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Artesanato como ferramenta complementar ao ensino-aprendizagem de Ciências Morfológicas

Handicraft as a complementary tool for the teaching-learning of Morphological Sciences

Artesanía como herramienta complementaria a la enseñanza-aprendizaje de las Ciencias Morfológicas

Resumo:

Este artigo objetiva apresentar o artesanato, por meio da técnica de crochê, como ferramenta para o ensino-aprendizagem de Ciências Morfológicas. Os estudantes do primeiro ano do curso de graduação em Medicina Veterinária da Universidade Nove de Julho (Uninove) que já possuíam experiência prévia com crochê foram estimulados a criar modelos em lã ou linha, relacionando-os aos conteúdos das aulas teóricas e práticas de Morfofisiologia Animal. Foram produzidos amigurumis representativos de órgãos respiratórios, placentas e órgãos urinários. O referencial teórico da pesquisa foi estruturado nos seguintes pontos: questionamento sobre a possibilidade de se aprender Anatomia fora do laboratório; relação simultânea da Anatomia com a Ciência e a Arte; efeitos de métodos complementares de ensino no desenvolvimento processual e técnico dos alunos e no desenvolvimento cognitivo desses discentes; e paradigma construtivista aplicado ao ensino superior na área da saúde e educação inclusiva de membros da família. Os resultados alcançados reforçam que a melhor maneira de ensinar e aprender Ciências Morfológicas é por meio da combinação de recursos pedagógicos que se complementem, em especial nesses tempos de enfrentamento da covid‐19, quando as aulas em laboratórios foram substituídas por práticas adaptadas em prol do isolamento social. Esta pesquisa, de natureza exploratória, certamente permitiu refletir acerca de “como” ensinar Anatomia de forma alternativa e possibilitar um maior envolvimento dos estudantes no processo de aprendizagem, em tempos de ensino remoto, com base em uma perspectiva construtivista. A ideia construtivista permitiu a inclusão da confecção dos amigurumis para fins de avaliação da aprendizagem em Anatomia, uma vez que os estudantes não foram julgados somente com base em um conhecimento específico, mas, sim, a partir de suas capacidades em resolver o problema da criação das peças anatômicas em domicílio com uma solução viável. Concluiu-se que é possível a criação de modelos sintéticos em crochê de relativa semelhança às peças anatômicas originais. Por fim, o impacto desta pesquisa está no fato de os amigurumis terem sido desenvolvidos com materiais de fácil acesso, textura macia e baixo custo, sendo uma técnica de artesanato em potencial para ser aplicada ao ensino de Ciências Morfológicas.

Palavras-chave:
anatomia; ensino de ciências; modelos anatômicos

Abstract:

This paper aims at presenting handicrafts, using crochet technique, as a tool for teaching-learning of Morphological Sciences. First year undergraduate students of Veterinary Medicine at Nove de Julho University (Uninove) with previous experience in crochet were encouraged by a professor to create models in wool or sewing thread, relating them to the contents of theory and practice classes on Animal Morphophysiology. “Amigurumis” representing respiratory organs, placentas and urinary organs were handcrafted. The theoretical framework was structured in the following points: questioning of the possibility of learning Anatomy outside the laboratory; simultaneous relationship between Anatomy and science and art; effects of complementary teaching methods to the procedural and technical development of students and cognitive development of these students; and the constructivist paradigm applied to higher education in the area of health and inclusive education for family members. Results reinforce that the best way to teach and learn Morphological Sciences is through the combination of pedagogical resources that complement each other, especially through covid-19, when classes in laboratories have been replaced by practices adapted to observe social isolation. This exploratory research certainly allowed us to reflect on “how” to teach Anatomy in an alternative way and enable a greater involvement of students in the learning process in times of distance education from a constructivist perspective. The constructivist idea allowed the inclusion of the crafting of amigurumis to assess learning in Anatomy, since students were not judged only based on specific knowledge, but based on their ability to solve the problem of creating the anatomical parts with a viable solution. It concluded that it is possible to create synthetic crochet models with relative similarity to the original anatomical pieces. Finally, the impact of this research is that amigurumis were produced with easily-accessible, soft texture and low-cost materials, being a potential handicraft technique to be applied to Morphological Science teaching.

Keywords:
anatomy; anatomical models; science teaching

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo presentar la artesanía, por medio de la técnica del croché, como herramienta para la enseñanza y el aprendizaje de las Ciencias Morfológicas. Los alumnos del primer año de la carrera de Medicina Veterinaria de la Universidad Nove de Julho (Uninove) que tenían experiencia previa con el croché fueron animados por el profesor a crear modelos en lana o hilo, relacionándolos con los contenidos de las clases teóricas y prácticas de Morfofisiología Animal. Se produjeron amigurumis representativos de órganos respiratorios, placentas y órganos urinarios. El marco teórico de esta investigación se estructuró en los siguientes puntos: cuestionamiento de la posibilidad de aprender Anatomía fuera del laboratorio, relación simultánea de la Anatomía con la Ciencia y el Arte, efectos de los métodos de enseñanza complementarios al desarrollo procedimental y técnico de los estudiantes y el desarrollo cognitivo de estos estudiantes, paradigma constructivista aplicado a la educación superior en el área de la salud y la educación inclusiva para los miembros de la familia. Los resultados alcanzados refuerzan que la mejor manera de enseñar y aprender Ciencias Morfológicas es por medio de la combinación de recursos pedagógicos que se complementen, especialmente en estos tiempos de enfrentamiento en la covid-19, cuando las clases en los laboratorios fueron reemplazadas por prácticas adaptadas para el aislamiento social necesario. Esta investigación exploratoria, ciertamente, nos permitió reflexionar sobre “cómo” enseñar Anatomía de forma alternativa y proveer una mayor implicación de los estudiantes en el proceso de aprendizaje, en tiempos de educación a distancia, desde una perspectiva constructivista. La idea constructivista permitió la inclusión de la confección de amigurumis con el propósito de evaluar aprendizajes en Anatomía, ya que los estudiantes no eran juzgados solo con base en conocimientos específicos, sino en función de su capacidad para resolver el problema de crear las partes anatómicas con una solución viable. Concluimos que es posible crear modelos de croché sintéticos de relativa similitud con las piezas anatómicas originales. Finalmente, el impacto de esta investigación está en el hecho de que los amigurumi fueron desarrollados con materiales de fácil acceso, textura suave y bajo costo, siendo una técnica artesanal potencial para ser aplicada a la enseñanza de las Ciencias Morfológicas.

