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Èmí, Ofò, Asé: a Elinga e a dança das Mulheres do Àse

Èmí, Ofò, Asé: Elinga et la danse de la Mulheres do Àse

Resumo:

O presente estudo objetiva discutir a noção de presença cênica a partir da utilização de princípios das práticas culturais afrodiaspóricas. As reflexões apresentadas emergem do cruzamento entre o desenvolvimento da pesquisa de pós-doutorado intitulada Elinga e o espetáculo performativo Mulheres do Àse. Apresenta-se como base discursiva e estrutural os fundamentos da cosmogonia iorubá èmí (sopro da vida), ofó (encantamento) e asé (energia vital) em diálogo com os conceitos corpo-arquivo, corpo-arma, decolonialidade, ritualização do instante e presença cênica.

Palavras-chave:
Ancestralidade; Decolonialidade; Afrodiáspora; Presença Cênica; Elinga

Résumé:

La présente étude vise à discuter la notion de présence scénique à partir de l'utilisation des principes des pratiques culturelles aphrodiasporiques. Les réflexions présentées émergent de l'intersection entre le développement de la recherche postdoctorale intitulée Elinga et la performance Mulheres do Àse. Il se présente comme base discursive et structurelle les fondements de la cosmogonie Yoruba èmí (souffle de vie), ofó (enchantement) et asé (énergie vitale) en dialogue avec les concepts corps-fichier, corps-arme, décolonialité, ritualisation de l'instant et présence scénique.

Mots-clés:
Ascendance; Decolonialité; Diaspora Africaine; Présence Scénique; Elinga

Abstract:

The present study aims to discuss the notion of scenic presence based on the use of principles from African-diasporic cultural practices. The reflections presented emerge from the intersection between the development of postdoctoral research entitled Elinga and the performance Mulheres do Àse. It presents itself as discursive and structural basis the foundations of the Yoruba cosmogony èmí (breath of life), ofó (enchantment) and asé (vital energy) in dialogue with the concepts body-file, body-weapon, decoloniality, ritualization of the moment and scenic presence.

Keywords:
Ancestry; Decoloniality; African Diaspora; Scenic Presence; Elinga

AGÔ: uma introdução com permissão ancestral para escrever

Eparrei, Oiá ô Temo somente a ti Vento da morte. Guerreira que carrega arma de fogo, Oiá ô, Oiá totó, hmmm Síkírù Sàlámì1 1 Oriki para Iansã de Síkírù Sàlámì, tradução Antonio Risério (2012). Maiores informações ver Referências.

AGÔ! Palavra de origem iorubá usada pelos praticantes das religiões de matriz africana para pedir licença ou permissão aos seus ancestrais - o que fazem comumente para atravessar as encruzilhadas, fazer oferendas ou entrar e sair de algum lugar. Na cosmogonia iorubá, quando pedimos licença, demonstramos respeito aos mais velhos, que nos precederam nesta passagem pelo mundo físico (Ayê) e continuam sua caminhada no mundo espiritual (Orun). Dentro das culturas de matriz africana, a palavra tem poder de realização; uma vez dita e em contato com as energias do universo, ela, a palavra, mobiliza níveis profundos de comunicação entre o mundo visível e o não visível. Pedimos, portanto, permissão ancestral para fazer uso das palavras que complementarão nosso pensamento neste artigo.

Durante a produção deste texto, várias encruzilhadas epistêmicas foram atravessadas a partir de experiências corporais desenvolvidas no processo de investigação da pesquisa de pós-doutorado intitulada Elinga, a Presença Cênica: as Práticas Performativas Afrodiaspóricas e a Decolonialidade no Processo Pedagógico e Criativo da(o) Performer/Dançariana(o)2 2 Esta pesquisa está sendo desenvolvida pelo autor deste artigo no Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia. O projeto foi contemplado com uma bolsa-CAPES, ao ser selecionado no edital PNPD/CAPES/PPGDANÇA/UFBA, no ano de 2018. A supervisão é da professora doutora Amélia Conrado. , doravante denominada simplesmente Elinga, bem como de observações elaboradas mediante análises comparativas sobre o espetáculo Mulheres do Àse3 3 A forma como a diretora e criadora do espetáculo escolheu para grafar a palavra àse, com um acento na letra “a”, foi respeitada no que diz respeito ao título do espetáculo. Ainda que signifiquem a mesma coisa, no decorrer das reflexões desenvolvidas no texto manteremos o acento na letra “e”. , apresentado na cidade de Salvador, Bahia, e dirigido pela artista Edileusa Santos4 4 Dançarina, professora e coreógrafa, Edileusa Santos foi integrante do Grupo Odundê, criado na década de 1970 pela professora Conceição Castro. Maiores informações sobre o grupo ver obra de Setenta (2008), presente nas referências. .

As reflexões desenvolvidas ao longo do texto visam discutir possibilidades pedagógicas e estéticas decoloniais tendo em vista a potencialização da presença cênica a partir de princípios usados por práticas performativas afrodiaspóricas. Esses princípios têm como base as cosmogonias africanas, no que diz respeito às expressões culturais entendidas como danças negras e/ou performances negras5 5 Ciente da complexidade conceitual para denominar estas práticas, escolhemos estes dois termos e os colocamos no plural por entender a diversidade das culturas de matriz africana que se fusionaram no processo da diáspora africana. , e são colocados em tensão com os paradigmas estéticos colonialistas, entendidos como parte de um imaginário dominante em nossos processos criativos durante séculos. Dito de outro modo, acredita-se que, ao desenvolvermos uma visão crítica sobre como a noção de colonialidade (Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del saber: eucentrismo e ciências sociales, Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO; Consejo Latinoamericano de ciências sociales, 2005. ) atua sobre nossas produções no campo das artes cênicas, torna-se possível ampliar nossos pontos de vista na direção de um campo afrorreferenciado em processos criativos e/ou pedagógicos como prováveis respostas ao monólogo imperial estabelecido pela modernidade europeia-eurocêntrica (Grosfoguel, 2008GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Tradução Inês Martins Ferreira. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 115-147, mar. 2008.).

Diante da complexidade desse entrecruzamento, a discussão aqui desenvolvida pretende abordar as práticas performativas afrodiaspóricas observadas tanto no desenvolvimento de uma pesquisa de pós-doutorado sobre presença cênica, Elinga, quanto no espetáculo Mulheres do Asè. Portanto, serão feitas analogias conceituais entre essas duas experiências afroestéticas a partir de algumas reflexões construídas nos estudos sobre fundamentos da cosmogonia iorubá, como: èmí (sopro da vida), ofó (encantamento) e asé (energia vital), e os conceitos corpo-arquivo e corpo-arma (Tavares, 2012TAVARES, Julio. Dança de Guerra: arquivo e arma (elementos para uma teoria da capoeiragem e da comunicação corporal afro-brasileira). Belo Horizonte: Nandyala, 2012. ), colonialidade do poder (Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del saber: eucentrismo e ciências sociales, Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO; Consejo Latinoamericano de ciências sociales, 2005. ) e desobediência colonial (Mignolo, 2010MIGNOLO, Walter. Desobediência epistémica: retórica de la modenidad, lógica da colonialidad y gramática da descolonialidad. Buenos Aires: Ediciones del signo, 2010.), ritualização do instante (Santos, 2016SANTOS, Lau. A presença expandida: entre o ator e o performer, as máquinas de imagem como possíveis potencializadores da presença. 2016. Tese (Doutorado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2016. ) e presença cênica (Santos, 2012SANTOS, Lau. Tela e Presença: o diálogo do ator com a imagem projetada. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2012. ).

O presente texto apresenta suas subdivisões nomeadas por palavras em iorubá, da seguinte forma: no lugar que normalmente encontramos a palavra introdução, optou-se pelo termo iorubá agô; a seguir, temos a palavra émí, que nos indica caminhos para uma possível compreensão sobre a não separação entre as linguagens artísticas nas práticas performativas de matriz africana; posteriormente, temos a palavra ofò, com foco em traçar analogias entre os processos criativos afrorreferenciados e a noção de de/colonialidade, além de abordar as atividades desenvolvidas no processo investigativo Elinga; e, por fim, a utilização da palavra asé traz a abordagem do espetáculo performativo Mulheres do Àse, sob o viés da ancestralidade e da força e poder das Ialorixás na construção da memória afro-brasileira.

