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Despindo o Tempo: fendas eróticopolíticas no projeto cênico Strip Tempo - stipteases contemporâneos

Temps de mise à Nu: ruptures érotico-politiques dans les Strip Tempo - strip-teases contemporains

RESUMO

Este artigo instiga relações entre uma criação artística e a sua composição com um tempo político em articulação com o projeto artístico baiano Strip Tempo - stripteases contemporâneos, em suas versões presencial e a digital, realizada na pandemia. Inicia-se com uma contextualização política e estética de tais performances; na sequência, conceitos da psicanálise e contribuições das artes burlescas dialogam com a proposta dos stripteases cênicos, além da noção de arquivo performativo. Como conclusão, afirma-se que os stripteases resumem, estética e eroticamente, os percursos de artistas contemporâneos e mobilizam discussões sobre o corpo nu, seja como última fronteira de uma moralidade ultraconservadora no Brasil de hoje ou como experiência de um desejo pulsional nas artes.

Palavras-chave:
Striptease; Nudez; Erótica; Memória; Arquivo.

RÉSUMÉ

Cet article met en rapport la création artistique et sa composition dans un contexte politique, articulation qui se fait à partir du projet artistique de Bahia Strip Tempo - stipteases contemporâneos, dans sa version présentielle (2018) - dont la première a eu lieu la semaine de l'élection de l'actuel président - et dans sa configuration numérique, Web-Strips (2021), tenue au moment de la pandémie. La psychanalyse, les arts burlesques et le registre performatif génèrent dans ces pages des interlocutions théoriques en dialogue avec le projet susmentionné, qui chorégraphie des solos en format striptease, réalisant une sorte de résumé esthétique et érotique du parcours d'artistes contemporains et mobilisant des discussions sur le corps nu, soit comme dernière frontière d'une moralité ultraconservatrice dans le Brésil d’aujourd'hui, soit comme expérience d'un désir pulsionnel dans les arts.

Mots-clés:
Strip-Tease; Nudité; Érotique; Mémoire; Archive.

ABSTRACT

This article instigates relations between an artistic creation and its composition with a political time by examining the artistic project Strip Tempo - contemporary stripteases (2018). The live version of the project premiered the same week Jair Bolsonaro was elected president of Brazil. Its online configuration, Web-Strips (2021), took place during the pandemic. The text begins with a political and aesthetic contextualization of these performances; then, contributions from psychoanalysis and burlesque arts, along with the notion of performative archive, dialogue with the artistic proposition of stripteases. The conclusion affirms that the stripteases - in their live and remote versions - aesthetically and erotically summarize the trajectories of these contemporary artists. They also mobilize discussions about the naked body - whether as the last frontier of an ultra-conservative morality in Brazil, or as an experience that expresses an erotic drive in the arts.

Keywords:
Striptease; Nudity; Erotica; Memory; Archive

Um tempo

Em 01 de novembro de 2018, na exata semana em que foi eleito o atual presidente do Brasil - corpo e dramaturgia da ascensão de uma nova extrema direita no País e no mundo -, dez artistas baianos se desnudavam sobre o palco do Goethe Institut Salvador (Bahia) em uma peça experimental em formato de striptease. O trabalho deu-se no mesmo espaço cultural onde, um ano antes, com a realização da mesma produtora e plataforma de criação - Dimenti Produções Culturais -, o artista Wagner Schwartz havia realizado uma apresentação da obra La Bête na programação da décima primeira edição do IC - Encontro de Artes11 Realizado anualmente na cidade de Salvador (BA), desde 2006, pela Dimenti Produções Culturais em parceria com a Associação Conexões Criativas, o IC Encontro de Artes é uma plataforma pluriartística de criação e difusão das artes contemporâneas. Cada edição é atravessada por uma questão específica que orienta o processo curatorial e a composição da programação, que, atualmente, são dinamizados por Ellen Mello, Jorge Alencar, Larissa Lacerda e Neto Machado.. Ao final dessa sessão, o artista, ainda despido, tal qual apresenta a performance, recebia os aplausos do público de mãos dadas com quatro crianças que interagiram na apresentação - a qual possui dimensão expressamente relacional. No episódio ocorrido na capital baiana, as crianças estavam acompanhadas de seus familiares e responsáveis, que festejaram a coexistência de crianças, jovens e adultos em um espaço de arte. A performance em Salvador antecedeu a apresentação no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo do mesmo trabalho. Nesta ocasião, um registro fotográfico de uma criança tocando o tornozelo do artista nu se tornou imagem viral da mesma agenda política que elegia aquele presidente.

Em matéria do Jornal Correio (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Ananda. ‘A arte entende o corpo nu muito além do sexo’, diz Jorge Alencar sobre performance. Jornal Correio, Salvador, 2017. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/a-arte-entende-o-corpo-numuito-alem-do-sexo-diz-jorge-alencar-sobre-performance/. Acesso em: 26 jul. 2022.
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), Jorge Alencar - um dos curadores do IC - Encontro de Artes e diretor de Strip Tempo, declarava: “Estamos certos de que a arte entende o corpo nu muito além do sexo. Somos nós. É lugar de resistência e de liberdade. Com essa onda conservadora potencializada pelas redes, o nu é culpabilizado. Corpo nu é lugar de poesia”.