Palabras clave:
anatomía; enseñanza de ciencias; modelos anatómicos

Introdução

O artesanato compreende diversas técnicas manuais utilizadas para produzir objetos e, entre tais modalidades, encontra-se o crochê, o qual é feito a partir do entrelaçado de um determinado fio, linha ou lã. A palavra “crochê”, derivada de um termo existente no dialeto nórdico, significa “gancho”, referindo-se à extremidade da agulha utilizada que engancha os pontos. Embora existam divergências entre os historiadores em relação à origem do crochê, acredita-se que a maneira como este é feito nos dias de hoje tenha se originado no século 16. Já os amigurumis surgiram bem mais recentemente, oriundos do crochê. Neste trabalho, entende-se por amigurumis os bonecos feitos por meio do crochê, sendo uma técnica de artesanato que teve origem nos anos de 1950, no Japão, e se popularizou a partir de 2002, por meio de livros e revistas em japonês com o passo a passo dos modelos trançados à mão, através de uma agulha dotada de gancho (Ramirez Saldarriaga, 2016RAMIREZ SALDARRIAGA, J. Amigurumi. [S. l.], 2016. Disponível em: <Disponível em: https://aaltodoc.aalto.fi/handle/123456789/22799 >. Acesso em: 21 out. 2021.
https://aaltodoc.aalto.fi/handle/1234567...
).

Mas o que o artesanato tem a ver com as Ciências Morfológicas? Tudo. Existem experimentos que mostram a aplicação dos modelos anatômicos produzidos a partir de variadas técnicas artesanais como uma alternativa de baixo custo que pode ser utilizada para fins educacionais (Silva et al., 2019SILVA, R. A. et al. Modelo artesanal de aprendizagem do acesso venoso periférico. Revista Eletrônica Acervo Saúde, [s. l.], v. 11, n. 8, p. 1-7, 2019.; Onuk et al., 2019ONUK, B. et al. The effects of clay modeling and plastic model dressing techniques on veterinary anatomy training. Kafkas Üniversitesi Veteriner Fakültesi Dergisi, [Kars, Turkey], v. 25, n. 4, p. 545-551, 2019.; Rocha et al., 2017ROCHA, I. R. O. et al. Modelo artesanal para treinamento de acesso vascular periférico. Jornal Vascular Brasileiro, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 195-198, jul./set. 2017.; Silva, 2019SILVA, G. P. Produção de um manequim canino artesanal para uso didático e de extensão a partir de materiais recicláveis. 2019. 37 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Medicina Veterinária) - Unidade Acadêmica de Garanhuns, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Garanhuns, 2019.; Souza, 2019SOUZA, V. H. E. Modelização de componentes do sistema nervoso: metodologia alternativa para o ensino-aprendizagem de anatomia humana para o curso de Psicologia. Revista Uningá, Maringá, v. 56, n. S1, p. 152-158, jan./mar. 2019.).

A Anatomia é uma das disciplinas mais importantes dos cursos de Ciências Agrárias, Biológicas e da Saúde, pois oferece aos alunos oportunidade de aprender a estrutura e a função do corpo (seja humano ou animal), de adquirir competências profissionais, como trabalho em equipe, habilidades interpessoais, autoconsciência, e de refletir e praticar a ética médica (McDaniel et al., 2021MCDANIEL, K. G. et al. Anatomy as a model environment for acquiring professional competencies in Medicine: experiences at Harvard Medical School. Anatomical Sciences Education , [s. l.], v. 12, n. 2, p. 241-251, Mar./Apr. 2021.).

Não sendo possível aprender a práxis médica sem compreender a forma e a função das partes do corpo (Ross et al., 2021ROSS, C. F. et al. Teaching anatomy with dissection in the time of covid-19 is essential and possible. Clinical Anatomy, [s. l.], v. 34, n. 8, p. 1135-1136, Nov. 2021.), os estudantes de Medicina Veterinária devem adquirir, logo no início da vida acadêmica, os conhecimentos anatômicos para construir uma fundação sólida para suas futuras práticas clínicas e cirúrgicas (Clifton et al., 2020CLIFTON, W. et al. The importance of teaching clinical anatomy in surgical skills education: spare the patient, use a sim! Clinical Anatomy, [s. l.], v. 33, n. 1, p. 124-127, Jan. 2020.). Embora a Anatomia seja uma disciplina estimulante, ela também é considerada desafiadora pelos ingressantes na graduação, muitos deles recém-chegados do ensino médio, pois exige estudo científico aprofundado de um conteúdo novo e cada vez mais amplo, vocabulário próprio, nomenclatura extensa e riqueza de detalhes. Sua essência é o aprendizado através da visualização, seja mediante as aulas práticas com cadáveres ou ainda mediante o uso de imagens (Infantosi; Klemt, 2000INFANTOSI, A. F. C.; KLEMT, A. Método de superfície na visualização 3D da dissecção do crânio humano. Revista Brasileira de Engenharia Biomédica, [Rio de Janeiro], v. 16, n. 1, p. 27-37, jan./abr. 2000.).

