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Corpo Vocal, Gênero e Performance

Corps Vocale, Genre et Performance

Resumo1 1 Uma versão deste texto compõe a tese Possível cartografia para um corpo vocal queer em performance (Jacobs, 2015). :

O texto problematiza discursos científicos e artísticos formados a partir da perspectiva do engendramento de vocalidades, que atribui aos corpos marcas específicas e binárias de gênero. Para isso, contextualiza-se o território da Crítica Feminista e das Teorias de Gênero, apoiando-se principalmente no pensamento da filósofa feminista Judith Butler, que aborda o sexo e o gênero como construções culturais naturalizadas em um sistema androcêntrico e heteronormativo. Aponta-se, nesse contexto, para uma visão do determinismo biológico implicado nesses discursos sobre a voz, que naturaliza a produção vocal a partir dos aspectos fisiológicos dos corpos vocais, limitando a compreensão do treinamento e da criação vocal nas artes.

Palavras-chave:
Voz; Corpo Vocal; Gênero; Performance; Atuação

Résumé:

Le texte discute des discours scientifiques et artistiques presenté de la perspective d'engendrer les vocalités qui ajoute aux corps des marques spécifiques et binaires de genre. Pour cela, il discute le territoire de la Critique Féministe et la Théorie du Genre, en se fondant principalement sur la philosophe féministe Judith Butler, qui place le sexe et le genre comme constructions culturels naturalisés. Dans ce contexte, il remarque une vision du déterminisme biologique implicite dans ces discours sur la voix, qui prend la production vocale comme aspects physiologiques des corps vocaux, limitant aussi la compréhension de la formation et de la création vocale dans les arts.

Mots-clés:
Voix; Corps Vocale; Genre; Performance; Interprétation

Abstract25 25 A version of this text is part of the PhD dissertation entitled Possível cartografia para um corpo vocal queer em performance (Jacobs, 2015). :

The text discusses scientific and artistic discourses from the perspective of vocalities gendering, which assigns specific and binary gender marks to bodies. For this, it contextualizes the territory of Feminist Critique and Gender Theories, mainly based on the thoughts of the feminist philosopher Judith Butler, who approaches sex and gender as naturalized cultural constructions. It points, in this context, to a view of biological determinism implied in these discourses concerning the voice, which naturalizes vocal production from physiological aspects of vocal bodies, limiting the understanding of training and vocal creation in the arts.

Keywords:
Voice; Vocal Body; Gender; Performance; Acting

Sobre Feminismos e Gêneros

O conceito de gênero, introduzido nos estudos psicanalíticos por Robert Stoller em 1964, estabeleceu uma primeira diferenciação entre sexo e gênero. Para o médico americano, o sexo está relacionado com a formação biológica do indivíduo (fisiologia, morfologia, sistemas funcionais), enquanto o gênero se relaciona com a construção psicossocial do indivíduo a partir de seu sexo (Stoller, 1968), ou seja, a representação física da identidade sexual.

Após a primeira onda do movimento feminista2 2 Cf.: Gamble (2001). , que se desenvolveu principalmente no Reino Unido, na França e nos Estados Unidos entre o final do século XVIII e o início do século XX ‒ com mulheres requerendo igualdade de direitos, como direito à propriedade e ao voto ‒, a segunda onda do movimento feminista ganhou força nas décadas de 1960 e 1970 também na Europa e nos Estados Unidos da América, disseminando-se para diversos outros países desde então. Desta vez, as militantes lutavam pela igualdade cultural e política entre homens e mulheres e pelo fim da discriminação pautada na diferença sexual.

Assim como a crítica feminista anglo-americana, as teóricas francesas realizaram nesse momento reflexões e releituras da história construída, registrada e analisada a partir da perspectiva masculina. A precoce obra da filósofa francesa Simone de Beauvoir (1980BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. ), O segundo sexo (1949), inspirou diversas autoras a questionarem a “[...] construção cultural da mulher como Outro [...]”3 3 “[...] cultural construction of woman as Other [...]” (Tradução minha). (Thornham, 2001THORNHAM, Sue. Second Wave Feminism. In: GAMBLE, Sarah (Ed.). Feminism and Postfeminism . London; New York: Routledge , 2001. P. 29-42., p. 34), ou seja, a partir do que não é homem.

A obra do psicanalista francês Jacques Lacan também é fonte de fundamentação de discurso e crítica das teóricas feministas francesas (Thornham, 2001THORNHAM, Sue. Second Wave Feminism. In: GAMBLE, Sarah (Ed.). Feminism and Postfeminism . London; New York: Routledge , 2001. P. 29-42., p. 40). Lacan afirma que a criança é inserida na ordem simbólica social a partir da linguagem, e que esta medeia o aprendizado simbólico da representação de gênero (Thornham, 2001, p. 41). Teóricas como Julia Kristeva (1988KRISTEVA, Julia. História da Linguagem. Tradução Maria Margarida Barahona. Lisboa: Edição 70, 1988.), Hèléne Cixous (2000CIXOUS, Hélène. The Laugh of the Medusa. In: BRUMMETT, Barry (Ed.). Reading Rhetorical Theory. New York: Harcourt, 2000. P. 879-893. ) e Luce Irigaray (1985IRIGARAY, Luce. The Sex Which is not One. Ithaca: Cornell University Press, 1985.) se apoiam em Lacan para refletir sobre as relações e construções de gênero nas sociedades patriarcais falocêntricas e binárias.

O filósofo francês Michael Foucault é outra importante referência na construção da teoria crítica feminista. Suas pesquisas revisitam práticas sociais históricas como práticas de poder, controle e subjugação, e construção do sujeito. Os estudos culturais, assim como os estudos de gênero e a teoria crítica feminista, apoiam-se no discurso foulcautiano para problematizar o corpo a partir de noções de sexo, gênero e etnia.

Segundo a pesquisadora Sarah Gamble (2001GAMBLE, Sarah. Postfeminism. In: GAMBLE, Sarah (Ed.). Feminism and Postfeminism. London; New York: Routledge , 2001. P. 43-54.), os discursos normativos que constroem as representações das identidades sexuais começam a ser desestabilizados durante a terceira onda4 4 Sarah Gamble sugere o termo terceira onda no capítulo “Postfeminism”, do livro “Feminism and Postfeminism”, organizado por ela e publicado em 2001. do movimento feminista, conhecida também como pós-feminismo, que se insere em parte da filosofia e teoria crítica feminista desenvolvida a partir da década de 1980. Ela afirma que diversas pesquisadoras começam a questionar a universalidade dos gêneros construídos culturalmente e o binarismo sexual.

Ao questionar a hegemonia da matriz heterossexual na cultura euroamericana5 5 Uma obra de referência para a construção dos argumentos feministas sobre discriminação e diferença sexual é o livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, do filósofo alemão Friedrich Engels. Segundo o autor marxista, ainda na era primitiva do mundo ocidental a transição do sistema matriarcal e matrilinear para o sistema patriarcal e patrilinear se dá através da produção. Toda a família (mulher, filhos e escravos) passa a servir às ordens do homem, patriarca e detentor do rebanho de gado, que garante a alimentação do grupo. Engels afirma que, na passagem do casamento grupal ao sindiásmico e, por fim, ao monogâmico, a mulher perdeu todos os seus direitos na tribo, sendo designada apenas aos cuidados da casa e dos filhos. Ao homem passa a caber a preservação e passagem da herança aos outros filhos homens. A família patriarcal surge no mesmo momento histórico da definição da propriedade privada, movida por motivos econômicos (Engels, 1991). , a filósofa feminista americana Judith Butler desestabiliza as representações normativas de gênero (homem x mulher), problematizando as próprias interpretações biológicas de sexo (feminino x masculino). Butler (2003) convida à discussão sobre a materialidade do corpo e a performatividade do gênero. Utilizando a teoria dos Atos da Fala do inglês John Austin (1975AUSTIN, John. How to do Things with Words: The William James lectures delivered at Harvard University in 1955. Oxford: University Press, 1975.) com colaboração de John Searle, Butler assume o conceito de performatividade na criação de práticas discursivas sobre os corpos.

Citando Austin, a filósofa afirma que “[...] o performativo é a prática discursiva que promulga ou produz aquilo que nomeia”6 6 “[...] a performative is that discoursive practice that enacts or produces that which it names” (Tradução minha). (Butler, 1998BUTLER, Judith. From: Bodies That Matter: On the Discursive Limits of ‘Sex’. In: GOODMAN, Lizbeth; DE GAY, Jane (Ed.). The Routledge Reader in Gender and Performance. New York: Routledge, 1998. P. 282-287., p. 283). Desse modo, discursos são legitimados como práticas, e representações de gênero são naturalizadas como identidades sexuais. A “[...] crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam” (Butler, 2003, p. 22) é um ponto central na obra de Butler. Ela reafirma o pensamento da teórica feminista francesa Monique Wittig, ao comentá-la:

A ‘nomeação’ do sexo é um ato de dominação e coerção, um ato performativo institucionalizado que cria e legisla a realidade social pela exigência de uma construção discursiva/perceptiva dos corpos, segundo os princípios da diferença sexual. Assim, conclui Wittig, ‘somos obrigados, em nossos corpos e em nossas mentes, a corresponder, traço por traço, à ideia de natureza que foi estabelecida por nós... ‘homens’ e ‘mulheres’ são categorias políticas, e não fatos naturais’ (Butler, 2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 168).