Na esteira de desculpabilizar o corpo nu e restituir a sua força pulsional, este artigo pensa como um projeto artístico compõe com um tempo político. Não necessariamente no sentido de adesão homogeneizante, mas de enfrentamento erótico e vital. Strip Tempo22 Ficha técnica de Strip Tempo. Direção e roteiro: Jorge Alencar / Codireção: Neto Machado / Assistência de direção: Marina Martinelli / Criação e performance: Douglas Gibran, Fábio Osório Monteiro, Isaura Tupiniquim, Jaqueline Elesbão, João Rafael Neto, Jorge Oliveira, Leonardo França, Lia Lordelo, Neto Machado e Rainha Loulou / Concepção de Luz e edição de trilha sonora: Moisés Victório / Operação de Luz: Moisés Vitório e Ruhan Alves / Temas musicais originais: Leonardo França e Moisés Victório / Identidade visual e direção de arte: TANTO - criações compartilhadas (Daniel Sabóia, Fábio Steque e Patricia Almeida) / Supervisão de figurino: Neto Machado / Direção de Produção: Ellen Mello / Produção: Marina Martinelli e Natália Valério / Financeiro: Marília Pereira / Comunicação: Marcatexto / Realização: Dimenti Produções Culturais. surge no Brasil e, mais especificamente, na Bahia, em um momento histórico hostil, com a potencialidade de produzir um documento por meio de performances que realizam desnudamentos concretos e simbólicos dos percursos criativos de uma geração de artistas, bem como de um tempo em que o corpo nu na arte parece ser a última fronteira de uma moralidade ultraconservadora. Se, por um lado, é retirado o que oculta o corpo em sua nudez originária, por outro, mesmo despido, o corpo não está nu, posto que está carregado de dizeres, de marcas dramatúrgicas, estéticas e históricas, e também de interdições.

Por entre as frestas, entrevíamos caos. Em julho de 2017, o artista curitibano Maikon Kempinski teve a performance DNA de Dan interrompida por policiais militares na cidade de Brasília. Posicionado no espaço aberto em frente ao Museu Nacional da República, Maikon ficava dentro de uma bolha plástica, tendo aplicado sobre seu corpo nu uma substância que se resseca, gradualmente, até formar uma espécie de segunda pele que se parte à medida que ele respira. Uma súbita perturbação gerada pela visão de seu corpo nu convocou forças de autoridade a reprimirem a situação. Chamamos atenção para este trecho da reportagem no Correio Braziliense, que documentou o ocorrido: “Maikon foi interrompido por policiais militares, que ordenaram que ele se vestisse. Depois, ele foi colocado na traseira de uma viatura e levado à delegacia” (Rezende, 2017REZENDE, Humberto. Artista é preso durante apresentação que integra o Palco Giratório, do Sesc. Correio Braziliense, Brasília, 16 jul. 2017. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2017/07/16/interna_cidadesdf,610075/artista-e-preso-durante-apresentacao-que-integra-o-palcogiratorio.shtml. Acesso em: 26 jul. 2022.
https://www.correiobraziliense.com.br/ap...
). É curioso que a primeira ordem dos policiais tenha sido: vista-se. Era o crime primeiro, portanto, desnudar o próprio corpo.

Logo em seguida, no mês de setembro, a exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no Santander Cultural de Porto Alegre, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, foi encerrada semanas antes do previsto após uma série de protestos nas redes sociais. Acusações de blasfêmia religiosa, pedofilia, zoofilia, entre outros crimes. Políticos e ativistas conservadores, a exemplo do Movimento Brasil Livre, acusaram artistas como a carioca Adriana Varejão de incitação à pedofilia, usando como exemplo uma imagem da obra Cena de Interior II.

Dissidências do corpo. Em vias de cartografar a diferença em um tempo histórico intempestivo, o corpo nu posiciona-se em nome de uma exigência ética, envolvendo práticas compositivas e curatoriais. Este artigo articula a prática artística com a reflexão teórica, configurando-se como um trabalho de pesquisa através das artes, ou de pesquisa em artes (Borgdorff, 2012BORGDORFF, Henk. The Conflict of the Faculties: perspectives on Artistic Research and Academia. Leiden: Leiden University Press, 2012.). Mais do que articular prática e teoria, parte-se, aqui, do pressuposto de que a prática artística em si mesma compõe, de modo essencial, tanto o processo de pesquisa quanto seus resultados. Uma perspectiva performativa de pesquisa, cujo ponto de partida é precisamente o entusiasmo pela prática (Haseman, 2006HASEMAN, Brad. A Manifesto for Performative Research. Media International Australia incorporating Culture and Policy, theme issue ‘Practice-led Research’, n. 118, p. 98-106, 2006.).

O que pulsiona as relações estabelecidas entre corpo e política nesta escrita firma-se na compreensão de corpo como agenciador de (com)posições de uma cena comum, sendo, ao mesmo tempo, singular e coletivo, histórico e imaginativo. Ainda que as interdições sofridas por obras e artistas no Brasil de hoje atravessem o campo institucional, aqui a noção de política - incorporada e relacional - transborda a moldura da política institucional.

Em consonância com Rancière (2005)RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org; Ed 34, 2005. 72 p., arte e política têm o potencial de intervir no tecido da sensibilidade, nos seus visíveis e invisíveis, como modos coletivos de enunciação, um jeito de conceber as artes como formas de inscrição do sentido de comunidade. Essas formas “[...] definem a maneira como obras ou performances ‘fazem política’, quaisquer que sejam as intenções que as regem, os tipos de inserção social dos artistas ou o modo como as formas artísticas refletem estruturas ou movimentos sociais” (Rancière, 2005RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org; Ed 34, 2005. 72 p., p. 18).

A criação dessa cena ou mundo comum e suas (com)posições é também explicitada pela perspectiva trazida por Marina Fervenza e Henrique Seidel (2020, p. 05), artistas e pesquisadores atuantes na cena burlesca nacional:

Política enquanto posicionamento e ação perante o e no mundo, no domínio público, na sociedade, mesmo que esse posicionamento seja uma pergunta, uma insatisfação inominável, um desejo que ainda não tem forma, uma intuição de que algo precisa ser feito, aqui e agora. Pensar a dimensão política de uma performance é pensá-la em seu contexto histórico e social, é pensá-la como criadora de contexto, sempre em perspectiva, sempre conectada ao tecido de forças que regem a sociedade, é pensá-la, para além da estética, esteticamente, é pensá-la no mundo enquanto ente criado pelo e para o mundo, individual e coletivamente, é pensar na qualidade e nos desdobramentos dessa relação tão estreita com o espectador, e nos efeitos que essa estreiteza tem para com artistas e não artistas. Estética, erótica e política são vistas, assim, como abordagens indissociáveis e mutuamente determinantes.

