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Celebrando o Essencial

Prólogo

Estou subindo o morro. É íngreme e o sol brasileiro arde. Olho as pequenas palmeiras que foram recentemente plantadas ao longo da estrada. Em vinte ou trinta anos, as pessoas poderão subir morro acima na sombra. Ou talvez usem uma calçada rolante que as transporte sem que precisem fazer esforço algum. Depois irão para a academia para gastar as calorias. Ou talvez então as pessoas já não precisem comer ou se exercitar, e virá o tempo em que os seres humanos irão compartilhar pensamentos sem palavras, serão dirigidos por microchips e por satélites, irão digerir livros com um comprimido e pedirão ao pôr do sol que faça uma reprise imediata.

Certamente o mundo será diferente no futuro. Isto é, se pudermos protegê-lo o suficiente para que haja um futuro. As mudanças podem ser emocionantes, desafiadoras, exigentes, porém sinto-me feliz por ter crescido no século passado e ter podido ter apenas uma amostra das transformações que estão por ocorrer.

Passo por uma fila de adolescentes sentados em um muro na lateral da estrada; todos estão olhando para baixo, para seus celulares. Sou curiosa e imagino se estão trocando mensagens entre si ou escrevendo para outras pessoas. Um pouco mais ao longe, um pequeno restaurante mostra uma placa do lado de fora: “Sem WiFi, conversem uns com os outros!”. Sorrio: até mesmo eu preciso aprender a priorizar ver minhas amigas e família em carne e osso ao invés de escrever cartas àqueles que estão do outro lado do mundo. Felizmente, o teatro ainda exige que as pessoas compartilhem fisicamente o mesmo tempo e espaço. Em uma era de streaming e performance online, ainda me baseio na antiga técnica da presença do ator no palco, em uma linguagem que se comunica por intermédio do corpo. Qualquer visão que eu tenha do futuro parte de um modo de pensar que está enraizado em meus pés.

Porém, até mesmo eu não tenho mais o luxo de conseguir ensaiar durante meses e dar forma a um personagem por alguns anos como eu costumava fazer. A comunicação tornou-se rápida demais e, na pressa geral, me preocupo se não me tornei superficial. Ninguém tem tempo agora. No Facebook, WhatsApp, LinkedIn, Twitter, páginas na internet, blogs: curto, participo, vou, não vou, digo que legal, concordo, discordo, digo oi, e não muito mais. As sentenças tornam-se cada vez mais curtas, assim como as palavras: C U [See you]! Parece que o importante é ser visto e reconhecido, em vez de dizer algo com sentido e uma história. Poucos têm tempo para escrever, mas, acima de tudo, muitos não têm tempo para ler. A maior esperança é expressar algo tão universal que seja necessário apenas um clique para responder.

Ao pensar sobre o que perdemos com os inevitáveis efeitos colaterais do progresso, recordo como a famosa atriz da Ópera de Beijing, Pei Yanling, tinha que ficar com a perna sobre uma mesa durante uma hora para alongar seus músculos com seu instrutor ao seu lado. Meu próprio aprendizado - aprender a pensar em ações físicas para adquirir um conhecimento incorporado e que não pode ser explicado - durou anos. Mas acho que, no futuro, dificilmente os jovens terão o privilégio que tive: tempo, dedicação, paciência e liberdade para treinar, aprender e pesquisar infinitamente. Imagino que a educação terá que seguir um ritmo completamente diferente e se adaptar a uma realidade que está mudando a uma velocidade que me provoca tanto medo quanto maravilha.

Na minha visão do futuro, gostaria de ser rica em tempo, de ter lentas horas para ler e pensar, sair para caminhar e olhar a paisagem. Talvez eu esteja sendo otimista. Acho que estou eternamente correndo atrás de mim, nunca alcançando minha própria sombra. Mas se eu parar por um momento, lembro que é por escolha própria. Embora as condições materiais sejam mais difíceis e haja menos financiamento disponível para a cultura, e precisemos alongar nossas energias para ganhar a vida e manter nosso grupo de teatro em andamento, ainda estamos vivendo a vida que escolhemos.

Alguns meses atrás, ao viajar ao longo das sinuosas estradas montanhosas no Laos, vi os camponeses que esperavam pela chuva para preparar seus campos de arroz em terraço. Alguns tinham um pequeno arado a motor, mas a maioria utilizava búfalos. Em um vilarejo, visitei uma escola em que a professora carregava seu bebê nas costas enquanto ministrava suas aulas. Ela me disse que algumas famílias têm doze filhos e não podem pagar pelos estudos de todos eles. Olhei as salas de aula e comparei as mesas de madeira sobre o piso de cimento com os computadores modernos das escolas dinamarquesas. O turismo é a principal fonte de renda naquele país, que foi atingido pelo maior número de bombas por habitante. As bombas de fragmentação lançadas secretamente pelos norte-americanos durante a guerra do Vietnã ainda fazem vítimas - crianças brincando, camponeses trabalhando e aqueles que negociam metal para sobreviver. Os poucos ricos pertencem a famílias que costumavam comercializar ópio. Vejo poucos caminhões ao longo da principal estrada do país, mas os mercados vendem os mesmos calçados de plástico e roupas de nylon que o restante do mundo. A vida é dura e as aspirações são simples: cada família quer que seus filhos aprendam inglês e que consigam emprego no ramo do turismo ou no governo.

Confrontada com a dureza e a simplicidade da realidade do amável povo laosiano, que sorria com curiosidade para mim, pensei sobre o sentido da vida. Preocupam-se em ganhar dinheiro suficiente para enviar seus filhos às melhores escolas, na esperança de que tenham uma existência mais fácil do que a sua própria. O que mais? Pensei na minha sobrinha, com três anos de idade, que conseguia ligar um vídeo sem que ninguém tivesse ensinado a ela, e meu próprio forte sentimento de que a maior parte da experiência é transmitida através do ar, sem saber de onde vem. O que eu fiz sobreviverá nos outros? Algo das minhas ações permanecerá? É este o sentido que busco? Certamente é uma esperança que me impulsiona a construir meu futuro.

O pai de uma amiga minha faleceu recentemente. Depois que ela havia vendido a mobília e os pertences restantes, perguntou-se se aquilo equivaleria a toda uma vida; tudo se resume a apenas algumas poucas libras? Tentando consolá-la, a distância, escrevi algumas palavras inúteis para aliviar sua dor: ‘O sentido da vida é apenas manter-se viva; nós, pessoas de teatro, continuamos vivas por meio de nosso trabalho, de nossos espetáculos, as relações que estabelecemos com espectadores e colegas e com aqueles que aprendem com nossa prática; nossa vida vive no ar que nos cerca; e tenho certeza de que seu pai vive em você, em suas filhas, em seus amigos, em tudo que ele fez. Talvez ele não tenha sido reconhecido pelo nome, mas continua vivo, assim como toda a vivência’.

Ao imaginar de que maneira o que faço hoje em meu trabalho no teatro irá sobreviver amanhã ou como a ideia de futuro influencia as escolhas que faço no presente, três questões vêm imediatamente a mim: como reajo àquilo que vivencio como uma guerra mundial contra as mulheres; como lido com a herança do Odin Teatret, o grupo de teatro ao qual pertenço; e como posso contribuir da melhor maneira possível para nosso novo espetáculo A arvore, que será apresentado pela primeira vez em setembro de 2016. Tenho muitos outros planos e projetos, inclusive diferentes livros que eu gostaria de publicar, espetáculos que preciso terminar de dirigir e uma demonstração de trabalho que tenho em mente há alguns anos. Será que a vida me permitirá ter tempo suficiente para tudo isso? Com certeza não, especialmente se eu também tentar cuidar do meu jardim e passar a ferro meus lençóis, como sempre fiz. Este artigo dá-me a oportunidade de me concentrar nas três perguntas principais referentes à minha visão de futuro.

O beija-flor

Eu estava viajando em Myanmar. Um guia havia me recomendado visitar um templo e, no meu retorno, estava andando ao longo de um rio, à sombra de algumas árvores. Do caminho empoeirado que eu estava seguindo, enxerguei uma criança pequena, brincando na margem do rio. Estava sozinha e teria dois ou três anos de idade. O menino parecia satisfeito e feliz, imerso em sua atividade com algumas varinhas, que eram talvez um barquinho com passageiros, ou uma vara de pescar e carpas fisgadas, ou uma frigideira e uma tigela de comida para vender no mercado. A água do rio era profunda e fluía transparente. A criança estava tão absorta em sua brincadeira que não imaginava que eu estivesse olhando para ela. Era autônoma e confiante. Pensei: isto não é mais possível na Europa.

Não muito tempo antes, eu tinha lido sobre uma mãe que foi presa em New York por ter deixado sua filha brincar sozinha em um parque. No Ocidente, não supervisionar tornou-se um crime. Como os hábitos mudaram desde minha infância, quando muitas vezes meus irmãos e eu ficávamos sozinhos em casa à noite! Em escolas dinamarquesas, as crianças agora se acostumaram, ano após ano, a serem cada vez mais protegidas de compromisso, fadiga, suor e risco. Os professores preocupados cada vez mais contêm sua curiosidade, que encontra expressão apenas em jogos eletrônicos. As crianças devem interromper o esforço físico para beber água, lanchar e descansar. Quarenta minutos da atenção é o máximo que se pode pedir a elas.

Durante minha caminhada em Myanmar, não vi nenhum adulto perto do menininho. Se tivesse caído na água, provavelmente teria nadado satisfeito, como meu irmão fazia quando aprendeu a nadar antes que pudesse caminhar. O que me surpreendeu foi a beleza da criança. Era bonito porque estava satisfeito, independente, absorto. O rio era sua pracinha, não uma ameaça. Os adultos que estavam caminhando na trilha não eram inimigos em potencial, mas transeuntes, aldeões ou estrangeiros. Para ele, o mundo era um universo a explorar e o futuro uma mina de oportunidades. Pensei: mesmo a proteção sufocante é uma forma de violência e a causa dessa violência é o amor.

Quantas mulheres sofrem da violência que brota do amor de seus parceiros? Demais. Quantas mulheres são reduzidas a objetos que não provocam nenhuma empatia? Nas notícias que leio, seu número está aumentando continuamente. Talvez isso sempre tenha sido assim, e é apenas a velocidade da informação global de hoje que atira essa realidade trágica em nosso rosto todos os dias. Muitas vezes penso de onde vem essa violência, uma violência semelhante àquela causada pela convicção extrema das ideologias ou religiões, pela injustiça e pela pobreza extrema, pelo nacionalismo. Quando leio sobre mães e pais que matam suas filhas, sobre irmãos que matam suas irmãs, sobre maridos que matam suas esposas, confronto comportamentos que são tão incompreensíveis para mim quanto aqueles que parecem dirigir o curso da história.

Há alguns anos, assisti a um filme egípcio em que um filho, que havia sido criado em uma relação de amor com sua mãe viúva, terminou por matá-la. O menino tinha se tornado islâmico durante seus estudos e não conseguia suportar a ideia de sua mãe ir visitar um de seus professores desacompanhada. No pequeno e escuro cinema de Paris, chorei durante muito tempo no fim do filme. Subitamente fui assolada pela evidência de que mais da metade das mulheres no planeta vivenciam tragédias semelhantes e que eu era totalmente impotente para confrontar essa realidade. Além disso, hoje sinto a tristeza de saber que, em alguns países, os direitos que foram conquistados estão sendo corroídos.

Outras mulheres com quem trabalho muitas vezes são dominadas pelo mesmo tipo de angústia. Digo a elas que a única maneira de lutar é fazer bem nosso trabalho, o que significa nos dedicarmos com compromisso e atenção aos detalhes naquilo que sabemos fazer: teatro. Nosso conhecimento e nossos saberes tácitos - o corpo e os sentidos que pensam como uma entidade por inteiro com a mente - têm obrigação de intervir e demonstrar uma maneira diferente de perceber a realidade. Como mulheres que trabalham em teatro, aprendemos a agir simultaneamente em direções diferentes e é nossa responsabilidade usar essa habilidade para expressar nossa discordância e rebeldia. Precisamos criar espaço para poesia, independência, empatia, subjetividade, solidariedade e beleza. O efeito de nossas pequenas ações nos dá esperança de conseguirmos influenciar a realidade social e abrir horizontes para uma humanidade vulnerável. A relação com os espectadores preenche o que fazemos com sentido. É uma esperança sem ilusões, mas que nos dá força para prosseguir enquanto o mundo a nossa volta parece se tornar cada vez mais insano.