Tanto Butler quanto Wittig desestabilizam os conceitos de sexo e gênero em suas obras, afirmando que ambos podem revelar a construção de discursos performativos (com potencial de acontecimento) sobre os corpos (matéria). O gênero pode mesmo ser um conceito obsoleto, delator do binarismo heteronormativo homem/mulher, e precisa ser revisto, vista a multiplicidade de identidades sexuais existentes (lésbica, gay, transexual, transgênero, intersexual, pansexual, bissexual, etc.). Citando Wittig, Butler afirma que a própria categoria mulher revela uma identidade de gênero relacional: “A mulher, argumenta ela [Wittig], só existe como termo que estabiliza e consolida a relação binária e de oposição ao homem; e essa relação, diz, é a heterossexualidade” (Butler, 2003, p. 164).

Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.) afirma ainda que a ideia de gênero só é possível através da repetição dos atos de gênero, requerendo para tal uma performance repetida e naturalizada, que identifique o gênero: “Os vários atos de gênero criam a ideia de gênero, e sem esses atos, não haveria gênero algum, pois não há nenhuma ‘essência’ que o gênero expresse ou exteriorize [...] porque o gênero não é um dado da realidade” (Butler, 2003, p. 199). Os atos de gênero são marcas, gestos, signos intencionais, culturalmente atribuídos aos gêneros, e repetidos para serem mantidos como naturais. Como tais atos de gênero podem ser, então, desestabilizados?

Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.) aponta para práticas de subversão de gênero, como práticas que misturam as instâncias de significação corporal (corpo anatômico) e os atos de gênero. Ao discorrer sobre uma performance drag, Butler (2003, p. 196) explica que:

[...] há três dimensões contingentes na corporeidade significante: sexo anatômico, identidade de gênero e performance de gênero. Se a anatomia do performista já é distinta de seu gênero, e se os dois se distinguem do gênero da performance, então a performance sugere uma dissonância não só entre sexo e performance, mas entre sexo e gênero, e entre gênero e performance. Por mais que crie uma imagem unificada da ‘mulher’ (ao que seus críticos se opõem frequentemente), o travesti também revela a distinção dos aspectos da experiência do gênero que são falsamente naturalizados como uma unidade através da ficção reguladora da coerência heterossexual. Ao imitar o gênero, o drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero - assim como sua contingência.

Segundo Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.), tais performances dissonantes de gênero desestabilizam a naturalização do próprio gênero, e sua consequente representação em atos performativos: são práticas que subvertem o sistema heteronormativo de identidade sexual e identidade de gênero.

Partilhando pressupostos ideológicos e epistemológicos semelhantes à Butler, x filósofx feminista espanholx Paul Beatriz Preciado7 7 Beatriz Preciado recentemente publicou uma carta aberta solicitando a alteração de seu nome feminino (Beatriz Preciado) para o masculino (Paul Beatriz Preciado), como decorrência de sua mudança de gênero. Manteremos no texto o “x” na flexão de gênero como estratégia para não binarizar a condição dx filósofx. propõe em seu livro Manifesto Contra-sexual a “[...] desconstrução sistemática da naturalização das práticas sociais e do sistema de gênero”8 8 “[...] deconstrucción sistemática de la naturalización de las prácticas sexuales y del sistema de gênero” (Tradução minha). (Preciado, 2002, p. 19).

Procurando fugir do binarismo e das oposições - homem x mulher, masculino x feminino, heterossexualidade x homossexualidade, etc. - x autorx propõe uma teoria do corpo performativo, e afirma que o sistema sexo/gênero é uma tecnologia de poder (Preciado, 2002PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contra-Sexual. Madri: Editorial Opera Prima, 2002. , p. 19), que visa à produção de corpos sexuais:

O gênero não é simplesmente performativo (ou seja, um efeito das práticas culturais linguístico-discursivas) como queria Judith Butler. O gênero é antes de tudo protético, ou seja, não se dá senão na materialidade dos corpos. É puramente construído e ao mesmo tempo inteiramente orgânico. Escapa das falsas dicotomias entre o corpo e a alma, a forma e a matéria. O gênero se assemelha ao vibrador. Porque os dois ultrapassam a imitação. Sua plasticidade carnal desestabiliza a distinção entre o imitado e o imitador, entre a verdade e a representação da verdade, entre a referência e o referente, entre a natureza e o artifício, entre os órgãos sexuais e as práticas de sexo. O gênero pode ser uma tecnologia sofisticada que fabrica corpos sexuais9 9 “El gênero no es simplesmente performativo (es decir, un efecto de las prácticas culturales lingüístico-discursivas) como habría querido Judith Butler. El gênero es ante todo prostético, es dicir, no se da sino en la materialidad de los cuerpos. Es puramente construído y al mismo tiempo enteramente orgánico. Escapa a las falsas dicotomías metafísicas entre el cuerpo y el alma, la forma y la materia. El género se parece al dido. Porque los dos pasan de la imitación. Su plasticidad carnal desestabiliza la distinción entre lo imitado y el imitador, entre la verdad y la representación de la verdad, entre la referencia y el referente, entre la naturaleza y el artifício, entre los órganos sexuales y las prácticas de sexo. El género podría resultar una tecnologia sofisticada que fabrica cuerpos sexuales” (Tradução minha). (Preciado, 2002PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contra-Sexual. Madri: Editorial Opera Prima, 2002. , p. 25).

Além de ser performativo, o gênero, segundo Preciado, é uma tecnologia de poder que ultrapassa a evocação, corporificando-se. As categorias de gênero se manteriam, então, como características que são repetidas constantemente, a fim de que o referencial não seja esquecido. Preciado afirma que a escritura do corpo (Preciado, 2002, p. 23) é uma tecnologia que transforma a história da humanidade na “[...] história da produção - reprodução sexual, em que certos códigos se naturalizam, outros caem elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados”10 10 “[...] historia de la producción-reproducción sexual, en la que ciertos códigos se naturalizam, otros quedan elípticos y otros son sistemáticamente eliminados o tachados” (Tradução minha). .

Butler e Preciado são filósofxs que desenvolvem seus pensamentos no campo da Teoria Queer. A Teoria Queer é um campo de estudos que surge a partir da terceira onda feminista, e que abrange estudos sobre gêneros não heteronormativos (gays, lésbicas, transexuais, transgêneros, etc.), questionando as construções culturais de discursos sobre sexo e gênero, e seus reflexos na sociedade e na política.

Tanto Butler (1998BUTLER, Judith. From: Bodies That Matter: On the Discursive Limits of ‘Sex’. In: GOODMAN, Lizbeth; DE GAY, Jane (Ed.). The Routledge Reader in Gender and Performance. New York: Routledge, 1998. P. 282-287.; 2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.) quanto Preciado (2002PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contra-Sexual. Madri: Editorial Opera Prima, 2002. ) concordam na existência da naturalização de códigos socioculturais como fatores biológicos, nos quais tanto gênero quanto sexo não são fatores dados a priori, mas sim a posteriori, com objetivos de coerção política.

Assim, os gêneros ou refletem as operações de reinscrição e recitação (práticas de repetição e naturalização) de códigos sociais (Preciado, 2002PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contra-Sexual. Madri: Editorial Opera Prima, 2002. , p. 23), ou subvertem estes códigos, através de dissonâncias entre a fisicalidade dos corpos e os atos de gênero.

A voz também é uma produção corporal e uma produção de corporeidade. A partir das discussões de Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.) e Preciado (2002PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contra-Sexual. Madri: Editorial Opera Prima, 2002. ) sobre sexo e gênero, podemos pensar que estas práticas de naturalização de atos de gênero estão inscritas também na vocalidade atrelada aos diferentes sexos. E, do mesmo modo, que práticas subversivas de gênero, que apresentam dissonâncias em suas corporeidades significantes, compreendem também a produção vocal.

Para tentar me aprofundar nessa questão, refletirei nos próximos itens deste texto sobre a fisiologia da produção vocal e suas relações com sexo e gênero.

Fisiologia da Produção Vocal

Em Voz: o livro do especialista vol.1 (2008), Mara Behlau convida fonoaudiólogos e otorrinolaringologistas brasileiros de destaque em suas áreas de atuação para colaborar na escrita do livro, sob sua organização. Behlau é pesquisadora, fonoaudióloga e fundadora do Curso de Especialização em Voz do Centro de Estudos da Voz (CECEV), em São Paulo.

No capítulo Anatomia da laringe e fisiologia da produção vocal, Mara Behlau, Renata Azevedo e Glaucya Madazio sintetizam algumas das principais teorias11 11 Não há uma teoria universalmente aceita sobre a produção vocal, e que dê conta de todas as explicações necessárias para a diversidade de produções vocais, tanto tidas como normais quanto como patológicas (disfonias). da produção da voz. Segundo as autoras, a maior parte das teorias da produção vocal foi desenvolvida no decorrer do século XX. Há ainda outras além destas, citadas por elas, mas explicarei brevemente estas que elas apresentam como principais teorias da produção vocal.