Um sonho

Nua e diante do público, a performer, pesquisadora e psicóloga Lia Lordelo está no palco segurando um microfone e palestrando sobre conceitos freudianos fundantes:

Outra noite eu tive um sonho. Eu estava exatamente assim: diante de uma plateia lotada e completamente pelada. Freud falava do sonho como um material emocional repleto de sentido, assim como outras manifestações como os atos falhos e chistes. Freud dizia que os sonhos são expressões de desejos inconscientes, coisas que a gente deseja sem saber exatamente que deseja33 A transcrição dos trechos do espetáculo foi feita por meio do acesso ao registro em vídeo de Strip Tempo. Precisamente por mostrar nudez, a obra não se encontra disponível online..

Antes, na cena, Lia teria emergido de um monte de bonecas, cantado, preparado um café. Uma série de ações que entremeiam materiais cênicos de obras que ela já havia performado previamente, ao longo de seu percurso como artista, e perfazem seu solo no projeto Strip Tempo - stripteases contemporâneos.

O projeto, estreado em 2018, reuniu solos em formato de striptease que revelavam não apenas corpos, mas também o resumo estético e erótico do trajeto de criadores contemporâneos da Bahia. Com direção do encenador, coreógrafo e realizador audiovisual Jorge Alencar (2018)ALENCAR, Jorge. Strip Tempo: stripteases contemporâneos. 2018. Obra coreográfica., cada solo propôs uma composição de cenas, figurinos, trilhas sonoras, textos, pesquisas de movimento e outros elementos estéticos presentes na carreira de cada artista participante. Enquanto se despiam diante do público, concediam miradas de suas cosmogonias, poéticas, lógicas de compor e perspectivas éticoestéticas. Strip Tempo atiçou zonas nem sempre visíveis dos trabalhos (e do corpo) de cada artista envolvido.

Como desnudar poéticas? Quais materialidades e performatividades lhes dão corpo? Quais são as questões que movem os trabalhos e subjetividades de cada artista? Com quais texturas dramatúrgicas organizam seus discursos? Quais princípios animam as suas composições? De quais fontes bebem? Como seus trabalhos convidam (seduzem?) seus públicos? Tais questionamentos motivaram a composição dos solos de Strip Tempo, na medida em que este artigo lhes ensaia respostas.

Mesmo desnudando-se, as/os artistas em Strip Tempo informam (revelam) sobre o que vestem, no sentido de um dizer, uma linguagem, uma timbragem cuja força está na singularidade que não se apresenta nua, mas com marcas acentuadas, uma vez que “o presente revelado pelo striptease é a identidade” (Saidel; Fervenza, 2020SAIDEL, Henrique; FERVENZA, Marina. Brinquedos, Duplos e Outros Corpos Performáticos: ‘Experimento a Quatro Mãos’. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020., p. 15).

A temporada de estreia em Salvador (BA) foi organizada em dois volumes, cada um abarcando cinco diferentes solos, dos quais participaram, no primeiro volume, as dançarinas e performers Isaura Tupiniquim e Jaqueline Elesbão; o performer e músico Leonardo França; o ator e dançarino Neto Machado e a drag queen Rainha Loulou. No segundo volume, estavam a cantora e atriz Lia Lordelo; o ator e dançarino Fábio Osório Monteiro; o dançarino Jorge Oliveira; o bailarino, capoeirista e professor de pilates Douglas Gibran; o dançarino e ciclista João Rafael Neto.

Penetrando nos ambientes do cabaré e da arte drag, o trabalho gerou visibilidades a uma expressiva geração de artistas do estado da Bahia que fazem da experimentação na arte seu cabaré subterrâneo e sua posição no mundo. Strip Tempo apostou na grande vitalidade da articulação entre arte contemporânea e artes burlescas, ao relacionar estética e erótica.

Giorgia Conceição (Miss G), pesquisadora, performer e referência do burlesco contemporâneo no Brasil, relaciona o Burlesque - ou burlesco - à produção performativa de corpos cujas subjetividades e identidades não cabem em padrões homogeneizantes ou canônicos da historiografia e da crítica artística oficiais. “Compreendo a burla como ação, e o burlesco como estratégia de produção de diferença. Nesse sentido, seu uso desestabiliza as políticas autoritárias. Na burla do corpo, rompe-se com as lógicas e práticas normatizadoras, criando-se possibilidades de reinvenção” (Conceição, 2018CONCEIÇÃO, Giorgia. Qual é o lugar do Burlesco no Brasil?. Horizonte da Cena, 12 jun. 2018. Disponível em: https://www.horizontedacena.com/qual-e-olugar-do-burlesco-no-brasil/. Acesso em: 18 jul. 2022.
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, p. 10). Tendo o striptease como um de seus principais componentes dramatúrgicos, as artes burlescas ganham corpo na performance de corpos (ou corpas!) marginalizados.

Uma pulsão

É sintomático que gradativamente tenhamos nos tornado, em especial desde o golpe parlamentar de 2016, uma sociedade mais reacionária, mais moralista - menos laica, vale lembrar (Conceição, 2018CONCEIÇÃO, Giorgia. Qual é o lugar do Burlesco no Brasil?. Horizonte da Cena, 12 jun. 2018. Disponível em: https://www.horizontedacena.com/qual-e-olugar-do-burlesco-no-brasil/. Acesso em: 18 jul. 2022.
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), que restringe e controla cada vez mais corpos; em especial, os corpos que se mostram e que, ao mesmo tempo, expõem o recrudescimento de tais paranoias cerceadoras, a exemplo dos artistas relatados anteriormente.