Como diretora, uma das pequenas ações que resultam dessas preocupações me envolveu na criação de Anónimas, com a atriz mexicana/colombiana Amaranta Osorio e a violonista espanhola Teresa García. Um dos pontos de partida para a criação do espetáculo foram os numerosos feminicídios na fronteira entre México e Estados Unidos. As vozes silenciadas das jovens que haviam desaparecido no deserto foram o tema para o primeiro improviso. Agora que a performance terminou, o som do sujo vestido branco de Amaranta se arrastando no assoalho quadriculado, enquanto ela caminha com lentidão ao acompanhamento do violão sussurrando, me faz pensar em uma mensagem carregada pelo vento. É uma brisa suave que se move entre as dunas e as pedras e que carrega as vozes de mulheres que gostariam de falar para revelar horrores e nomes de criminosos. Porém, ao invés disso, o silêncio reina. Amaranta caminha e coloca figurinhas de mulheres no chão; algumas são Virgens Maria de cores diferentes. Em frases curtas, Amaranta revela os destinos de algumas mulheres através de suas histórias, inclusive a de uma menina rica que cresceu em uma família que a mimava e na qual se sentia segura, até aquele dia. O texto não revela exatamente o que aconteceu. Os relatos de tantas mulheres, estupradas ou abusadas, são um assunto cotidiano; não é preciso muita imaginação para compreender o que é deixado por dizer.

O feminicídio é um termo relativamente recente; denota o assassinato de mulheres apenas por serem mulheres. Com certeza, esse tipo de assassinato não é estranho, mas o sentimento de um ataque generalizado contra as mulheres em tantas partes do mundo é novo para mim. Antes as mulheres eram anônimas na história, porque não tinham voz nem rosto, porque não eram reconhecidas, porque ficavam confinadas ao mundo das crianças, da casa, do convento, da cozinha e dos enfeites. Atualmente, sinto que as mulheres também são anônimas porque tornaram-se figuras, números, estatística. Com Anónimas, eu gostaria de ajudar a dar um nome e um rosto a mulheres simples e não reconhecidas, como nossas mães e avós também o são. Caminhamos sobre os ombros de nossas antepassadas, especialmente as sufragistas e feministas que lutaram por direitos que deveriam estar garantidos hoje. Na imagem final do espetáculo, a irmã mais nova, uma boneca, sai de pé sobre os ombros de sua irmã mais velha, enquanto a terceira irmã termina tocando seu violão de concerto na frente de um público minúsculo de fotografias das jovens silenciadas pela história.

Em determinado ponto de Anónimas, a atriz Amaranta Osorio diz: “As mulheres têm mudado o equilíbrio consolidado; alguns homens respondem com violência - e nós, como respondemos?”. A vingança feminina é um tema que tem estado presente em muitos dos recentes encontros do Magdalena Project, a rede internacional de mulheres em teatro da qual tenho participado ativamente desde 1986. Também foi um tema abordado por Jill Greenhalgh, fundadora da rede, em seu projeto de performance Vigia - The Acts. Por exemplo, durante o Festival Transit 7, realizado no Odin Teatret na Dinamarca, em 2012, foi apresentado um vídeo sobre Femen, o movimento de protesto iniciado na Ucrânia por algumas mulheres que depois se mudaram para Paris, conhecidas particularmente por suas demonstrações públicas com os seios à mostra. Isso aconteceu no mesmo período da prisão das Pussy Riots, por blasfêmia, ao tocarem música vestindo capuzes, em uma catedral de Moscou. No vídeo você testemunha a raiva expressa com violência e coragem, mas também por intermédio de formas que me chocaram devido à agressividade e veemência. Quando derrubam o grande crucifixo no centro de Kiev, com uma motosserra, ou estão se preparando para enfrentar fisicamente a polícia, ou desafiam centenas de manifestantes contra o aborto, ou se despem na frente de políticos conhecidos, demonstram uma convicção profunda e irreverente que é desconcertante, pelo menos para mim.

O Festival Transit 7, com seu tema Risco, Crise e Invenção, foi dedicado a Erica Ferrazza, uma atriz do grupo italiano MetaArte, que foi assassinada pelo marido. Eu quis destacar o fato de que nossos ambientes artísticos de teatro não estão imunes a esse tipo de problema. Desde a abertura do Festival nos confrontamos com o tema da violência, não apenas aquela sofrida por mulheres, mas também a violência usada por mulheres em resposta ao abuso. Assumir um risco - abandonando uma posição conveniente de equilíbrio - para entrar em crise - sem saber como continuar e estando em uma situação de impasse - requer invenção - para conceber uma perspectiva. Como continuar sem abandonar a raiva e sem ficar presa a uma maneira de pensar e a valores que não são nossos? As discussões foram animadas e as mais jovens eram especialmente impacientes com as soluções mais pacíficas, filosóficas e tolerantes das primeiras gerações do feminismo e as nossas, que já tínhamos considerável experiência em teatro. Como deveríamos, como podemos responder? Esta pergunta, que faço aos espectadores de Anónimas, depois de ter contado a lenda do Barba Azul e das mulheres que ele mantém trancadas depois de matá-las, ainda continua sem resposta para mim.

As lutas feministas, desde as primeiras manifestações de sufragistas até as marchas mais recentes de apoio ao divórcio e ao aborto livre, os movimentos contra o casamento infantil, a conquista do voto, o alcance de oportunidades e salários iguais, a autonomia que as mulheres buscam dia após dia têm consequências sociais que vão além das reivindicações e dos slogans. Em geral, à medida que as mulheres se emancipam, os homens perdem seu papel tradicional de pai/patrão (pai/amo/proprietário), aquele que protege e sustenta a família, constrói um abrigo e traz dinheiro para casa. O senso de identidade - tanto para mulheres como para homens - está em constante evolução. O número de diretoras também está aumentando no teatro, na medida em que as mulheres aceitam a responsabilidade de falar na primeira pessoa. Nesta era de mudanças, as mulheres têm a força da convicção daquelas que olham em direção à inovação, daquelas que estão descobrindo sua própria força e linguagem, daquelas que estão articulando a possibilidade de um sistema de valores diferente, daquelas que pensam com otimismo em avanços positivos, daquelas que defendem a vida. Com o passar dos anos, também tenho observado esse fenômeno no teatro em geral - em meu grupo - Odin Teatret - e no Magdalena Project em particular: as mulheres cultivam sua motivação e carga de trabalho com mais compromisso, convicção e continuidade. Em comparação, muitos homens se encontram com um sentimento de privação e declínio. Nessa crise de identidade social, alguns homens estão se esforçando para encontrar alternativas; outros estão sobrecarregados por frustração e pelo recurso à violência; alguns afirmam sua força na proliferação da guerra; outros buscam abrigo na ideologia e na religião como, infelizmente, o fazem muitas e muitas mulheres que estão a seu serviço. A crise de valores tradicionais, a prioridade dada aos negócios, o fracasso de organizações políticas para oferecer visões plausíveis, a corrupção e a confusão que reina em todos os processos democráticos regidos pela mídia, tudo isso empurra para certezas exageradas e extremas. Todos precisam crer em algo; todos os dias tento acreditar nas possibilidades abertas por meu trabalho no teatro.

Como mulheres, fizemos legitimamente a diferença ao romper a dominação do patriarcado existente, mas não está claro como estabelecer uma nova harmonia em que cada uma possa encontrar um papel autônomo e, portanto, sua própria beleza. Talvez o teatro - onde oposição e conflito são fonte de criatividade e essenciais ao drama; onde o corpo, as imagens e os sentidos são necessários à complexidade da percepção e da interpretação - seja um terreno onde possamos inventar e vivenciar outros pontos de vista. Diz-se que as guerras servem aos governos ao reforçarem um sentido de identidade nacional e resolverem divisões internas. Na crise geral da atualidade, parece-me que foi declarada uma guerra às mulheres, transformando-as em inimigo. No espetáculo com Amaranta e Teresa também relembramos todas as ameaças, as cartas, as queixas, os telefonemas, as balas e as sepulturas anônimas, bem como as mulheres reais. Nesse contexto, as mulheres não são apenas figuras ou antepassadas, mas, como o adversário, mais uma vez se transformam em bruxas, sedutoras, prostitutas, aqueles seres apaixonados, sensuais e irracionais capazes de se comunicar com as forças da natureza que não respeitam o poder e a ordem estabelecidos e que desonram a tribo: indivíduos a serem eliminados e queimados na estaca como na Idade Média - ou se tornam objetos a serem usados como bucha de canhão nas guerras de outros.

Ao ensaiar Anónimas, eu sabia que não poderia apresentar a violência e o horror de maneira direta. Mostrar a brutalidade de maneira realista não funciona, porque o teatro não tem o mesmo impacto que a crueldade da história. Queria que o espetáculo emocionasse e tocasse alguns indivíduos entre os espectadores com a poesia das imagens, da beleza das duas mulheres no palco e da suavidade do violão clássico. Uma solução seria apresentar um perfil de anonimato diferente por meio da biografia das mães e avós das atrizes, mulheres reconhecidas como importantes somente dentro do contexto de suas famílias e relacionamentos pessoais. A história verdadeira de cada uma é inacreditável: mulheres que sobrevivem à guerra, migram, abandonam filhos não desejados e casamentos arranjados, trabalham, costuram roupas, cantam e contam contos de fada, cozinham refeições deliciosas e se sentem como um exército poderoso quando reúnem a família ao seu redor. Outra solução foi construir a força velada das mulheres no palco. Por trás de seus sorrisos, meiguice e inocência, por trás dos sussurros com os quais se comunicam, os espectadores deveriam perceber o perigo, a decisão e a coragem delas.

Como diretora, permito que o desespero e a impaciência das atrizes, em relação ao tema, explodam em uma única cena, aquela que chamamos de cena da loucura. Dou vazão à angústia e à impotência que vivenciei no cinema, em Paris, com ações sem sentido, desordenadas e impróprias. São a reação ao anúncio, no espetáculo, do assassinato da ativista e poeta Susana Chávez. Eu estava em Cuba, no Festival Magdalena sin Fronteras, organizado por Roxana Pineda, em 2011, quando escutei essa notícia pela primeira vez. O festival de mulheres ficou envolto em tristeza e raiva, que tivemos de transformar imediatamente na necessidade de fazer nossas vozes escutadas por meio de nossos espetáculos. Susana Chávez vivia no norte do México, na fronteira com os Estados Unidos, e havia inventado o slogan Nenhuma mais, para se rebelar contra o destino de muitas jovens, que eram mortas em sua região. Antes de assassiná-la, cortaram sua mão.

Determinadas vivências me guiaram ao assumir temas que evocam dor e violência no teatro, ao buscar encenar a verdade da mera presença, evitando a atuação exagerada e querendo apresentar beleza e admiração mesmo entre o horror. A beleza pode ser uma arma, assim como aquilo que é delicado, pequeno e insignificante. É uma escolha política: só podemos confiar no pessoal, naquilo que cada um de nós sabe da vivência direta, a fim de rejeitar o poder imposto de cima para baixo em uma hierarquia vertical, e conquistamos autoridade para nós mesmas por meio da ação e do compartilhamento de uma estrutura horizontal. Jamais teremos a aquiescência daqueles que estão no poder. Escolhemos construir nosso caminho a partir das margens. Ali, na periferia, encontramos nosso centro e estamos do lado daqueles que sofrem a injustiça. Nessa posição arriscada, fora do equilíbrio, devo sempre relembrar o que herdei.