A Teoria Mioelástica-aerodinâmica, estabelecida pelo médico holandês Jamwillem Van den Berg (1920-1985), que, segundo as autoras, é a mais aceita mundialmente (Behlau; Azevedo; Madazio, 2008BEHLAU, Mara; AZEVEDO, Renata; PONTES, Paulo. Conceito de Voz Normal e Classificação das Disfonias. In: BEHLAU, Mara (Org.). Voz: O Livro do Especialista . v. 01 e 02. Rio de Janeiro: Revinter , 2008. P. 53-84., p. 37), traz como pressuposto que o som é produzido pela elasticidade dos músculos das pregas vocais e pela pressão de ar subglótico. Já a Teoria Neurocronáxica, descrita pelo foniatra francês Raoul Husson (1901-1967), afirma que “os impulsos nervosos vibram as pregas vocais na mesma frequência do som” (Behlau; Azevedo; Madazio, 2008, p. 33). Por outro lado, a Teoria do Caos, mais recentemente aplicada à produção vocal, traz como conceito central a noção de que “a laringe é um sistema caótico, não-linear e altamente sensível” (Behlau; Azevedo; Madazio, 2008, p. 33), o que para as autoras “[...] parece oferecer explicações bastante interessantes e adequadas sobre as produções vocais alteradas e aperiódicas, normais ou disfônicas” (Behlau; Azevedo; Madazio, 2008, p. 37). Por sua vez, a Teoria Neurocronáxica12 12 O pesquisador e professor de voz do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, César Lignelli (2011), afirma que a Teoria Neurocronáxica “[...] é a única que aborda especificamente o estudo da produção de voz em altas intensidades, uma exigência para o trabalho do professor e do ator. As demais teorias citadas têm foco nas patologias vocais surgidas da produção coloquial e não profissional da voz e palavra” (Lignelli, 2011, p. 228-229). leva em conta o processo elétrico envolvido na produção vocal (impulsos nervosos enviados pelo córtex ao sistema nervoso), além do processo mecânico (movimentos musculares) que a Teoria Mioelástica-aerodinâmica postula. Ainda na perspectiva da Teoria Neurocronáxica, Behlau, Azevedo e Madazio (2008, p. 19) afirmam que “[...] o controle da função laríngea evoluiu filogeneticamente de um simples reflexo para uma rede complexa e interdependente, em diversos níveis do sistema nervoso”, e que “[...] a aquisição de produção vocal voluntária exigiu o desenvolvimento de uma série de vias que conectam a musculatura laríngea e as áreas cerebrais correspondentes”13 13 Lignelli (2011, p. 225-226) também discorre sobre a evolução filogenética do aparato vocal. Todavia, como pretendo fazer apenas uma breve abordagem sobre a produção da voz neste texto, não discorrerei sobre estes aspectos, ficando ambas as referências como sugestão de leituras para aprofundamento. . Aqui, a proposição da Teoria Neurocronáxica de que tanto a energia elétrica quanto a mecânica estão envolvidas na produção da voz é ratificada pelas autoras.

Segundo Mara Behlau (2008BEHLAU, Mara; AZEVEDO, Renata; PONTES, Paulo. Conceito de Voz Normal e Classificação das Disfonias. In: BEHLAU, Mara (Org.). Voz: O Livro do Especialista . v. 01 e 02. Rio de Janeiro: Revinter , 2008. P. 53-84.), François Le Huche e André Allali (2005) e Sílvia Pinho (2009PINHO, Silvia M. Rebelo. Fisiologia da fonação. In: FERNANDES, Fernanda Dreux Miranda; MENDES, Beatriz Castro Andrade; NAVAS, Ana Luiza Pereira Gomes Pinto (Org.). Tratado de Fonoaudiologia. 2. ed. São Paulo: Roca , 2009. P. 45-51.), a voz é geralmente14 14 Geralmente, não obrigatoriamente, porque esta é tida como a biomecânica que envolve menor esforço e maior controle na produção da voz. Todavia, há exceções, como o caso de artistas que produzem a voz durante a inspiração para a criação de determinadas vocalidades nas artes da cena e na música. produzida durante a expiração, com a passagem de ar pela glote (espaço localizado na região mediana da laringe, que abriga as pregas vocais) e com a vibração simultânea das duas pregas vocais. Os foniatras franceses François Le Huche e André Allali (2005) afirmam que, nas atividades vocais coloquiais, a inspiração é ativa (gera tensões musculares) e a expiração é passiva (gera relaxamento muscular). Já na voz projetada15 15 Contexto de produção vocal no qual o emissor procura agir sobre outras pessoas, como em palestras, apresentações de canto e teatro (Le Huche; Allali, 2005). , segundo xs autorxs, tanto inspiração quanto expiração são geralmente ativas para possibilitar a produção e o controle vocal. Le Huche e Allali (2005) explicam que o movimento respiratório envolve uma série de estruturas, sendo o diafragma e os músculos intercostais principalmente importantes no processo inspiratório, para ampliar a caixa torácica e permitir a expansão dos pulmões com o acúmulo de oxigênio. Xs autorxs seguem dizendo que esses músculos16 16 Em diversas técnicas vocais para o canto e para o teatro, e também em algumas pesquisas da fonoaudiologia, utilizam-se os termos apoio respiratório ou apoio vocal para fazer menção à força exercida pelos músculos da respiração no controle da pressão e da saída do ar. Há várias técnicas de apoio vocal (ou apoio respiratório): apoio abdominal, apoio costodiafragmático, apoio costodiafragmático-abdominal, apoio pélvico, etc. Muitas dessas técnicas de respiração advêm do canto e da fonoaudiologia, mas a respiração e a força que partem do centro de gravidade do corpo também são encontradas em práticas das artes marciais, da educação somática e do teatro Cf.: Finardi (2014). , juntamente com a musculatura abdominal e pélvica, são imprescindíveis também para o controle da expiração para a produção vocal projetada, embora na fonação coloquial eles fiquem relaxados na expiração e tenham um menor acionamento.

Mara Behlau e o otorrinolaringologista Paulo Pontes (2009BEHLAU, Mara; PONTES, Paulo. Higiene Vocal: cuidando da voz. 5. ed. Rio de Janeiro: Revinter , 2009.) explicam que as pregas vocais surgiram em nossa espécie com a função principal de proteger os pulmões. Elas são duas membranas constituídas por músculos e mucosa, horizontalmente acomodadas na glote, e que ficam relaxadas (sem tensão) e abertas para a passagem do ar inspirado ou expirado sem fonação (Behlau; Pontes, 2009). De acordo com Behlau e Pontes (2009), as pregas vocais selam a passagem de ar no caso de substâncias tóxicas presentes no ar, e tentam expelir alimentos e/ou outras substâncias que por ventura possam ter passado pelo canal da laringe através da tosse. Todavia, xs autorxs seguem explicando que na produção da voz, as pregas se tensionam para diminuir o fluxo de ar e gerar a vibração original da voz, conhecida como buzz laríngeo (Behlau; Pontes, 2009, p. 01). Xs autorxs explicam que esta protovoz possui intensidade débil, necessitando de amplificação e articulação posteriores.

Baseada nas pesquisas de Sílvia Pinho (1998PINHO, Silvia M. Rebelo. Fundamentos em Fonoaudiologia. São Paulo: Ed. Guanabara, 1998.), Willard Zemlin (2000ZEMLIN, Willard. Princípios de Anatomia e Fisiologia em Fonoaudiologia. Tradução Terezinha Oppido. Porto Alegre: Artmed , 2000.), e Behlau, Azevedo e Madazio (2008BEHLAU, Mara; AZEVEDO, Renata; PONTES, Paulo. Conceito de Voz Normal e Classificação das Disfonias. In: BEHLAU, Mara (Org.). Voz: O Livro do Especialista . v. 01 e 02. Rio de Janeiro: Revinter , 2008. P. 53-84.), a pesquisadora e professora de voz do curso de Bacharelado em Teatro da Universidade Federal de Santa Catarina, Janaína Martins (2008MARTINS, Janaína Träsel. Os Princípios da Ressonância Vocal na Ludicidade dos Jogos de Corpo-Voz para a Formação do Ator. 2008. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) ‒ Universidade da Bahia, Salvador, 2008., p. 51), afirma que

[...] a espessura e a extensão das pregas vocais determinam a quantidade de massa muscular em vibração, o que determina o seu movimento oscilatório e consequentemente os tons que serão gerados. O número de ciclos vibratórios produzidos pelas pregas vocais em um dado segundo é o que gerará a frequência fundamental.

Behlau e Pontes (2009BEHLAU, Mara; PONTES, Paulo. Higiene Vocal: cuidando da voz. 5. ed. Rio de Janeiro: Revinter , 2009.) explicam que a frequência fundamental é medida em hertz (Hz), e diz respeito à quantidade de vibrações por segundo das pregas vocais. Porém, nenhum som é puro. O pesquisador e músico brasileiro José Miguel Wisnik (2011WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.) afirma que todo som possui uma frequência fundamental e seus harmônicos. Wisnik (2011) diz que os harmônicos são frequências mais agudas que a fundamental, e possuem uma relação matemática com a mesma, sendo seus múltiplos. Os harmônicos são os formadores timbrísticos do som (Wisnik, 2011) e, consequentemente, da voz. Quanto mais alongadas, estreitas e/ou vibrando rapidamente estiverem as pregas vocais, mais aguda será a frequência fundamental e, quanto mais encurtadas, espessas e/ou vibrando lentamente estiverem as pregas vocais, mais grave será a frequência fundamental (Behlau; Azevedo; Madazio, 2008).

Após produzir o som vocal original precisamos de sua consequente amplificação. A amplificação acontece nos ressonadores, que constam de espaços vazios do corpo, nos quais o som se propaga (Behlau; Pontes, 2009BEHLAU, Mara; PONTES, Paulo. Higiene Vocal: cuidando da voz. 5. ed. Rio de Janeiro: Revinter , 2009.). Utilizando pesquisas das fonoaudiólogas Mara Behlau e Sílvia Pinho, Martins (2008MARTINS, Janaína Träsel. Os Princípios da Ressonância Vocal na Ludicidade dos Jogos de Corpo-Voz para a Formação do Ator. 2008. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) ‒ Universidade da Bahia, Salvador, 2008., p. 53) explica o processo de ressonância da voz:

No fluxo do som por entre as cavidades do corpo, determinadas frequências vibratórias serão absorvidas de acordo com o tamanho, o material e a espessura destas. Por exemplo, as cavidades do corpo situadas acima das pregas vocais, tais quais: a laringe, a faringe, a cavidade oral, a cavidade nasal e os seios paranasais, são regiões supraglóticas simpáticas às frequências vibratórias de tom mais agudo, devido ao seu tamanho menor, onde cabem ondas de menor comprimento, ou seja, as frequências mais agudas. Já as cavidades situadas abaixo das pregas vocais, tais como traqueia e pulmões, são as regiões subglóticas, que, por possuírem um tamanho maior, ressoarão as ondas sonoras de maior comprimento, ou seja, as frequências vibratórias mais graves.

