Acessibilidade / Reportar erro

Prevalência de distúrbios psiquiátricos menores na cidade de Pelotas, RS

Prevalence of minor psychiatric disorders in the City of Pelotas, RS

Resumos

Foi realizado um estudo transversal, de base populacional, com o objetivo de determinar a prevalência de distúrbios psiquiátricos menores (DPM) e verificar sua associação com fatores de risco. A amostragem por conglomerados foi definida em estágios múltiplos, incluindo 1967 pessoas com idade entre 20 e 69 anos, identificadas em 40 setores censitários da zona urbana da cidade de Pelotas. As entrevistas foram realizadas nos domicílios, utilizando-se um questionário pré-codificado, contendo SRQ-20, informações socioeconômicas e demográficas, presença de doenças crônicas, utilização de serviços de saúde, consumo de álcool, hábito de tabagismo e coleta de medidas antropométricas. A presença de DPM foi definida a partir de 6 e 7 respostas positivas no SRQ-20, para homens e mulheres, respectivamente. A prevalência de DPM foi de 28,5%, com intervalo de confiança de 95% entre 26,5% e 30,5%. A prevalência foi maior nas pessoas inseridas nas classes sociais mais baixas, de menor renda, acima de 40 anos e do sexo feminino. Na análise ajustada, os distúrbios psiquiátricos menores mantiveram-se associados com hábito de tabagismo, presença de doença crônica não transmissível e freqüência de consultas médicas. Os resultados indicam que as prevalências de DPM foram semelhantes a outros estudos realizados no município e atingem principalmente as camadas sociais mais baixas. Embora não tenham sido diferentes em relação ao tipo de serviço de saúde utilizado, mostraram associação com a freqüência de utilização de assistência médica, sugerindo que esses resultados possam orientar a formação de profissionais de saúde e o planejamento das ações de saúde.

Distúrbios psiquiátricos menores; Serviços de saúde; Classe social; Saúde mental; Estudo transversal; Epidemiologia


The purpose of this study was to determine the prevalence of minor psychiatric disorders (MPD) in the population of Pelotas, and to determine their association with risk factors. A cross-sectional, population-based survey was conducted, with a cluster sample, defined through multiple stages, of 1,967 adults ranging from 20 to 69 years of age. The questionnaire included several items, such as age, gender, family income, BMI (Body Mass Index), chronic disease report, health service utilization, and alcohol and tobacco consumption; it also included the Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20), a valid instrument. Six positive answers for males, and 7 for females, indicated the occurrence of MPD in this test. Among the 1,967 people included, 561 (28.5%) had MPD. Individuals with a low income were twice as likely to acquire minor psychiatric disorders, when compared to those classified in higher social classes. The condition was more frequent in females, with 383 (34.2%) individuals affected. People aged 40, or more, were at higher risk. The association with cigarette smoking, chronic diseases, and frequency of medical visits persisted after calculating logistic regression. The results were similar to those of comparable studies carried out in the city, which demonstrated a high prevalence in lower social classes. MPD are also associated with the frequency of medical visits, showing that these results might be of use in the training of health professionals and in planning health care interventions.

Minor psychiatric disorders; Health services; Social class; Mental health; Cross-sectional study; Epidemiology


Prevalência de distúrbios psiquiátricos menores na cidade de Pelotas, RS

Prevalence of minor psychiatric disorders in the City of Pelotas, RS

Juvenal Soares Dias da CostaI; Ana Maria Baptista MenezesII; Maria Teresa Anselmo OlintoIII; Denise Petrucci GiganteIV; Silvia MacedoII; Marcelo Alexandre Pinto de BrittoV; Sandra Costa FuchsVI

IDepartamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Pelotas. Av. Duque de Caxias, 250; 96030-002 - Pelotas, RS; jcosta@epidemio-ufpel.org.br

IIDepartamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Pelotas

IIICentro de Ciências da Saúde

IVFaculdade de Nutrição, Universidade Federal de Pelotas

VFaculdade de Medicina, Universidade Federal de Pelotas

VIDepartamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO

Foi realizado um estudo transversal, de base populacional, com o objetivo de determinar a prevalência de distúrbios psiquiátricos menores (DPM) e verificar sua associação com fatores de risco. A amostragem por conglomerados foi definida em estágios múltiplos, incluindo 1967 pessoas com idade entre 20 e 69 anos, identificadas em 40 setores censitários da zona urbana da cidade de Pelotas. As entrevistas foram realizadas nos domicílios, utilizando-se um questionário pré-codificado, contendo SRQ-20, informações socioeconômicas e demográficas, presença de doenças crônicas, utilização de serviços de saúde, consumo de álcool, hábito de tabagismo e coleta de medidas antropométricas. A presença de DPM foi definida a partir de 6 e 7 respostas positivas no SRQ-20, para homens e mulheres, respectivamente. A prevalência de DPM foi de 28,5%, com intervalo de confiança de 95% entre 26,5% e 30,5%. A prevalência foi maior nas pessoas inseridas nas classes sociais mais baixas, de menor renda, acima de 40 anos e do sexo feminino. Na análise ajustada, os distúrbios psiquiátricos menores mantiveram-se associados com hábito de tabagismo, presença de doença crônica não transmissível e freqüência de consultas médicas. Os resultados indicam que as prevalências de DPM foram semelhantes a outros estudos realizados no município e atingem principalmente as camadas sociais mais baixas. Embora não tenham sido diferentes em relação ao tipo de serviço de saúde utilizado, mostraram associação com a freqüência de utilização de assistência médica, sugerindo que esses resultados possam orientar a formação de profissionais de saúde e o planejamento das ações de saúde.