No Festival Magdalena sin Fronteras, de 2014, Roxana Pineda pediu para aquelas de nós que iríamos coordenar uma oficina que assumisse como tema a história de Obba. Na tradição religiosa de origem africana Iorubá, Obba é a esposa de Xangô, deus da lei e do trovão. Ela se sacrifica por seu marido ao ponto de cortar as próprias orelhas para que ele as coma, quando a comida termina. Quando Xangô descobre a mutilação de Obba, foge e a abandona. Sem orelhas, ela já não é mais tão bonita como antes. A história foi elaborada de diferentes maneiras nas oficinas em busca da centralidade das mulheres. Apesar do sacrifício? Ou por causa do sacrifício? A escolha de se dedicar à pessoa - ou família - amada e renunciar ao seu próprio bem pelo dos outros deve ser inevitavelmente ditada por uma privação sem sentido? Ou pode resultar de uma escolha autônoma baseada em prioridades e valores diferentes da norma? Quando é que a generosidade se transforma em sacrifício com todas as conotações de sofrimento religioso? E quando é que, ao contrário, é uma qualidade humana que pode ser proposta como alternativa ao materialismo em que crescemos no Ocidente? A generosidade é a qualidade que mais aprecio nos atores, quando aprenderam a estruturar suas energias e a esquecer de si mesmos, envolvendo-se, ao contrário, no que a performance diz ao espectador.

O problema surge quando a mulher que alcança seus próprios ideais, por meio do sacrifício, está pronta para aceitar um golpe após o outro na esperança de que, no fim, conseguirá redimir, salvar e mudar o homem ao seu lado. Encontrei algumas mulheres independentes, fortes, responsáveis, intelectualmente capazes e elegantes com carreiras estabelecidas que aceitaram a violência do seu parceiro por anos, que escondem hematomas em seus corpos e suas feridas psicológicas na crença de que não acontecerá outra vez, que conseguirão produzir mudança através do amor. Algumas só ficam cientes de sua situação no momento de arriscar suas vidas, outras não se salvam a tempo. Existem abrigos para mulheres que sofrem violência em todas as cidades da Dinamarca. São denominados de Krisecenter [Centro de Crise]. Seu endereço é secreto para impedir que maridos, pais e irmãos encontrem as mulheres que ali se refugiam com seus filhos.

A cultura do sacrifício gera violência mesmo na Dinamarca. O comportamento baseado em rivalidade e poder, na força e no abuso físico, cria o cenário em que os crimes são cometidos. A tendência feminina de dar prioridade à família e às relações amorosas, em detrimento do trabalho, seu desejo de seguir um homem e as imposições de sua carreira como se não tivessem uma identidade separada, a solidão daquelas que não encontram um companheiro verdadeiro, são considerados como fraqueza. O passo entre ser fraca e se transformar em vítima é curto. Porém, neste cenário, como as mulheres podem defender seu altruísmo, sem consequentemente serem consideradas perdedoras e, portanto, sem autoestima e autoridade? Como podemos lutar contra o comportamento que também faz com que as mulheres estabeleçam seu lugar nas escolas tornando-se agressoras, ou roubando de um homem a quem drogaram e depois queimá-lo no carro enquanto ele grita, ou se tornarem mulheres-bomba que se juntam ao Estado Islâmico, matando inocentes em nome de uma lei que as proíbe de estudar, viajar sozinhas, ganhar seu dinheiro ou dirigir?

Em determinado ponto de Anónimas, Amaranta substitui as figurinhas femininas por pedras. No começo, faz isso uma a uma; depois, o pedregulho começa a escorregar de sua mão para cobrir o chão: mulheres, indivíduos com seus destinos, transformaram-se em números e estatísticas, pedras sem vida, pesos a carregar, bocas seladas. As pedras são varridas sob o acompanhamento de uma canção de protesto que celebra os nomes de poetas famosas, cientistas, musicistas, santas e guerreiras do passado, juntamente com os nomes das atrizes, suas mães e avós. As figurinhas da Virgem reaparecem no espetáculo durante uma dança. Amaranta as coloca em um tabuleiro de xadrez com quadrados brancos e vermelhos como peões prontos para jogar, a seguir na posição de um exército manobrando, e no fim as reúne em um grupo compacto. Unidade é força: deixe o papel de vítima para Cristo e vamos escolher outras imagens com quem nos identifiquemos. As pequenas virgens em Anónimas não estão lá como uma referência religiosa, mas sugerem a beleza, a resistência, a generosidade e a espiritualidade das mulheres.

Durante um encontro no Festival, Magdalena a Solas, organizado por Amaranta Osorio em Madri, em 2013, falei sobre o menininho que eu havia visto em Myanmar. Queria dar um exemplo de beleza, mas acima de tudo despertar nossa responsabilidade como mulheres do teatro para recriar e proteger a liberdade de assumir riscos, onde tudo muda, move-se, transforma-se, sem perder aquilo pelo qual lutamos - homens e mulheres - do direito à educação e trabalho à seguridade social. Estava pensando em como as gerações futuras crescem no Ocidente e como sua falta de perspectiva e de ideais me assusta. Assim, durante o encontro, compartilhei outras histórias quando nos sentamos em um círculo.

Um grupo de teatro havia preparado um espetáculo para crianças na Inglaterra. Elas precisavam entrar em um labirinto ao longo de um trajeto onde as cenas ocorreriam. Devido às normas de proteção à criança contra a pedofilia, os atores não tinham permissão para ficar sozinhos com as crianças no labirinto que tinham criado, dessa maneira privando as crianças da vivência de superar o medo do desconhecido e de se aventurarem. As crianças das civilizações ocidentais crescem pensando que todos os adultos são criminosos em potencial e que qualquer demonstração de afeto físico é suspeita. E, além disso, apesar de todas as normas, a pedofilia não é evitada. Lembro que meus pais me ensinaram a não falar com desconhecidos, porém, não obstante, não cresci descrente nos seres humanos ao meu redor. Nenhuma lei me impediu de vivenciar mistério e perigo como algo fascinante.

Como podemos criar um mundo em que haja esperança para o futuro, um senso de oportunidade e de descoberta, embora não seja fácil de alcançar; um mundo cheio de desafios com os quais podemos aprender e nos desenvolver como vi na concentração da criança na margem do rio? A beleza da autonomia, do significado próprio de alguém, é uma jornada que ainda reconheço como possível. A insegurança, a frustração, os conflitos insolúveis e o sacrifício inútil de um mundo baseado em valores comerciais nos assaltam desde os primeiros anos da infância. Os antigos valores da família patriarcal foram legitimamente rejeitados, mas que valores estamos construindo em seu lugar, agora que as comunidades hippies coletivas, bem como a política e a luta associadas a elas, por uma sociedade mais justa, fracassaram? Que direção deveríamos seguir em busca de uma alternativa?

Durante o mesmo encontro no Festival Magdalena a Solas, em Madrid, Itziar Pascual, uma estudiosa espanhola, respondeu a minhas preocupações com esta história, que ela escutara durante uma viagem à África:

Irrompeu um incêndio na selva. Nenhum dos animais reunidos sabia o que fazer. As chamas estavam destruindo a floresta. Um beija-flor voou até o rio para recolher uma gota d’água em seu bico e retornou para jogá-la sobre o fogo. Os animais riram do esforço inútil do beija-flor: ‘Por que você voa até o rio? Nunca conseguirá apagar o incêndio’. O beija-flor continuou indo e vindo do rio até o incêndio, do incêndio até o rio, para recolher gotas d’água com seu bico. Os animais riram outra vez. O beija-flor disse: ‘Faço o que posso e preciso fazer: tento apagar o fogo’.

Lembro que a história terminava aí. Secretamente eu tinha me perguntado se não era possível que todos os animais recolhessem água para que pudessem extinguir o fogo, mas essa ilusão tentadora desapareceu instantaneamente, pois me sentia tão inútil quanto o beija-flor face à crueldade da história e do mundo cada vez mais insano. Então, ao reler minhas anotações, descobri que a história continua, ao atribuir um papel principal aos pequenos, como o menino na margem do rio:

Observando o beija-flor, o filhote de elefante, que até então tinha permanecido protegido entre as patas de sua mãe, mergulhou sua tromba no rio e, depois de ter recolhido o máximo de água possível, esguichou-a em um arbusto que estava a ponto de ser devorado pelo fogo. Também um jovem pelicano, deixando seus pais no meio do rio, encheu seu grande bico com água e voou para derramar um tipo de cachoeira sobre uma árvore ameaçada pelas chamas. Contagiados por estes exemplos, todos os animaizinhos se esforçaram em conjunto para apagar o fogo que agora tinha alcançado as margens do rio. Deixando para trás antigos ressentimentos e divisões, o filhote de leão e os filhotes de antílope, macaco e leopardo, águia e lebre lutaram lado a lado para interromper o curso do incêndio. Àquela altura, os adultos pararam de zombar e, muito envergonhados, começaram a ajudar seus pequenos. Com a chegada de novas forças, enquanto as sombras da noite desciam sobre a savana, o fogo foi controlado. Sujos e cansados, porém seguros, todos os animais se reuniram para comemorar a vitória sobre o fogo.

Ontem enforcaram uma mulher que havia assassinado um homem que tentara estuprá-la. Hoje um pai apedrejou sua filha até a morte. Amanhã a guerra continuará. Ontem, hoje e amanhã um/a espectador/a irá reconhecer sua própria história no espetáculo Anónimas e irá agradecer às atrizes por tê-la contado. O espetáculo não é nada mais do que uma daquelas gotas d’água do incansável beija-flor, uma das pequenas ações do nosso fazer teatro para manter viva a esperança de extinguir o fogo.

O Balanço

Eugenio Barba sempre se preocupou com a morte e o que ele chama de o último ato do Odin Teatret, o grupo de teatro que fundou na Noruega, em 1964, e que se transferiu para a Dinamarca em 1966, ao qual me juntei em 1976. Aqueles de nós que fizeram parte do grupo por cinquenta, quarenta ou trinta anos assinaram um documento concordando que o nome do Odin Teatret será usado apenas enquanto um de nós der continuidade às atividades teatrais, em acordo com os demais. No fim, o Odin Teatret desaparecerá conosco. O Odin Teatret não é uma instituição ou um prédio, é as pessoas que têm trabalhado juntas como grupo ao longo dos anos.

Um dia, Eugenio explicou nossa decisão em uma entrevista ao jornal local de Holstebro, a cidade que nos tem dado um lar por cinquenta anos. Concedeu a entrevista durante a Festuge, em 2011. Festuge significa Semana Festiva em dinamarquês. É um evento que temos promovido e organizado em Holstebro e adjacências, a cada dois ou três anos, desde 1989. Tem a duração de nove dias e noites e é uma enorme agitação e cerimônia sociocultural que envolve todas as instituições, organizações e associações da cidade, escolas, minorias étnicas e religiosas, exército, polícia, corpo de bombeiros, lojas, clubes esportivos - enfim, todo mundo!

O diretor do jornal e diversos leitores reagiram à entrevista: por que Eugenio Barba e os atores do Odin Teatret não cultivaram uma geração mais jovem para assumir? Por que não reconheceram que Holstebro precisa do Odin Teatret? Eventos como a Festuge devem continuar; são uma parte fundamental da vida da cidade, de sua identidade cultural e caráter social específico.

Essas reações foram um ponto de virada em nosso pensamento sobre o futuro. Nunca gostei da constante percepção de Eugenio sobre o fim - de sua própria morte ou de algum dos atores - e como isso mudaria tudo. Estou convencida de que o futuro sempre irá intervir de maneira inesperada. Porém, por mais que nos preparemos, nunca estaremos prontos. Devemos aprender com os clássicos e não esquecer do rei Lear. Ao invés de planejar um encerramento, prefiro concentrar minha energia nas atividades de hoje e tentar inventar novos projetos e iniciativas que possam criar a estrutura para que o imprevisível aconteça. Prefiro sonhar ativamente com um amanhã perene que exija o máximo de mim no presente. Reconheço minha ingenuidade, mas prefiro isto à tentação de um realismo cínico que possa me capturar.