Martins (2008MARTINS, Janaína Träsel. Os Princípios da Ressonância Vocal na Ludicidade dos Jogos de Corpo-Voz para a Formação do Ator. 2008. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) ‒ Universidade da Bahia, Salvador, 2008.) explica ainda que os principais ressonadores são as cavidades orofaciais (cavidade oral, cavidade nasal, seios paranasais), a laringe, a faringe, a traqueia e toda a árvore pulmonar.

Behlau e Pontes (2009BEHLAU, Mara; PONTES, Paulo. Higiene Vocal: cuidando da voz. 5. ed. Rio de Janeiro: Revinter , 2009.) esclarecem que, após ser gerada e amplificada (mas em um movimento quase concomitante), a voz é modulada pelos articuladores da fala17 17 Os livros de fisiologia consultados, indicados na nota de rodapé anterior, relacionam especificamente os articuladores à fala, ou seja, à linguagem verbal oral. Destaco esta questão, pois acredito ser um relevante aspecto da visão da voz atrelada apenas à produção de linguagem na própria ciência, visto que qualquer onomatopeia ou melisma, por exemplo, necessita de uma articulação específica, mesmo não se configurando como palavra. . São os articuladores da fala também, segundo xs autorxs, os produtores da segunda fonte sonora da voz, a fonte friccional, que consta de sons gerados pela fricção do ar nos articuladores. A primeira fonte sonora da voz é a fonte glótica, que é a voz em si, o som original gerado pela vibração das pregas vocais (Behlau; Pontes, 2009).

Após essa breve contextualização sobre a fisiologia da produção vocal, surgem-nos as seguintes perguntas: de onde vêm então as diferenças sonoras das vozes humanas? E estas diferenças seriam únicas para cada pessoa? Estariam estas vocalidades relacionadas ao sexo dx emissorx?

A Unicidade da Voz e a Desestabilização de Gênero

Meu intuito neste item é problematizar discursos científicos e artísticos sobre a produção vocal, que fixam os espaços de produção da vocalidade a partir da diferença sexual. Abordo esta questão por considerar que estes discursos trazem determinadas visões sobre o corpo e sobre a produção da voz, visões estas que não estão isentas de ideologia. Como Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.) questiona a própria visão sobre o corpo biológico (sexo) para refletir sobre a construção cultural de gênero, problematizo estes discursos, amplamente reproduzidos nas áreas dos estudos da voz no Brasil, justamente por suas influências no treinamento e criação vocal de atuantes no teatro.

A filósofa feminista italiana Adriana Cavarero, em Vozes Plurais: filosofia da expressão vocal (2011CAVARERO, Adriana. Vozes Plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução Flávio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.), critica a desvocalização das metafísicas platônica e cartesiana, pautadas no logos (razão) e no cogito (pensamento), ou seja, em uma supremacia do pensamento escrito e a generalização e universalização do ser humano na metafísica, criando uma homogeneização do ser.

A filósofa relaciona a unicidade vocal à singularidade do ser, à “[...] particularidade de uma existência encarnada, que se faz ouvir na voz” (Cavarero, 2011CAVARERO, Adriana. Vozes Plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução Flávio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011., p. 230). Ou seja, para Cavarero (2011), cada ser teria uma voz única, reveladora de sua singularidade existencial.

Cavarero (2011CAVARERO, Adriana. Vozes Plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução Flávio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011., p. 205) afirma ainda “[...] que cada ser humano tem na unicidade da voz uma autorrevelação sonora que transpõe o registro linguístico da significação”.

A filósofa baseia seu argumento na relacionalidade da voz, e na compreensão de logos como ligação ou religação, do grego legein. Para Cavarero, sendo a voz relacional, por ligar os corpos em comunicação, ela revelaria a singularidade de cada sujeito, formada a partir de sua história de relações com outros sujeitos.

Assim, a singularidade da voz trazida por Cavarero (2011CAVARERO, Adriana. Vozes Plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução Flávio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.) pode ser compreendida como reflexo das relações entre o ser e o mundo, evidenciando suas potencialidades de presença, seus desejos de vocalização e seus estados de ser, e não a sua imutabilidade.

É fato que cada pessoa apresenta determinadas características vocais em suas emissões, características que muitas vezes nos permitem reconhecê-la sem vê-la, apenas ouvindo-a. Estas características formam a qualidade vocal (ou vocalidade) de uma emissão.

Behlau e Ziemer (1988BEHLAU, Mara; ZIEMER, Roberto. Psicodinâmica vocal. In: FERREIRA, Léslie Piccolotto (Org.). Trabalhando a Voz: vários enfoques em fonoaudiologia. São Paulo: Summus, 1988. P. 71-88., p. 74) explicam que

Qualidade vocal é o termo atualmente empregado para designar o conjunto de características que identificam uma voz humana. Ela se relaciona à composição dos harmônicos da onda sonora, à impressão total criada por uma voz. Era anteriormente chamada de timbre, mas hoje este vocábulo está tendo seu uso limitado apenas aos instrumentos musicais.

Vale ressaltar uma diferenciação entre timbre e qualidade vocal (ou vocalidade). De acordo com as fundamentações do item anterior, o timbre pode ser compreendido como o foco de ressonância da voz, visto que este é o aspecto estético vocal sobre o qual a sua modulação atua mais notadamente. Já a qualidade vocal, segundo Behlau e Ziemer (1988BEHLAU, Mara; ZIEMER, Roberto. Psicodinâmica vocal. In: FERREIRA, Léslie Piccolotto (Org.). Trabalhando a Voz: vários enfoques em fonoaudiologia. São Paulo: Summus, 1988. P. 71-88.), englobaria uma série de características passíveis de leitura. O timbre, a altura (ou frequência), a duração e a intensidade (volume) são os parâmetros básicos18 18 Há muitas divergências na definição dos parâmetros de produção da voz. Lignelli (2011; 2014) atribui tanto ao som quanto à voz os mesmos parâmetros sonoros: silêncio, ruído, frequência, timbre, intensidade, ritmo, reverberação, contorno e direcionalidade. A reverberação diz respeito à propagação e ressonância do som no ambiente; o contorno à curva melódica, que na voz costuma-se chamar de entonação; e a direcionalidade refere-se ao ponto de emissão do som, ponto no qual se localiza a fonte sonora, e seu percurso no espaço. Já Gayotto (2009) classifica os elementos formantes da voz em recursos, primários (respiração, intensidade, frequência, ressonância e articulação) e secundários (projeção, entonação, pausas, velocidade, fluência). Outrxs autorxs também farão uma distinção entre parâmetros sonoros e elementos prosódicos (ou expressivos). do som (todo som tem estes elementos em alguma modulação) e, por consequência, da voz.

Porém, aqui me interessa abordar não apenas os parâmetros da materialidade sonora voz, mas também outros elementos envolvidos na produção da vocalidade ou qualidade vocal citados por Behlau e Ziemer (1988BEHLAU, Mara; ZIEMER, Roberto. Psicodinâmica vocal. In: FERREIRA, Léslie Piccolotto (Org.). Trabalhando a Voz: vários enfoques em fonoaudiologia. São Paulo: Summus, 1988. P. 71-88.), que julgo importantes para a problematização do trabalho vocal em cena na perspectiva das Teorias de Gênero. Farei uma rápida explicação destes elementos da vocalidade para, em seguida, analisá-los em suas relações com o sexo biológico dxs emissorxs.

Comecemos com o tom da voz. Ele é um dos primeiros elementos que se relaciona com o sexo dx atuante. A altura vocal, ou altura tonal, diz respeito à frequência de vibração das pregas vocais, que gerará a frequência fundamental da emissão. Ela pode ser mais grave, média ou aguda. Altura e frequência são sinônimos. Já nota musical diz respeito a uma determinada frequência, selecionada como musical dentro de um contexto específico (uma nota musical utilizada na música árabe pode não ser considerada uma nota musical na música brasileira, devido aos diferentes contextos de sistematização e produção musical), e tom pode ser sinônimo de nota, ou significar uma diferença de alturas entre notas ou ainda uma escala dada a partir de determinada nota (o tom da música).

Behlau e Pontes (2009BEHLAU, Mara; PONTES, Paulo. Higiene Vocal: cuidando da voz. 5. ed. Rio de Janeiro: Revinter , 2009.) afirmam que a média da frequência fundamental da voz falada (coloquialmente) do homem brasileiro é de 113 hz (113 oscilações/vibrações das pregas vocais por segundo), enquanto da voz da mulher é de 205 hz. Todavia, essa média é resultado de uma estatística, não representando a realidade de todxs xs habitantes deste país continental em suas ontogêneses (que envolvem diversas variantes: clima, geografia, etnias, hábitos, etc.). Basta ouvirmos umx gaúchx e umx pernambucanx para percebermos as diferenças nas frequências fundamentais de suas vozes, ou compararmos diferentes pessoas de um mesmo lugar. Ou seja, devido à imensa influência de todas essas variáveis culturais, algumas mulheres terão a voz mais grave do que alguns homens, e vice-versa.