O corpo nu é uma isca perfeita - arriscamos dizer, apenas porque é um tanto óbvio. É como se ver alguém despido fizesse soar uma espécie de alarme moral que ultrapassa ou, de certo modo, não consegue acessar qualquer sentido possível que se possa construir sobre aquela nudez. E o mais curioso desse alarme é que ele pode funcionar como um falso indexador: o pavor do nu escamoteia questões mais instigantes, complexas e desestruturadoras para nossas subjetividades humanas. Se, num certo sentido psicanalítico, a energia que desprendemos em nos afastar de algo que se relaciona justamente ao impacto que este algo causa em nós, ao mesmo tempo seria mais honesto e produtivo entender esses pavores, ódios e ascos como dimensões que nos são constitutivas.

Além de outros conceitos fundamentais, como os trazidos pela performer Lia em seu solo em Strip Tempo, algumas ideias freudianas são importantes para dialogarmos com essas fendas escamoteadas pelo corpo nu. Uma delas é a noção de pulsão, primeiro apresentada no seminal Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (Freud, 1974bFREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. FREUD, Sigmund. Obras completas. ESB, v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1974b.). Definida como uma espécie de excesso energético, a pulsão é uma força em nós que não podemos eliminar; tampouco satisfazer plenamente. Da pulsão, deriva o desejo que nos move e essa realidade é incontornável.

O psicanalista Perci Schiavon (2019SCHIAVON, João Perci. Pragmatismo Pulsional: Clínica Psicanalítica. São Paulo: N-1 Edições, 2019., p. 149) compreende a pulsão como uma força de natureza ética e clínica, necessária para apurar a escuta que aponta para uma espécie de critério da vida que avalia as condições de um processo; entretanto, “[...] o que chamamos de pulsão em psicanálise não é, por sua vez, um estado da natureza, em eventual confronto com instâncias egóicas e culturais, e sim a reconstituição ativa e constante, mediante ensaios e atos sublimatórios, daquela multiplicidade real”.

A pulsão em sua dimensão ético-estética requer exercício, uma vez que existir é, de fato, “agir na altura da pulsão” (Schiavon, 2019SCHIAVON, João Perci. Pragmatismo Pulsional: Clínica Psicanalítica. São Paulo: N-1 Edições, 2019., p. 248). Existir em ato, em um dizer íntegro, em que a pulsão se define como modo de subjetivação processual que se dá por força de uma ação continuada, por meio da sublime-ação. Seja na psicanálise ou na arte, a sublimação seria “o exercício direto da pulsão, sua feição ativa originária, e não há outro real que o de sua prática” (Schiavon, 2019SCHIAVON, João Perci. Pragmatismo Pulsional: Clínica Psicanalítica. São Paulo: N-1 Edições, 2019., p. 155), agindo e compondo no mundo de modo pragmático e experimental.

Tamponar nossos desejos pulsionais gera a ojeriza do corpo, seu enquadre, controle. É que não se pode contornar o real. Neste real, precisamos nos confrontar com nossas faltas, e ainda com nossas diferenças - a alteridade, e é nela que se funda o erotismo.

E o que seria esse erotismo? Susan Sontag (1987)SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987. denunciava um excesso de interpretação na crítica das artes, já na década de sessenta do século passado, e clamava por uma erótica da arte (Sontag, 1987SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.). O potencial erótico de um trabalho poético nada mais é do que a conexão que este faz com a vida e “com as experiências subjetivas particulares que se processam via laço social” (Santos, 2020SANTOS, Evandro dos. Por uma erótica da História: ensaio sobre possibilidades e limites nos diálogos entre História e Psicanálise. Revista de Teoria da História, v. 23, n. 2, p. 322-331, 2020., p. 327).

Na contramão da interpretação e da hermenêutica, Sontag propôs uma crítica pulsante e erótica que se relacionasse com a criação em arte sem que fosse necessário buscar qualquer significado fora e além da obra, sem que a relação com ela fosse mediada por critérios de avaliação apriorísticos e universalizantes. Em diálogo com as perspectivas de Sontag e de Schiavon, entendemos aqui que uma dimensão pulsional e erótica na experiência artística implica considerar cada obra em sua singularidade e no seu caráter imanente, não estando, portanto, sujeita a nenhuma outra lei senão aos parâmetros estabelecidos por ela mesma e pelo seu processo.

Ainda a partir de uma contribuição psicanalítica, Fortes (2007)FORTES, Isabel. Erotismo versus Masoquismo na teoria freudiana. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 35-44, 2007. afirma que a experiência erótica permite ao sujeito viver um prazer de intensidade; a autora ainda enumera três lugares teóricos, no pensamento freudiano, a partir dos quais se pode entrever este prazer - o masoquismo, a sexualidade perversa polimorfa44 As noções de masoquismo e sexualidade perversa polimorfa estão apresentadas, respectivamente, nos textos de Freud (1974a; 1974b) O problema econômico do masoquismo e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. e a experiência estética - e que estes lugares se encontram em um ponto comum: na atitude de entrega do sujeito frente a uma alteridade que o perturba justamente por ser fonte de excitação (Fortes, 2007FORTES, Isabel. Erotismo versus Masoquismo na teoria freudiana. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 35-44, 2007., p. 43).

E se é assim; no caso, se o corpo pulsional marca permanentemente sua diferença face aos outros corpos no espaço social (Birman, 1994BIRMAN, Joel. Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.), voltamonos a Maikon, a Wagner; a Strip Tempo em particular. No conjunto de solos, em seu enquadre de cabaré, e em sua qualidade burlesca, o fetiche do desnudamento é trazido para a cena por meio de corpos que se movem desdobrando e reconfigurando suas trajetórias artísticas, num ato ao mesmo tempo poético e político. Aí está a burla do corpo teorizada por Conceição (2011)CONCEIÇÃO, Giorgia. A Burla do Corpo: estratégias e políticas de criação. 2011. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.: uma ação que assinala a diferença, celebra a memória e comenta o corpo.

Um registro

Strip Tempo articula arte e memória, uma vez que toma como principal matéria de criação obras pré-existentes, produzidas ao longo dos últimos anos pelo grupo de artistas participantes, fazendo deste repertório pregresso e em movimento o motor desses novos trabalhos artísticos solísticos. A prática de tomar obras preexistentes como matéria de criação artística na produção de novas composições toca no que Rancière (2005RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org; Ed 34, 2005. 72 p., p. 36) propõe sobre o regime estético das artes, que, segundo o autor, é “antes de tudo um novo regime da relação com o antigo”.