O Odin Teatret sempre foi grato à cidade de Holstebro e seus habitantes, aqueles que criaram um modelo cultural na década de 1960. O impacto dessa política cultural, que foi mantida durante cinquenta anos pelos políticos de Holstebro, foi expresso no protesto dos leitores do jornal durante a Festuge, em 2011, exigindo que o Odin Teatret deveria garantir a continuidade de seu trabalho mesmo quando o grupo já não existir. A carta nos disse que precisamos demonstrar gratidão a cidade ao prepararmos o futuro. Devemos encontrar meios para cultivar uma geração mais jovem que concorde em viver e trabalhar artisticamente em uma parte da Dinamarca que vem perdendo moradores e serviços de maneira constante. Não podemos simplesmente abandonar Holstebro porque já não temos a possibilidade de fazer tudo sozinhos.

Nunca tínhamos pensado em nossa responsabilidade a partir dessa perspectiva. Já não se trata de dar continuidade ao nosso grupo, nossa instituição, nosso nome, mas que nossa política, nossa maneira de pensar, de intervir, de criar relacionamentos e trocas, deve continuar de outras formas, com pessoas diferentes, outras estéticas e sob outros nomes. Isso me ajudou a compreender que eu não precisava obstruir as considerações de Eugenio para a cena final do Odin Teatret, mas sim propor maneiras pelas quais pudéssemos incentivar a contribuição dos mais jovens em torno do nosso grupo, na esperança de que, em um futuro longínquo, poderiam continuar a trabalhar em Holstebro, seguindo suas próprias necessidades e premissas artísticas. Senti uma nova motivação para estimular ideias e iniciativas autônomas. Sabia que não havia nenhuma garantia de sucesso, pois a motivação para aceitar essa tarefa e transformá-la está nas mãos dos destinatários. Porém, preparar uma geração mais jovem para dar continuidade a uma presença teatral à sua própria maneira em nossa cidade era uma tarefa ativa, que me enchia de desejo de fazer algo, até mesmo despender tempo cultivando projetos de outros artistas que poderiam fracassar.

Os jovens performers, diretores e grupos não seriam herdeiros do Odin Teatret. Iriam desenvolver suas atividades livremente, e, quanto mais diferentes pudessem ser de nós, melhor. Em seus corações, podiam sentir um forte laço conosco, mas isso não seria tão óbvio em seu trabalho. Sua tarefa era manter viva a rede de laços colaborativos e iniciativas culturais com os muitos ambientes e subculturas de nossa comunidade; mas também defender o espaço para encontro internacional, intercâmbio e interesse recíproco que os políticos de Holstebro conseguiram garantir desde 1966. Tudo isso poderia acontecer sob a estrutura matriz do Nordisk Teaterlaboratorium, que tínhamos desenvolvido durante décadas de trabalho. Não obstante, precisávamos descobrir como poderíamos estabelecer de maneira proveitosa uma colaboração com o Odin Teatret, seu pessoal, espaços e recursos.

Muito recebemos durante a longa vida do Odin Teatret e sempre sentimos que deveríamos retribuir. Eu conhecia esse princípio desde meu primeiro dia com o grupo. Embora estivesse convencida de que não sabia nada, era minha obrigação compartilhar minha experiência, ao representar e ensinar, organizar e escrever, promover e acompanhar. Além do meu trabalho diário como atriz - treinar, ensaiar, apresentar-me e sair em turnê -, o Festival Transit, o jornal The Open Page, participar da rede do Magdalena Project, dirigir espetáculos com outros atores, oferecer oficinas, organizar turnês, motivar e comunicar-se com aqueles que trabalham na administração, manter uma correspondência cada vez maior e alimentar uma complexa rede de contatos pelo mundo inteiro, todo esse trabalho tinha sido minha resposta a esta necessidade de retribuir ao transmitir. Foi minha maneira de criar um papel autônomo dentro de meu grupo, de encontrar meu lugar como mulher em sua história e de participar em determinar sua visão. E cresci ao fazê-lo.

Transmito técnicas ciente de que a essência de minha experiência não pode ser ensinada. Cada pessoa deve aprender com seus próprios erros, mal-entendidos e anseios, adaptando o que acha que está aprendendo às suas próprias necessidades, traduzindo a língua de trabalho em suas próprias palavras. Foram publicados muitos livros e teses citando termos e conceitos como o nível pré-expressivo sobre o qual Eugenio e os atores do Odin escreveram, pensando que usamos essas palavras quando trabalhamos em nosso grupo, ao invés de compreender que esses conceitos resultam da tentativa de explicar o inexplicável. Em nossa prática, são necessárias poucas palavras apenas: impulso, ritmo e força. Todo o restante provém da resolução de tarefas concretas e de um conhecimento incorporado.

No começo - nas décadas de 1960 e 1970 -, o Odin Teatret organizava seminários com outros mestres do teatro para que pudéssemos aprender e também ganhar algum dinheiro ao tomar conta dos aspectos práticos para os participantes que pagavam. A seguir - nas décadas de 1970, 1980 e 1990 -, com a ISTA (International School of Theatre Anthropology) e os Encontros de Grupos do Terceiro Teatro, veio o período de pesquisa coletiva e a individuação de princípios em comum, além dos contextos culturais e gênero artístico, comparando nossa própria experiência com outras tradições clássicas e contemporâneas de encenação. Eu adorava essas reuniões, era fascinada pelos mestres asiáticos, por seus espetáculos, figurinos, música, ritmo, empenho e biografias. Fiquei cativada pela maneira como conseguia me comunicar com eles no palco mesmo sem falar a mesma língua. Também fiquei fascinada pela familiaridade que sentia com pessoas que fazem teatro em grupo no mundo inteiro e, especialmente, na América Latina, por sua inventividade para estratégias de sobrevivência, pela imaginação e alegria de seus espetáculos, por seu engajamento político e social, que me fazia lembrar de mim mesma quando adolescente. Trouxeram de volta à vida meus ideais de forma diferente. Sentia-me em casa naqueles encontros que ocorriam em muitos países distintos.

O Magdalena Project se origina desse ambiente. No início, participei do Magdalena para encontrar minha autonomia do Odin Teatret e para descobrir a centralidade de ser mulher em relação ao meu ofício. A seguir, depois de organizar alguns encontros e, no fim, o periódico Festival Transit em Holstebro, gradativamente introduzi essa rede de mulheres na própria identidade do Odin Teatret, tornando-a parte da minha contribuição para mudança e desenvolvimento no grupo. Assim, preparei o terreno para resultados em potencial que possam influenciar nosso futuro. Muitos dos contatos que promovem nossas turnês no exterior hoje em dia estão conectados à rede Magdalena, pois muitos componentes que se juntaram a nós em diferentes projetos são mulheres que conheci em algum Festival Magdalena: Ana Woolf tornou-se assistente de direção de Eugenio; Carolina Pizarro tornou-se atriz do Odin Teatret; Parvathy Baul juntou-se a nós para a produção mais recente, A arvore; Selene D’Agostino está cuidando do meu arquivo como parte de suas tarefas administrativas no Odin Teatret; Keiin Yoshimura foi uma das facilitadoras na mais recente sessão da ISTA; Brigitte Cirla e Deborah Hunt são colaboradoras muito próximas; e muitas outras - um número grande demais para serem nomeadas - estão continuamente ativas sob nossa organização matriz, Nordisk Teaterlaboratorium.

Porém, tempo e circunstâncias trazem mudança. Muitos grupos de teatro se dissolveram. Os mestres asiáticos morreram e não havia mais financiamento disponível para encontros do Terceiro Teatro nem pesquisa nas sessões da ISTA. Nossa necessidade de transmitir e compartilhar a experiência no Odin Teatret se concentrou, ao contrário, no rigor exigido para alcançar resultados. O espetáculo tornou-se central para nossa atividade pedagógica. Já não era mais apenas uma questão de encontrar liberdade e tempo para treinar e ensaiar, mas de ressaltar a finalidade do aprendizado e da preparação, enfatizando os objetivos e a razão para o trabalho. Isso ajudou a dar continuidade e sentido em épocas de crise, respondendo perguntas referentes a, em que lugar e para quem fazemos teatro, além de como.

Acredito que somente aprendemos de fato a partir do trabalho para um espetáculo. Mesmo quando não me via como diretora, mas apenas como alguém que ajudava os atores a encontrarem sua autonomia, descobrirem maneiras diferentes de produzir material e incentivá-los a compreender o que queriam dizer, eu trabalhava como se o resultado devesse ser mostrado publicamente. Somente o encontro com o espectador exige precisão e exatidão detalhadas na tomada de decisão que não perdoa soluções complacentes nem atitudes aproximadas. Tudo que fazemos deve atingir seu máximo, mesmo se precisarmos de mais tempo e tivermos que começar tudo de novo. Trabalhar em performances com outros atores resultou em meu aprendizado de como dirigir a partir deles. Forçou-me a transformar meu próprio ofício como atriz, e a força oculta em meus pés, em uma maneira de observar e reagir com imagens, montagem e histórias para extrair associações e significados a partir do que estão fazendo. Desde então, tenho dirigido muitas mulheres e alguns homens ao redor do mundo. Harald Redmer, Ana Woof, Hisako Miura, Gabriella Sacco, Lorenzo Gleijeses, Manolo Muoio, Carolina Pizarro, Teresa Ruggeri, Marilyn Nunes, The Jasonites, Amaranta Osorio, Teresa García, Luciana Martuchelli, prolongaram minha existência no futuro?

Porém, as demonstrações de trabalho, espetáculos, oficinas, seminários, encontros e festivais nunca são suficientes. Se eu quiser transmitir conhecimento que sobreviva de maneira anônima no futuro e deixe uma semente que encontre seu próprio terreno fértil para crescer, preciso fazer ainda mais. Na rede do Magdalena Project também falamos frequentemente sobre a necessidade de desapegar. É difícil alcançar um equilíbrio entre permitir que os outros assumam e, ao mesmo tempo, garantir qualidade. Muito da minha energia é dedicada hoje a percorrer essa linha entre a necessidade de proteger minha identidade profissional e pessoal e o anseio igualmente forte de transmitir tudo que sei para que sobreviva transformado por mal-entendidos férteis, traições banais, inspiração original ou imitações inventivas.

Durante os anos de mudança, Eugenio ficou desmotivado frente à perspectiva de organizar uma nova sessão da ISTA sem os colaboradores em quem tinha aprendido a confiar e que haviam morrido. Não conseguia se imaginar preparando um novo espetáculo de Theatrum Mundi mesmo quando, durante uma refeição, nosso amigo Trevor Davies pediu que o fizesse para um festival no castelo de Kronborg, em Elsinore. Sempre tive dificuldade em deixar passar uma oportunidade sem aproveitá-la. Recordo que naquela ocasião - ao limpar os pratos na cozinha -, tentei plantar algumas ideias na mente de Eugenio para persuadi-lo a responder de maneira positiva: poderia ser uma oportunidade de apoio ao projeto do Gambuh balinês, poderíamos envolver Akira Matsui, ator de teatro No recentemente encontrado, mas, sobretudo, poderíamos desenvolver nossa abordagem pedagógica além do treinamento básico do ator. Muitos tinham pedido para acompanhar Eugenio quando estava ensaiando um espetáculo e agora poderíamos organizar uma estrutura para que isso acontecesse.

Assim, um coro de atores internacionais foi inserido nos espetáculos interculturais Ur-Hamlet (2006 e 2009) e O matrimonio de Medeia (2008). Eles puderam vivenciar ser dirigidos por Eugenio e trabalhar no palco com atores e performers do Odin Teatret de Bali, do Japão, da Índia e do Brasil. Foi uma ocasião única para todos nós. Também significou que pudemos viajar a Bali para ensaios e desenvolver nossa colaboração com o dançarino afro-brasileiro Augusto Omolú. Foi um sonho que se realizou e as pessoas envolvidas nos dois espetáculos permaneceram, desde então, intimamente conectadas ao Odin Teatret. Para todos nós, tanto jovens como mais antigos, era uma escola enraizada na experiência que mudou vidas e ofereceu ferramentas técnicas para a profissão. No espetáculo do Theatrum Mundi, O matrimonio de Medeia, o papel de Medeia foi desempenhado pela performer balinesa Ni Made Partini, enquanto o de Jasão foi desempenhado por Tage Larsen. O espetáculo foi organizado como uma procissão e festa de casamento, durante as quais Medeia avançava seguida por uma família de trinta e três dançarinos e músicos balineses e um barco de pesca colorido. Jasão estava acompanhado por sua família de amigos, um grupo de jovens performers do mundo inteiro que dançavam conduzidos por Augusto Omolú. Começamos a chamar os jovens performers internacionais de The Jasonites.