ÈMÍ: a força-motriz da presença nas práticas performativas de matriz africana

A palavra èmí, na língua iorubá, significa o sopro da vida, espírito, por vezes traduzida para o português como respiração. A proximidade semântica da relação entre o termo respiração com a noção de sopro da vida se encontra marcada na cosmogonia iorubá pelo ar que circula em nosso corpo e a produção da energia que nos mantém vivos. Ou seja, èmí é a força-motriz do ser humano, o que comprova a nossa presença no mundo físico (Ayê). No entanto, é importante frisar que a língua iorubá é uma língua tonal e a mudança do acento gráfico em uma mesma palavra transforma o seu significado e produz uma musicalidade necessária para o seu entendimento semântico, como será visto no decorrer do texto com a palavra èmí.

No contexto da pesquisa Elinga6 6 Na língua umbundu, de origem bantu, elinga quer dizer ação. Uma das línguas bantus mais faladas em Angola, original dos povos Ovimbundos, que vivem nas montanhas centrais daquele país. , o termo èmí é compreendido em associação com dois outros termos: ofó, que é o encantamento, ou seja, o sopro de ar na condição de hálito antes que venha ser palavra fora da boca; e o termo asé, que é a materialização da energia da palavra dita para se expandir pelo universo. Essa tríade faz parte dos fundamentos do candomblé de queto (nação nagô) e das bases filosóficas das expressões culturais de matriz africana, que reitera o poder, a força presente em uma palavra antes de ela ser dita.

A tese defendida na pesquisa supracitada é que, ao reconfigurar a abordagem determinada pelos saberes religiosos do candomblé para pensar o corpo, podemos expandir no contexto das artes cênicas a inter-relação entre a tríade èmí - ofó - asé, no intuito de potencializar a ideia de presença cênica. A utilização de princípios tradicionais e seculares da diáspora africana em processos criativos nas artes cênicas abre o campo para descobertas de outras pedagogias da presença desenvolvidas à luz da noção de desobediência colonial (Mignolo, 2010MIGNOLO, Walter. Desobediência epistémica: retórica de la modenidad, lógica da colonialidad y gramática da descolonialidad. Buenos Aires: Ediciones del signo, 2010.).

Em Elinga, seguimos essa perspectiva dialogando com a ideia de transcriação, termo cunhado por Haroldo de Campos ao tratar da tradução de poemas de uma língua para outra, que em nossas investigações é aplicado de forma expandida para a compreensão da produção de corporeidades e, consequentemente, da produção de presença cênica. A aplicação do conceito de transcriação é feita a partir da reconfiguração da tríade, bem como de outras práticas afrodiaspóricas desenvolvidas durante a pesquisa.

Tendo em vista que as reflexões feitas neste estudo partem da fusão destes três fundamentos afrorreferenciados do candomblé, isto é: a força interna/espírito (èmí), a intenção/encantamento (ofó) e a materialização dessa força vital (asé), o conceito de presença cênica é estudado em Elinga como sendo associado à expressão iorubá èmi wà7 7 As expressões iorubanas èmi (eu sou) e èmí (espírito ou sopro da vida) são associadas à èmi wá: estou presente. Importante perceber que èmi, eu sou, é grafado sem o último acento e, portanto, se difere de émí, espírito, sopro da vida. , que significa estou presente/estou aqui-agora. A potencialização da èmi wá é marcada pela conexão individual da(o) artista da cena com sua ancestralidade, sua intencionalidade e suas relações espaçotemporais durante a movimentação. Ou seja, o èmí corresponde à relação desse artista com sua ancestralidade, com uma maneira singular de organizar sua respiração; enfim, uma conexão em fluxo continuun entre o dentro e o fora do corpo do artista da cena. Durante esse processo de organização respiratória, são geradas intencionalidades (ofó) para os movimentos que acontecem neste aqui e agora da cena. O corpo em movimento estabelece relações sensório-afetivas com o ambiente e produz um campo energético que se materializa como asé.

Pedimos licença aos leitores para fazer uma rápida comparação entre as descobertas conceituais do filósofo americano John Searle, em suas pesquisas sobre a linguagem a partir dos atos de fala e da intencionalidade8 8 A intencionalidade é um conceito recuperado dos gregos pelo filósofo alemão Franz Brentano, no século XIX. Brentano foi o fundador da psicologia do ato que tinha como objetivo definir o estatuto de consciência dirigido para algo ou acerca de algo. Searle aceita a condição de Brentano sobre o conceito de intencionalidade e o expande para relação com o mundo. Para o filósofo americano, uma intenção – assim como crenças e desejos – é um tipo de estado intencional. Para maiores informações ver o livro Intencionalidade (Searle, 2002), editado pela Martins Fontes, presente nas referências deste artigo. no século XX, e o poder da palavra falada como uma ação ancestral e mística nas cosmogonias africanas, conforme já explicitado anteriormente. Para a cultura iorubá, o poder de ação das palavras quando ditas, emitidas para fora da boca, faz parte de uma aprendizagem ancestral, e está definido pela fé. Portanto, tal poder de ação decorre da relação com a ancestralidade e pela intencionalidade da pessoa que emite as palavras. Searle, no contexto de suas pesquisas, ao tratar as naturezas dos estados intencionais, afirma que “[...] a consciência das condições de satisfação é parte da crença ou desejo consciente uma vez que o conteúdo intencional é interno aos estados em questão” (Searle, 2002, p. 31, grifo nosso). Ou seja, é na crença e nos referenciais intencionais inerentes ao proponente da ação que existem as condições para realização do ato. Sendo assim, podemos perceber que a condição de presença do artista da cena está diretamente relacionada à forca intencional (ofó), a partir da organização da energia interna (émì) que se materializa por fim e por meio dos movimentos (asé). Portanto, com a análise comparativa proposta, o intuito é destacar que os conhecimentos tradicionais do povo africano difundidos no processo da diáspora se perpetuaram durante séculos, mediante a resiliência e resistência das mulheres do asé, como veremos mais adiante, enquanto o pesquisador americano veio abordar o tema somente no século XX.

Bom, ao falar sobre a utilização da tríade èmí-ofó-asé reconfigurada - ou melhor dizendo, transcriada durante a pesquisa Elinga, o intuito era que os participantes pudessem experienciar a produção de presença cênica desde a noção de encantamento gerada pela tríade. No entanto, essa concepção de produção de presença não deve ser praticada de maneira deslocada, fora dos princípios fundantes que regem as práticas culturais de matriz africana, na qual as linguagens artísticas são compreendidas em sua forma integrada.

A fusão entre essas linguagens artísticas, suas conexões com a vida cotidiana e com as mitologias dos grupos étnicos africanos constituem uma particularidade dessas práticas performativas, como comprovou em suas pesquisas o filósofo congolês Bunseki Fu-Kiau (2001FU-KIAU, K. Kia Bunseki. African Cosmology of the Banto-Congo: principles of life & living. Canada: Athelia Henrietha Press, 2001. ). Durante suas investigações sobre as práticas performativas de matriz africana, Fu-Kiau, alicerçado na cosmogonia bakongo9 9 Grupo étnico banto que vive numa larga faixa ao longo da costa atlântica de África, desde o Sul do Gabão até as províncias angolanas do Zaire e do Uíge, passando pela República do Congo, por Cabinda e pela República Democrática do Congo. Em Angola são o terceiro maior grupo étnico. , observou que o corpo é um dispositivo de fluência e expansão presencial que se materializa nas manifestações artístico-culturais sob a sentença cantar-dançar-batucar (Fu-Kiau, 2001). A integração dessas linguagens artísticas no momento da atuação localiza a maneira de interpretar o mundo desse grupo étnico de origem banto e nos auxilia a compreender a importância da conjunção dessas linguagens como mecanismos potencializadores da presença das(os) performer/dançarina(os) durante as apresentações, seja pensando processos criativos ou pedagógicos nas artes cênicas.

Durante séculos esses dispositivos ritualísticos, religiosos, socioculturais e artísticos são utilizados de forma interligada. Ousamos afirmar que existe uma dimensão política nessa forma africana e afro-ameríndia de pensar arte e o mundo. Talvez seja esse formato híbrido, tão em voga na dança e na performance contemporânea no século XXI, que tenha ajudado na perpetuação dessas práticas até os dias atuais. Pedimos licença aos leitores e leitoras mais uma vez para nesta parte do texto fazer uma provocação coletiva. Não estariam nas práticas artísticas tradicionais afro-brasileiras e seus processos de transcriação os possíveis alicerces para uma arte contemporânea nacional?! Pois bem, continuemos nossa caminhada pelo universo da diáspora africana e suas mandingas poéticas.