Palavras-chave: Distúrbios psiquiátricos menores. Serviços de saúde. Classe social. Saúde mental. Estudo transversal. Epidemiologia.

ABSTRACT

The purpose of this study was to determine the prevalence of minor psychiatric disorders (MPD) in the population of Pelotas, and to determine their association with risk factors. A cross-sectional, population-based survey was conducted, with a cluster sample, defined through multiple stages, of 1,967 adults ranging from 20 to 69 years of age. The questionnaire included several items, such as age, gender, family income, BMI (Body Mass Index), chronic disease report, health service utilization, and alcohol and tobacco consumption; it also included the Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20), a valid instrument. Six positive answers for males, and 7 for females, indicated the occurrence of MPD in this test. Among the 1,967 people included, 561 (28.5%) had MPD. Individuals with a low income were twice as likely to acquire minor psychiatric disorders, when compared to those classified in higher social classes. The condition was more frequent in females, with 383 (34.2%) individuals affected. People aged 40, or more, were at higher risk. The association with cigarette smoking, chronic diseases, and frequency of medical visits persisted after calculating logistic regression. The results were similar to those of comparable studies carried out in the city, which demonstrated a high prevalence in lower social classes. MPD are also associated with the frequency of medical visits, showing that these results might be of use in the training of health professionals and in planning health care interventions.

Key Words: Minor psychiatric disorders. Health services. Social class. Mental health. Cross-sectional study. Epidemiology.

Introdução

Pelotas é uma cidade de aproximadamente 300.000 habitantes, que dispõe de uma extensa e descentralizada rede de cuidados primários em saúde, com mais de 50 postos de atenção primária, além de inúmeros serviços contratados, conveniados e seguros. Alguns estudos têm mostrado que a oferta de serviços na cidade é quantitativamente adequada1; contudo, as avaliações de processo têm revelado a inadequação dos cuidados e da assistência2,3.

As questões de custos com a saúde envolvem não só a determinação orçamentária, mas também o estabelecimento de programas prioritários. Na Holanda, por exemplo, 7,1% do orçamento da saúde é gasto em cuidados com pacientes com distúrbios psiquiátricos, mais que os 5,7% gastos em atenção primária4 .

Estudos epidemiológicos com delineamento transversal podem ser utilizados em saúde pública, tanto para determinar a freqüência de distúrbios psiquiátricos, inicialmente, e as características associadas a variações, como para avaliar a efetividade de políticas e ações desenvolvidas5.

A prevalência de sintomas psiquiátricos, particularmente ansiedade e depressão, varia dependendo não só da população investigada e do instrumento utilizado na detecção, mas do período de tempo investigado e das condições socioeconômicas da população. Em relação a distúrbios mentais durante a vida, estudo coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), determinou que a freqüência varia de 12,2%, na Turquia, a 48,6%, nos Estados Unidos6. No Brasil, o estudo foi realizado em São Paulo, onde 17,4% dos indivíduos apresentavam ansiedade, 15,5% distúrbios do humor e 16,1% usavam substância (substance use). Neste mesmo estudo da OMS, a prevalência de distúrbios psiquiátricos também foi investigada no período de 12 meses. Embora a prevalência tenha sido de menor magnitude, houve semelhança na distribuição dos fatores de risco6. Outro estudo realizado no Brasil, de caráter multicêntrico, revelou prevalências de casos com necessidade de cuidados variando de 19% a 34%7. Baixa escolaridade, gênero feminino, desemprego, separação, classe social baixa e paternidade ou maternidade sem companheiro(a) são alguns dos fatores de risco associados a maior prevalência de problemas mentais8-10. Diversos estudos sobre estresse e qualidade de vida, reforçam a teoria de que as condições de vida das classes menos favorecidas seriam, na verdade, determinantes do aparecimento de doenças mentais11-13. Alguns trabalhos mostram que, no âmbito da atenção primária, 40% das pessoas atendidas apresentam distúrbios psiquiátricos menores14,15.

Assim, realizou-se um estudo com o objetivo de verificar a prevalência de distúrbios psiquiátricos menores na população de Pelotas e sua associação com características socioeoconômicas, hábitos de vida e aspectos relacionados à utilização de serviços de saúde.