Em 2012, o Ministério da Cultura da Dinamarca reduziu pela metade a subvenção ao Odin Teatret. Os cortes retiraram a liberdade que tínhamos alcançado para construir um ensemble permanente, um ambiente enraizado na arte, na pedagogia, na pesquisa e em projetos internacionais e locais. Não podíamos justificar nossa escolha de financiar uma escola para a mais antiga forma de teatro em Bali, ajudar a turnê de um grupo de teatro cubano nem apoiar uma rede de mulheres recentemente criada. Porém, para nós, esse tipo de atividade era a concretização de uma política cultural que dava sentido ao nosso trabalho cotidiano. Para defender nossas crenças e nossa maneira de trabalhar, precisávamos apresentar nossas atividades no contexto dos esquemas e referências que os outros pudessem reconhecer e compreender, tínhamos que fazer o que estávamos fazendo além da atividade normal do teatro de criar espetáculos e sair em turnê para lhes dar mais visibilidade. Tínhamos que proteger nossa identidade específica como um grupo de teatro cujo robusto passado é premissa para a mudança.

A necessidade de atrair uma geração mais jovem a Holstebro, que talvez pudesse dar continuidade à nossa política quando tivéssemos ido embora, resultou em uma mudança na organização do nosso teatro. Começamos a denominar várias de nossas atividades usuais - oficinas e encontros, mas também sediar espetáculos e oferecer espaço para ensaio de grupos - de residências. A condição é que os artistas residentes deveriam intervir periodicamente em Holstebro, por exemplo visitando uma escola ou uma casa de repouso para idosos, colaborar com a Escola de Balé ou a Biblioteca Pública, se apresentando no calçadão ou apresentando fragmentos de seus espetáculos no centro de refugiados. Desse modo, estamos dando continuidade à presença do Odin Teatret em Holstebro sob nomes diferentes e abrindo oportunidades para que os artistas residentes compreendam as facetas multiculturais e o escopo da prática teatral.

Odin Teatret é o nome de uma relação particular entre o diretor Eugenio Barba e um grupo específico de atores que trabalham permanentemente juntos. Porém, ao mesmo tempo, cada um de nós tem promovido e desenvolvido muitas atividades fora dessa estrutura coletiva. Sob que nome essas atividades deveriam existir? Essa é uma antiga discussão. Recordo como, em 1983, tive que defender ter apresentado A noite dos vagabundos, um espetáculo dirigido por Else Marie Laukvik, no qual me apresentei com Silvia Ricciardelli e Ulrik Skeel, em um programa do Odin Teatret. Eugenio estava em período sabático na época. Tinha saído deixando para a geração mais jovem a tarefa de revolucionar o grupo, mas quando retornou restabeleceu a autoridade do mais velho. Tive que chamar uma reunião do grupo inteiro para me apoiarem contra os protestos de Eugenio pelo uso do nome do Odin Teatret de uma maneira da qual ele discordava. Essa discrepância tornou as regras muito mais claras para o futuro.

Até recentemente, se eu dirigisse um grupo de atores, o espetáculo era apresentado sob seus nomes, destacando o máximo possível sua independência em relação ao Odin Teatret. Porém, essa prática também apagava minha contribuição para o trabalho nos relatórios oficiais. A maior parte dos meus envolvimentos adicionais desapareceria se eu examinasse apenas as estatísticas, em vez de levar em consideração o efeito duradouro sobre as pessoas com quem trabalho. Como deveriam ser denominadas as muitas iniciativas coletivas e individuais que constituem a complexa identidade de nosso grupo? Escapavam à definição, não sendo Odin Teatret de maneira estrita.

Ao mesmo tempo, atores independentes, que tinham se formado em íntima conexão com o Odin Teatret, a quem financiamos diretamente ou através do uso de nosso espaço e que gostariam de reconhecer o apoio que recebem, não tinham uma estrutura para fazê-lo. Como poderíamos provar ao Ministério da Cultura da Dinamarca a imensa gama de nossas atividades e, consequentemente, tornar mais visível a prática dos indivíduos que ensinam e dirigem as oficinas, os grupos, os festivais e os espetáculos sem serem atribuídos ao Odin Teatret? Precisávamos encontrar um nome.

Anos atrás, na década de 1980, quando Iben Nagel Rasmussen, a atriz dinamarquesa que se juntou ao Odin Teatret em 1966, quis sair do grupo para trabalhar permanentemente com seus alunos, Eugenio transformou nossa estrutura ao inverter o título e o subtítulo, de modo que Nordisk Teaterlaboratorium se transformou em uma matriz sob a qual poderia ser encontrado o Odin Teatret, a ISTA, Farfa (o grupo de Iben), Basho (dirigido por Toni Cots), The Canada Project (dirigido por Richard Fowler), Odin Teatret Film e Odin Teatret Editora. Esse novo arranjo permitiu que Eugenio mantivesse uma conexão com Toni, que não queria mais se apresentar com o Odin Teatret, incluir a ISTA em nossa lista de atividades mesmo quando os atores de Odin Teatret não participassem, mas, sobretudo, foi uma maneira de evitar que Iben perdesse o lugar que havia ajudado a construir. O fruto de seu trabalho estaria disponível para ela, embora quisesse seguir seu próprio rumo.

Uma das razões para a longevidade do Odin Teatret é dar autonomia a cada membro e, ao mesmo tempo, manter uma colaboração significativa. Mesmo que priorizemos nossos espetáculos acima de qualquer outra atividade, sempre fomos incentivados a desenvolver nossos próprios interesses e alimentar a diversidade e a força de nossas personalidades individuais. Valorizo isso, especialmente quando testemunho a tristeza com que Roxana Pineda, do Estudio Teatral em Cuba, e Anna Zubrzycka, do Song of the Goat na Polônia, finalmente decidiram deixar os grupos cofundados por elas depois de se divorciarem de companheiros com quem tinham compartilhado os primeiros anos.

Após O matrimonio de Medeia, alguns dos Jasonites participaram da segunda edição de Ur-Hamlet e então decidiram se reunir outra vez de maneira independente e dar continuidade à sua colaboração. Meus laços pessoais com The Jasonites se desenvolveram a cada encontro e uma das consequências foi que dirigi seu espetáculo Tomorrow, bem como auxiliei em Shakespills. Quatro dos Jasonites continuaram a se encontrar para trabalhar com o tema Love Stories para preparar sua contribuição para a Festuge de Holstebro, em 2011. Isadora Pei, Marcelo Miguel, Alberto Martinez Guinaldo e Giuseppe L. Bonifati valorizaram aquilo que tinham vivenciado durante a Festuge, em 2008, com O matrimonio de Medeia. Permaneceram em Holstebro por períodos mais longos para trabalhar com escolas e colaborar com Deborah Hunt, preparando esquetes teatrais que pudessem ser apresentados em todos os tipos de situações.

Assim, The Jasonites criaram sua rede local autônoma de contatos e conseguiram nos indicar algumas escolas e pessoas que poderiam se juntar a nós e nos apoiar quando decidimos convidar ensembles de teatro/dança de crianças e jovens de Bali, Quênia, Itália e Brasil para comemorar o 50º aniversário do Odin Teatret, em 2014. Nos anos entre a Festuge de 2011 e de 2014, o Odin Teatret também fez parte de um projeto internacional que recebeu financiamento europeu para um palco sobre rodas que viajaria por toda a Europa, durante dois anos, para apresentar espetáculos sobre o tema da crise e do renascimento. Como o Odin Teatret estava ocupado com seus próprios compromissos locais e internacionais, fui solicitada a dirigir um espetáculo que The Jasonites pudessem apresentar como parte desse projeto, combinando espetáculo a céu aberto com escambo e oficinas. Foi uma oportunidade para que The Jasonites se apresentassem e treinassem como líderes de interação social. Esse espetáculo, Banana Revival, tornou-se uma produção do Nordisk Teaterlaboratorium, definindo o caminho para nossa futura prática de uso dessa rede.

No mesmo período, no Odin Teatret, começamos uma escola denominada WIN (Workout for Intercultural Navigators [Exercícios para Navegadores Interculturais]), para aqueles interessados em usar suas habilidades como ator não apenas em espetáculo, mas como uma técnica para tecer relações e criar conexões nos diferentes tecidos de uma comunidade. Definimos as questões interculturais - que usualmente são pensadas em termos de especificidades étnicas, raciais ou nacionais -, reconhecendo as diferentes subculturas com seus laços, afinidades, normas e hábitos específicos: aqueles que vivem no campo ou na cidade, que trabalham em uma fábrica ou em uma loja, que frequentam uma escola técnica ou de ensino médio, jovens ou velhos, que viajaram ao exterior ou não… Os líderes da oficina eram atores do Odin, mas também The Jasonites e outros colaboradores próximos, como Deborah Hunt ou Pierangelo Pompa, a quem poderíamos confiar uma responsabilidade pedagógica.

Com exceção do espetáculo mais recente, A arvore, em geral Eugenio estava acompanhado por vários assistentes durante o processo de ensaio. Era sua maneira de tentar transmitir sua experiência como diretor. Um deles, o italiano Pierangelo Pompa, decidiu se estabelecer em Holstebro. No começo, ajudou Eugenio em muitas atividades, trabalhando com os Arquivos do Odin Teatret e tomando conta de muitas tarefas cotidianas no teatro, onde é sempre necessário ajudar, especialmente quando o grupo está em turnê. Pierangelo também coordenava oficinas, culminando em um espetáculo, pois queria construir um grupo autônomo. Isso resultou na criação do Altamira Studio Teater, residente no Odin Teatret desde o começo de 2014, e recebia auxílio financeiro e logístico. O grupo está desenvolvendo sua presença em Holstebro e em outras cidades da região com a intenção de tornar-se independente e ter seu próprio circuito de lugares em alguns anos.

Todas essas atividades precisavam ser divulgadas. Com Selene D’Agostino, de nossa administração, e Pierangelo, comecei a planejar um website dedicado exclusivamente ao Nordisk Teaterlaboratorium (NTL). Informava sobre produções do NTL (espetáculos dirigidos por atores do Odin e espetáculos os quais o Odin Teatret ofereceu apoio financeiro substancial); residências no NTL (grupos e artistas que trabalham no teatro em Holstebro por períodos mais longos ou mais breves); oficinas do NTL (oficinas realizadas no Odin Teatret por artistas em residência); atividades associadas ao NTL (escambos, intervenções, paradas). Para fazer o mundo exterior compreender a diferença entre NTL e Odin Teatret, tivemos que publicar uma definição em nosso website.

Muito tempo foi despendido ao tentar definir uma situação que está em constante evolução. Não foi - e não é - nada fácil. Cada caso parecia apresentar uma exceção, e todos tinham uma compreensão diferente das palavras que usamos para descrever as relações artísticas e pedagógicas, que mudam tanto que parecem contraditórias. Quando Selene retornou à Itália e Pierangelo concentrou sua atenção em seu próprio grupo, Sabrina Martello e Rina Skeel, além de suas outras tarefas no Odin Teatret, assumiram responsabilidades referentes às residências e aos anúncios do NTL. Continuo a seguir todas as atividades, tentando coordenar os avanços e facilitar a comunicação entre os jovens artistas residentes, os atores de Odin, a administração e Eugenio.