Tradicionalmente, a Anatomia é estudada de maneiras distintas: uso de tratados (livros-textos), atlas (livros com imagens) e cadáveres. Por meio dos textos, o leitor tenta “imaginar” as complexas relações anatômicas. Os atlas apresentam o conteúdo em forma de desenhos esquemáticos ou fotografias de peças anatômicas reais, ficando o estudante limitado às ilustrações apresentadas pelos autores e, muitas vezes, não tendo acesso à representação de todas as vistas possíveis e desejáveis ao estudo (Infantosi; Klemt, 2000INFANTOSI, A. F. C.; KLEMT, A. Método de superfície na visualização 3D da dissecção do crânio humano. Revista Brasileira de Engenharia Biomédica, [Rio de Janeiro], v. 16, n. 1, p. 27-37, jan./abr. 2000.).

Nesse contexto, os estilos de aprendizagem para universitários, conforme os indicadores de Myers-Briggs, são mais eficazes por meio das técnicas que envolvem múltiplos sentidos (Ramachandran et al., 2020RAMACHANDRAN, V. et al. Myers-Briggs Type Indicator in medical education: a narrative review and analysis. Health Professions Education, [s. l.], v. 6, n. 1, p. 31-46, Mar. 2020.). Assim, é notório que os estudantes retêm 20% do que ouvem e 40% do que veem, mas 75% do que eles ouvem, veem e, também, interagem (Grunwald; Corsbie-Massay, 2006GRUNWALD, T.; CORSBIE-MASSAY, C. Guidelines for cognitively efficient multimedia learning tools: educational strategies, cognitive load, and interface design. Academic Medicine, [s. l.], v. 81, n. 3, p. 213-223, Mar. 2006. ). Logo, diversos recursos instrucionais podem ser utilizados para melhorar o desempenho acadêmico, especialmente por gerarem interação entre o estudante e o objeto de estudo.

Um recurso instrucional pode ser definido como qualquer elemento utilizado nos procedimentos de ensino-aprendizagem para estimular a percepção e a atenção do aluno. Atualmente, um professor não deve simplesmente transmitir conhecimentos ou informações, mas também apontar aos seus discentes o modo de aprender e buscar o prazer do descobrir aula após aula. Por isso, o simples ato de estudar deve ser o mais agradável e amigável possível, ainda que a aquisição de conhecimentos sempre exija perseverança e dedicação (Yoshida et al., 2003YOSHIDA, M. et al. LocomoShow: uma ferramenta de apoio ao ensino da anatomia humana. In: WORKSHOP DE INFORMÁTICA MÉDICA, 3., 2003, Fortaleza. Anais... [S. l]: Sociedade Brasileira de Computação, 2003.).

A Anatomia Comparativa, como o nome indica, estabelece comparações entre os aspectos anatômicos de diferentes espécies animais (Di Dio, 1998DI DIO, L. J. A. Tratado de anatomia aplicada. São Paulo: Poluss, 1998. ). Desde 1955, a preocupação em aplicar o conhecimento anatômico, contrapondo-o entre os variados animais domésticos, já era percebida por Robert Getty, em sua primeira edição do livro Atlas de Anatomia Veterinária Aplicada (Getty, 1964GETTY, R. Atlas for applied veterinary anatomy. 2nd. ed. Iowa: Iowa State University, 1964.), e, depois, com os dois volumes de Anatomia dos Animais Domésticos (Getty, 1986GETTY, R. Anatomia dos animais domésticos. 5. ed. [S. l.]: Guanabara Koogan, 1986. 2 v. Edição reformulada da obra de S. Sisson e J. D. Grossman.). Além dessas obras, as referências bibliográficas básicas e complementares das disciplinas de Anatomia integrantes das propostas curriculares dos cursos de graduação de Medicina Veterinária no Brasil constituem-se, em sua maioria, de livros ilustrados que abordam o estudo de cães e gatos, equinos, ruminantes (bovinos, ovinos e caprinos) e suínos, sendo as indicações mais rotineiras as obras dos autores Singh (2019SINGH, B. Tratado de anatomia veterinária. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2019. Edição reformulada da obra de K. M. Dyce, W. O. Sack e C. J. G. Wensing.), König e Liebich (2016KÖNIG, H. E.; LIEBICH, H.-G. Anatomia dos animais domésticos: texto e atlas colorido. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 2016. ) e Popesko (2011POPESKO, P. Atlas de anatomia topográfica dos animais domésticos. Tradução Fabiana Buassaly Leistner, Carlos Artur Lopes Leite, Fernando Gomes do Nascimento e Thaís Spacov Camargo Pimentel. 5. ed. [S. l.]: Manole, 2011.).

Nos últimos anos, mudanças têm ocorrido nos métodos de ensino de Anatomia, visto que a redução no uso de cadáveres, com as restrições de tempo de aulas práticas, a falta de infraestrutura laboratorial e o número limitado de técnicos treinados nas universidades levam os professores anatomistas a pesquisar novas abordagens para favorecer o aprendizado de seus alunos (Finn, 2015FINN, G. M. Using body painting and other art-based approaches to teach anatomy. In: CHAN, L. K.; PAWLINA, W. (Ed.). Teaching anatomy: a pratical guide. [S. l.]: Springer, 2015. p. 155-164.).