Em diálogo com as ideias de Walter Benjamin (1996)BENJAMIN, Walter. The Task of The Translator. In: BULLOCK, Marcus; JENNINGS, Michael W. (Ed.). Walter Benjamin: Selected Writings. Volume 1: 1913-1926. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1996., André Lepecki (2016)LEPECKI, André. Singularities: Dance In The Age of Performance. London; New York: Routledge, 2016., ao pensar sobre a prática da tradução de obras e de reenactments55 Em consonância com Lepecki (2016) e Ramos (2020), compreendemos o reenactment como uma prática de reencenação / reativação de obras e ações performativas preexistentes na dança que toma a memória e a história como experiências incorporadas e compositivas. Segundo De Laet (2018), no campo da História, o conceito foi inicialmente desenvolvido pelo historiador e filósofo britânico Robin George Collingwood (1889-1943) a fim de referir-se à compreensão da ação de agentes históricos pela reconstrução de seus pensamentos e motivações. O termo inglês reenactment data de 1780 e diz sobre o ato de realizar de novo, reconstruir ou refazer uma experiência ou uma situação passada., chama a atenção sobre uma certa incompletude originária e radical das obras artísticas que trazem em si, desde o seu forjamento, um potencial de futuridades. Desde sua criação, cada obra comportaria matérias de relações futuras, seja em processos de percepção que se abrem em novos contextos históricos ou como possíveis fontes de traduções e transcriações.

Em Strip Tempo, essa articulação mobiliza uma espécie de composição sustentável que recicla, reutiliza e reativa materiais artísticos de outros contextos e épocas atualizados no momento presente, como arquivo vivo que ativa potências de obras pregressas. Tal movimento de arquivamento, via corpo, investiga também os modos como a força política-performativa da criação artística pesa a sua própria historicidade, recriando complexas economias temporais que transformam, sincronicamente, presente, passado, futuro.

Lepecki reflete sobre esse movimento de arquivamento e reenacting na dança, indagando os porquês de essas operações darem-se no corpo, que é, ao mesmo tempo, movediço e privilegiado, com uma precariedade constitutiva, pontos cegos, indeterminações linguísticas, lapsos de memória, mas ainda assim “[...] o corpo como arquivo re-posiciona e desvia as noções de arquivo longe da moldura de depósito documental ou de uma agência burocrática dedicada à uma gestão ruidosa do ‘passado’” (Lepecki, 2016LEPECKI, André. Singularities: Dance In The Age of Performance. London; New York: Routledge, 2016., p. 123)66 Tradução nossa para: “the body as archive re-places and diverts notions of ar-chive away from a documental deposit or a bureaucratic agency dedicated to the (mis)management of the ‘past’”.. Ideias que vão ao encontro da proposição de Roberta Ramos (2021)RAMOS, Roberta. Uma Biblioteca de Dança ‘mais na carne’: histórias dissonantes das experiências com a dança para vidas presentes. Dança: Revista Do Programa De Pós-Graduação Em Dança, Salvador, Universidade Federal da Bahia, v. 6, n. 1, jul./dez, 2021., ao tratar da obra ‘Biblioteca de Dança’ (2017), outro trabalho dirigido por Jorge Alencar e Neto Machado. O projeto também se interessou por uma prática de arquivamento performativo: “[...] desestabilizam-se também as tradicionais compreensões de arquivo: de repositório de armazenamento, registro e classificação de documentos, vestígios e rastros do passado, passa a ser pensado como um sistema complexo formativo, transformativo, disperso e dinâmico” (Ramos, 2021RAMOS, Roberta. Uma Biblioteca de Dança ‘mais na carne’: histórias dissonantes das experiências com a dança para vidas presentes. Dança: Revista Do Programa De Pós-Graduação Em Dança, Salvador, Universidade Federal da Bahia, v. 6, n. 1, jul./dez, 2021., p. 90).

Nessa direção, Strip Tempo gera visibilidades tanto para uma geração de criadores como para um dado contexto temporal e geográfico, constituído de produções singulares e heterogêneas. O projeto experimenta jeitos de coreografar percursos artísticos, com o desejo de criar uma história viva, documentando carreiras de artistas contemporâneos por meio do próprio corpo e da própria cena.

Figura 1
A artista Jaqueline Elesbão em Strip Tempo.

Strip Tempo faz parte de um conjunto de trabalhos artísticos e curatoriais que propõem relações entre memória, história, arquivo, documento e registro pensados em termos de composição coreográfica, entendendo história e memória como fatores que merecem ir além de qualquer “história oficial” ou contada exclusivamente por “vozes oficiais”, podendo ser animada pelos seus próprios agentes. Além de Strip Tempo, os artistas e pesquisadores Jorge Alencar e Neto Machado - dançarino e codiretor de Strip Tempo - entrecruzam memória e erótica como ignições de criação artística em diversas criações, dentre as quais é possível destacar: souvenir (2012), peça de dança feita em quintais a partir de componentes e princípios de obras dos artistas Neto Machado, Leonardo França e Fábio Osório Monteiro; Pinta (2013), longa-metragem que passa em revista e reativa materiais performativos da primeira década de trabalho da Dimenti; IC - Encontro de Artes, festival realizado na cidade de Salvador (BA) pela Dimenti Produções Culturais e pela Conexões Criativas, que, em 2013, tomou como lema curatorial “Memória como Motor”; Chama - Coreografia para Artistas Incendiárixs (2018), peça criada com o Balé do Teatro Castro Alves (BA), que toma como disparador o incêndio ocorrido no Museu Nacional (RJ) para instigar a memória do trajeto da companhia, salvaguardando-a de ataques concretos e simbólicos.