Meu envolvimento em tarefas gerenciais no Odin Teatret desenvolveu-se ao longo dos anos. No começo da década de 1980, organizei a filmagem de Come! And The Day Will Be Ours e fui assistente de Eugenio durante um encontro de grupos de teatro em Baía Blanca, na Argentina. Quando Eugenio não acompanhou muitas das turnês de O Evangelho de Oxyrhincus, comecei a escrever um registro diário para mantê-lo informado dos problemas cotidianos. Durante o ano sabático de Eugenio, fiz parte do grupo que dirigia todas as atividades do teatro e meu papel era manter a comunicação fluindo entre o jovem e inovador Toni Cots e o antigo e conservador Torgeir Wethal, com a ajuda do democrático Ulrik Skeel. Quando Leif Bech, que foi nosso gerente de turnês por muitos anos, saiu em 1988, imediatamente antes de uma turnê à Itália com nosso novo espetáculo Talabot, me envolvi em todas as negociações com nossos anfitriões. Desde então, experimentamos várias estruturas, um das quais denominada filtro, que consistia em Torgeir, Ulrik, Søren Kjems (nosso administrador) e eu, para ajudar a liberar Eugenio das tarefas administrativas, até que decidisse, em 2014, que eu seria seu stedfortræder (substituta, assumindo seu lugar quando não estivesse) ou diretora executiva, para tranquilizar o Ministério da Cultura e a Prefeitura de Holstebro, que estavam nos subvencionando e estavam preocupados com a aposentadoria de Eugenio. Na prática, esses títulos não mudam nada para mim. Estou sempre bem ciente de que Eugenio é a pessoa que, no fim, toma as decisões; não quero tomar o seu lugar. Não tenho nenhum desejo de participar dos litígios que ocorrem para chamar sua atenção. Apenas continuo, além de ser atriz e diretora, a lidar com um longo rol de iniciativas autônomas de atores individuais do Odin, projetos novos que mudam continuamente dentro do NTL, e todo o planejamento das turnês do ensemble Odin e outras atividades coletivas. A expansão do NTL coincidiu com minha tomada de todas essas responsabilidades.

Porém, os mal-entendidos também são causados pelas expectativas de outras pessoas. Embora insistamos o tempo todo que o Odin Teatret morrerá conosco, a pergunta sempre surge: quem foi escolhido por Eugenio Barba e pelos atores do Odin para dar continuidade ao seu trabalho? Cada avaliação e crítica, cada ação e reação, cada atribuição e recomendação, cada distribuição de responsabilidade e projetos, é interpretada como um sinal de estratégia premeditada ao invés de uma resposta às situações em desenvolvimento. Quando indico os mal-entendidos que às vezes o comportamento de Eugenio produz, ou quando, como diretora executiva do teatro, tento implementar a consequência de seus desejos e necessidades, isso pode produzir reações, ressentimentos e até mesmo acusações. Não estou interessada em status e, ao longo dos anos, aprendi a me cobrir com uma camada de óleo que permite que insinuações de manipulação para conceder privilégios ou repreender se dissipem. Muitas vezes sou lembrada da difícil posição de muitas outras mulheres que, abertamente ou em segundo plano, tiveram que assumir a liderança de suas companhias e grupos de teatro.

Minha prioridade tem sido criar condições para que Eugenio trabalhe conosco no espaço de ensaio e esteja presente nos espetáculos tanto quanto possível, aliviando sua carga administrativa e incentivando-o a aceitar os projetos que podem se desenvolver em direções imprevistas. Além de assumir responsabilidade por todas essas ocupações, também defendo minha posição como atriz porque sei que minhas raízes estão aí. Concentrar minha atenção em ser atriz mantém meu equilíbrio e liberdade em um grupo no qual a maioria das pessoas não escolheu trabalhar comigo, mas com Eugenio. Em geral encontramos uma unidade básica de intenções quando os conflitos que não são fundamentais são resolvidos. Sabemos que precisamos proteger nosso trabalho artístico, que é o essencial que nos mantém juntos. Essa consciência da necessidade de proteger o que é importante e não permitir que as discordâncias tomem conta se aprofundou com a perda de dois colegas: Torgeir Wethal, um dos fundadores do Odin Teatret, que morreu em 2010, e Augusto Omolú, dançarino afro-brasileiro que foi assassinado em 2013.

É claro que muitas perguntas ainda persistem: o que acontecerá aos prédios com seus espaços de trabalho, vestiários, escritórios, oficinas, depósitos, cozinhas, camas, mesas, cadeiras, armários, computadores, impressoras, projetores, luzes e equipamento do som? O que acontecerá com os espetáculos e seus acessórios e figurinos? O que acontecerá com os arquivos e os livros, filmes, fotografias, originais, cartas, programas, recortes de jornal? A cada dia que passa, mais itens históricos são coletados no Odin Teatret com a finalidade de transmitir nossa experiência e mais espaços foram construídos para sediar atividades e guardar materiais. A tarefa de organizar para o futuro em tudo isso é impressionante, especialmente para um teatro que continua a funcionar com um número crescente de atividades e onde não há tempo para parar e pensar e se preparar.

No começo era fácil: cada carta tinha uma cópia que era arquivada pela data e um original que era arquivado na pasta da respectiva atividade. Se quiséssemos usar uma fotografia em um livro, o fotógrafo tinha que produzir uma cópia em papel. Películas de 36 ou 18 milímetros enchiam a sala de edição, mas era fácil enxergar e encontrar. Mas depois vieram os computadores, fotos digitais, fitas de vídeo e cópias em filme digital, e-mails em vez de telefonemas ou cartas ou fax, discos rígidos, pendrives, bancos de dados… Todos no teatro criaram seu próprio sistema e hábitos, e, apenas pensar em como compartilhar e transformar nossa caderneta de endereços e excluir todos aqueles que tinham morrido no ínterim, provocava uma crise incrível. Aos poucos, com a ajuda dos mais jovens entre nós e alguns especialistas, começamos a pensar em organizar nossos arquivos. Depois de nosso 40º aniversário, quando convidamos muitos visitantes a Holstebro, e do 45º, quando vendemos os direitos do livro O Teatro Pobre por um euro ao Grotowski Institute da Polônia, e na perspectiva do 50º aniversário, que se aproximava como uma data-limite sem nenhum amanhã, a necessidade de decidir o que fazer com todos os nossos documentos estava ficando urgente.

Ernesto, irmão de Eugenio, montara uma biblioteca notável ao longo de sua vida, e a mantinha na casa de sua mãe, em Roma. Após a morte de seu irmão e de sua mãe, Eugenio teve que decidir o que aconteceria com todos os livros. Logo pensou que poucas pessoas têm espaço para guardar itens tão preciosos e que as instituições públicas relutam em receber doações privadas sem apoio financeiro para sua manutenção. Eugenio começou a pensar sobre o que aconteceria com sua própria biblioteca após sua morte e quem deveria receber todos seus originais historicamente preciosos como, por exemplo, sua correspondência privada com Jerzy Grotowski.

Em 2004, uma colaboração de uma década entre o Odin Teatret e a Universidade de Aarhus culminou na fundação do CTLS - Centre for Theatre Laboratory Studies [Centro para Estudos de Laboratório em Teatro], para o qual construímos um segundo andar em nosso teatro, financiado pela hipoteca que Eugenio fez de sua casa. Todos os arquivistas que consultamos nos recomendaram a não doar o arquivo para uma universidade, porque a instituição não teria meios nem experiência para cuidar dela e torná-la disponível a futuras gerações de estudiosos. O mundo estava entrando em uma crise econômica e os fundos prometidos pela Universidade de Aarhus desapareceram. A obrigação de pagar o salário das pessoas que trabalham no CTLS foi assumida pelo Odin Teatret.

Para mim, também era importante que os arquivos continuassem no teatro no futuro. Tendo visitado as casas de Bertolt Brecht, em Berlim e em Svendborg, assim como o apartamento de Meyerhold, em Moscou, eu acreditava piamente que os espaços, com suas paredes e janelas, jardins e corredores, retêm alguma energia e essência do que havia acontecido lá no passado. Também insisti que os estudantes teriam maior motivação para virem a Holstebro se pudessem consultar nossos documentos. Estava pensando em como manter o teatro como um destino atraente quando já não houver espetáculos a serem assistidos ou atores com quem aprender. Era uma batalha muito solitária. Ao meu redor, Eugenio e outras pessoas não conseguiam imaginar que Holstebro continuaria a financiar um museu ou biblioteca em nossos prédios quando o Odin Teatret não mais existisse.

Chorei de impotência em uma reunião internacional sobre o tema Arquivos Vivos, sabendo que eu não tinha tempo para me dedicar a esse projeto problemático e que a única maneira de influenciar as decisões seria assumir total responsabilidade por essa tarefa hercúlea. A certa altura, cheguei mesmo a pensar em começar um fundo com meu próprio dinheiro que pudesse pagar alguém para tomar conta dos arquivos no futuro e para o aluguel das salas que seriam necessárias para armazená-los. Na medida do possível, acompanhei o processo de decisão relacionado aos arquivos, contribuindo e ajudando do modo que pudesse, mas também precisava permanecer em segundo plano, reconhecendo que minhas tarefas principais estavam em outro lugar. Eugenio finalmente atribuiu a responsabilidade pela organização dos Arquivos do Odin Teatret (OTA) a Mirella Schino, apoiada por Francesca Romana Rietti e Valentina Tibaldi, e independente do CTLS e da Universidade de Aarhus. Inicialmente, a ideia era doar os arquivos à Fundação Gramsci na Itália, mas, felizmente, ao se concentrar nas raízes dinamarquesas do Odin Teatret, a Biblioteca Real de Copenhagen declarou-se feliz em receber nosso arquivo. Eugenio insistiu para que o trabalho estivesse concluído em junho de 2014, para o 50º aniversário do Odin Teatret.

A pressão resultante dessa decisão foi explosiva. Todas as cartas, documentos, fotografias e filmes que seriam repassados à Biblioteca Real tinham que ser digitalizados, organizados e catalogados. Pilhas de papéis continuavam surgindo de cada canto do teatro e foram trazidas de casas privadas. Decidi que ainda precisava acessar meus próprios arquivos, a maior parte conectada ao Magdalena Project, ao jornal The Open Page, ao Festival Transit, a meu trabalho como diretora e meus artigos, então apenas minhas pastas referentes a turnês do Odin, à ISTA e à correspondência foram incluídas na primeira remessa à Biblioteca Real, em 2014. Ainda estou usando meus papéis e diários e decidi incluí-los nos documentos que serão enviados em 2025, na segunda transferência.

Ao discutir o destino dos arquivos do Odin Teatret e do Magdalena Project com Diana Taylor, estudiosa mexicana que trabalha na Universidade de New York, pensamos em como poderíamos garantir a presença de mulheres nos documentos sobre os quais a futura reconstrução histórica está embasada. O Magdalena Project sempre se concentrou em documentação, mas a especificidade de arquivar o material de espetáculos e a vivência incorporada nos atores é um desafio. Por ora, solicitei a Selene D’Agostino para tomar conta de meus arquivos, em parte para reduzir o trabalho da equipe de funcionários do OTA e em parte em resposta à fria reação às minhas preocupações feministas. Aceito que se deve esperar que os escritos de Eugenio sejam priorizados e trabalhados de maneira diferente do que os meus, porém ainda sinto que é minha responsabilidade abrir um espaço que outras mulheres possam usar no futuro.

A história superficial se concentra no topo do iceberg. Muitas vezes, aqueles que não conhecem a complexa rede de iniciativas do Odin Teatret e dos feitos menos visíveis de cada um de seus membros preferem se concentrar em Eugenio e nas performances principais. Muitas vezes me peguei explicando que o Odin Teatret é resultado da interação entre ele e os atores, que nosso trabalho inclui processos culturais e produtos artísticos, que cada indivíduo no grupo tem sua própria história e ponto da vista, e que os escritos dos atores também deveriam ser conhecidos e divulgados para se alcançar uma compreensão plena das diferenças dentro do nosso grupo e seu sentido.

Depois de decidir como preservar nossos documentos, uma solução completamente diferente foi encontrada para arquivar os acessórios e os figurinos de antigas performances, não mais no repertório, mas armazenados nos vários sótãos do teatro: Eugenio decidiu queimar tudo, durante o espetáculo para comemorar nosso 50º aniversário, na frente dos amigos convidados a Holstebro para celebrar conosco. Else Marie Laukvik, uma das fundadoras do Odin Teatret, se opôs à queima. Tem medo de fogo desde que se queimou gravemente ao ensaiar Memoria. Todos nós imaginamos a vizinhança inteira em torno do teatro envolto em chamas enquanto pensávamos no tamanho da fogueira que todos os figurinos e acessórios dos espetáculos desde 1964 precisariam. Eugenio cedeu aos protestos de Else Marie e então foi cavada uma sepultura profunda no jardim do teatro para que tudo pudesse ser enterrado.