Assim, uma variedade de recursos e estratégias de ensino pode ser aplicada às Ciências Morfológicas. Apesar do método tradicional baseado nas dissecações de cadáveres ser a principal ferramenta instrucional nessa área do conhecimento, os métodos alternativos têm sido adotados como complementares ao ensino-aprendizagem, especialmente no que tange ao campo da Anatomia e da Arte (Estai; Bunt, 2016ESTAI, M.; BUNT, S. Best teaching practices in anatomy education: a critical review. Annals of Anatomy, [s. l.], v. 208, p. 151-157, Nov. 2016.).

Historicamente, a dissecação de corpos de animais e humanos sempre atraiu muito interesse do público em geral, principalmente nos teatros anatômicos construídos durante o século 17 nas principais universidades da Europa. Mesmo antes desses tempos, durante o Renascimento, um artista era um homem dotado não somente de grande adestramento da mão e de conhecimentos dos materiais artísticos, mas, também, de conhecimentos em matérias diversas, inclusive em Ciências Morfológicas, sendo um dos maiores nomes dessa época Leonardo da Vinci, que unificou o conhecimento anatômico obtido através da dissecação à representação artística (Bouchernon; Giorgione, 2014BOUCHERNON, P.; GIORGIONE, C. Leonardo da Vinci: a natureza e a invenção. São Paulo: Sesi Editora, 2014.). O ensino da Anatomia Animal também recebeu contribuições de diversos outros artistas-anatomistas, especialmente na elaboração de ilustrações, publicando nos atlas imagens fidedignas para Anatomia Comparativa entre as diversas espécies (Bainbridge, 2018BAINBRIDGE, D. Stripped bare: the art of animal anatomy. [S. l.]: Princeton University Press, 2018.; Graciano, 2019GRACIANO, A. (Ed.). Visualizing the body in art, anatomy, and medicine since 1800: models and modeling. New York: Routledge, 2019.). Assim, tem-se que a autenticidade na Arte costuma enfatizar a importância da criatividade do autor e da originalidade da obra (Adkins, 2019ADKINS, J. Authenticity in anatomy art. Journal of Medical Humanities, [s. l.], v. 40, n. 1, p. 117-138, 2019.).

A modelagem de órgãos para o estudo da Anatomia está sendo redescoberta, dado que sua utilização teve início nos séculos 16 e 17. Somente em meados do século 18, quando os cadáveres foram mais prontamente disponíveis, é que a modelagem anatômica passou a ser substituída pela dissecação, sendo este o método até hoje mais habitual para estudos anatômicos (Ballestriero, 2010BALLESTRIERO, R. Anatomical models and wax venuses: art masterpieces or scientific craft works? Journal of Anatomy, [s. l.], v. 216, n. 2, p. 223-234, Feb. 2010.). Tal modelagem pode ser uma alternativa capaz de agregar elementos úteis ao ensino de Anatomia na graduação, destacando sua característica de metodologia ativa tão em evidência atualmente devido ao poderio que agrega ao processo de aprendizagem. Acredita-se que os alunos que têm experiência com modelagem certamente gastam menos tempo para a assimilação do conteúdo didático.

Como atualmente é fundamental oferecer aos jovens outras possibilidades de pensar o mundo e as artes, a modelagem pode favorecer essas situações, em particular quando aplicada ao ensino de Morfologia. Aqui, dois aspectos devem ser considerados quando se utiliza a modelagem de órgãos como subsídio nas disciplinas de Anatomia: i) a necessidade de um estudo teórico prévio sobre a anatomia do órgão nos critérios de forma, situação e relações anatômicas; e ii) a aplicação de uma técnica que colabore na construção de modelos finais com as características anatômicas do órgão num tempo de execução aproximado à duração de uma aula prática de Anatomia (Menezes; Sereno, 2020MENEZES, C. C.; SERENO, J. E. Modelagem anatômica em modelos cegos. [S. l.]: Trëma E-books, 2020.). Portanto, abrir diferentes formas de interpretação do corpo animal, incentivar os estudantes a trabalhar o fortalecimento da criatividade, da capacidade de expressão e de compreensão científica através do artesanato, sob o contexto de um mundo hiperconectado durante a pandemia de covid-19, pode trazer um respiro da atenção e produzir experiências de problematização em Ciências Agrárias.

Este artigo objetiva apresentar o artesanato, por meio da técnica de crochê, como ferramenta para ensino-aprendizagem de Ciências Morfológicas, como método complementar ao processo instrucional da Anatomia Comparativa. Entretanto, por ser uma primeira experimentação do uso da confecção de amigurumis para fins de ensino de Anatomia, trata-se de uma prática/estudo exploratório que demanda mais análises para se avaliar sua potência para tais fins no ensino superior.

Materiais e método

O presente relato de experiência é um breve recorte do projeto de pós-doutorado intitulado Métodos complementares de ensino-aprendizagem de Anatomia Comparativa, em desenvolvimento no Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP).

Os estudantes do primeiro ano do curso de graduação em Medicina Veterinária da Universidade Nove de Julho (Uninove, campus Memorial) que já possuíam experiência prévia com crochê foram convidados pela docente a moldar peças anatômicas para ensino-aprendizagem a respeito da forma e da função de estruturas anatômicas presentes em animais domésticos. A confecção dos modelos artesanais foi realizada manualmente com lãs e linhas coloridas, agulha de três a quatro milímetros (dependendo do tipo e da espessura do fio usado em cada trabalho) e fibra sintética para enchimento. Essa atividade foi levada em consideração para avaliação continuada de tais alunos na disciplina de Morfofisiologia Animal.