O desejo de compreender a memória como ativo de criação e curadoria diz respeito também à possibilidade de alçar dimensões compositivas além de pares de oposição, como: passado x presente, velho x novo, ontem x hoje, trás x frente, fazendo da cena e do corpo plataformas de vitalidade e eroticidade, no sentido de potencialmente transformadoras, tecidas a partir de materiais artísticos pré-existentes em processo continuado de reencarnação. Um projeto ético-estético que bebe das escritas de Leda Maria Martins (2021)MARTINS, Leda Maria. Performances do Tempo Espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. e de suas concepções de tempo espiralar. Ao tratar da questão da ancestralidade, Martins (2021MARTINS, Leda Maria. Performances do Tempo Espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021., p. 63) refere-se a um tempo curvo, recorrente e espiralar, que:

[...] retorna, reestabelece e também transforma, e que em tudo incide. Um tempo ontologicamente experimentado como movimentos contínuos e simultâneos de retroação, prospecção e reversibilidades, dilatação, expansão e contenção, contração e descontração, sincronia de instâncias compostas de presente, passado, futuro.

Em sua pesquisa de mestrado, Neto Machado (2014)MACHADO, Mário Neto. Reencarnação: registro como coreografia na obra “Retrospectiva” de Xavier Le Roy. 2014. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014., codiretor de Strip Tempo, debruçou-se sobre o registro em dança como um possível ato coreográfico capaz de engendrar ações ativadoras/atualizadoras da memória da dança a partir dela mesma, sendo uma prática politicamente motivada no contexto que performa. O artista e pesquisador afirma que as relações entre obra e registro são muitas vezes balizadas pelas ideias de fidelidade e autenticidade, gerando equívocos recorrentes que hierarquizam a superioridade da obra em relação ao registro, estando o registro sempre “aquém” da obra, sempre a ela sujeitado em sua questionável dimensão estética. Os solos de Strip Tempo estabelecem com as obras que lhes são fontes relações de documentação e registro, sem pretensões de recorrer a noções como fidelidades e nostalgia.

As performances criadas no projeto são autônomas em relação às suas obras-fonte: nem aquém, nem além delas. Na medida em que buscam aguçar a curiosidade do público para que este queira conhecer e acessar os trabalhos prévios de onde vieram os componentes de cada solo, os stripteases no projeto são registros estéticos e eróticos do percurso desses artistas, sem contas a prestar com as experiências das quais derivam.

Nessa direção, em Strip Tempo, as próprias cenas e corpos são os meios e os modos de documentar o que aqueles corpos produziram como cenas e corporalidades em experiências anteriores, como dispositivos sensoriais, táteis e libidinais. O projeto documenta percursos artísticos por meio de filtros enfaticamente eróticos, principalmente no que tange aos processos de mediação com o público para o qual cada striptease é dirigido, coreografando manobras de olhar, sensações, intensidades, durações e espacialidades que jogam com aproximações e distanciamentos das obras-fonte, como uma provocação (teasing), como um revelar que se dá aos poucos, camada por camada, produzindo aberturas, ora mais frontais, ora indiretas, mas sempre convocadoras.

Umas camadas

Prólogo: Luz da plateia sempre acesa. Montada com roupas masculinas de seu drag king Vitor, Jaqueline Elesbão entra pelo fundo do palco posicionando-se de frente e de perfil, em referência à cena inicial de sua peça ‘Entrelinhas’, que remonta às fotografias de fichamento policial. Do fundo do palco, aproxima-se da plateia, à medida que pontua no espaço poses icônicas de Vítor, acentuando uma performatividade reconhecidamente masculina tão sedutora quanto arquetípica. Vitor beija a mão de alguém do público. Introdução da canção ‘Te amo desgraça’ de Baco Exu do Blues77 Idem à nota 3..

O que identificar na obra dos artistas como possível matéria de um desnudamento performativo, com destaque para os trabalhos solísticos ou nos quais a/o artista afirma posições de acentuada autoria? O que contrasta e/ou conecta essas obras pré-existentes em termos de temas, recorrências e materialidades? Algo constitui a obra dessa/desse artista que seja passível de uma condensação compositiva, uma metonímia? Há elementos nos trabalhos realizados por cada artista que conversem de modo mais ou menos explícito com o multiverso do striptease, a saber: o corpo nu, a erótica, a exposição provocativa, os atos de ocultar e de revelar, o comentário humorístico ou gozador, as relações entre camadas de roupa e pele, o acesso gradual a zonas ocultas do corpo? Como criar conexões e continuidades dramatúrgicas com materiais aparentemente descontínuos - como composição em ilha de edição -, uma vez que advêm de diferentes trabalhos?

Para a criação dos stripteases, cada artista decidiu o que iria disponibilizar ao diretor para ser considerado como possível material para a composição dos solos, a exemplo de registros em vídeo das suas obras, fotografias, críticas publicadas, anotações de processo, bibliografias, entre outras fontes. A seleção do material a ser acessado/considerado teve, assim, um caráter ético-metodológico que tomava como parâmetro principal o que a/o artista queria dar a ver e destacar dentre tudo aquilo que vinha produzindo na última década.

A partir daí, foi feito um roteiro inicial que propunha conectividades entre diferentes materiais das obras previamente existentes na direção de uma nova composição autônoma: singular e em relação com o percurso de cada artista. O roteiro inicial de cada solo era levado para a sala de ensaio para ser experimentado com cada participante. Esse movimento, de uma nova composição feita a partir de materiais já existentes, possibilita tanto uma familiaridade com os materiais, mas também certo distanciamento, que gera nossas sinapses dramatúrgicas entre materiais que vieram de contextos distintos.

Em um campo ficcional de autorias trançadas, o novo solo criado para o projeto bebia das lógicas de compor de cada artista, bem como dos materiais que elas e eles mobilizam, sendo roteirizados por alguém que fez uma seleção curatorial de alguns dos materiais em meio às fontes disponibilizadas e os “editou”, sendo possível ir além das configurações-fonte dos trabalhos acessados. O diretor e roteirista intervém, nesse pacto de criação de autoria descentrada, como um voyeur participativo, que toca, penetra e compõe.

