanto como interlocutor-construtor (Simão; Sampaio, 2014SIMÃO, Marina Fazzio; SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. O corpo nos processos de condução artístico-pedagógica: uma busca pelo corpo-em-interação. Expressão, v. 1 e 2, n. 1, p. 155-166, 2014., p. 158), é buscar explicitar as influências e hegemonias e tentar, na medida do possível, construir condições para que pessoas e grupos sociais consigam, ao descolonizar também seus imaginários, lidar com as situações de colonialidade de modo mais autônomo e consciente. Aqui já esbarramos, por exemplo, em desdobramentos dessa discussão para se pensar a inserção do teatro na educação básica brasileira (e também das outras linguagens artísticas).

Ao supor nossos corpos como mídias e frente ao contexto que apresentamos nos parágrafos anteriores, estamos caminhando na direção da concepção de que nossos corpos atensos podem até guardar entre si alguns pontos em comum de evidenciação de uma mesma colonialidade. Sobre o que também podemos/devemos pensar, atuar, modificar, quando necessário e oportuno. Mas como cada um de nós lidará com ele e/ou o levará para a cena, somente a poética a ser construída e os desejos pessoais poderão dizer.

Na esteira do que expusemos até aqui é que vamos realizando nossas Composições Poéticas Cênicas, com

[...] ordens de movimento - oposições, paralelismos, sucessões, inclinações e quedas; e as leis de movimento - altura, força, expansão, concentração, sequência, direção, forma, velocidade, reação recuo, tensão, relaxamento, extensão, balanço, presença e equilíbrio [...] associação e desassociação de movimentos e sua organização no espaço. [...] [Além de] (des)equilíbrio, oposição, alternância e compensação [...] [Articuladas às questões] Que parte do corpo se move? Em que direção ou direções se move(m) esta(s) parte(s)? Qual a energia muscular exigida para a movimentação? Com que velocidade percorre o espaço? (Sampaio, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.a, p. 18).

O percurso que aqui explicitamos tem por finalidade produzir poesia cênica e fazer dela um processo descolonial para nossos corpos, como já dito, pela busca por revelar automatismos construídos em nosso cotidiano. O foco na ação física e simbólica do indivíduo está atrelado à ideia de que “[...] a regressão ou a progressão, a repetição ou a superação do passado estão em jogo em cada conjuntura e dependem de nossos atos mais do que de nossas palavras” (Rivera Cusicanqui, 2010, p. 55).

De alguma forma, mas isso precisará ser tratado em outro texto, as construções cênicas decorrentes desse processo artístico têm sido reconhecidas frequentemente, também, como estéticas descoloniais. Esse fato parece estar vinculado à nossa premissa de que um processo artístico pautado por uma perspectiva descolonial resulta não só em uma transformação das pessoas envolvidas, mas também na criação de epistemologias, éticas e estéticas igualmente descoloniais. Supomos, ainda, que isso ocorra na medida em que a descolonialidade do corpo conduza à descolonialidade do imaginário (Rivera Cusicanqui, 2010), que, por sua vez, possibilita novas iniciativas de descolonialidade corporal, em um ciclo que se retroalimenta.

Considerações Finais

Neste texto apresentamos, desde experiências de criação dos autores, como a criação cênica pode assumir uma dimensão descolonial para a existência (corporal) da pessoa no cotidiano. Para tanto, assumimos que mesmo com o fim das relações da colonização entre nações, as práticas políticas de colonialidade ainda exercem força sobre os modos de se construir o cotidiano e de nele se constituir na condição de pessoa.

A Composição Poética Cênica, perspectiva para ensino e criação teatral, foi adotada como caminho para se refletir sobre a questão: como seria um corpo que pensasse/atuasse de uma maneira subversiva em relação ao seu sistema-mundo colonial? Não são poucas as vezes que se toma a prática artística sempre em seu sentido de transformação positiva. Entretanto, ainda estamos, no Brasil, bastante dependentes de modos de se pensar e criar em teatro pautados por lógicas, propostas e estéticas não brasileiras. Nessa direção, como apontamos no texto, muitos processos de criação podem igualmente operar na lógica da colonialidade.

De modo inverso, o que se observou com a análise da experiência é que a Composição Poética Cênica tem por finalidade revelar parte da colonialidade operante no cotidiano da pessoa que está como profissional da cena. Dentre todos os caminhos possíveis, escolhemos evidenciar a presença de ações automáticas (não escolhidas) em dinâmicas que são tidas como ações conscientes (escolhidas). Assentamos aí o primeiro passo para a descolonialidade. Enquanto nossos modos de estar no mundo forem tidos como naturais e orgânicos, construídos sob a ideia de que somos autônomos nesse processo, a descolonialidade será apenas teórica, quando existir.