A elaboração das peças ocorreu em domicílio; no entanto, os estudantes tiveram constante orientação da professora quanto aos detalhes anatômicos que deveriam ser por eles crochetados. Cada receita de amigurumi é representada por fórmulas que podem ser divididas em três fases básicas, conforme se observa no Quadro 1. Tais fórmulas são constituídas por números, bem como por abreviaturas específicas da técnica de crochê (Quadro 2). Os estudantes tiveram autonomia para pesquisar e adaptar as receitas necessárias para elaboração dos modelos específicos.

Quadro 1
Instruções para compreensão de uma receita de amigurumi descrita por carreiras de crochê

Quadro 2
Glossário de abreviaturas encontradas em receita de amigurumi

Como exemplo, tem-se a seguinte fórmula: 1carr: 6pb no AM (6pts.), em que 1 indica o número da carreira ou da volta (tal número não corresponde a nenhum ponto, sendo apenas a indicação do início de uma nova carreira). No exemplo, a primeira carreira deve ser feita com seis pontos baixos no anel mágico, sendo que a primeira carreira da receita tem seis pontos no total.

Em muitas receitas, há repetições de pontos, sendo indicadas geralmente por parênteses, colchetes ou asteriscos: 1carr:(1pb+1aum) x 6 (18pts.). Assim, tem-se a indicação de qual carreira de pontos deve ser repetida, seguida pela indicação de quantas repetições devem ser feitas; ou seja, uma carreira com repetição de um ponto baixo (um elemento) mais um aumento em ponto baixo (que corresponde a dois elementos), repetindo-se seis vezes, ao final, formará carreira com 18 pontos.

Resultados e discussão

Quatro grupos de estudantes, do gênero feminino, confeccionaram artesanalmente as peças e as apresentaram em sala de aula durante arguição coletiva quanto às estruturas anatômicas (forma e função) representadas por meio da técnica de crochê, relacionando os modelos sintéticos ao conteúdo das aulas teóricas e práticas. Os amigurumis (Figuras 1 a 7) foram constituídos por formas geométricas esféricas e cilíndricas, e seus tamanhos variaram entre cinco e 35 centímetros.

Entre esses, dois grupos abordaram o aparelho respiratório, embora um tenha criado o amigurumi em lã (Figura 1) e outro em linha (Figuras 2 e 3). A característica dos pulmões de maior significado para macroscopia é o padrão de lobação desses órgãos. Assim, o ensino da identificação dos pulmões de cada espécie animal (incluindo o homem) é efetivado com base no reconhecimento da anatomia topográfica de cada lobo pulmonar. Embora os dois pulmões sejam macroscopicamente semelhantes e espelhados um ao outro quanto à forma, o direito é sempre um pouco maior que o esquerdo, visto que essa discreta assimetria se deve à posição inclinada do coração no mediastino.

Figura 1
Face costal dos pulmões humanos

Figura 2
Face ventral dos pulmões caninos

Figura 3
Face dorsal do pulmão canino

Os resultados desses dois grupos corroboram com as evidências de Cieri e Farmer (2016CIERI, R. L.; FARMER, C. G. Unidirectional pulmonary airflow in vertebrates: a review of structure, function, and evolution. Journal of Comparative Physiology B, [s. l.], v. 186, n. 5, p. 541-552, Apr. 2016.), Farmer (2017FARMER, C. G. Pulmonary transformations of vertebrates. In: MAINA, J. N. The biology of the avian respiratory system. [S. l.]: Springer, 2017. p. 99-112.) e Icardo (2018ICARDO, J. M. Lungs and gas bladders: morphological insights. Acta Histochemica, [s. l.], v. 120, n. 7, p. 605-612, Oct. 2018.), que apontam para a grande diversidade de morfologias pulmonares observadas em diferentes espécies de vertebrados, possuindo estes um pulmão direito e um esquerdo.

O ensino da morfologia dos pulmões não pode deixar de lado a fisiologia deles. Desde o primeiro ano do curso de graduação em Medicina Veterinária, é fundamental o docente abordar a função pulmonar, que é primordialmente a hematose alveolar através da capacidade de expansão do parênquima pulmonar, permitindo o intercâmbio de O2 e CO2, por meio de difusão desses gases, e, consequentemente, promovendo o processo de reoxigenação do sangue venoso, que se torna arterial. Portanto, isso vai ao encontro dos resultados publicados por Ramalho e Shah (2020RAMALHO, S. H. R.; SHAH, A. M. Lung function and cardiovascular disease: a link. Trends in Cardiovascular Medicine, [s. l.], v. 31, n. 2, p. 93-98, Feb. 2020.), na Medicina humana, e por Balakrishnan e Tong (2020BALAKRISHNAN, A.; TONG, C. W. Clinical application of pulmonary function testing in small animals. Veterinary Clinics: Small Animal Practice, [s. l.], v. 50, n. 2, p. 273-294, Mar. 2020.), na clínica médica de pequenos animais, especialmente ao abordarem a importância do estudo da função pulmonar aplicada à fisiopatologia das inúmeras doenças cardiovasculares.