A pesquisa artística Elinga constrói-se nos ipádè10 10 O termo ipádè em iorubá significa encontro. , que são os encontros nos quais se desenvolvem os processos criativos baseados em saberes da cultura afro-brasileira em conexão com as pesquisas artísticas e/ou acadêmicas individuais de cada participante implicado no processo. Ou seja, os pesquisadores11 11 Alguns alunos de graduação, em sua maioria negr@s, também participaram dos encontros. do programa de pós-graduação da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA) participam na pesquisa de pós-doutorado de modo cooperativo, no intuito de estabelecer cruzamentos para a resolução de um problema coletivo: a potencialização da presença cênica.

Desse modo, a escolha de uma concepção de estudo do conhecimento que também seja ação faz com que os pesquisadores contribuam tanto para a definição de novos tipos de exigências e de utilização desse conhecimento, como para a transformação da situação na qual estão inseridos. Por isso, elegemos a estratégia metodológica da pesquisa-ação - termo cunhado por Michel Thiollent (1986THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986.) para definir estudos nos quais o pesquisador está diretamente implicado, inserido no jogo. Segundo Thiollent (1986, p. 14):

[...] a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.

Na pesquisa-ação não se trabalha sobre os outros ou para os outros, mas sempre com os outros, o que nos remete a um posicionamento no que diz respeito à noção de recepção e produção de presença inspirada nas culturas de origem africana: as ações cênicas acontecem na conexão relacional entre o sujeito da cena e cada participante do evento. Percebam que a escolha metodológica da pesquisa-ação dialoga diretamente com os conceitos desenvolvidos na pesquisa, tendo em vista que um dos principais aspectos da estratégia metodológica proposta por Thiollent (1986THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986.) é considerar que o objeto de investigação não é constituído pelas pessoas e sim pela situação social - o que em Elinga corresponde às ações cênicas e suas naturezas relacionais.

As recentes reflexões teóricas desenvolvidas nesta pesquisa de pós-doutorado sobre a importância desses princípios afrodiaspóricos na produção de presença nos fez perceber os efeitos da ação da colonialidade em nossos corpos. Esses efeitos serão discutidos no tópico a seguir, ou seja, serão apresentadas as consequências de tais descobertas e alguns exemplos de exercícios que serviram de estímulos e foram transcriados, ressignificados a partir dos percursos teórico-práticos no desenrolar da pesquisa Elinga.

Ofó: saberes que en/cantam, perspectivas conflitantes na encruza

É a partir do encante que os saberes se dinamizam e pegam caronas nas asas do vento... (Luiz Simas; Luiz Rufino, 2018SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2018.).

Como já foi visto no tópico anterior, a expressão ofó traz o poder do encantamento antes da sua materialização em energia vital, asé. A proposta apresentada na elaboração deste texto trata da produção de presença por meio da noção èmi wá (eu sou), em oposição à homogeneização de epistêmes e padrões estéticos determinados por axiomas euro-ocidentais. Anibal Quijano, Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel são alguns autores que defendem a necessidade do exercício de uma desobediência epistêmica (Mignolo, 2010) para se compreender e agir contra os efeitos dominantes da colonialidade na América Latina. A partir do conceito de colonialidade do poder (Quijano, 2005), esses intelectuais latino-americanos pensam uma ação decolonial que visa a transformar os sistemas de dominação e de exploração da atual matriz de poder colonial do sistema-mundo patriarcal-capitalista colonial-moderno (Grosfoguel, 2008). Observa Quijano (2005, p. 121) que:

Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia europeia ou ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento.

O sociólogo peruano demonstra como os efeitos da colonialidade atuam sobre “o controle de todas as formas de controle da subjetividade” e consequentemente sobre a produção cultural, suscitando indagações. Como burlar, desobedecer às regras estéticas sobre a noção da produção de presença cênica elaboradas dentro de uma perspectiva euro-ocidental durante vários séculos? Não estaria na ginga, lugar de resiliência cultural, enfim, no jogo de corpo do subalternizado uma possível resposta diante dessa relação de domínio colonial? Na busca de possíveis caminhos para responder essas indagações, estabeleço cruzamentos com outros autores.

Observemos, portanto, a percepção do antropólogo carioca Julio Tavares sobre o uso do corpo como local de contestação durante o período escravocrata. Segundo esse autor, o corpo do negro escravizado, como um ato de resistência, manifesta-se, fala antes de ele usar o aparelho fonador (Tavares, 2012). Esse corpo-arquivo com conhecimentos armazenados é um dispositivo que afronta a colonialidade. Tal pensamento corrobora com nossas reflexões sobre presença, quando Tavares afirma que as “imagens acústicas” pronunciadas pelo corpo subalternizado se instauram no espaço sociocultural antes de o negro ter consciência de sua corporeidade. Segundo Tavares (2012, p. 54):

Tornar possível a existência exige-nos um domínio e uma consciência do corpo, lugar primeiro do existir, com e no qual estou no mundo apto a viver o presente vivido. É dessa maneira que dou conta do corpo como lugar que concede acesso ao meu eu, seja por meio das situações dramáticas, seja pela via do trabalho (ação corporal e esforço), da ação social ou da criação artística.

Para esse pesquisador, existir é ter consciência do corpo como lugar primeiro do nosso saber, do nosso lugar no mundo. Nesse sentido, o corpo da população africana trazido como mercadoria na condição de escravo para as Américas se tornou o elemento fundamental de comunicação, de resistência e de resposta aos sofrimentos diante das situações violentas produzidas pela condição hostil e desumana com que os colonizadores europeus os tratavam. Desse modo, apenas por meio do domínio consciente do corpo-arquivo e de sua força presencial, do encantamento e da memória ancestral, esses seres humanos, na condição de escravos, puderam potencializar suas energias corporais como instrumento de resistência e libertação. Assim surgia o corpo-arma (Tavares, 2012TAVARES, Julio. Dança de Guerra: arquivo e arma (elementos para uma teoria da capoeiragem e da comunicação corporal afro-brasileira). Belo Horizonte: Nandyala, 2012. ), que ginga na capoeira, que samba, que malandreia, que brinca dançando, dá pernada rindo, que canta rezando, que batuca sangrando, que reverencia os orixás se ressignificando, mas que sobretudo se torna um dispositivo fundamental da luta decolonial. Chamamos a atenção para a importância da tríade èmí, ofó, asé nas ações comentadas, pois foi a partir da força interna, da fé e da materialização dessas vivências culturais que a presença do corpo negro resistiu e produziu a possibilidade de um conhecimento-emancipação (Santos, 2019SANTOS, Boaventura de Sousa. O Fim do Império Cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.).

Enfim, a performatividade do ritual religioso, candomblé, quando vista sob o prisma da decolonialidade, demonstra em sua organização interna a capacidade de resistência e de resiliência dessas práticas tradicionais afrodiaspóricas. Deduzimos, então, que esses corpos-arquivo conservaram essa força ancestral trazida de além-mar, como afirma, ainda, o pesquisador Julio Tavares (2012TAVARES, Julio. Dança de Guerra: arquivo e arma (elementos para uma teoria da capoeiragem e da comunicação corporal afro-brasileira). Belo Horizonte: Nandyala, 2012. , p. 91): “Coube ao corpo assegurar, por intermédio da vida no dia a dia, a herança do que foi perdido”. Esse corpo, que é o lugar-do-acontecimento, “[...] ganha, então, a função de arquivo e, junto à tradição oral, constitui um manancial que inscreve as heranças da população afro-brasileira” (Tavares, 2012, p. 91). Nas manifestações artístico-culturais de matriz africana, as linguagens artísticas (dança, teatro, música, contação de histórias etc.) não são apresentadas de forma separada. Essa característica pluri expressiva carrega significados que nos levaram a pensar a presença cênica tendo como base esses fundamentos. Atentamos, ainda, para o fato de que a divisão dessas linguagens faz parte de uma política com caráter colonialista baseada em paradigmas culturais ocidentais, judaico-cristãos com objetivos focados em destruir esses saberes ancestrais por meio de estratégias epistemicidas, como afirmou Boaventura de Sousa Santos (2019SANTOS, Boaventura de Sousa. O Fim do Império Cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.).

Ao seguir essa linha de raciocínio, deduzimos que, para a materialização das informações ancestrais trazidas pelo corpo-arquivo, existe um estado mental que age durante a produção de corporeidades. Isto é, a postura comportamental transgressora dos ancestrais africanos na condição de escravizados foi determinada pela fé e pela luta para sobreviver, de modo que a convicção durante a execução de uma ação libertadora estava diretamente relacionada a sua capacidade potencial de realização e de credibilidade frente ao outro. Dito de outro modo, quando pensamos sobre a capacidade da(o) performer/dançarina(o) se fazer presente, de potencializar o seu emì ewá (eu sou), no momento de um acontecimento cênico, comparamos seu comportamento ao de um jogador de capoeira, que deve ficar em um estado de atenção constante, mesmo que esteja apenas batendo palmas na roda.