A ideia de destruir os acessórios e os figurinos, que eu havia construído, pintado, costurado e bordado com tanto cuidado ao longo dos anos, era chocante para mim. Continuei a pensar no futuro museu de meus sonhos, enquanto Eugenio explicava que ninguém estaria interessado em trapos velhos e em uma coleção extravagante de objetos que faziam sentido apenas para aqueles que recordaram vividamente as imagens dos espetáculos. Foi feito um acordo quando decidimos que aqueles que quisessem guardar algo poderiam fazê-lo, contanto que levassem para casa, e que poderíamos doar como presente as peças que nossos amigos quisessem particularmente ter como lembrança.

O espetáculo para o 50º aniversário tornou-se uma trilogia com o título Measuring Time - If the Grain of Wheat Does Not Die (futuro); Clear Enigma (passado); Alexander's Secret (presente) [Medindo o Tempo - se o grão do trigo não morre (futuro); Claro Enigma (passado); O Segredo de Alexandre (presente)]. A celebração do aniversário foi planejada para o último fim de semana da Festuge de Holstebro, em junho de 2014, para a qual já tínhamos decidido convidar ensembles artísticos de crianças e adolescentes de Bali (Sanggar Seni Suari Tri), Quênia (The Koinonia Children Group), Itália (Junior Band di Spina) e Brasil (Ilé Omolú), juntamente com muitos outros grupos, que incluíam Teatro Potlach e Dynamis Teatro, da Itália, e Ashtanaga Kalam Pulluvan Pattu e Parvathy Baul, da Índia. Para comemorar nossa maturidade, queríamos a companhia de jovens que tinham muitos anos de vida pela frente.

A seguir, enviamos um convite para nossa lista inteira de contatos para que se juntassem a nós no dia. Eu estava aterrorizada pelas implicações práticas, imaginando uma reunião tão grande como aquela que os escoteiros tinham recém organizado em Holstebro ou um tipo de festival de Woodstock. Eugenio estava convencido de que apenas cem pessoas gostariam de vir até a Dinamarca às suas próprias custas. Respostas do mundo inteiro começaram a chegar em profusão e finalmente convenci Eugenio a contá-las. Já tínhamos mais de oitocentos convidados. Onde iriam dormir e se alimentar? Como todos poderiam assistir pessoalmente o espetáculo que estávamos preparando para eles? A essa altura, começamos a responder que já não havia mais lugar para vir. Aceitamos quinhentas pessoas, aquelas que tinham respondido primeiro. Foi um processo doloroso escrever para tantos amigos próximos e dizer a eles que não poderiam estar conosco para celebrar.

Mas como poderíamos recusar todo o povo de Holstebro que queria fazer parte do 50º aniversário do seu teatro? Decidimos dividir o espetáculo em três seções: a primeira, no parque, e aberta a todos; a segunda, no Odin Teatret, para um grupo mais restrito de espectadores; e, a terceira, como uma refeição comemorativa apenas para os convidados. Porém, mesmo que os números para a segunda e a terceira parte fossem restritos a seiscentos, tivemos que considerar a reorganização do espaço para que todos pudessem assistir. Era necessário aumentar a visibilidade das cenas e, assim, em nosso pátio e estacionamento, construímos um barco-palco, uma montanha-palco, um casa-palco, uma torre-palco e uma grande ilha-palco sobre um lago, ao qual chamamos Epidaurus. Os cineastas do Odin, Claudio Coloberti e Chiara Crupi, foram responsáveis pela transmissão ao vivo do segundo espetáculo, Clear Enigma, que poderia ser mostrada em tempo real no telão do Teatro Municipal de Holstebro e seguida online por todos aqueles que não puderam estar pessoalmente conosco.

Para dar vida aos antigos personagens e aos figurinos pela última vez, tivemos que reconstruir o que lembrávamos dos espetáculos e representar as cenas com aqueles atores que haviam originalmente participado. Felizmente, havia muitas gravações em vídeo dos espetáculos e dos ensaios. Foi surpreendente ver como os corpos visivelmente diferentes e envelhecidos recordavam de todos os detalhes das partituras, como as vozes evocavam as inflexões e a entonação das palavras, como os diálogos de ações tinham a mesma precisão do impulso.

À medida que representávamos todas estas cenas, a cerimônia indiana Pulluvan terminava seu desenho de areia colorida de serpentes entrelaçadas, que havia levado muitas horas para preparar. Então, seguiu-se uma dança do fogo com cânticos e música de cordas e percussão repetitiva, terminando com duas meninas em transe destruindo o desenho com seus longos cabelos pretos. Após a última imagem de Cinzas de Brecht, quando Iben ficou em pé sobre o barril no telhado e a bandeira vermelha tinha se tornado um fino pedaço de pano queimado, os jovens da Junior Band di Spina italiana começaram a tocar rock and roll. Aquele foi o sinal para que as crianças de todos os outros grupos corressem para recolher os figurinos e acessórios que haviam sido deixados como totens depois das cenas e os colocassem em uma longa esteira, que deixava tudo cair na grande sepultura recém reaberta. As crianças corriam e riam, realmente se divertindo. Sorriam uns para os outros, ajudavam uns aos outros, conversavam entre si, mesmo que não falassem nenhuma língua em comum. O que eu havia imaginado como um momento estarrecedor, quando os figurinos estavam prestes a ser enterrados, tornou-se alegre. Era difícil não ser cativada pela leveza e descuido exuberante das crianças.

No outro lado do mundo, assistindo a transmissão ao vivo do espetáculo, nossa amiga Maria Porter estava preocupada com Mr. Peanut, meu personagem com cabeça de esqueleto, sendo enterrado também. Mas apenas os figurinos e acessórios de espetáculos e personagens já não mais no repertório terminaram no buraco, que foi então coberto com terra trazida por uma retroescavadeira. Muitos espectadores não conseguiam realmente acreditar que os deixaríamos lá para sempre. Tiveram que aceitar esse fato quando viram um balanço ser rapidamente construído no alto da sepultura em que cinquenta anos de espetáculos estavam enterrados. As crianças já estavam se balançando sobre eles. Poucos saberão o que está enterrado quando a grama crescer nas primaveras que virão.

Agora, em maio de 2016, temos dois grupos residentes permanentes no Nordisk Teaterlaboratorium: Altamira Studio Teater e Divano Occidentale Orientale. Giuseppe L. Bonifati e sua parceira Linda Sugataghy fundaram o Kunstparti [Partido da arte] e começaram uma campanha para se tornarem Prefeito e Primeira-Dama de Holstebro, realizando a performance mais longa do mundo, com dezoito meses de duração, de janeiro de 2016 até a Festuge em junho de 2017. Muitos outros grupos e indivíduos vêm para residências mais curtas e todos os atores do Odin continuam a dirigir espetáculos que se tornam coproduções do NTL. O Odin Teatret tem uma geração de atores mais jovens que vivem permanentemente em Holstebro, oferecendo oficinas e participando dos espetáculos. Estamos todos ocupados preparando a Festuge de 2017 sob o título The Wild West - Roots and Shoots - Re-think [O Wild West - Raízes e brotos - Re-pensar], para o qual planejamos encher Holstebro com cavalos, ovelhas e centauros. Eugenio irá comemorar seu 80º aniversário em outubro de 2016, oferecendo café e bolo a todos no centro de refugiados de Holstebro. Nesse ínterim, tentamos prosseguir com o intenso programa de atividades, que incluem turnês, festivais e oficinas. Nosso futuro está tão ocupado quanto sempre.

Uma vez fui a uma exposição das pinturas que Pablo Picasso fez quando já estava com mais de 80 anos. Os quadros eram cheios de alegria e prazer na vida. Ficou tão evidente que ele não precisava mais demonstrar originalidade, técnica e responsabilidade; apenas pintava aquilo que queria, sem nenhuma preocupação com nenhuma regra. Quando sou questionada acerca do futuro do Odin Teatret, e meu futuro pessoal como membro do grupo, lembro dessa exposição. Penso nos anos que gastamos aprendendo e depois ensinando, no período de nossa juventude e nossa maturidade, e na longa preparação para transmitir nossa experiência. Mas agora sentimos uma liberdade juvenil, com nada a provar enquanto apenas mantivermos vivo o sentido de estar vivos. Quando escrevo isto, subitamente penso que nós somos as crianças brincando no balanço que plantamos sobre nossa história. E um dos primeiros movimentos poderosos para cima tem sido começar a ensaiar nossa próxima produção, A arvore, sem nenhuma preocupação com as dificuldades que possamos ter no futuro para negociá-la e apresentá-la.

O Ninho

Um ano antes de começar os ensaios para o novo espetáculo, em Mato Grosso, Brasil, enxerguei um ninho pendurado no ramo de uma árvore. Tinha o formato de um balão alongado. Um bando de pequenos papagaios verdes fazia um barulho infernal sob o ninho. Estavam voando ao redor, perseguindo uns aos outros, e pareciam estar brincando. Talvez tivessem a intenção de julgar o formato do ninho ou trocar informações sobre os insetos mais saborosos da região. O som do seu chalrear era semelhante ao seu nome em francês, usado também no Brasil: perroquet1 1 N. T.: Perroquet em francês significa papagaio e periquito. . Se eu repetir essa palavra rapidamente, fazendo as consoantes vibrarem entre vogais estridentes, sinto a mesma animação, premência e divertimento.

Incontáveis raminhos secos de diferentes tamanhos, pedaços de grama, flores, folhas secas, sementes e talvez alguns pelos de capivara ou anta, juntamente com saliva e vento, ajudaram a criar esse abrigo pendente - como um trabalho de elevada engenharia arquitetônica - sob o qual os papagaios voavam. Como se constrói um ninho, algo tão simples e, ao mesmo tempo, tão complexo? Penso sem querer na criação de um espetáculo. Após décadas de trabalho como atriz, sinto que a técnica de construção é similar. Consiste em permitir-se ser guiado por intuição e experiência, por um conhecimento depositado nas células, como se o que decidisse fosse outra coisa, não nós que estamos envolvidos no processo.

Gravetos, folhas, pelos, saliva e vento: muitos materiais diferentes e frequentemente ocultos estão envolvidos em elaborar um espetáculo e dar forma a um personagem - meu próprio ninho e abrigo como atriz. Alguns materiais mostram-se apenas em um gesto de uma improvisação, na posição do pé ao andar, em uma maneira de olhar. Outros se solidificam em cenas, textos, canções. Porém, a maior parte dos materiais desafia a consciência dos espectadores, continuam indetectáveis porque não são visíveis na superfície. Além da pesquisa conectada ao tema do espetáculo, do contexto em que os personagens se movimentam, da criação do projeto de palco e de iluminação, da lógica da música, da montagem do texto, o meu universo interior e a minha imaginação também fazem parte da bagagem de informações de um espetáculo. Centenas de vivências, memórias, desejos e encontros povoam meu subconsciente de atriz e dão profundidade à minha presença no palco.

Muitos episódios estão relacionados à minha gênese pessoal de A arvore. São as referências que estimulam a vida de meu personagem, um monge yazidi que planta uma árvore no deserto para trazer os pássaros de volta. Meu futuro no espetáculo, que será apresentada aos espectadores por alguns anos ainda, está baseado em uma mistura de ingredientes do meu passado e presente (Varley, 2010VARLEY, Julia. Notes from an Odin Actress: Stones of Water . Abingdon-on-Thames: Routledge , 2010.). Diferente do processo para outros espetáculos, desta vez, após quarenta anos como atriz, a inspiração vem de um quarto simples cheio de mobília e de recordações de viagem, dos sons e imagens de fenômenos naturais e da vida animal. São vivências que se comunicam com o tema do espetáculo de longe, que não precisam ser explicadas. São a fonte de imagens que nutrem minhas ações como atriz. Levam-me de volta para casa: à sala de trabalho onde reúno os materiais e me preparo para o futuro espetáculo - um ninho pendurado no vazio.