Do mesmo modo, a frequência (assim como todos os parâmetros do som e elementos relacionados à qualidade vocal) pode ser alterada propositalmente na produção vocal (coloquial ou profissional). Nas artes da cena e na música, essa modulação é essencial para a ampliação das possibilidades de criação. No cotidiano, ela acontece em menor grau, nas situações de comunicação (modulação prosódicas, timbrísticas, etc.), e em maior grau nas situações de terapia vocal.

Por exemplo: quando a muda vocal19 19 A muda vocal na puberdade ocasiona o abaixamento da laringe e o crescimento das pregas vocais. Pelo maior aumento hormonal (de testosterona) nos meninos, a tendência é de que as pregas vocais masculinas aumentem em até 01 cm, enquanto as pregas vocais das meninas aumentam em média 04 mm no máximo. Isso faz com que a frequência fundamental da voz masculina diminua geralmente em uma oitava, enquanto a voz feminina diminui apenas de 02 a 04 semitons da voz infantil (Behlau; Azevedo; Pontes, 2008, p. 60). não acontece por completo ou apresenta um atraso, alguns tipos de tratamentos podem ser sugeridos por fonoaudiólogxs para que a mudança da voz se complete. Regina Maria Freire e Cláudia Chiarini Bistão (1988FREIRE, Regina Maria; BISTÃO, Cláudia Chiarini. A disfonia funcional numa abordagem interacionista - descrição de um caso. In: FERREIRA, Léslie Piccolotto (Org.). Trabalhando a Voz: vários enfoques em fonoaudiologia . São Paulo: Summus , 1988. P. 93-98.) descrevem um tratamento utilizado com um paciente de 56 anos. Para corrigir a voz infantilizada, foram demonstradas ao paciente diversas possibilidades de modulação tonal. Assim, o paciente pode realizar exercícios de controle de emissão (com foco em frequências mais graves). Após 14 sessões o paciente encontrou a sua nova voz, uma voz que, para ele, soava normal, ou seja, adequada aos padrões de escuta de seu grupo social e seu consequente desejo de emissão para melhor aceitação neste grupo.

Behlau, Azevedo e Pontes (2008BEHLAU, Mara; AZEVEDO, Renata; PONTES, Paulo. Conceito de Voz Normal e Classificação das Disfonias. In: BEHLAU, Mara (Org.). Voz: O Livro do Especialista . v. 01 e 02. Rio de Janeiro: Revinter , 2008. P. 53-84., p. 64) afirmam que “[...] o conceito de voz normal e voz alterada veio se modificando ao longo do tempo, sendo amplamente influenciado pelo meio a que se pertence e pela cultura em que se vive”. A voz alterada seria uma voz disfônica, com distúrbio de comunicação oral. A alteração pode ser dada por uma série de fatores, desde psicológicos a anatomofuncionais. Xs autorxs seguem destacando que “O critério que separa as vozes em normais e não normais é determinado pelos ouvintes, sendo que as desordens vocais são culturalmente baseadas e socialmente determinadas” (Behlau; Azevedo; Pontes, 2008, p. 65).

Anne Karpf (2008KARPF, Anne. La Voix: un univers invisible. Paris: Éditions Autrement, 2008.) também faz uma análise sociológica da produção vocal e da relação da voz com a diferença sexual. Ela explica que nem todas as diferenças entre vozes femininas e masculinas podem ser explicadas pelas alterações da puberdade: “[...] cada cultura estabelece para os dois sexos normas e convenções contrastantes que vão além das diferenças biológicas”20 20 “Chaque culture établit pour les deux sexes des normes et des conventions constrastées qui vont bien au-delà des différences biologiques” (Tradução minha). (Karpf, 2008, p. 261).

A partir de tais perspectivas, podemos considerar que a vocalidade, na análise da frequência fundamental da emissão, é formada por relações contínuas entre a pessoa e o meio.

Também no território das frequências encontra-se a extensão vocal. Ela “[...] refere-se ao limite de sons emitidos por uma voz, do grave ao agudo, mesmo além dos limites naturais de sua tessitura” (Marsola; Baê, 2000MARSOLA, Mônica; BAÊ, Tutti. Canto: uma expressão. São Paulo: Ed. Irmãos Vitalle, 2000., p. 33). Behlau e Ziemer (1988BEHLAU, Mara; ZIEMER, Roberto. Psicodinâmica vocal. In: FERREIRA, Léslie Piccolotto (Org.). Trabalhando a Voz: vários enfoques em fonoaudiologia. São Paulo: Summus, 1988. P. 71-88., p. 79) complementam a definição de extensão vocal como o “[...] número de notas que um indivíduo pode emitir, da mais grave a mais aguda”.

Todavia, o termo nota faz menção direta às notas musicais, que por sua vez são frequências culturalmente escolhidas, de acordo com o modo musical e a escala em questão (modo tonal, modal ou serial, escala cromática ou diatônica, etc.). Então, será que utilizar esta nomenclatura (nota) para a produção vocal cênica não limita o aprendizado da escuta para outras possibilidades de frequências/alturas (que podem ser consideradas desafinadas, se não pertencem ao paradigma em questão)?

Outra questão importante sobre a extensão vocal é o trabalho sobre a tessitura vocal do indivíduo, que definiria o alcance de frequências com controle e estabilidade.

As musicistas Mônica Barsola e Tutti Baê afirmam no livro Canto: uma expressão (2000) que a tessitura vocal encontra-se dentro da extensão vocal. Elas apresentam no livro os seis naipes (tipos) principais de vozes femininas e masculinas, que exigem tessituras vocais específicas. As vozes de mulheres são as mais agudas, divididas num glissando descendente21 21 Significa deslizando. Termo utilizado na música para indicar um movimento de escorregar continuamente entre frequências. O glissando descendente vai de uma frequência mais aguda para uma mais grave, e o ascendente de uma mais grave para uma mais aguda. como soprano (muito aguda), meio-soprano (médio-aguda) e contralto (médio-grave). Já as masculinas são classificadas como tenor (médio-aguda), barítono (médio-grave) e baixo (muito grave).

Esta é uma questão para se problematizar no treinamento de atuantes, pois a classificação vocal por gênero pode limitar tanto a noção de treinamento vocal quanto de escuta (o que eu pretendo ouvir, do outro e de mim mesmx) para x artista da cena. Isso não significa ser contrária ao treinamento do canto popular ou lírico no trabalho com e sobre22 22 O treinamento vocal no canto também tem como objetivo expandir a tessitura vocal, ou seja, o alcance de notas mais agudas e mais graves. a tessitura, mas pontuar apenas que este é um treinamento hegemônico que perpetua um padrão de afinação, ou seja, de escuta e reprodução de sons a partir do binarismo homem-mulher.

Estar afinadx é conseguir reproduzir uma dada proposta sonora. Segundo Murray Schafer (2001SCHAFER, Murray. A Afinação do Mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Tradução Marisa T. Fonterraba. São Paulo: Ed. UNESP, 2001.), a afinação diz mais respeito à escuta do que à reprodução de escalas convencionais. Então, uma escuta expandida, intercultural, investigativa, poderia possibilitar uma expansão do repertório vocal para x artista da cena?

Na medida em que se amplia o repertório de escuta dx atuante pode haver uma expansão das possibilidades de relação entre voz e gênero na produção vocal em cena, visto que a voz também se forma nas fricções entre o ser e o mundo (e na escuta do mundo). Um exemplo pontual sobre essa questão é o treinamento para uma voz estendida23 23 O termo é utilizado para designar usos não convencionais da voz na música ocidental, como um contraponto ao bel canto. A inclusão do ruído na música a partir do início do século XX, a exploração de novas sonoridades e sistemas musicais (como a música dodecafônica em contraponto à música tonal), a presença da voz falada, sussurrada, gritada, da glossolalia (espécie de grammelot – o termo provém das áreas da religião e da saúde), da desconstrução semântica da linguagem, de qualidades vocais não convencionais, etc., estão neste território (Valente, 1999). , ou voz de 8 oitavas, de Alfred Wolfson e Roy Hart24 24 Segundo Laura Backes (2010), o alemão judeu Alfred Wolfson (1896-1962), após presenciar os horrores da Primeira Guerra Mundial, na qual serviu como maqueiro, encontra na voz as possibilidades de se livrar de seus traumas emocionais. A autora explica que, chocado com as vozes agonizantes dos flagelos da guerra e inspirado pela psicanálise, principalmente por Carl Jung, e não encontrando um professor de canto que pudesse auxiliá-lo a desbloquear-se emocionalmente através da produção de sons vocais extremos, Wolfson inicia seu próprio treinamento, procurando produzir alturas extremas, tanto no grave quanto no agudo, e qualidades diferentes da sua voz (que em muito lhe lembravam dos sons quase inumanos que ouvira no combate). Backes conta que Wolfson passa a trabalhar como professor de canto ainda na Alemanha, e depois na Inglaterra, onde se refugia durante a Segunda Guerra Mundial (na qual também serviu, mas no exército inglês, como combatente dos nazistas). A autora segue dizendo que ele estimulava seus alunos a alcançarem tanto frequências agudas quanto graves, desterritorializando a produção vocal tradicional do canto atrelada ao sexo da pessoa. Backes explica que Roy Hart (1926-1975), jovem ator sul-africano residente na Inglaterra, passa a fazer aulas com Wolfson, e consegue desenvolver 8 oitavas em sua extensão vocal, basicamente passando por todos os principais naipes do canto. A autora segue dizendo que Hart se envolve com música contemporânea e teatro, aprofundando suas pesquisas vocais no Roy Hart Theatre, companhia de teatro que fundou em 1967. A autora explica que, após sua prematura morte, o ator Enrique Pardo e a atriz Linda Wise, integrantes da companhia, fundaram o grupo Panthéâtre, ainda atuante e com sede na França. Backes informa que, juntamente com outros colaboradores, eles também mantêm o Centre Artistique International Roy Hart, na França (Backes, 2010). . Com Wolfson e Hart, o treinamento vocal levava em conta os aspectos pessoais dx artista (contexto orgânico-funcional-histórico-cultural-emocional), mas sem enquadrá-lx em um naipe a priori, ou seja, sem trabalhar a partir da diferença sexual.