Epílogo: Depois de tirar várias camadas de sutiã, Jaqueline Elesbão está de costas e, ao virar-se na direção do público, revela, em seu rosto, uma máscara de flandres. Repete as posições em perfil do início e, aos poucos, realiza movimento de braços que alude ao balé ‘O Lago dos Cisnes’ citado em uma das versões da peça ‘O Samba do Criolo Doido’, dirigida pelo coreógrafo Luiz de Abreu, na qual performou. O movimento se intensifica. O cisne com máscara de flandres agoniza. Aos poucos, sai de cena.

Uma intimidade

CENA 03 INT. ESCRITÓRIO DE LIA LORDELO - DIA

Lia está nua, vestindo apenas seus óculos de grau. Prepara o escritório de sua casa para uma live. Fala direto para o seu celular como em uma palestra.

Lia - Freud propôs os conceitos de id, ego e superego. Nesse recorte (com suas mãos, faz gesto desenhando um retângulo no ar). O id, basicamente, responde por nossos instintos mais primitivos, ligados às pulsões sexual e agressiva. Suas forças buscam satisfação imediata, funcionam de acordo com o que chamamos de princípio do prazer. Para conter essa energia psíquica e fazê-la interagir de modo adequado com o mundo real, temos o nosso ego, um mediador da interação entre o id e o mundo exterior. É ele quem obedece ao princípio da realidade, e luta para satisfazer os instintos do id. Um não existe sem o outro. A terceira instância de nossa vida mental é o superego, que é uma instância de censura88 Retirado do roteiro não publicado de Web-Strips..

Durante a pandemia, foi realizada uma transcriação digital do projeto Strip Tempo intitulada Web-Strips, que, além dos corpos e carreiras de seis dos artistas que participaram da sua versão presencial, desnudou as suas casas, a intimidade de seus locais domésticos, corpo arquitetônico de diversas ações artísticas durante a pandemia em decorrência do imperativo do isolamento social.

A versão online do projeto, em formato de vídeo-performance, com duração média de quatro minutos cada, buscou penetrar em um ambiente específico dentre as plataformas digitais: a função chamada de Amigos próximos, presente nos stories do Instagram, que permite que o perfil usuário direcione suas publicações para contatos específicos, no caso, o público que adquiriu os ingressos. Um dos modos nos quais tal ferramenta é utilizada diz respeito à produção de conteúdos mais provocativos, uma espécie de espaço privativo em meio ao escancaramento dos demais conteúdos divulgados no aplicativo. As fotos ou vídeos publicados nos Amigos Próximos ficam acessíveis por até 24 horas e, depois disso, desaparecem imediatamente, e por conta dessa reservada efemeridade (dimensão tão cara às artes da presença) abre-se um campo para o exibicionismo, e para as secretas trocas em mensagens privadas. Assim, a versão digital do projeto penetrou nas disposições dramatúrgicas e práticas de interação já presentes naquele ambiente específico, produzindo, inclusive, os vídeos em formato vertical como propõe a estética dos stories da plataforma Instagram.

Figura 2
A artista Lia Lordelo em Web-Strip.

Em época de isolamento social, inclusive, uma plataforma de compra e venda de imagens de pessoas nuas superou 100 milhões de usuários no mundo, segundo reportagem do site Olhar Digital (Lima; Barros, 2021LIMA, Kaique; BARROS, Matheus. OnlyFans: como funciona a plataforma que já tem mais de 100 milhões de usuários. Olhar Digital, 02 abr. 2021. Disponível em: https://olhardigital.com.br/2021/04/01/internet-e-redes-sociais/only-fansatinge-100-milhoes-de-usuarios/. Acesso em: 26 jul. 2022.
https://olhardigital.com.br/2021/04/01/i...
), tornando-se fonte de renda para muitos desinibidos. O projeto Web-Strips fez valer o famigerado manda nudes como ignição interativa para adaptar o projeto original; mais uma vez, respondendo ao tempo, formulando arte a partir da memória da dança, documentando-a, dessa vez em formato digital efêmero, nos espaços domésticos de cada artista confinado pela pandemia. Um peepshow em casa, ambiente íntimo que, na pandemia, por meio de uma intensa mediação digital, alçou dimensões estéticas, públicas e políticas.

Os roteiros dos Web-strips valeram-se das camadas de sentido que cada cômodo da casa carrega, cada um favorecendo certas práticas íntimas/individuais ou coletivas/comuns, tendo em vista que cada pessoa espectadora iria acessar tal intimidade - das/dos artistas e de suas casas - desde a privacidade de seu lar e de seu dispositivo tecnológico. O psicanalista Eduardo Leal Cunha (2021CUNHA, Eduardo L. O político e o íntimo: subjetivação e política, do impeachment à pandemia. Salvador: Devires, 2021., p. 33) evidencia relações entre intimidade e política nos tempos contemporâneos, do impeachment à pandemia, argumentando que, de algum modo, “[...] a polis grega foi reduzida ao quarto de dormir, em especial a um momento de intimidade diante do computador”

Nas experiências do Strip Tempo e dos Web-strips o íntimo é matéria de intervenção política, seja como substância intrínseca às poéticas de cada artista participante ou como nudez do corpo que, uma vez desvelado em um momento histórico hostil, é interdito, inclusive como resposta institucional e autoritária.

Nesse contexto, compartilhar a intimidade e garantir espaço para o exercício radical da diferença na cena pública, operando a sua transformação em cena comum, pode ser, segundo Leal Cunha, um ato de afirmação não só política, mas também subjetiva. Para diversas pessoas no Brasil de hoje, a possível sobreposição entre político e íntimo é ainda uma estratégia contrahegemônica de sobrevivência que busca legitimar coletivamente formas diversas de existência, principalmente para aquelas presenças marcadas pela dissidência, a exemplo de mulheres, pessoas negras, trans, travestis, nãobinárias, com deficiência, bichas, artistas experimentais do Nordeste que ousam se desnudar, reafirmando a autonomia de seus corpos, bem como os laços afetivos, éticos e eróticos consigo mesmas e com os outros.