Os animais selvagens no Pantanal Mato-Grossense não têm medo dos seres humanos. Durante gerações transmitiram uns aos outros que os homens são inofensivos. A caça é proibida nessa região há muitos anos. Isso não significa que eu não tivesse medo de escorpiões e aranhas, que muitas vezes chegavam perto de meus pés. Quando estava sentada à noite, no teto do jipe, segurando uma tocha para encontrar animais selvagens no feixe de luz, cada vez que escutava um bramido de jacaré, eu pulava na direção oposta, como se alguns centímetros pudessem me salvar. Era um som misterioso, rouco e alto. Naquela mesma noite enxerguei uma anta branca e a lua repousando sobre o ramo de uma árvore morta ao lado das sombras negras de dois pássaros com longos bicos curvos.

Ao amanhecer, enxerguei araras azuis empoleiradas nas árvores perto da casa. Escutei os casais de papagaio se beijando na nuca. Os sons que emitiam eram cheios de amor e de cuidado. A cada pouco, voavam para mudar de posição nos ramos. Voltavam a se beijar, cruzando seus bicos, enquanto prestavam atenção à aproximação de outros animais. Tinham seu próprio alfabeto. Compreendi que minha linguagem de pássaro poderia ser enriquecida por consoantes e tons mais graves. Uma nova perspectiva vocal abriu-se para que eu competisse com os concertos das rãs e dos grilos cantando nas bordas de uma longa ponte, sobre um trecho de água coberto com flores cor-de-rosa.

As capivaras são um de meus animais preferidos. Adoro observá-las correndo e saltando. Sempre têm um ar brincalhão, otimista, como se estivessem sorrindo amigavelmente. Ao longo de uma trilha, enxerguei um grupo de famílias de capivara com seus filhotes. Estavam descansando à sombra de uma árvore, não longe dos jacarés que aproveitavam o sol no meio da estrada. Aprendi a diferenciar os olhos dos jacarés, submersos no lago próximo, de galhos ou tufos de grama.

Concentrei minha atenção para observar alguns exemplos da incrível variedade de pássaros ao meu redor. Dizem que há setecentas mil espécies diferentes no Pantanal. Fiquei feliz ao rever os tuiuiús, com seu corpo branco, garganta vermelha-escarlate e cabeça preta. Estudei-os ao caminharem sozinhos na vegetação rasteira e quando um casal estava de pé no alto das árvores em seu ninho gigante. Seu ritmo era muito diferente dos cardeais que circundavam as poças d’água de manhã. De uma canoa, enxerguei os falcões que aprenderam a mergulhar para capturar os peixes jogados pelo guia com sua câmera pronta. Descobri um ninho com dois filhotes - não tão pequenos assim - com penas da mesma cor que os galhos, esticando seu corpo, com pescoço e bico completamente parados para não atrair atenção, esperando a mãe - ou talvez o pai - chegar para alimentá-los. Eram uma boa imagem de um impulso dinâmico imóvel. Fiquei fascinada com todas as diferentes formas de pássaros e ninhos. Pensei em um livro de arquitetura das aves e comecei a tirar fotografias.

No deserto de sal, no norte do Chile, flamingos cor-de-rosa se destacavam como um respingo de cor na tela ainda branca de um pintor. Suas pernas eram delgadas e longas -poderiam quebrar como gravetos ao vento. Quando uma perna descansava, a outra sustentava o grande corpo de penas. O pescoço se elevava para olhar ao longe, a brisa passava entre as penas, os pássaros continuavam parados e impassíveis. Eram pontos de vida imóvel no meio do nada.

Em uma região da Patagônia argentina, a costa era pontilhada de buracos e havia um forte cheiro de peixe. Em cada buraco, um pinguim mantinha guarda. Protegia os ovos ou as crias na entrada do ninho. Outros pinguins caminhavam em fila e então mergulhavam nas ondas. Era como uma autoestrada com centenas desses pássaros que caminhavam desajeitados e, depois, nadavam com confiança e velocidade em busca de alimento. Paravam por um momento para conferir o caminho e viravam suas cabeças e bicos em uníssono em direção ao vento. De perto, com penas parecidas com escamas de peixe, pareciam menos elegantes. Poderia tê-los observado durante horas, estudado seus passos engraçados, seus saltos, a maneira como deslizam rumo à água, como abaixam a cabeça para evitar as ondas maiores, como decolam e voam, como alimentam seus filhotes e monitoram qualquer um que se aproxime. Alguns aceleram, o bico para a frente, as asas para trás e as perninhas trotando em busca da velocidade necessária. Outros cambaleiam delicadamente quando se aproximam do ponto onde as ondas quebram na praia. Nada os distraía de suas atividades, nem mesmo o pôr do sol incrivelmente vermelho-escuro, que anunciava um rápido anoitecer. Um tatu cruzou o trecho infinito de ninhos de pinguim. Sua pressa parecia sussurrar-me que era hora de ir para casa.

No meio do mercado de Chamula, no México, enxerguei um pássaro morto crucificado. A cabeça pendia de lado e suas asas abertas estavam pregadas à madeira, como um Cristo. Não sei por que o pássaro era exibido assim. A imagem permaneceu em mim quando parei em uma tenda de recipientes feitos de abóboras secas e ocas. O ruído da festa na praça e o murmúrio da igreja, que eu recém havia visitado, ecoavam em meus ouvidos. Escolhi duas cabaças pequenas e comprei dez quilos de milho. Vinha pensando há algum tempo que eu deveria alimentar pássaros com grãos de milho, talvez para evitar que fossem crucificados.

Em Wuzhen, na China - assustada com o tráfego, a adoração de celebridade, a busca de lucro, as luzes de néon que colorem os arranha-céus ao longo da costa -, no mundo do teatro fiquei impressionada com os passos miúdos de uma personagem feminina tradicional, em uma performance evocativa noturna, dirigida por Stan Lai. Os passos seguiam-se rapidamente, um à frente do outro, quase como se deslizassem para trás em vez de se moverem para a frente, como se escapando em um passado que nunca irá retornar. Alguns dias mais tarde, durante uma demonstração de trabalho em um teatro feito a partir de uma antiga casa de chá, fiz uma improvisação. Mergulhei no mar, fui para frente e para trás como as ondas, transformei-me nas costas de uma baleia, emiti um jato de água e ar que retornou sobre si mesmo como dois pássaros bicando um ao outro, mordi tão rapidamente como uma enguia, me embalei como um cavalo-marinho, voei como um bando de andorinhas, flutuei à vontade como um polvo. Lá fora, bandeiras vermelhas balançavam sem nenhum indício de socialismo. Lembrei-me do trágico livro sobre meninas chinesas adotadas, comprei objetos de jade, comi com palitos chineses, escutei a entonação de uma língua que eu não compreendia e olhei com perplexidade para os teatros que haviam sido construídos em apenas um ano para sediar um novo festival de teatro. Eu sabia que havia paisagens incríveis na China, tinham me contado sobre montanhas, florestas e animais, mas só conseguia ver em pinturas, em cenários e na minha imaginação. Foi em Wuzhen que, uma noite, Eugenio reuniu os atores do Odin em seu quarto para nos contar sobre o novo espetáculo, a qual chamou Flying. Os atores, como pássaros, estavam prontos para decolar e voar para longe. Eu já estava pensando nos materiais para construir meu ninho para o futuro espetáculo que seria intitulado, finalmente, A arvore.

Epílogo

Muitas vezes me perguntam onde quero viver quando me aposentar ou quando for velha, como se eu já não fosse madura o bastante. Geddy Aniksdal, minha amiga, sempre me diz que só podemos começar a nos queixar sobre nossa idade quando estivermos muito além dos setenta. Às vezes, meus colegas do Magdalena Project e eu conversamos sobre uma casa onde pudéssemos passar os últimos anos de nossas vidas juntas. Fico pensando em qual será o papel do Magdalena Project no futuro, agora que até mesmo convidei dois homens para se apresentarem no próximo Festival Transit, para expressarem suas preocupações com a perda da autoconfiança masculina, quando as mulheres estão adquirindo segurança. Tento evitar pensar sobre o que me acontecerá amanhã. Apenas sei que não consigo me imaginar permanecendo em Holstebro se o Odin Teatret já não existir e não consigo me imaginar no Odin Teatret se Eugenio já não for o diretor.

Eugenio completa oitenta anos de idade este ano (2016). Sei que a eternidade não está a nossa frente. Minha prioridade absoluta é que devemos passar o máximo de tempo juntos. Esse é um empecilho para ter tempo com minhas amigas e família e, também, para realizar meus próprios projetos pessoais. Algumas amigas compreendem, algumas protestam, minha mãe gostaria que eu recebesse mais reconhecimento pessoal, muitas pessoas se preocupam por eu trabalhar tanto. Sei que o trabalho que escolhi fazer e as responsabilidades que aceitei não me dão privilégios, ao contrário. Quando me sinto cansada, lembro-me da sorte e da alegria de estar viva, de não estar sozinha, e de ser livre para tomar decisões. Alguns podem pensar que estou me sacrificando, como Obba, que cortou suas orelhas por amor. Mas reconheço o significado de meu sacrifício nas seguintes palavras, extraídas do artigo de Eugenio no programa de A arvore, o novo espetáculo do Odin Teatret:

Na ficção do teatro, a santidade não consiste em realizar feitos extraordinárias, mas na teimosia de tornar extraordinárias as coisas comuns. No teatro, a santidade é uma planta rara cujas raízes são artifício (arsfacere) e sacrifício (sacrum facere). O artifício está ligado à habilidade de criar uma ficção que seja mais intensa do que a própria vida através do know-how físico e mental do ator. O sacrifício não necessariamente envolve dificuldade e abnegação sofredora. É a realização de uma ação que celebra o essencial - o valor que dá sentido a nós mesmos e ao que fazemos por meio de nosso ofício.

Alguns dias fico feliz apenas por sair para caminharmos juntos ao pôr do sol em uma praia, outros dias por descobrirmos um lugar novo pela primeira vez. Certos dias é a perspectiva de um projeto iminente que me enche de entusiasmo, outros dias, quando um trabalho finalmente terminou. Como estou prestes a concluir o artigo que me forçou a pensar nas três perguntas principais que confronto ao pensar no futuro, confesso que, o que era amanhã quando comecei a escrever, já é ontem, que, o que imaginei que aconteceria, ocorreu em uma direção diferente, e que minhas tarefas e sonhos se desenvolvem de acordo com as mudanças ao meu redor. Escrever fixa o tempo como se ficasse imóvel, e as palavras colocadas juntas, sem respeitar a sucessão dos fatos e a realidade dos eventos, revelam verdades possíveis. A interpretação do leitor determinará, no fim, as consequências daquilo que estou tentando dizer.

Estou em casa hoje. É feriado de Páscoa e recém retornamos de Paris, onde o Odin Teatret se apresentou no Théâtre du Soleil, celebrando um total de 104 anos de teatro feitos por nossos dois grupos. Lá fora ainda é inverno: afinal, estamos na Dinamarca. Minha mãe está sentada em uma poltrona, remendando roupas velhas, e, mais uma vez, me diz como ficou feliz quando saí da Itália, em 1976; se não fosse assim, eu poderia ter sido um daqueles que terminaram na prisão ou até mesmo foram mortos por ativismo político. Dois dias atrás houve outro ataque terrorista em Bruxelas. Amanhã vou ao teatro para ensaios. A vida continua igual, apesar do inexorável curso da história e da necessidade implacável de cada ser humano de esperar por um futuro melhor.

References

  • VARLEY, Julia. Notes from an Odin Actress: Stones of Water. Abingdon-on-Thames: Routledge, 2010.
  • VARLEY, Julia. Notes from an Odin Actress: Stones of Water . Abingdon-on-Thames: Routledge , 2010.
  • 1
    N. T.: Perroquet em francês significa papagaio e periquito.
  • Este texto inédito, traduzido por Ananyr Porto Fajardo, também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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