Os estudos que estamos realizando são definidos pela capacidade da(o) performer/dançarina(o) acreditar no seu poder de encantamento (ofó), na sua capacidade de convencimento durante a materialização de seus movimentos que geram ações psicofísicas concomitantemente à produção de sua presença em cena. John Searle (2002SEARLE, John Rogers. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 37), ao problematizar a natureza dos estados mentais e dos fenômenos físicos no que tange ao conceito de intencionalidade, afirma que, “Crenças, temores, esperanças e desejos [...] são intrinsicamente intencionais”. O pesquisador americano reforça a necessidade da relação entre produção de subjetividades e das intencionalidades para se conseguir um determinado resultado no que concerne aos fenômenos físicos. Em outras palavras, a capacidade de encantamento da(o) performer/dançarina(o) está diretamente conectada a sua capacidade de gerar corporeidades. Deduzimos, então, que essa habilidade consequentemente influenciará na produção de sua presença em cena.

Nos estudos laboratoriais feitos durante os processos criativos12 12 Estes estudos foram feitos durante os ipàdé, encontros, no ano de 2018, nas salas de aula da Escola de Dança da UFBA. Os encontros tinham a carga horária de 6 horas semanais. da pesquisa Elinga, percebemos que um corpo em movimento, comprometido intencionalmente com estados emocionais provocados por ações internas e externas a este corpo, pode produzir o que denominamos lugaridades (Santos, 2016SANTOS, Lau. A presença expandida: entre o ator e o performer, as máquinas de imagem como possíveis potencializadores da presença. 2016. Tese (Doutorado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2016. ), que é a capacidade individual do artista cênico se deslocar em um campo de forças demarcado pelas transições sutis da sequência cantar/contar13 13 Em Elinga, contar e cantar podem acontecer juntos ou de forma separada como mais um elemento. É importante dizer que essas linguagens variam dependendo da proposta cênica. Um simples assobio ou um som onomatopeico podem ser entendidos como um canto-contado. - dançar-batucar em interface com a tríade sentencial emí-ofó-asé. Ou seja, os artistas/pesquisadores que participaram da pesquisa experimentaram exercícios que tinham como lugar inicial a respiração (emí), a qual determinava a intensidade dos movimentos. A partir de canções ancestrais se produziam células de movimentos, os movimentos se transformavam, sucessivamente, em ações. As ações geravam os oriki coreocênicos, histórias-mitos com os elementos corporais, vocais, rítmicos e visuais intrinsicamente conectados à proposta da pesquisa, que é a potencialização da presença cênica.

O sucesso individual dessa operação, em tese, potencializa a expansão presencial dos artistas da cena e instaura o que entendemos como a ritualização do instante14 14 Esta expressão foi usada pelo pesquisador/professor /performer Renato Cohen de forma minimizada em um de seus escritos. Ao descobri-la resolvi agregá-la em minhas reflexões sobre presença cênica. Observo que à época meus estudos dialogavam com a noção de pre-sença do filósofo alemão Martin Heidegger. A noção de ritualização do instante foi associada à noção de Dasein (Ser-o-aí), erroneamente traduzida no Brasil como ser-aí, devido à versão francesa etrê-lá. (Santos, 2016SANTOS, Lau. A presença expandida: entre o ator e o performer, as máquinas de imagem como possíveis potencializadores da presença. 2016. Tese (Doutorado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2016. ), efetivação ontológica do irreversível aqui-agora ao longo do encontro existencial entre todos os corpos presentes naquele determinado evento cênico. A ritualização do instante é, portanto, a capacidade da(o) performer/dançarina(o) dilatar sua imersão no processo criativo durante o momento que recria a realidade. Dessa maneira, busca-se gerar uma abertura espaço-temporal entre o campo subjetivo e o campo objetivo do artista da cena no momento dessa experiência artística, na qual se pretende a potencialização da presença cênica. A intenção é instaurar um grau de concentração que mobilize, por meio de memórias ancestrais, outras possibilidades de acesso a uma evocação poética, coreocênica

Pois bem, essas práticas laboratoriais, ipàdé, são baseadas em exercícios psicofísicos15 15 Esses exercícios psicofísicos são criados pelo pesquisador e executados junto com os praticantes/participantes nos ipàdé (encontros). criados pelo pesquisador, em sintonia com a proposta metodológica apresentada, a pesquisa-ação. Os exercícios têm como alicerce estrutural a respiração, entendida nesse processo como o ponto de partida, o elemento vital, o sopro da vida, para produção de qualquer manifestação corporal. São praticadas divisões rítmicas com palavras na língua Iorubá e cantos ancestrais. Os movimentos e deslocamentos corporais têm como prática inicial a imobilidade física. Antes de qualquer movimento voluntário, existe um ponto de imobilidade. Este estudo tem como eixo investigar os vícios corporais, movimentos involuntários, denominados, nesta pesquisa, como parasitas coloniais. O intuito é identificar gestos não-voluntários que contribuem com a dispersão da presença cênica da(o) performer/dançarina(o). Esses exercícios são de longa duração e exigem muita concentração por parte do participante. Na fase de deslocamento no espaço e na produção de gestualidades são utilizados: movimentos de capoeira reconfigurados, faz-se uso de uma capoeiração com base na ginga e no jogo de corpo, a síncope do samba, gestos das danças dos orixás e outras expressões brincantes da cultura popular brasileira. Durante os processos criativos é recomendado aos participantes demarcarem o chão com formas circulares, triângulos, traços, desenhos tribais, setas etc. Essa maneira de se localizar no espaço indica como deve ser usado o espaço no momento de se relacionar com quem os vê, ou seja, com a recepção. Essas demarcações são denominadas de lugaridades. Em geral, são inspiradas em desenhos corporais afro-ameríndios, nas formas geométricas dos tecidos africanos e nos pontos riscados dos caboclos. Como suporte dramatúrgico dessas criações, são utilizadas informações autobiográficas, itans16 16 Mitos iorubás que falam dos orixás. e oriki17 17 Oriki pode ser entendido de forma genérica como um gênero literário, uma forma poética utilizada pelo povo iorubá para definir o mundo. No entanto, dentro da cosmogonia iorubá o termo faz parte de uma rede complexa que fundamenta a visão de mundo desse grupo étnico. No sentindo etimológico, Ori pode ser traduzido por cabeça e, Ki, por saudação. Em algum momento deste texto aparecerá o termo oriki coreocênicos, forma cunhada por este pesquisador para definir as composições cênicas criadas durante os processos criativos da pesquisa de pós-doutorado. É importante frisar o caráter híbrido dessas produções, que combina, mescla dança, teatro, artes visuais, música e novas tecnologias em um único evento cênico. Tal condição também é detectada pelo autor deste artigo no espetáculo Mulheres do Àse. Essa é uma característica fundamental das expressões culturais africanas e da afrodiáspora. . A mistura desses saberes, dessas epistemologias afro-brasileiras, como fonte fundamental da pesquisa sobre presença cênica, Elinga, foi denominada caboclagem performativa, já a produção de materiais cênicos individuais desenvolvidos nos processos criativos é chamada de oriki coreocênicos. Quando esses materiais cênicos são apresentados como intervenções políticas em espaços públicos, abertos, como praças, ruas e encruzilhadas, denominamos transnegrações.

Algumas produções desenvolvidas durante esses processos criativos são relatadas a seguir. Após quatro meses de encontros cada artista-participante, a partir dos exercícios propostos e de suas pesquisas, pôde desenvolver um espetáculo solo, o seu oriki coreocênico. Essas criações foram apresentadas de forma coletiva em duas ações performativas18 18 Link da apresentação do ipàdé1: <https://www.youtube.com/watch?v=zjHWmrc-V2I&t=12s>. , ipàdé1 e ipàdè2, nas mostras semestrais da Escola de Dança da UFBA (2018.1 e 2018.2). Durante o III Fórum Negro de Arte e Cultura (FNAC), que aconteceu em Salvador, Bahia, alguns desses exercícios desenvolvidos na pesquisa Elinga foram utilizados em uma oficina de performance denominada Émi Wá: Corporeidades e Transcriações Performativas. Nessa oficina, foram utilizados os princípios da tríade émì, ofó, asé, associados a processos criativos que enfatizassem a produção de presença cênica. No processo criativo dessa oficina, foram geradas algumas ações performativas, transnegrações, que foram feitas no jardim da Escola de Belas Artes da UFBA. A forma como esses espaços são ocupados pelos corpos das/os artistas/perfomers, a presença cênica desde princípios ancestrais, a relação direta com o público definem o caráter político dessas ações transgressoras. Umas das características desse tipo de intervenção performativa é seu caráter político, transgressor e decolonial.