(Por) um buraco

O corpo nu está no começo e no fim deste artigo. Iniciamos o texto resgatando um tempo histórico não muito distante, em que as censuras e ataques às obras artísticas no Brasil se intensificaram, tomando a nudez como um certo bode expiatório. Precisamente nesse contexto, ou talvez por esse motivo, é que estrearam e floresceram obras como Strip Tempo; pois, a cada vez que somos pressionados ou tolhidos, uma pulsão parece nos reconvocar ao convívio, ao encontro, à vida. Esse movimento ambivalente de repulsa e hipervalorização do corpo nu é discutido à luz de algumas contribuições da Psicanálise; em particular, das noções de pulsão e de erótica.

Além disso, Strip Tempo se inspira na linguagem do burlesco, que fetichiza, celebra e espetaculariza a singularidade e a diferença; e também, como procedimento compositivo, na ideia de registro e memória das artes do corpo documentadas por meio do próprio corpo e da cena. Essa ação de registro e arquivamento performativo realizada em Strip Tempo também se localiza em outras criações de seu diretor, Jorge Alencar, em parceria com o codiretor do projeto, Neto Machado.

Da amplificação extrema do corpo desnudado no palco, o projeto Strip Tempo se desdobrou, durante a pandemia de Covid-19, numa versão para voyeurs digitais, acessando seus artistas no interior de suas casas, devassando seus quartos, cozinhas, escritórios e quintais. Os Web-Strips fizeram, assim, janelas poéticas indiscretas por meio da ferramenta Amigos Próximos da plataforma Instagram.

O corpo nu é mais do que o corpo nu. A mirada das curvas, quinas e orifícios de alguém, bem como o exame dos objetos pessoais no armário de seu banheiro, as revistas e livros em sua cômoda, ou o histórico das mensagens e imagens trocadas com um interesse amoroso pelo celular são senhas de entrada para motivações criativas, habilidades, zonas de conexão e afetos. E, por isso, o íntimo é político. Os stripteases - presenciais e remotos, via rede social - resumem, estética e eroticamente, os percursos de artistas contemporâneos e mobilizam discussões sobre o corpo nu, seja como última fronteira de uma moralidade ultraconservadora no Brasil de hoje ou como experiência de um desejo pulsional nas artes.

Notas

  • 1
    Realizado anualmente na cidade de Salvador (BA), desde 2006, pela Dimenti Produções Culturais em parceria com a Associação Conexões Criativas, o IC Encontro de Artes é uma plataforma pluriartística de criação e difusão das artes contemporâneas. Cada edição é atravessada por uma questão específica que orienta o processo curatorial e a composição da programação, que, atualmente, são dinamizados por Ellen Mello, Jorge Alencar, Larissa Lacerda e Neto Machado.
  • 2
    Ficha técnica de Strip Tempo. Direção e roteiro: Jorge Alencar / Codireção: Neto Machado / Assistência de direção: Marina Martinelli / Criação e performance: Douglas Gibran, Fábio Osório Monteiro, Isaura Tupiniquim, Jaqueline Elesbão, João Rafael Neto, Jorge Oliveira, Leonardo França, Lia Lordelo, Neto Machado e Rainha Loulou / Concepção de Luz e edição de trilha sonora: Moisés Victório / Operação de Luz: Moisés Vitório e Ruhan Alves / Temas musicais originais: Leonardo França e Moisés Victório / Identidade visual e direção de arte: TANTO - criações compartilhadas (Daniel Sabóia, Fábio Steque e Patricia Almeida) / Supervisão de figurino: Neto Machado / Direção de Produção: Ellen Mello / Produção: Marina Martinelli e Natália Valério / Financeiro: Marília Pereira / Comunicação: Marcatexto / Realização: Dimenti Produções Culturais.
  • 3
    A transcrição dos trechos do espetáculo foi feita por meio do acesso ao registro em vídeo de Strip Tempo. Precisamente por mostrar nudez, a obra não se encontra disponível online.
  • 4
    As noções de masoquismo e sexualidade perversa polimorfa estão apresentadas, respectivamente, nos textos de Freud (1974aFREUD, Sigmund. O problema econômico do masoquismo. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. ESB, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1974a.; 1974bFREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. FREUD, Sigmund. Obras completas. ESB, v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1974b.) O problema econômico do masoquismo e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
  • 5
    Em consonância com Lepecki (2016)LEPECKI, André. Singularities: Dance In The Age of Performance. London; New York: Routledge, 2016. e Ramos (2020), compreendemos o reenactment como uma prática de reencenação / reativação de obras e ações performativas preexistentes na dança que toma a memória e a história como experiências incorporadas e compositivas. Segundo De Laet (2018)DE LAET, Timmy. Corpos Co(se)m Memórias: estratégias de re-enactment na dança contemporânea. Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, v. 9 n. 2, p. 133-153, 2018. Disponível em: http://www.periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/moringa/article/view/43632. Acesso em: 18 nov. 2022.
    http://www.periodicos.ufpb.br/ojs2/index...
    , no campo da História, o conceito foi inicialmente desenvolvido pelo historiador e filósofo britânico Robin George Collingwood (1889-1943) a fim de referir-se à compreensão da ação de agentes históricos pela reconstrução de seus pensamentos e motivações. O termo inglês reenactment data de 1780 e diz sobre o ato de realizar de novo, reconstruir ou refazer uma experiência ou uma situação passada.
  • 6
    Tradução nossa para: “the body as archive re-places and diverts notions of ar-chive away from a documental deposit or a bureaucratic agency dedicated to the (mis)management of the ‘past’”.
  • 7
    Idem à nota 3.
  • 8
    Retirado do roteiro não publicado de Web-Strips.

Referências

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  • SONTAG, Susan. Contra a interpretação Porto Alegre: L&PM, 1987.

Editado por

Editores responsáveis: Gilberto Icle; Raquel Madeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2022
  • Aceito
    07 Nov 2022
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