Diferentes culturas apresentam diferentes qualidades vocais, tanto pelo aspecto fonético da língua quanto pelas características ontogenéticas, de musicalidade e de prosódia. Os tipos vocais são resultados de um tipo específico de escuta, e a padronização dos tipos vocais também é resultado de uma padronização da própria escuta, e não uma regra para o cotidiano ou para a cena. As vozes são reflexos das relações entre corpos e treinamentos diários, direcionados (na arte) ou espontâneos (no cotidiano).

Lignelli (2011LIGNELLI, César. Sons e Cenas: apreensão e produção de sentido a partir da dimensão acústica. 2011. Tese (Doutorado em Educação) ‒ Universidade de Brasília, Brasília, 2011., p. 233) afirma que, sem levar em conta as fontes sonoras eletrônicas, a voz humana é a mais versátil de todas as fontes sonoras. Mas, mesmo sendo a vocalidade tão flexível e passível de modulação consciente por parte da pessoa emissora em arte, seria ela ainda espontânea e reveladora de camadas psicossociais únicas dx emissorx no cotidiano? O que forma essa unicidade? Como ela é forjada?

Behlau e Ziemer (1988BEHLAU, Mara; ZIEMER, Roberto. Psicodinâmica vocal. In: FERREIRA, Léslie Piccolotto (Org.). Trabalhando a Voz: vários enfoques em fonoaudiologia. São Paulo: Summus, 1988. P. 71-88., p. 71) afirmam que:

A voz é uma das extensões mais fortes de nossa personalidade e se aguçarmos nossos sentidos reconheceremos que esta extensão é mais profunda em sua dimensão não verbal (altura, intensidade, qualidade vocal, etc.) do que verbal (estrutura linguística).

Porém, embora revele características anatomofuncionais, a vocalidade também revela características comportamentais e culturais dx emissorx. Xs autorxs seguem complementando essa informação ao dizerem que “[...] em todas as situações de emissão podemos ter vários níveis de análise, de leitura vocal: leitura dos parâmetros físicos, psicológicos, sociais, culturais e educacionais de um determinado falante” (Behlau; Ziemer, 1988BEHLAU, Mara; ZIEMER, Roberto. Psicodinâmica vocal. In: FERREIRA, Léslie Piccolotto (Org.). Trabalhando a Voz: vários enfoques em fonoaudiologia. São Paulo: Summus, 1988. P. 71-88., p. 71).

Essa dimensão de análise utilizada pelxs autorxs é chamada de psicodinâmica vocal, e leva em conta três dimensões: a biológica, a psicológica e a socioeducacional.

A dimensão biológica diz respeito à corporeidade, são “[...] características anatômicas e fisiológicas do indivíduo, como sexo, idade, saúde geral, estrutura física global e específica dos órgãos que compõem o aparelho fonador” (Behlau; Ziemer, 1988BEHLAU, Mara; ZIEMER, Roberto. Psicodinâmica vocal. In: FERREIRA, Léslie Piccolotto (Org.). Trabalhando a Voz: vários enfoques em fonoaudiologia. São Paulo: Summus, 1988. P. 71-88., p. 74). Todavia, tais características biológicas citadas pelxs autorxs podem ser decorrentes de práticas culturais e sociais, como utilização de determinadas roupas, posturas, movimentos, intervenções cirúrgicas sobre o corpo, etc., o que implica em um entendimento dos processos contínuos das relações entre ser e meio na formação (ad infinitum) do ser. A dimensão psicológica reflete as emoções e dados de personalidade dx emissorx. Porém, diferentes pessoas expressam emoções de diferentes modos. E, partindo desse pressuposto, chegamos também à camada socioeducacional da voz, na qual aspectos dos grupos específicos de convívio também constroem a vocalidade, principalmente em seus elementos prosódicos (articulação, entonação, acento, etc.). Os sotaques também são um exemplo dessa camada.

Assim, a vocalidade revela várias dimensões de uma pessoa em construção constante na interação entre seu corpo vocal e o mundo. Podemos considerar que, nesse contexto, operam práticas de recitação e reinscrição em suas (re)territorializações de vozes e gêneros.

Na preparação vocal para a cena há diversas abordagens que revelam diferentes ideologias e ideais de vocalidade. Davini (2007DAVINI, Silvia Adriana. Cartografías de la Voz em el Teatro Contemporáneo: El caso de Buenos Aires a fines Del siglo XX. Buenos Aires/Bernal: Universidade Nacional de Quilmes, 2007., p. 51) afirma que, desde a Revolução Industrial, porém mais efetivamente após o início do século XX, o paradigma científico das ciências naturais se dissemina como único meio genuíno de produção de conhecimento. Essa postura afeta o campo das artes, e gera uma demanda por rigor científico, que abala a legitimidade de práticas mais holísticas e experimentais.

A aproximação entre fisiologia, psicologia e sociologia (como na própria psicodinâmica vocal formulada por Behlau), aliada à filosofia contemporânea, como é o caso das Teorias de Gênero, redimensiona a interpretação da produção vocal e os discursos de preparação vocal para a cena.

Algumas Ressonâncias

O corpo vocal é material que antecede e ultrapassa tanto a palavra quanto o sujeito socialmente construído, podendo transformá-lxs, sendo também performativo no âmbito da recepção e dos desdobramentos sociais (principalmente ideológicos) que a recepção em arte pode promover.

A pesquisadora e professora de interpretação e voz da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Meran Vargens (2013VARGENS, Meran. A Voz Articulada pelo Coração ou a Expressão Vocal para o Alcance da Verdade Cênica. São Paulo; Salvador: Perspectiva; PPGAC/UFBA, 2013., p. 69), afirma que:

Voz é resultado. Isto significa que a expressão vocal do indivíduo está diretamente ligada a circunstâncias como: com quem fala, a educação que teve, a classe social e cultural a que pertence, a profissão que escolheu e exerce, quais foram as vozes que o influenciaram na infância e através das quais aprendeu a falar, além do local onde está, sua constituição física, emocional, psicológica, universo imaginário, entre outros. E se voz é resultado na vida, na construção da personagem assim também será. Portanto este princípio torna-se uma chave para o exercício vocal do ator e a exploração de sua expressividade.

Voz é resultado de criação em cena, e de relações contínuas no cotidiano, ou seja, nossas constantes recriações nas interações com o meio. A voz revela a unicidade de um corpo vocal singular, mas em constante transformação: um corpo que supera o determinismo biológico que o engendra a partir da diferença sexual.