O terceiro grupo optou pela abordagem da placentação comparada por meio de um conjunto de amigurumis feitos em linha, conforme as Figuras 4 a 6. Os modelos crochetados demonstram que, entre as espécies domésticas, uma interação mais intensa entre as membranas fetais e o endométrio uterino da mãe ocorre em carnívoros, como cães e gatos, por meio da placenta zonária. Menos complexa que esta é a placenta dos ruminantes, como bovinos, ovinos e caprinos, a qual é cotiledonária, apresentando diversos placentomas. Por sua vez, menos complexa ainda é a placenta dos suínos (e equinos também), pois as vilosidades do cório não penetram tão profundamente no endométrio. O grupo também representou, através de amigurumi, o tipo mais complexo de placenta, no caso, a discoidal (não observada nas espécies domésticas), a qual apresenta vilosidades coriônicas concentradas numa região em forma de disco, fazendo com que o cório penetre mais profundamente na parede uterina de primatas (humanos e não humanos) e roedores.

Figura 4
Representação da placentação nas diferentes espécies

Figura 5
Representação da placenta difusa de suíno (à esquerda) e da placenta cotiledonária de bovino (à direita)

Figura 6
Representação da placenta zonária de canino (à esquerda) e da placenta discoidal de primata (à direita)

De acordo tanto com Getty (1986GETTY, R. Anatomia dos animais domésticos. 5. ed. [S. l.]: Guanabara Koogan, 1986. 2 v. Edição reformulada da obra de S. Sisson e J. D. Grossman.) como com König e Liebich (2016KÖNIG, H. E.; LIEBICH, H.-G. Anatomia dos animais domésticos: texto e atlas colorido. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 2016. ) e Singh (2019SINGH, B. Tratado de anatomia veterinária. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2019. Edição reformulada da obra de K. M. Dyce, W. O. Sack e C. J. G. Wensing.), existem três maneiras de classificar as placentas. O primeiro modo é conforme a distribuição macroscópica das vilosidades coriônicas; o segundo é pela interposição das seis camadas de tecido (endotélio capilar coriônico, tecido conjuntivo, epitélio, epitélio endometrial, tecido conjuntivo e endotélio capilar) que separam a circulação sanguínea fetal e materna. O terceiro modo se refere ao grau da perda de tecido que ocorre durante o parto (placentas decíduas e não decíduas), e, por fim, o quarto modo é pela histologia, que define diferentes graus da permeabilidade placentária (as diferenças na barreira em relação à passagem de imunoglobulinas G - IgG são de particular relevância ao ensino de Medicina Veterinária). Diante disso, observa-se que o grupo optou por classificar as espécies conforme o primeiro modo, em que as vilosidades do cório foram representadas por linha mais avermelhada na superfície de cada tipo placentário.

Finalmente, o quarto grupo abordou o aparelho urogenital confeccionando pela técnica em crochê (Figura 7). Foram produzidos modelos de um par de rins (órgãos que formam a urina a partir da filtração glomerular do sangue), ureteres (canais que transportam a urina a partir dos rins), vesícula urinária (local de armazenamento da urina até o momento da micção) e uretra (canal que transporta a urina a partir da vesícula urinária até o meio externo).

Figura 7
Representação dos órgãos urinários de canino em vista dorsal

O resultado desse grupo mostra ser essencial para a abordagem da região côncava na face medial de cada rim, pois é aí que se conecta a pelve renal ao ureter, artéria renal, veia renal, além de vasos linfáticos e nervos que adentram ou emergem do hilo renal. Assim, o presente manuscrito vai ao encontro do publicado por Moraes e Colicigno (2007MORAES, C. A.; COLICIGNO, P. R. C. Estudo morfofuncional do sistema renal. [S. l.], 2007. Disponível em: <Disponível em: https://repositorio.pgsskroton.com/bitstream/123456789/1304/1/Artigo%2023.pdf >. Acesso em: 21 out. 2021.
https://repositorio.pgsskroton.com/bitst...
, p. 162), que, ao realizarem um estudo morfofuncional dos rins, afirmam a importância do hilo renal como uma região “que permite a entrada e saída de estruturas dos rins”, de modo a manter a homeostase do organismo. Os autores também enfatizam a aplicação clínica do estudo das demais estruturas anatômicas do aparelho urogenital, uma vez que qualquer deformação ou desequilíbrio no funcionamento das estruturas pré, intra e pós-renais pode desencadear graves patologias renais, cardiovasculares, hemodinâmicas e neurológicas, prejudicando a qualidade de vida dos pacientes.

Outra região abordada no amigurumi do aparelho urogenital foi o trígono vesical, um local que, aparentemente, possui uma origem embrionária diferente da origem do restante da parede da vesícula urinária e acredita-se que apresente sensibilidade exacerbada, tendo importância cirúrgica quando se trata da anatomia topográfica (Singh, 2019SINGH, B. Tratado de anatomia veterinária. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2019. Edição reformulada da obra de K. M. Dyce, W. O. Sack e C. J. G. Wensing.).

Todavia, adverte-se que tais criações, embora sejam um belo relato de uma prática, demandam acompanhamento futuro de pesquisa com a finalidade de verificar o desempenho acadêmico das participantes-artesãs a longo prazo.

Contudo, acredita-se que a melhor maneira de ensinar e aprender Ciências Morfológicas, nos dias de hoje, é combinando vários recursos pedagógicos para complementar uns aos outros. Observou-se que a aplicação dos amigurumis nas aulas promoveu grande entendimento sobre Anatomia Comparativa às estudantes que participaram da criação das peças artesanais. Ademais, houve uma intensa aproximação entre as estudantes e o artesanato numa especialidade que teve sempre relação muito estreita com a Arte. A produção dos modelos tridimensionais permanentes em lã ou linha certamente possibilitará o uso destes nas futuras aulas da disciplina, sendo também materiais didáticos que podem ser manuseados em espaço não formal de ensino. Nesse último ponto, o este artigo concorda com os resultados de Amaral (2018AMARAL, D. M. Arte e anatomia humana: uma relação entre ensino e espaços não formais. 2018. 113 f. Dissertação (Mestrado em Ensino, Ciência e Tecnologia) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa, 2018.), em que a maioria dos acadêmicos questionados acredita ser possível aprender Anatomia sem estar propriamente no ambiente tradicional de ensino, como o laboratório.