Nesse sentido, todos os processos criativos desenvolvidos a partir dos princípios usados na pesquisa Elinga são observados com cuidadosa atenção sobre a perspectiva da produção de presença. Ou seja, como cada performer/dançarina(o) usa seu corpo durante os estados transitórios e sinuosos entre o èmí-ofó-asé, três fases nas quais são criadas as corporeidades e produzidas as lugaridades. Como já foi enfatizado, é importante entender que cada pré-movimento arquitetado no interior do corpo, èmí, ganha forma a partir do princípio de intencionalidade, ofó, e gera ações que se materializam pelo asé. Essas operações devem ser compreendidas como parte de uma ritualização do instante, que é personalizado pela história ancestral de cada um desses artistas como ser-no-mundo. Cabe frisar, ainda, que as abordagens no campo teórico-prático, assim como os exercícios corporais, os cantos ancestrais, empregados durante os encontros, ipàdé, são transcriados, ressignificados, como já foi dito em parágrafos anteriores, de maneira que não exista proximidade ao que acontece dentro dos terreiros durante um ritual religioso de matriz africana.

Reforçamos que a utilização de nomenclaturas vinculadas aos rituais de candomblé, da umbanda, da capoeira e de outras práticas de matriz africana que aparecem no presente estudo, é uma estratégia político-pedagógica com orientação decolonial para engendrar princípios da filosofia africana e das cosmogonias afro-brasileiras no campo das artes, particularmente na dança, no teatro e na performance, em oposição a uma hegemonia taxonômica baseada em paradigmas colonialistas eurocentrados.

Dito isso, retomemos as reflexões acerca dos códigos não verbais como fundamento para um corpo transgressor, que luta contra mecanismos de dominação colonial. A presença do corpo negro em cena e a sua potencialização mediante o uso de fundamentos transcriados das práticas culturais afrodiaspóricas são uma posição política e estética de desobediências aos paradigmas colonialistas, racistas e subalternizantes que vigoram até os dias de hoje no território artístico brasileiro. Nessa lógica, observamos mais uma vez que o sociólogo Anibal Quijano, ao detectar, denunciar e cunhar o conceito de colonialidade do poder para demonstrar a reconfiguração dos princípios do colonialismo e seus efeitos na atualidade, complementa o pensamento de Julio Tavares e corrobora com nossa pesquisa ao comentar a legitimação das relações de poder a partir da ideia de raça.

Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova id-entidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus (Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del saber: eucentrismo e ciências sociales, Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO; Consejo Latinoamericano de ciências sociales, 2005. , p. 107).

Ao executar exercícios simples baseados na imobilidade corporal, os praticantes começam a perceber alguns vícios corporais como coceiras, manias com os dedos, não fixar o olhar em um ponto, mordidas nos lábios, espasmos, movimentos não-voluntários que cotidianamente passam despercebidos. Descobrimos, então, que esses elementos dispersivos, parasitas coloniais, contribuem para uma perda, quase, total do foco em relação ao posicionamento do corpo no espaço, quando ficamos imóveis durante algumas horas, com os olhos abertos, fixando um ponto, atentos, apenas com a produção de nossas sonoridades internas e sua relação com os ruídos externos do ambiente. Deduzimos que nossa presença, nesse instante, está impregnada de aspectos que não nos permitem acessar nosso corpo-arquivo, contaminada com os parasitas coloniais - vícios corporais, elementos dispersivos que impedem a potencialização da presença cênica da(o) performer/dançarina(o). Tal descoberta gerou ao menos duas questões: 1) Que elementos são estes que, quando estamos em ação, dançando/performando, se tornam invisíveis durante a repetição dos movimentos, mas fragilizam nossa presença cênica ainda que sejamos virtuosos ao executá-los? 2) Por que em algumas práticas performativas de matriz africana a condição de imobilidade se torna um estado de atenção constante?19 19 Na capoeira, a participação de quem está na roda é de atenção constante, mesmo que não sejamos os dois jogadores no meio da roda. A música, as ações, a mandinga, o movimento, quem chega, quem sai exigem daqueles que estão na roda um total estado de prontidão. Algo pode acontecer a qualquer momento e cada um dos presentes na gira poderá ter que responder prontamente. O risco físico é uma evidência que nos obriga a ficar atentos, mesmo que estejamos em uma condição de imobilidade, ou seja, apenas presentes. Presentificar-se é produzir lugaridades continuamente. . No campo teórico, deparamo-nos com indicações de outros estudiosos sobre um possível controle de nossas subjetividades partindo de pressupostos colonialistas.

A identificação dos parasitas coloniais, vícios corporais que atuam como uma espécie de blindagem cognitiva em nossos corpos, foi uma ferramenta imprescindível para o desenvolvimento do aparato conceitual desta investigação acadêmica no campo das artes sob os princípios metodológicos da pesquisa-ação. A concepção de que o corpo negro e/ou indígena é um gerador de conhecimentos ancestrais no ato da produção de presença deve ser compreendida como uma ação afirmativa contra o colonialismo e suas políticas epistemicidas, difundidas por uma hegemonia pedagógica eurocentrada que durante séculos dita os paradigmas para se pensar e produzir presença no campo das artes da cena na América Latina.

Posto isso, recorremos mais uma vez às considerações de Tavares a respeito do corpo como uma potência expressiva que responde aos efeitos da colonialidade, por intermédio da criação de uma gestualidade instaurada durante a experiência psicofísica em si e de sua memória ancestral. Segundo este autor:

Significa considerar o corpo como síntese/texto que emite, em linguagem não verbal, as mensagens arquivadas a partir das experiências que se cotidianizaram e que, por intermédio dos cines da memória corpórea, se fixaram na situação na qual aquele determinado movimento foi registrado. Isto é, o corpo brinda-nos pelo gesto expresso em linguagem não verbal com aquele movimento que foi criado e elaborado na produção de sua experiência (Tavares, 2012TAVARES, Julio. Dança de Guerra: arquivo e arma (elementos para uma teoria da capoeiragem e da comunicação corporal afro-brasileira). Belo Horizonte: Nandyala, 2012. , p. 51).

Nos processos pedagógicos e criativos da pesquisa Elinga, assim como no espetáculo Mulheres do Àse, comentado adiante, esses conhecimentos foram empregados como uma espécie de postulado político que deve ser difundido para outras gerações. Assim, dando prosseguimento a nossas reflexões, traçaremos alguns comentários sobre o espetáculo Mulheres do Àse no intuito de alinhar pensamentos que relacionem ancestralidade, matriarcado, mulher negra, poéticas afrodiaspóricas, candomblé e produção de presença cênica.

Asé: ancestralidade e matriarcado como lugares de resistência

Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde veio (provérbio africano).

Não poderíamos falar de presença cênica na pesquisa Elinga sem refletir sobre o mistério da vida (èmí). É fascinante pensar como esses conhecimentos atravessaram diversas gerações se reproduzindo de corpo em corpo pelas danças, pelos cantos (orins), pelos contos (itans), pelos poemas (oriki), pelas músicas, pelas gastronomias e outros bens simbólicos. A pesquisadora mineira Leda Maria Martins (1997MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997. ) definiu como oralitura essa forma de transmissão de saberes a partir de poéticas corporais e poéticas orais. Tal qual Exú20 20 Exú é o orixá que reinventa a memória do tempo. Exú é o orixá que matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje. Segundo Juana Elbein dos Santos (2018, p. 41): “Exú é o princípio da existência diferenciada em consequência de sua função de elemento dinâmico que o leva a propulsionar, a desenvolver, a mobilizar, a crescer, a transformar, a comunicar”. Por sua força transgressora, exú foi satanizado pela igreja católica, então temos que reconfigurar seu papel no imaginário da cultura brasileira. Exú Mojubá! Laroyê Exú! , conhecido como sendo o orixá da comunicação, esses conhecimentos burlaram o tempo e se embrenharam nos princípios dinâmicos do corpo-arquivo, do corpo-ancestral e viajaram até os tempos atuais.