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  • MARTINS, Janaína Träsel. Os Princípios da Ressonância Vocal na Ludicidade dos Jogos de Corpo-Voz para a Formação do Ator. 2008. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) ‒ Universidade da Bahia, Salvador, 2008.
  • PINHO, Silvia M. Rebelo. Fundamentos em Fonoaudiologia. São Paulo: Ed. Guanabara, 1998.
  • PINHO, Silvia M. Rebelo. Fisiologia da fonação. In: FERNANDES, Fernanda Dreux Miranda; MENDES, Beatriz Castro Andrade; NAVAS, Ana Luiza Pereira Gomes Pinto (Org.). Tratado de Fonoaudiologia. 2. ed. São Paulo: Roca , 2009. P. 45-51.
  • PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contra-Sexual. Madri: Editorial Opera Prima, 2002.
  • SCHAFER, Murray. A Afinação do Mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Tradução Marisa T. Fonterraba. São Paulo: Ed. UNESP, 2001.
  • STOLLER, Robert J. Sex and Gender. Oxford: Science House, 1968.
  • THORNHAM, Sue. Second Wave Feminism. In: GAMBLE, Sarah (Ed.). Feminism and Postfeminism . London; New York: Routledge , 2001. P. 29-42.
  • VALENTE, Heloisa de Araújo Duarte. Os Cantos da Voz: entre o ruído e o silêncio. São Paulo: Annablume, 1999.
  • VARGENS, Meran. A Voz Articulada pelo Coração ou a Expressão Vocal para o Alcance da Verdade Cênica. São Paulo; Salvador: Perspectiva; PPGAC/UFBA, 2013.
  • WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • ZEMLIN, Willard. Princípios de Anatomia e Fisiologia em Fonoaudiologia. Tradução Terezinha Oppido. Porto Alegre: Artmed , 2000.
  • 48
    Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Uma versão deste texto compõe a tese Possível cartografia para um corpo vocal queer em performance (Jacobs, 2015JACOBS, Daiane Dordete Steckert. Possível Cartografia para um Corpo Vocal Queer em Performance. 2015. Tese (Doutorado em Teatro) ‒ Programa de Pós-graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.).
  • 2
    Cf.: Gamble (2001GAMBLE, Sarah. Postfeminism. In: GAMBLE, Sarah (Ed.). Feminism and Postfeminism. London; New York: Routledge , 2001. P. 43-54.).
  • 3
    “[...] cultural construction of woman as Other [...]” (Tradução minha).
  • 4
    Sarah Gamble sugere o termo terceira onda no capítulo “Postfeminism”, do livro “Feminism and Postfeminism”, organizado por ela e publicado em 2001.
  • 5
    Uma obra de referência para a construção dos argumentos feministas sobre discriminação e diferença sexual é o livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, do filósofo alemão Friedrich Engels. Segundo o autor marxista, ainda na era primitiva do mundo ocidental a transição do sistema matriarcal e matrilinear para o sistema patriarcal e patrilinear se dá através da produção. Toda a família (mulher, filhos e escravos) passa a servir às ordens do homem, patriarca e detentor do rebanho de gado, que garante a alimentação do grupo. Engels afirma que, na passagem do casamento grupal ao sindiásmico e, por fim, ao monogâmico, a mulher perdeu todos os seus direitos na tribo, sendo designada apenas aos cuidados da casa e dos filhos. Ao homem passa a caber a preservação e passagem da herança aos outros filhos homens. A família patriarcal surge no mesmo momento histórico da definição da propriedade privada, movida por motivos econômicos (Engels, 1991ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.).
  • 6
    “[...] a performative is that discoursive practice that enacts or produces that which it names” (Tradução minha).
  • 7
    Beatriz Preciado recentemente publicou uma carta aberta solicitando a alteração de seu nome feminino (Beatriz Preciado) para o masculino (Paul Beatriz Preciado), como decorrência de sua mudança de gênero. Manteremos no texto o “x” na flexão de gênero como estratégia para não binarizar a condição dx filósofx.
  • 8
    “[...] deconstrucción sistemática de la naturalización de las prácticas sexuales y del sistema de gênero” (Tradução minha).
  • 9
    “El gênero no es simplesmente performativo (es decir, un efecto de las prácticas culturales lingüístico-discursivas) como habría querido Judith Butler. El gênero es ante todo prostético, es dicir, no se da sino en la materialidad de los cuerpos. Es puramente construído y al mismo tiempo enteramente orgánico. Escapa a las falsas dicotomías metafísicas entre el cuerpo y el alma, la forma y la materia. El género se parece al dido. Porque los dos pasan de la imitación. Su plasticidad carnal desestabiliza la distinción entre lo imitado y el imitador, entre la verdad y la representación de la verdad, entre la referencia y el referente, entre la naturaleza y el artifício, entre los órganos sexuales y las prácticas de sexo. El género podría resultar una tecnologia sofisticada que fabrica cuerpos sexuales” (Tradução minha).
  • 10
    “[...] historia de la producción-reproducción sexual, en la que ciertos códigos se naturalizam, otros quedan elípticos y otros son sistemáticamente eliminados o tachados” (Tradução minha).
  • 11
    Não há uma teoria universalmente aceita sobre a produção vocal, e que dê conta de todas as explicações necessárias para a diversidade de produções vocais, tanto tidas como normais quanto como patológicas (disfonias).
  • 12
    O pesquisador e professor de voz do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, César Lignelli (2011), afirma que a Teoria Neurocronáxica “[...] é a única que aborda especificamente o estudo da produção de voz em altas intensidades, uma exigência para o trabalho do professor e do ator. As demais teorias citadas têm foco nas patologias vocais surgidas da produção coloquial e não profissional da voz e palavra” (Lignelli, 2011LIGNELLI, César. Sons e Cenas: apreensão e produção de sentido a partir da dimensão acústica. 2011. Tese (Doutorado em Educação) ‒ Universidade de Brasília, Brasília, 2011., p. 228-229).
  • 13
    Lignelli (2011, p. 225-226) também discorre sobre a evolução filogenética do aparato vocal. Todavia, como pretendo fazer apenas uma breve abordagem sobre a produção da voz neste texto, não discorrerei sobre estes aspectos, ficando ambas as referências como sugestão de leituras para aprofundamento.
  • 14
    Geralmente, não obrigatoriamente, porque esta é tida como a biomecânica que envolve menor esforço e maior controle na produção da voz. Todavia, há exceções, como o caso de artistas que produzem a voz durante a inspiração para a criação de determinadas vocalidades nas artes da cena e na música.
  • 15
    Contexto de produção vocal no qual o emissor procura agir sobre outras pessoas, como em palestras, apresentações de canto e teatro (Le Huche; Allali, 2005LE HUCHE, François; ALLALI, André. A Voz: anatomia e fisiologia dos órgãos da voz e da fala. Tradução Sandra Loguercio. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.).
  • 16
    Em diversas técnicas vocais para o canto e para o teatro, e também em algumas pesquisas da fonoaudiologia, utilizam-se os termos apoio respiratório ou apoio vocal para fazer menção à força exercida pelos músculos da respiração no controle da pressão e da saída do ar. Há várias técnicas de apoio vocal (ou apoio respiratório): apoio abdominal, apoio costodiafragmático, apoio costodiafragmático-abdominal, apoio pélvico, etc. Muitas dessas técnicas de respiração advêm do canto e da fonoaudiologia, mas a respiração e a força que partem do centro de gravidade do corpo também são encontradas em práticas das artes marciais, da educação somática e do teatro Cf.: Finardi (2014FINARDI, Ângela Emília. O Centro de Energia de Base do Corpo na Preparação Vocal do Performer. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) ‒ Programa de Pós-graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.).
  • 17
    Os livros de fisiologia consultados, indicados na nota de rodapé anterior, relacionam especificamente os articuladores à fala, ou seja, à linguagem verbal oral. Destaco esta questão, pois acredito ser um relevante aspecto da visão da voz atrelada apenas à produção de linguagem na própria ciência, visto que qualquer onomatopeia ou melisma, por exemplo, necessita de uma articulação específica, mesmo não se configurando como palavra.
  • 18
    Há muitas divergências na definição dos parâmetros de produção da voz. Lignelli (2011LIGNELLI, César. Sons e Cenas: apreensão e produção de sentido a partir da dimensão acústica. 2011. Tese (Doutorado em Educação) ‒ Universidade de Brasília, Brasília, 2011.; 2014LIGNELLI, César. Sons e(m) Cena: parâmetros do som. Tomo I. Brasília: Dulcina, 2014.) atribui tanto ao som quanto à voz os mesmos parâmetros sonoros: silêncio, ruído, frequência, timbre, intensidade, ritmo, reverberação, contorno e direcionalidade. A reverberação diz respeito à propagação e ressonância do som no ambiente; o contorno à curva melódica, que na voz costuma-se chamar de entonação; e a direcionalidade refere-se ao ponto de emissão do som, ponto no qual se localiza a fonte sonora, e seu percurso no espaço. Já Gayotto (2009) classifica os elementos formantes da voz em recursos, primários (respiração, intensidade, frequência, ressonância e articulação) e secundários (projeção, entonação, pausas, velocidade, fluência). Outrxs autorxs também farão uma distinção entre parâmetros sonoros e elementos prosódicos (ou expressivos).
  • 19
    A muda vocal na puberdade ocasiona o abaixamento da laringe e o crescimento das pregas vocais. Pelo maior aumento hormonal (de testosterona) nos meninos, a tendência é de que as pregas vocais masculinas aumentem em até 01 cm, enquanto as pregas vocais das meninas aumentam em média 04 mm no máximo. Isso faz com que a frequência fundamental da voz masculina diminua geralmente em uma oitava, enquanto a voz feminina diminui apenas de 02 a 04 semitons da voz infantil (Behlau; Azevedo; Pontes, 2008BEHLAU, Mara; AZEVEDO, Renata; PONTES, Paulo. Conceito de Voz Normal e Classificação das Disfonias. In: BEHLAU, Mara (Org.). Voz: O Livro do Especialista . v. 01 e 02. Rio de Janeiro: Revinter , 2008. P. 53-84., p. 60).
  • 20
    “Chaque culture établit pour les deux sexes des normes et des conventions constrastées qui vont bien au-delà des différences biologiques” (Tradução minha).
  • 21
    Significa deslizando. Termo utilizado na música para indicar um movimento de escorregar continuamente entre frequências. O glissando descendente vai de uma frequência mais aguda para uma mais grave, e o ascendente de uma mais grave para uma mais aguda.
  • 22
    O treinamento vocal no canto também tem como objetivo expandir a tessitura vocal, ou seja, o alcance de notas mais agudas e mais graves.
  • 23
    O termo é utilizado para designar usos não convencionais da voz na música ocidental, como um contraponto ao bel canto. A inclusão do ruído na música a partir do início do século XX, a exploração de novas sonoridades e sistemas musicais (como a música dodecafônica em contraponto à música tonal), a presença da voz falada, sussurrada, gritada, da glossolalia (espécie de grammelot – o termo provém das áreas da religião e da saúde), da desconstrução semântica da linguagem, de qualidades vocais não convencionais, etc., estão neste território (Valente, 1999).
  • 24