Embora não tenham sido encontradas, até então, publicações que relacionem as Ciências Morfológicas especificamente com a técnica de crochê, sabe-se que a anatomia artística é o estudo da morfologia externa e interna do corpo para fins de criação pictórica ou escultural. Com isso, a Anatomia se relaciona tanto com a Medicina como com a Arte, sendo considerada Ciência e Arte em simultâneo (Di Dio, 1998DI DIO, L. J. A. Tratado de anatomia aplicada. São Paulo: Poluss, 1998. ).

Nesse contexto, os efeitos de métodos complementares de ensino concernentes ao desenvolvimento processual e técnico dos alunos já são verificados por alguns pesquisadores. A produção de desenhos pelos estudantes durante o aprendizado de Anatomia Veterinária e as oficinas de desenho por eles organizadas demonstraram ser uma ferramenta importante, pois permitiram um aprendizado autodirigido em cursos que substituíram as dissecções de cadáveres, as quais foram canceladas durante a pandemia de covid‐19 (Laakkonen, 2020LAAKKONEN, J. Drawing in veterinary anatomy education: what do students use it for? Anatomical Sciences Education, [s. l.], v. 14, n. 6, p. 799-807, 2020.). Ademais, devido às restrições causadas pela impossibilidade de aulas presenciais, aumentou-se a necessidade de encontrar alternativas educacionais que fornecessem as medidas de segurança necessárias, ao mesmo tempo em que minimizassem a defasagem acadêmica (Alsharif et al., 2020ALSHARIF, M. H. K. et al. In light of covid-19 crisis: proposed guidelines for the “new norm” of anatomy teaching. Medical Science, [s. l.], v. 24, n. 105, p. 3281-3290, 2020.). Aqui, entende-se que os amigurumis se fizeram recursos instrucionais importantes, uma vez que puderam ser desenvolvidos em casa durante tempos de isolamento social.

Também se acredita que o artesanato possa ter ampliado o desenvolvimento cognitivo dos discentes, visto que a cognição implica a atividade de dois procedimentos distintos e especializados para se representar e processar a informação: um procedimento verbal, para tratar diretamente com a linguagem, e outro não verbal, especializado para tratar de eventos e objetos não linguísticos. Ao se dispor de alguma informação, essas partes se adaptam às diferentes modalidades em que se apresentam: visão, audição, tato, olfato e gustação. Por certo, os estudantes que foram expostos simultaneamente a aulas de Anatomia e atividades hands on, como a apresentada pelo presente trabalho, poderão obter melhores resultados acadêmicos, sendo esse fato denominado “efeito aditivo”. Logo, quando tais conhecimentos se somam, as informações memorizadas dessa maneira permitem ser recuperadas mais facilmente pelas alunas-artesãs (Carvalho, 2002CARVALHO, A. A. A. Multimédia: um conceito em evolução. Revista Portuguesa de Educação, Braga, Portugal, v. 15, n. 1, p. 245-268, 2002.).

Ao analisar como os profissionais da área da Saúde aprendem, existem dois principais paradigmas educacionais dos séculos 20 e 21: o objetivismo clássico, que trouxe algumas consequências geradoras de impasses para a prática médica ao fazer com que o estudante foque na doença e exclua as dimensões subjetivas do adoecer nos pacientes, e o construtivismo, que tem como pressuposto um estudante ativo e construtor do próprio conhecimento, o qual aprende o “fazer” em saúde utilizando uma série de saberes, competências e habilidades (Burke, 2020BURKE, D. Constructivism and objectivism. In: BURKE, D. How doctors think and learn. [S. l]: Springer, 2020. p. 43-48.). Diante disso, o estudo realizado sobre a confecção de amigurumis para fins de ensino de Anatomia apresenta uma relação intrínseca com o construtivismo.

Na educação científica, a transição que ocorre do objetivismo para o construtivismo é uma mudança vista com otimismo, já que concepções completamente diferentes (ontológicas, epistemológicas e axiológicas) existem entre esses dois paradigmas. Perante a perspectiva construtivista, enfatiza-se oferecer aos estudantes oportunidades para que compreendam a necessidade de desenvolver conhecimentos, aptidões e atitudes, permitindo-lhes conectar suas aprendizagens prévias, oriundas de suas particularidades culturais, à futura utilidade daqueles conteúdos ministrados no ensino superior. Os alunos tomam, então, consciência junto aos seus pares de que aprender é importante para eles, decidindo sobre os meios através dos quais a aprendizagem possa ser explorada. Assim, o aprendiz tanto resolve problemas como examina soluções, sendo tal visão curricular muito mais próxima ao verdadeiro cotidiano dos cientistas (Davis et al. 1994DAVIS, N. T. et al. Transição do objetivismo para o construtivismo na educação científica. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 11, n. 3, p. 172-183, dez. 1994.).