O matriarcado sempre exerceu o papel fundante na criação dos candomblés no Brasil, de modo que sem a presença das Ialorixás não existiria a construção de alguns desses saberes elencados ao longo do texto e transmitidos durante séculos oralmente, pelos movimentos corporais das danças dos orixás e outras simbologias da diáspora africana, preservados até os dias de hoje pelas mulheres do asé.

O espetáculo Mulheres do Àse21 21 Ficha técnica e artística do espetáculo Mulheres do Àse: Direção Geral, Concepção e Roteirização Cênica: Edileusa Santos. Assistente de Coreografia: Agatha Oliveira. Intérpretes Criadoras: Sueli Ramos, Tânia Bispo, Sandra Santana, Fátima Carvalho e Sonia Gonçalves. Direção Musical: Alexandre Espinheira, Gilberto Santiago e Luciano Salvador Bahia. Trilha Sonora Original: Alexandre Espinheira, Gilberto Santiago e Sarah Fernandes. Músicos: Alexandre Espinheira, Gilberto Santiago, Sarah Fernandes e João Victor. Poema: “Vozes, mulheres” de Conceição Evaristo. Vídeos Depoimentos: Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Beata de Iemanja, Makota Valdina, Ebomi Nice de Yansã, Ebomi Vanda Machado, Ya Dagan Dinah e as Irmãs da Irmandade da Boa Morte. - Performance Ritual nos apresenta a força político-cultural e espiritual dessas mulheres do asé que durante várias gerações preservaram suas tradições culturais contra as políticas opressoras e subalternizantes do colonizador europeu. Para assegurar a manutenção de importantes fundamentos das tradições africanas, que lhes foram transmitidos oralmente pelos mais velhos, essas mulheres guardaram em segredo22 22 Nos terreiros, lugares de asé, o conceito de segredo (awô) e o mistério dos orixás são guardados a sete chaves. Para saber os fundamentos religiosos das práticas de origem africana temos que conviver o dia a dia dessas roças, como se diz na Bahia. ensinamentos que mais tarde seriam sussurrados como fundamentos religiosos nos ouvidos de jovens interessados em se iniciar na cultura do candomblé, em sua maioria mulheres23 23 Ainda que saibamos da existência dos Babalorixás (Pais de Santo), esse cargo nos terreiros foi, acreditamos que ainda seja, predominantemente ocupado por mulheres. , que no futuro assumiriam o controle dos terreiros/roças, lugares em que se realiza o ritual do candomblé. Pelo que sabemos, toda e qualquer decisão, de ordem religiosa ou não, tomada dentro da roça deve ser comunicada à Ialorixá. Talvez o comportamento centralizador dessas sacerdotisas faça parte das estratégias de preservação sociocultural das tradições africanas que atravessaram a calunga grande24 24 De forma simplificada, calunga grande é a forma como o povo banto denomina o mar, forma que divide o mundo físico do mundo espiritual. O cemitério também é conhecido como calunga pequena. e chegaram às terras tupiniquins.

Passemos então para uma análise comparativa entre a noção de presença cênica, èmi wá, e a potência presencial do elenco desse espetáculo. O outro foco de nossas observações consiste nas dinâmicas relativas ao processo de transcriação dos símbolos usados no ritual de candomblé empregados na montagem do evento cênico. Assim sendo, leitores e leitoras, entremos no universo da Performance Ritual Mulheres do Àse com o campo sensório-afetivo aberto, a fim de nos permitirmos experienciar, por meio da imaginação, um material cênico que nos mobiliza pela sutileza de suas ações, ou ainda, pela beleza de movimentos corporais que exalam uma espécie de amor fraternal, altruísta.

O espaço cênico está organizado com duas pequenas arquibancadas colocadas na parte de dentro, isto é, no local em que acontecem as ações das(os) artistas da cena. O espectador, portanto, tem a opção de se posicionar dentro do espaço cênico ou na plateia, com uma visão frontal dos acontecimentos. A possibilidade de outro ponto de vista, além do condicionado pela organização espacial no formato de palco italiano, é um fator importante para entendermos que essa alternativa faz parte de uma escolha política e sociocultural incorporada à cena a partir das experiências do elenco e da diretora com rituais de matriz africana. A utilização do espaço em forma circular durante os rituais africanos ou da afrodiáspora reforçam a ideia de uma concepção de universo que se legitima na relação com a alteridade.

Alguns códigos sutis marcam a movimentação das dançarinas/perfomers. Seria uma saudação para começar? Um pedido de licença para os ancestrais? O fato é que de forma suave, doce e, por que não dizer maternal, sob a energia da grande mãe Iemanjá, somos iniciados, convidados a participar desse ritual Mulheres do Àse. Os elementos dos rituais das religiões de matriz africana estão elegantemente em cena de forma simbólica, como marca da herança cultural negra no Brasil. O poder simbólico das forças da natureza invade o ambiente: a pele das mãos do músico/performer busca a outra pele, a do couro do instrumento de percussão; o som de pedras lavadas pelas dançarinas/performers em bacias com água e definidas por uma tênue luz de ribalta também desperta nossos ouvidos, e o tilintar de belas pulseiras desliza sonoridades nos braços dessas mulheres; enfim, todos os elementos deslocam nosso imaginário para um tempo-templo do asé, essa energia vital que atravessou séculos para habitar nossos sentimentos e invadir nossos sentidos.

Durante a apresentação, a leveza dos movimentos desenha no espaço uma linguagem caracterizada pelo poder do feminino ancestralizado nos corpos das dançarinas/performers. Por vezes um gingado, um balançar malandreado nos recorda a capoeira e suas particularidades, como se mostrasse dançando um corpo-arquivo que é ao mesmo tempo um corpo-arma, em uma dança de guerra como nos alerta Tavares (2012TAVARES, Julio. Dança de Guerra: arquivo e arma (elementos para uma teoria da capoeiragem e da comunicação corporal afro-brasileira). Belo Horizonte: Nandyala, 2012. ). A beleza plástica das ações durante toda a encenação é acompanhada por uma trilha sonora que nos ambienta no roteiro do ritual que estamos experienciando. Um ritual que não é o candomblé, mesmo porque acreditamos que não seja essa a intenção desse projeto cênico. No entanto, somos envolvidos por um manto imaginário e levados sensorialmente para um enunciado estético pleno de afeto e mergulhados nas águas da espiritualidade.

No cenário, folhas de papel são transformadas, dobradas, amassadas, em um jogo de dobraduras que nos lembra a arte oriental origami. As folhas são enormes e delas surgem turbantes, lenços, vestidos e outros objetos simbólicos da cultura afro-brasileira. Pedaços de tecidos coloridos também são reconfigurados, suas cores combinam com a barra das calças das dançarinas/performers e, aparentemente, indicam as cores de alguns orixás, possivelmente reverenciados por cada uma delas.

A produção de presença e a movimentação das(os) artistas em cena geram uma gestualidade que se configura por um jogo constante com esses símbolos e pela relação direta das dançarinas/performers com o espectador, que exercita, por intermédio do jogo criativo de construção e des/construção dos símbolos afrorreferenciados, o lugar de coautor. Os músicos também participam das cenas se deslocando pelo espaço cantando ou tocando seus instrumentos. Em um momento específico, um dos músicos brinca com as dançarinas/performers que representam os espíritos das crianças, erês, enquanto toca um xilofone com rodinhas.

Quando nos damos conta, estamos envolvidos emocionalmente pelos corpos das dançarinas/performers que nos oferecem abraços, nos presenteiam com pedras, colares de contas ou nos enrolam com tecidos coloridos. A energia emitida pelos corpos desses artistas, que dançam, cantam, contam e tocam seus instrumentos, nos transporta para um universo sensório-afetivo singular, simbólico e repleto de espiritualidade. Essa aproximação afetiva nos possibilita uma experiência estética que, de certa forma, dialoga com algumas reflexões desenvolvidas neste texto no que se refere à produção de presença cênica e transcriação de expressões culturais de matriz africana para a cena contemporânea.

Nesse sentido, entendemos que a produção de presença cênica em Mulheres do Àse propicia um campo de análise com base nos conceitos elaborados na pesquisa apresentada neste artigo e definidos pela sentença: èmí-ofó-asé. Durante a apresentação, percebemos que nos corpos das dançarinas/performers o sopro da vida (èmí) é simbolicamente marcado pela ginga, pelos movimentos sincopados que, por sua vez, são embalados por um ambiente sonoro encantador. Esses corpos também se fazem encanto (ofó) e se materializam por suas corporalidades através da força vital (asé).