    Segundo Laura Backes (2010), o alemão judeu Alfred Wolfson (1896-1962), após presenciar os horrores da Primeira Guerra Mundial, na qual serviu como maqueiro, encontra na voz as possibilidades de se livrar de seus traumas emocionais. A autora explica que, chocado com as vozes agonizantes dos flagelos da guerra e inspirado pela psicanálise, principalmente por Carl Jung, e não encontrando um professor de canto que pudesse auxiliá-lo a desbloquear-se emocionalmente através da produção de sons vocais extremos, Wolfson inicia seu próprio treinamento, procurando produzir alturas extremas, tanto no grave quanto no agudo, e qualidades diferentes da sua voz (que em muito lhe lembravam dos sons quase inumanos que ouvira no combate). Backes conta que Wolfson passa a trabalhar como professor de canto ainda na Alemanha, e depois na Inglaterra, onde se refugia durante a Segunda Guerra Mundial (na qual também serviu, mas no exército inglês, como combatente dos nazistas). A autora segue dizendo que ele estimulava seus alunos a alcançarem tanto frequências agudas quanto graves, desterritorializando a produção vocal tradicional do canto atrelada ao sexo da pessoa. Backes explica que Roy Hart (1926-1975), jovem ator sul-africano residente na Inglaterra, passa a fazer aulas com Wolfson, e consegue desenvolver 8 oitavas em sua extensão vocal, basicamente passando por todos os principais naipes do canto. A autora segue dizendo que Hart se envolve com música contemporânea e teatro, aprofundando suas pesquisas vocais no Roy Hart Theatre, companhia de teatro que fundou em 1967. A autora explica que, após sua prematura morte, o ator Enrique Pardo e a atriz Linda Wise, integrantes da companhia, fundaram o grupo Panthéâtre, ainda atuante e com sede na França. Backes informa que, juntamente com outros colaboradores, eles também mantêm o Centre Artistique International Roy Hart, na França (Backes, 2010).
  • 25
    A version of this text is part of the PhD dissertation entitled Possível cartografia para um corpo vocal queer em performance (Jacobs, 2015).
  • 26
    According to Gamble (2001).
  • 27
    Sarah Gamble suggests the term third wave in the chapter “Postfeminism”, from the book “Feminism and Postfeminism”, edited by her and published in 2001.
  • 28
    A reference work for the construction of feminist arguments on discrimination and sexual difference is the book The Origin of the Family, Private Property and the State, by the German philosopher Friedrich Engels. According to the Marxist author, still in the primitive era of the Western world the transition from the matriarchal and matrilineal system to the patriarchal and patrilineal system occurs through production. The whole family (woman, children and slaves) is now serving the orders of the man, patriarch and owner of the herd of cattle, who guarantees the feeding of the group. Engels argues that in the transition from polygamy and group marriage to the monogamous marriage, the woman lost all her rights in the tribe, being assigned only to the care of the house and the children. The preservation and passage of the inheritance to the other men’s sons now belong to the man. The patriarchal family emerges at the same historical moment of definition of private property, given by economic motives (Engels, 1991ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.).
  • 29
    Beatriz Preciado recently published an open letter requesting a change of his female name (Beatriz Preciado) for the male one (Paul Beatriz Preciado) as a consequence of his gender change. In the Portuguese version of this text, we kept the “x” in the gender bending as a strategy to not binarize the author condition. In the English version, this does not make sense into the language.
  • 30
    “[...] deconstrucción sistemática de la naturalización de las prácticas sexuales y del sistema de gênero”.
  • 31
    “El gênero no es simplesmente performativo (es decir, un efecto de las prácticas culturales lingüístico-discursivas) como habría querido Judith Butler. El gênero es ante todo prostético, es dicir, no se da sino en la materialidad de los cuerpos. Es puramente construído y al mismo tiempo enteramente orgánico. Escapa a las falsas dicotomías metafísicas entre el cuerpo y el alma, la forma y la materia. El género se parece al dido. Porque los dos pasan de la imitación. Su plasticidad carnal desestabiliza la distinción entre lo imitado y el imitador, entre la verdad y la representación de la verdad, entre la referencia y el referente, entre la naturaleza y el artifício, entre los órganos sexuales y las prácticas de sexo. El género podría resultar una tecnologia sofisticada que fabrica cuerpos sexuales”.
  • 32
    “[...] historia de la producción-reproducción sexual, en la que ciertos códigos se naturalizam, otros quedan elípticos y otros son sistemáticamente eliminados o tachados”.
  • 33
    There is not a universally accepted theory about vocal production, which could explain all the diversity of voices, both normal and pathological (dysphonias).
  • 34
    The researcher and voice teacher of the Department of Performing Arts at University of Brasília, César Lignelli (2011), states that the Neurochronaxic Theory “[...] is the one that specifically addresses the study of voice production in high intensities (volume), a requirement both for the teacher and actor work. The others theories cited focus on the vocal pathologies arising from the daily and non-professional vocal and word production” (Lignelli, 2011LIGNELLI, César. Sons e Cenas: apreensão e produção de sentido a partir da dimensão acústica. 2011. Tese (Doutorado em Educação) ‒ Universidade de Brasília, Brasília, 2011., p. 228-229).
  • 35
    Lignelli (2011) also discusses the phylogenetic evolution of the vocal apparatus. However, as I intend to make only a brief approach on the vocal production in this text, I will not dwell on these aspects, both references being suggested as readings for further studies.
  • 36
    Generally, not necessarily, because this is considered as the biomechanics that involves less effort and greater control in the voice production. However, there are exceptions, such as the case of artists who produce the voice during inspiration for the creation of certain vocalities in the performing arts and music.
  • 37
    Context of vocal production in which the emitter try to act on other people, such as in lectures, music and theater productions (Le Huche; Allali, 2005LE HUCHE, François; ALLALI, André. A Voz: anatomia e fisiologia dos órgãos da voz e da fala. Tradução Sandra Loguercio. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.).
  • 38
    In several vocal techniques for singing and acting, and also in some researches of voice therapy, the terms respiratory support or voice support are used to make reference to the force exerted by the muscles of the breath in the control of the pressure and the exit of the air. There are several voice support techniques (or respiratory support): abdominal support, costodiaphragmatic support, costodiaphragmatic-abdominal support, pelvic support, etc. Many of these breathing techniques come from singing and speech language therapy, but practices of breathing and strength that come from the gravity center of the body are also found in martial arts, somatic education, and theater practices (Finardi, 2014FINARDI, Ângela Emília. O Centro de Energia de Base do Corpo na Preparação Vocal do Performer. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) ‒ Programa de Pós-graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.).
  • 39
    The physiology books consulted, indicated in the previous note, relate articulators to speech specifically, or oral verbal language. I emphasize this question, because I believe it is an important aspect of the vision of the voice linked only to the production of language in science itself, because any onomatopoeia or melisma, for example, needs a specific articulation, even if it is not configured as a word.
  • 40
    There are many differences in the definition of voice production parameters. Lignelli (2011; 2014) assigns the same sound parameters both to the sound and to the voice: silence, noise, pitch, timbre, loudness, rhythm, reverberation, contour and directionality. Reverberation refers to the propagation and resonance of sound in the environment; the contour refers to the melodic curve, which in the voice is usually called intonation; and directionality refers to the point of sound emission, point at which the sound source is located, and its path in space. Gayotto (2009GAYOTTO, Lúcia Helena. Expressividade Tetral: Voz “Ao Vivo”. In: FERNANDES, Fernanda Dreux Miranda; MENDES, Beatriz Castro Andrade; NAVAS, Ana Luiza Pereira Gomes Pinto (Org.). Tratado de fonoaudiologia. 2. ed. São Paulo: Roca, 2009. P. 766-769.) classifies the voice elements into resource, primary (breathing, loudness, pitch, resonance and articulation), and secondary (projection, intonation, pauses, velocity, fluency). Other authors will also distinguish between sound parameters and prosodic (or expressive) elements.
  • 41
    The voice change at puberty causes the lowering of the larynx and the growth of vocal folds. Due to the greater hormonal (testosterone) increase in boys, the tendency is for male vocal folds to increase by up to 1 cm, while female vocal folds increase by an average of no more than 4 mm. This makes the fundamental frequency of the male voice generally decrease by one octave, while the female voice decreases only from two to four semitones of the infantile voice (Behlau; Azevedo; Pontes, 2008).
  • 42
    “Chaque culture établit pour les deux sexes des normes et des conventions constrastées qui vont bien au-delà des différences biologiques”.
  • 43
    It means sliding. Term used in music to indicate a movement of continuously sliding between frequencies. The descending glissando goes from a higher pitch to a lower one, and the ascending from a lower pitch to a higher one.
  • 44
    Vocal training in singing also aims to expand the vocal range, that is, the reach of higher and lower notes.
  • 45
    According to Laura Backes (2010), the German Jew Alfred Wolfson (1896-1962), after witnessing the horrors of World War I in which he served as a stretcher bearer, finds in his voice the possibilities of getting rid of his emotional traumas. The author explains that Wolfson was shocked by the agonizing voices of the scourges of war. So, he has been inspired by psychoanalysis, especially by Carl Jung, but he couldn’t find a singing teacher to help him to unlock himself emotionally through the production of extreme vocal sounds. Wolfson have begun his own training, trying to produce extreme pitches, both high and low, and different qualities of his voice (which reminded him of the almost inhuman sounds he had heard in combat). Backes tells that Wolfson begins to work as a singing teacher in Germany, and later in England, where he takes refuge during World War II (in which he also served, but in the English Army, as a combatant of the Nazis). The author goes on to say that he encouraged his students to achieve both high and low frequencies, deterritorializing the traditional singing voice production attached to the person’s sex. Backes explains that Roy Hart (1926-1975), a young South African actor that have lived in England, starts taking classes with Wolfson, and manages to develop 8 octaves in his voice extension, basically going through all the main voices types. The author goes on to say that Hart engages in contemporary music and theater, deepening his vocal research at the Roy Hart Theater, a theater company he founded in 1967. The author explains that after his untimely death, the actor Enrique Pardo and the actress Linda Wise, members of the group, have founded the Panthéâtre group, still active and based in France. Backes informs that, along with other collaborators, they also maintain the Centre Artistique International Roy Hart, in France (Backes, 2010).
  • 46
    The term is used to designate unconventional uses of voice in Western music, as a counterpoint to bel canto. The inclusion of noise in music from the beginning of the twentieth century, the exploration of new sonorities and musical systems (such as dodecaphonic music in opposition to tonal music), the presence of the spoken voice, whispered voice, glossolalia (kind of grammelot – the term comes from the areas of religion and health), the semantic deconstruction of language, the unconventional voice qualities, etc., are in this territory (Valente, 1999).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2016
  • Aceito
    12 Out 2016
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