Para se manter a coerência com o processo analisado, a vertigem (associada à caminhada) foi tomada como um dos percursos possíveis para a evidenciação das tensões corporais desnecessárias, a partir de que operamos nossos mundos. Supomos que essas tensões sejam, em grande medida, decorrentes dos ideais corporais que sustentam nossa vida diária. E no caso dos atores, a esse primeiro fato, soma-se a busca por estéticas teatrais, e modos de representação ou interpretação, que são costumeiramente tidos como boas, melhores, ideais. Destes também emergem relações de poder que afetam o corpo dos profissionais da cena e vão, aos poucos, construindo automatismos (frutos da colonialidade).

A funcionalidade da vertigem, nesse caso, parece-nos, se dá na medida da diminuição do controle racional, levada pelo estado em que se encontra a pessoa. A diminuição do controle desorganiza em parte o corpo. E exatamente na tentativa de reorganização que percebíamos os atores buscando jeitos de caminhar, modos de estar presente, absolutamente desnecessários à situação de exercício e criação de que estavam participando.

Por fim, vale reiterar que não buscamos, com a Composição Poética Cênica, empreender a construção de um método, o que trairia sua primeira intenção, que é a de devolver a pessoa para ela mesma nos processos de criação. Caso se organizasse como método, a criação relacionaria a pessoa ao método e estaríamos igualmente propensos a naturezas de criação que sustentariam a perspectiva da colonialidade. A perspectiva nos serve, nessa medida, para pensarmos os processos pessoais de constituição subjetiva e como esses processos podem ser valorizados e favorecidos pelos contextos de criação, em direção a uma existência mais consciente em relação às dinâmicas de poder e biopoder a que estamos expostos (e pelas quais somos constantemente influenciados).

Referências

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  • BOESCH, Ernest. Symbolic Action Theory and Cultural Psychology. Berlin; Heidelberg; New York: Springer, 1991.
  • BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras , 1992.
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  • 1
    Este artigo é resultado de pesquisa de mestrado da primeira autora, intitulada Entre o corpo cotidiano e o corpo cênico: uma perspectiva pós-colonial, com coorientação do segundo autor. A dissertação foi defendida na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latinos-Americanos em Cultura e Sociedade na América Latina, no ano de 2017. Além da orientação do segundo autor, o trabalho contou com a orientação da Profa. Dra. Barbara Maisonnave Arisi.
  • 2
    Refere-se a uma revisão crítica de literatura sobre a pedagogia e a prática teatral em articulação com um amálgama transformativo de propostas construtivistas semiótico-culturais em psicologia, perspectiva criada no Brasil por Lívia Mathias Simão, e com as fenomenologias de Bergson e de Merleau-Ponty, com fins de se pensar o desenvolvimento afetivo-cognitivo da pessoa que se dedica a atividades cênicas. Para maiores informações sobre a perspectiva consulte (Sampaio, 2015aSAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. Teatralidade e Narrativa - conhecimento e construção de sentido da experiência criativa. 1. ed. Palmas: EDUFT, 2015a.; 2015bSAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. Teatro, Conhecimento e Ação Simbólica: a presença estética do ator na cotidianidade. Repertório Teatro e Dança, Salvador, v. 18, p. 122-128, 2015b.; 2017aSAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A Constituição do Ser(ator) entre a Cotidianidade e as Artes Cênicas. Palmas: EDUFT , 2017a.; 2017bSAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. A teatralidade de si mesmo no ensino de teatro. Repertório Teatro e Dança , Salvador, Ano 20, n. 29, p. 233-257, 2017b.; Sampaio; Diniz, 2017SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo; DINIZ, Amanda Gonçalves. Experiência Corporal Estética: a emergência de novas ações simbólicas no trabalho do ator. Moringa, João Pessoa, v. 8, p. 109-124, 2017.).
  • 3
    Pedimos ao leitor que compreenda a quantidade de autocitações que fazemos nesta parte do texto. Esse fato resulta de ser a perspectiva e os conceitos uma criação nossa, ainda em desenvolvimento. Além do que, achamos justo trazer para o material a maior quantidade possível de ilustrações e apontamentos sobre a experiência analisada, com fins de facilitação da leitura.
  • 4
    O Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica constitui-se como uma ação de extensão do CONAC, em desenvolvimento no Estado de São Paulo. É um centro de pesquisa sócio-artístico-cultural, que centra suas pesquisas na linguagem cênica após o que se reconhece como iluminura. Trata-se de um desdobramento das pesquisas que são realizadas no CONAC (Palmas-TO) e compõe um repertório artístico (criação de espetáculos em Composição Poética Cênica) de artistas com diferentes formações acadêmicas e técnicas residentes no Estado de São Paulo, mas que desenvolvem pesquisas cênicas em tempo contínuo sob a supervisão do coordenador do CONAC. O CONAC é o Laboratório de Pesquisa e Extensão em Composição Poética Cênica, Narratividade e Construção de Conhecimento, da Universidade Federal do Tocantins. Para mais informações consulte o site: www.conac.net
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2017
  • Aceito
    22 Maio 2018
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