Desse modo, presenciamos a força da mulher negra e a resistência das matriarcas do candomblé nos corpos-arquivo dessas dançarinas/performers, que se transformam em armas poéticas contra a opressão machista e racista da elite brasileira. A noção de corpo-arma de Tavares ganha outro sentido sem perder sua razão política. Não é mais o corpo do(a) capoeira, que contra sua condição subalternizada desfere golpes mortais e traumatizantes em busca de liberdade, mas é um corpo vigoroso coberto pelo frescor do amor maternal e pelo vigor das(os) orixás.

Em uma tela posicionada no fundo do palco, a uma altura de aproximadamente três metros do chão, são projetadas imagens de Ialorixás de vários candomblés do Brasil. Elas dialogam com as dançarinas/performers, que param para ouvi-las cada vez que a imagem de uma delas surge na tela circular, forma bastante representativa na organização espacial e na construção filosófica das expressões culturais de matriz africana. É desse espaço/tela que as Ialorixás enviam mensagens a todas(os) presentes no evento, nos contam, encantam e cantam o que é ser uma mulher de Asé e do Àse25 25 Faço aqui um trocadilho entre as duas formas gráficas do termo asé/áse para demonstrar a força e o poder vital dessas mulheres na tradição iorubá e a escolha do título do espetáculo. O termo áse, assim grafado na língua iorubá, uma língua tonal, deve ter um ponto embaixo da letra “s” e outro ponto debaixo da letra “e” que indica sonoridade mais grave ou mais aguda da letra marcada. O acento agudo, neste caso, se mantém na letra “a”. Na adaptação para o português-brasileiro encontramos duas grafias: axé, a mais popularizada, e asè, menos conhecida; esta última grafia é uma tentativa de aproximação à grafia da língua iorubá. .

Entre a oralidade e a escrita, essas Ialorixás nos sopram outras epistemologias baseadas em conhecimentos ancestrais. No material de divulgação do espetáculo, a diretora Edileusa Santos comenta a importância da atuação sociocultural dessas mulheres de Asé na formação de uma identidade afro-brasileira:

A performance da vida das mulheres que atuam nas matrizes das religiões africanas são símbolos de resistência, crença, fé, e àse, tanto no passado, no presente e no futuro. Foi por meio da fé ao Orixá, Inquice, Vodum e Caboclo que essas mulheres tiveram a capacidade de se reinventar e se afirmar! É diante deste universo que se apresenta o espetáculo Mulheres do Àse - Performance Ritual. Busca expressar a luta, a resistência e os sentimentos dessas mulheres. Visa, sobretudo, expressar e reafirmar a relevância e o papel que essas mulheres têm na construção da cultura e da sociedade brasileira26 26 Este material foi escrito e enviado para divulgação do espetáculo, sendo gentilmente cedido pela diretora Edileusa Santos, em 2018. (Edileusa Santos, 2018SANTOS, Juliana Elbein dos. Os Nagô e a Morte: pàde, àsèsè e o culto a Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 2018.).

A palavra Elinga, que como já foi dito significa ação, representa também o poder ancestral capaz de instaurar ações políticas, e no presente caso intitula uma pesquisa que tem como pano de fundo o conceito de presença cênica. A expressão èmi wá, retirada da língua iorubá, é utilizada como um conceito operacional que une as tríades de Fu-Kiau com as elaboradas na pesquisa Elinga. No contexto político, a noção de presença pode ser compreendida como o poder de resistência e resiliência representado por essas Mulheres do Àse que resistem, dançam, lutam, cantam e tocam seus instrumentos para nos ensinar os conhecimentos ancestrais de outras mulheres e homens pertencentes às diversas culturas africanas que foram trazidos como escravos para as Américas. Para entendermos a força simbólica da energia dessas mulheres, vejamos o que afirma Juana Elbein dos Santos em seu livro Os nagô e a morte, ao comentar o conteúdo mais precioso do terreiro, o termo àse:

É a força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir. Sem àse, a existência estaria paralisada e desprovida de toda possiblidade de realização. É o princípio que torna possível o processo vital. Como toda força, o àse é transmissível; é conduzido por meios materiais e simbólicos e acumulável. É uma força que só pode ser adquirida pela introjeção ou por contato. Pode ser transmitida a objetos ou a seres humanos (Santos, 2018SANTOS, Juliana Elbein dos. Os Nagô e a Morte: pàde, àsèsè e o culto a Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 2018., p. 40).

É essa a força que as sacerdotisas carregam em seus corpos-arquivo. Elas trazem a energia vital, o asé, de mulheres designadas pelo destino, odu, para transmitir às jovens praticantes da cultura do àse. As iniciadas deverão, quando Ebomis ou Ialorixás, passar os fundamentos do candomblé para outras mulheres em processo de iniciação, ou seja, dar continuidade ao ciclo ancestral. Nessa perspectiva, não é possível pensar a noção de presença cênica desenvolvida nesta pesquisa de pós-doutorado sem localizar a energia vital do asé materializada na noção de èmi ewá, presença, e sua transcriação poética para cena, e sem considerarmos os cruzamentos com suas realidades socioculturais, estéticas, políticas, religiosas e artísticas. Afinal, nas práticas performativas de matriz africana, essas linguagens e representações culturais não são compreendidas de forma separada, lembram?

A tese defendida neste artigo é que a produção de presença cênica desde essas práticas culturais de matriz africana deve ser entendida como um ato político de resistência, uma ação decolonial no campo das artes da cena. Afinal de contas, durante muitos anos seguimos os padrões eurorreferenciados em nossos processos criativos. É importante ressaltar que o que defendemos como proposição neste texto não se restringe à utilização de temáticas afrodiaspóricas, afro-ameríndias, enfim, afro-brasileiras, em nossos espetáculos, aspecto importante, mas que não necessariamente questiona as bases estruturais do fazer cênico. O argumento defendido aqui tem como fundamento demonstrar a ideia de que existem outras alternativas, para além das já conhecidas e impostas como universais pelo capitalismo global, neoliberal, colonial, patriarcal e racista euro-americano. Como afirma Ramón Grosfoguel,

Os saberes subalternos foram excluídos, omitidos, silenciados e/ou ignorados. [...] Os saberes subalternos são aqueles que se situam na intersecção do tradicional e do moderno. São formas de conhecimento híbridas e transculturais [...] são formas de resistência que reinvestem de significado e transformam as formas dominantes de conhecimento do ponto de vista da racionalidade não-eurocêntrica das subjetividades subalternas, pensadas a partir de uma epistemologia de fronteira. [...] A análise do sistema-mundo precisa descolonizar suas epistemologias, levando a sério o lado subalterno da diferença colonial/lado da periferia, dos trabalhadores, das mulheres, dos indivíduos racializados/colonizados, dos homossexuais/lésbicas e dos movimentos antissistêmicos que participam no processo de produção do conhecimento (Grosfoguel, 2008GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Tradução Inês Martins Ferreira. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 115-147, mar. 2008., p. 136).

Para concluir esta experiência propagada pela energia das palavras e dos encantos dos saberes ancestrais que circulam em nossos corpos, agradeço aos meus mais velhos e às minhas mais velhas.

Salve Makota Valdina e Mãe Stella de Oxóssi!

Adupé!!!