Em contraste com o paradigma objetivista de aprendizagem, o construtivismo oferece uma visão alternativa factível ao ensino de Ciências. As contribuições para o construtivismo provêm, basicamente, de três pensadores, que fazem uma interlocução com o tipo de trabalho artesanal aqui descrito: i) Vygotsky: por propor que a distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial, denominada de zona de desenvolvimento proximal, engloba funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação pelos estudantes de Anatomia que receberam a colaboração de pessoas mais experientes, como docentes, colegas e familiares; ii) Bruner: por propor a teoria dos andaimes, em que a professora fornece uma orientação cuidadosamente programada, reduzindo a quantidade de assistência à medida que o aluno progride no aprendizado da tarefa de confeccionar peças anatômicas fidedignas; e iii) Piaget: por propor esquemas de ação que são formas como o estudante interage com o mundo, organizando mentalmente a realidade que o cerca em casa para entendê-la no contexto do ensino superior (Burke, 2020BURKE, D. Constructivism and objectivism. In: BURKE, D. How doctors think and learn. [S. l]: Springer, 2020. p. 43-48.).

A função docente na sala de aula de Ciências Morfológicas também se altera no paradigma construtivista, deixando a professora de ser uma fonte absoluta detentora de conhecimento ao tornar-se uma pesquisadora que investiga como os seus alunos estão construindo o conhecimento. Logo, este estudo corrobora com Davis et al. (1994DAVIS, N. T. et al. Transição do objetivismo para o construtivismo na educação científica. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 11, n. 3, p. 172-183, dez. 1994.), pois percebeu-se que há maneiras alternativas de encarar a realidade para resolver problemas, além de as participantes da atividade terem tomado consciência de que aprender é uma responsabilidade que diz respeito a elas próprias, exigindo autonomia e criatividade. Ao se propor alternativas para o ensino-aprendizagem, as estudantes tiveram a oportunidade de experienciar escolhas, construir modelos anatômicos a partir de suas vivências e competências pessoais que fazem sentido para elas, desenvolvendo um entendimento compartilhado e, ao mesmo tempo, responsabilizando-se pela atividade elaborada ao valorizar as diferenças individuais de cada modelo didático produzido.

Ademais, teorias educacionais (fora da Medicina) mostram que a aprendizagem é amplamente incrementada quando ocorre uma combinação de aprender fazendo (comportamentalismo), aprender pensando (cognitivismo) e aprender interagindo com outras pessoas (socioconstrutivismo). Ao considerar as três teorias educacionais mencionadas, pode-se traçar um paralelo entre elas e a práxis em cirurgia: se o behaviorismo é sobre “fazer” e o cognitivismo é sobre “pensar”, parece sensato considerar que uma visão holística da prática cirúrgica também deva incluir a interação com a equipe (construtivismo social) (Grounds, 2021GROUNDS, R. Think before you cut! Is surgery about ‘doing’ or about ‘thinking’? The answer to this question will determine the right educational model to benefit surgical training. The Bulletin of the Royal College of Surgeons of England, London, v. 103, n. 1, p. 20-23, Jan. 2021.). Por isso, a Anatomia integra o departamento de cirurgia e os resultados deste trabalho fortalecem o construtivismo social ao teorizar que os estudantes criam significados com base em suas experiências e interação com os outros ao invés de passivamente adquiri-los.

Durante a experiência relatada, indiretamente ocorreu a inclusão de membros da família (especialmente os idosos) como cocriadores das peças de artesanato, contribuindo sobremaneira como fonte potencial para o desenvolvimento criativo de um processo curricular colaborativo. Todavia, verificou-se que, embora um ensino-aprendizagem mais inovador esteja ganhando espaço nas salas de aula, é necessário que os professores estejam atentos como orientadores da tarefa, sendo responsáveis por guiar a criatividade de seus alunos em confluência com a responsabilidade e o rigor da instrução acadêmica.

Por fim, é notório que a habilidade e o treinamento nas mais diversas técnicas artísticas são características compartilhadas entre os grandes anatomistas do passado e, também, da era contemporânea (Amorim Junior et al., 2018AMORIM JUNIOR, R. F. et al. A arte no ensino da Cardiologia: relato da experiência do uso de massas moldáveis no aprendizado da anatomia normal e patológica do coração. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 42, n. 4, p. 103-108, 2018.). Consequentemente, o desafio hoje é associar os conteúdos às novas ferramentas para a produção de peças anatômicas tanto em qualidade como em quantidade satisfatória para atender turmas cada vez mais numerosas.

Conclusão

Os resultados sustentam as relações entre a teoria construtivista e a prática das aulas desenvolvidas em casa pelos estudantes durante a pandemia. Esta pesquisa, de natureza exploratória, certamente permitiu refletir acerca de como ensinar Anatomia de forma alternativa e possibilitar um maior envolvimento dos estudantes no processo de aprendizagem, em tempos de ensino remoto, a partir de uma perspectiva construtivista. Tal perspectiva permitiu a inclusão da confecção dos amigurumis para fins de avaliação da aprendizagem em Anatomia, uma vez que os estudantes não foram julgados somente com base em um conhecimento específico, mas, sim, a partir de suas capacidades em resolver o problema da criação das peças anatômicas em domicílio com uma solução viável.

Conclui-se que é possível a criação de modelos sintéticos em crochê de relativa semelhança com as peças anatômicas originais. Os amigurumis foram desenvolvidos com materiais de fácil acesso, textura macia e baixo custo, sendo uma técnica de artesanato em potencial para ser aplicada ao ensino de Ciências Morfológicas. Afinal, como a Arte está nos primórdios da Anatomia e deverá continuar andando lado a lado com a disciplina, o artesanato também pode auxiliar na formação de novos profissionais.

Todavia, é importante considerar a necessidade de aprofundamento acerca das limitações do material e suas características para o ensino em Ciências Morfológicas. Por isso, novos estudos devem aprofundar a problematização sobre potencialidades e limites do recurso metodológico utilizado nesta pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2021
  • Aceito
    14 Set 2021
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