Referências

  • FU-KIAU, K. Kia Bunseki. African Cosmology of the Banto-Congo: principles of life & living. Canada: Athelia Henrietha Press, 2001.
  • GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Tradução Inês Martins Ferreira. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 115-147, mar. 2008.
  • MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
  • MIGNOLO, Walter. Desobediência epistémica: retórica de la modenidad, lógica da colonialidad y gramática da descolonialidad. Buenos Aires: Ediciones del signo, 2010.
  • QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del saber: eucentrismo e ciências sociales, Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO; Consejo Latinoamericano de ciências sociales, 2005.
  • RISÉRIO, Antonio. Oriki Orixá. São Paulo: Perspectiva , 2012.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. O Fim do Império Cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
  • SANTOS, Juliana Elbein dos. Os Nagô e a Morte: pàde, àsèsè e o culto a Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 2018.
  • SANTOS, Lau. Tela e Presença: o diálogo do ator com a imagem projetada. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2012.
  • SANTOS, Lau. A presença expandida: entre o ator e o performer, as máquinas de imagem como possíveis potencializadores da presença. 2016. Tese (Doutorado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.
  • SEARLE, John Rogers. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  • SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA, 2008.
  • SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2018.
  • TAVARES, Julio. Dança de Guerra: arquivo e arma (elementos para uma teoria da capoeiragem e da comunicação corporal afro-brasileira). Belo Horizonte: Nandyala, 2012.
  • THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986.
  • 1
    Oriki para Iansã de Síkírù Sàlámì, tradução Antonio Risério (2012RISÉRIO, Antonio. Oriki Orixá. São Paulo: Perspectiva , 2012.). Maiores informações ver Referências.
  • 2
    Esta pesquisa está sendo desenvolvida pelo autor deste artigo no Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia. O projeto foi contemplado com uma bolsa-CAPES, ao ser selecionado no edital PNPD/CAPES/PPGDANÇA/UFBA, no ano de 2018. A supervisão é da professora doutora Amélia Conrado.
  • 3
    A forma como a diretora e criadora do espetáculo escolheu para grafar a palavra àse, com um acento na letra “a”, foi respeitada no que diz respeito ao título do espetáculo. Ainda que signifiquem a mesma coisa, no decorrer das reflexões desenvolvidas no texto manteremos o acento na letra “e”.
  • 4
    Dançarina, professora e coreógrafa, Edileusa Santos foi integrante do Grupo Odundê, criado na década de 1970 pela professora Conceição Castro. Maiores informações sobre o grupo ver obra de Setenta (2008SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA, 2008.), presente nas referências.
  • 5
    Ciente da complexidade conceitual para denominar estas práticas, escolhemos estes dois termos e os colocamos no plural por entender a diversidade das culturas de matriz africana que se fusionaram no processo da diáspora africana.
  • 6
    Na língua umbundu, de origem bantu, elinga quer dizer ação. Uma das línguas bantus mais faladas em Angola, original dos povos Ovimbundos, que vivem nas montanhas centrais daquele país.
  • 7
    As expressões iorubanas èmi (eu sou) e èmí (espírito ou sopro da vida) são associadas à èmi wá: estou presente. Importante perceber que èmi, eu sou, é grafado sem o último acento e, portanto, se difere de émí, espírito, sopro da vida.
  • 8
    A intencionalidade é um conceito recuperado dos gregos pelo filósofo alemão Franz Brentano, no século XIX. Brentano foi o fundador da psicologia do ato que tinha como objetivo definir o estatuto de consciência dirigido para algo ou acerca de algo. Searle aceita a condição de Brentano sobre o conceito de intencionalidade e o expande para relação com o mundo. Para o filósofo americano, uma intenção – assim como crenças e desejos – é um tipo de estado intencional. Para maiores informações ver o livro Intencionalidade (Searle, 2002), editado pela Martins Fontes, presente nas referências deste artigo.
  • 9
    Grupo étnico banto que vive numa larga faixa ao longo da costa atlântica de África, desde o Sul do Gabão até as províncias angolanas do Zaire e do Uíge, passando pela República do Congo, por Cabinda e pela República Democrática do Congo. Em Angola são o terceiro maior grupo étnico.
  • 10
    O termo ipádè em iorubá significa encontro.
  • 11
    Alguns alunos de graduação, em sua maioria negr@s, também participaram dos encontros.
  • 12
    Estes estudos foram feitos durante os ipàdé, encontros, no ano de 2018, nas salas de aula da Escola de Dança da UFBA. Os encontros tinham a carga horária de 6 horas semanais.
  • 13
    Em Elinga, contar e cantar podem acontecer juntos ou de forma separada como mais um elemento. É importante dizer que essas linguagens variam dependendo da proposta cênica. Um simples assobio ou um som onomatopeico podem ser entendidos como um canto-contado.
  • 14
    Esta expressão foi usada pelo pesquisador/professor /performer Renato Cohen de forma minimizada em um de seus escritos. Ao descobri-la resolvi agregá-la em minhas reflexões sobre presença cênica. Observo que à época meus estudos dialogavam com a noção de pre-sença do filósofo alemão Martin Heidegger. A noção de ritualização do instante foi associada à noção de Dasein (Ser-o-aí), erroneamente traduzida no Brasil como ser-aí, devido à versão francesa etrê-lá.
  • 15
    Esses exercícios psicofísicos são criados pelo pesquisador e executados junto com os praticantes/participantes nos ipàdé (encontros).
  • 16
    Mitos iorubás que falam dos orixás.
  • 17
    Oriki pode ser entendido de forma genérica como um gênero literário, uma forma poética utilizada pelo povo iorubá para definir o mundo. No entanto, dentro da cosmogonia iorubá o termo faz parte de uma rede complexa que fundamenta a visão de mundo desse grupo étnico. No sentindo etimológico, Ori pode ser traduzido por cabeça e, Ki, por saudação. Em algum momento deste texto aparecerá o termo oriki coreocênicos, forma cunhada por este pesquisador para definir as composições cênicas criadas durante os processos criativos da pesquisa de pós-doutorado. É importante frisar o caráter híbrido dessas produções, que combina, mescla dança, teatro, artes visuais, música e novas tecnologias em um único evento cênico. Tal condição também é detectada pelo autor deste artigo no espetáculo Mulheres do Àse. Essa é uma característica fundamental das expressões culturais africanas e da afrodiáspora.
  • 18
    Link da apresentação do ipàdé1: <https://www.youtube.com/watch?v=zjHWmrc-V2I&t=12s>.
  • 19
    Na capoeira, a participação de quem está na roda é de atenção constante, mesmo que não sejamos os dois jogadores no meio da roda. A música, as ações, a mandinga, o movimento, quem chega, quem sai exigem daqueles que estão na roda um total estado de prontidão. Algo pode acontecer a qualquer momento e cada um dos presentes na gira poderá ter que responder prontamente. O risco físico é uma evidência que nos obriga a ficar atentos, mesmo que estejamos em uma condição de imobilidade, ou seja, apenas presentes. Presentificar-se é produzir lugaridades continuamente.
  • 20
    Exú é o orixá que reinventa a memória do tempo. Exú é o orixá que matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje. Segundo Juana Elbein dos Santos (2018, p. 41): “Exú é o princípio da existência diferenciada em consequência de sua função de elemento dinâmico que o leva a propulsionar, a desenvolver, a mobilizar, a crescer, a transformar, a comunicar”. Por sua força transgressora, exú foi satanizado pela igreja católica, então temos que reconfigurar seu papel no imaginário da cultura brasileira. Exú Mojubá! Laroyê Exú!
  • 21
    Ficha técnica e artística do espetáculo Mulheres do Àse: Direção Geral, Concepção e Roteirização Cênica: Edileusa Santos. Assistente de Coreografia: Agatha Oliveira. Intérpretes Criadoras: Sueli Ramos, Tânia Bispo, Sandra Santana, Fátima Carvalho e Sonia Gonçalves. Direção Musical: Alexandre Espinheira, Gilberto Santiago e Luciano Salvador Bahia. Trilha Sonora Original: Alexandre Espinheira, Gilberto Santiago e Sarah Fernandes. Músicos: Alexandre Espinheira, Gilberto Santiago, Sarah Fernandes e João Victor. Poema: “Vozes, mulheres” de Conceição Evaristo. Vídeos Depoimentos: Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Beata de Iemanja, Makota Valdina, Ebomi Nice de Yansã, Ebomi Vanda Machado, Ya Dagan Dinah e as Irmãs da Irmandade da Boa Morte.
  • 22
    Nos terreiros, lugares de asé, o conceito de segredo (awô) e o mistério dos orixás são guardados a sete chaves. Para saber os fundamentos religiosos das práticas de origem africana temos que conviver o dia a dia dessas roças, como se diz na Bahia.
  • 23
    Ainda que saibamos da existência dos Babalorixás (Pais de Santo), esse cargo nos terreiros foi, acreditamos que ainda seja, predominantemente ocupado por mulheres.
  • 24
    De forma simplificada, calunga grande é a forma como o povo banto denomina o mar, forma que divide o mundo físico do mundo espiritual. O cemitério também é conhecido como calunga pequena.
  • 25
    Faço aqui um trocadilho entre as duas formas gráficas do termo asé/áse para demonstrar a força e o poder vital dessas mulheres na tradição iorubá e a escolha do título do espetáculo. O termo áse, assim grafado na língua iorubá, uma língua tonal, deve ter um ponto embaixo da letra “s” e outro ponto debaixo da letra “e” que indica sonoridade mais grave ou mais aguda da letra marcada. O acento agudo, neste caso, se mantém na letra “a”. Na adaptação para o português-brasileiro encontramos duas grafias: axé, a mais popularizada, e asè, menos conhecida; esta última grafia é uma tentativa de aproximação à grafia da língua iorubá.
  • 26
    Este material foi escrito e enviado para divulgação do espetáculo, sendo gentilmente cedido pela diretora Edileusa Santos, em 2018.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • Editora-responsável: Celina Nunes de Alcântara

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2019
  • Aceito
    06 Jan 2020
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