Materiais e métodos

Realizou-se um estudo transversal de base populacional, envolvendo diversos aspectos relacionados com a saúde da população adulta, de 20 a 69 anos, residente na zona urbana da cidade de Pelotas, RS. O Projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas.

O tamanho da amostra foi estimado através de diversas prevalências exploradas pelo estudo. Assim, para cálculo da amostra utilizou-se um poder de 80%, um erro alfa de 5% para exposições variando entre 25% e 75%, com uma razão de prevalência de 1,6. Acrescentou-se ao tamanho da amostra 10% pelas possibilidades de perdas e recusas e 15% para controle de fatores de confusão. Portanto, estimou-se uma amostra de 1.800 indivíduos. A inclusão das pessoas foi feita através de visitas domiciliares em 40 setores censitários sorteados aleatoriamente. Em cada setor foram visitados 30 domicílios, totalizando 1.200 famílias, onde se esperava encontrar 1,5 pessoas na faixa etária do estudo. A partir de um quarteirão previamente sorteado, escolheu-se, também de maneira aleatória, o ponto de partida. Ao terminar a entrevista em um determinado domicílio, sistematicamente duas casas eram saltadas antes da próxima a ser visitada.

Ao final do trabalho de campo, foram visitadas 1.145 (95,4%) famílias. Destas, 57 (4,7%) estavam fora da faixa etária prevista no estudo. Portanto, outras 55 (4,5%) famílias foram classificadas como perdas ou recusas. Entre as 2.177 pessoas encontradas com idade entre 20 e 69 anos, foram incluídas no estudo 1.967 pessoas. Dessa forma, as perdas e recusas individuais atingiram 9,6%.

O trabalho de campo foi realizado entre 3 de dezembro de 1999 e 3 de abril de 2000, com a aplicação de um questionário padronizado e pré-codificado a todas as pessoas incluídas na pesquisa. Os entrevistadores foram acadêmicos da Universidade Federal de Pelotas, os quais se submeteram a programa de treinamento, estudo piloto, e desconheciam os objetivos do estudo.

O Self-Report Questionnaire é um instrumento constituído de 20 perguntas (SRQ-20) que podem ser respondidas através de autopreenchimento ou de entrevista, que permite fazer o rastreamento de distúrbios psiquiátricos menores (depressão, ansiedade, distúrbios somatoformes e neurastenia), mais do que estabelecer categorias diagnósticas como na Classificação Internacional de Doenças-10 (CID-10) e Diagnostic and Statistical Manual-IV (DSM-IV). Em centros de atenção primária, o SRQ é útil como o primeiro estágio no processo diagnóstico, tendo em vista sua alta sensibilidade (83%) e especificidade (80%)16. O SRQ-20 é o instrumento recomendado pela Organização Mundial de Saúde para esta finalidade e tem se mostrado eficaz na detecção de distúrbios psiquiátricos menores (DPM), sendo inclusive superior ao próprio exame clínico realizado por médicos generalistas14. Os pontos de corte estabelecidos para caracterizar a presença de distúrbios psiquiátricos menores foram distintos para os sexos - 6 para os homens e 7 para as mulheres.

As variáveis independentes investigadas foram classe social, segundo classificação da ABIPEME17; renda familiar per capita, em salários mínimos; idade; gênero; tabagismo; consumo de bebidas alcoólicas (em gramas de álcool consumidas por dia); índice de massa corporal (em kg/m2) e presença de doenças crônicas (hipertensão arterial, bronquite crônica e diabetes mellitus).

Hipertensão foi determinada através da aferição de pressão arterial, sendo estabelecido diagnóstico a partir da média de duas aferições ³ 160/95 mm Hg ou emprego de anti-hipertensivos; bronquite crônica, definida pela ocorrência de tosse produtiva na maioria dos dias, de um período mínimo de três meses, durante dois anos consecutivos18; e diabetes através de história.

Verificou-se também o local e o tipo de instituição para os indivíduos que realizaram consulta médica no último mês, além da freqüência de consultas médicas no último ano.

Em relação ao consumo de bebidas alcoólicas, foi considerado risco o consumo abusivo de bebidas alcoólicas, utilizando-se 30g de etanol/dia. Este ponto de corte é considerado risco consistente para diversas patologias, como hipertensão19 e acidente vascular cerebral. Pessoas com consumo abaixo do ponto de corte foram classificadas como "consumo moderado".

Foram coletadas as medidas de peso e altura das pessoas entrevistadas para cálculo do índice de massa corporal (IMC). Os pontos de corte para sobrepeso e obesidade foram IMC entre 25 e 29,9 Kg/m2 e igual ou superior a 30 Kg/m2, respectivamente20.

A variável local de consulta foi coletada para os diversos serviços possíveis e, posteriormente agregada quanto à modalidade do financiamento e intenção de lucro do serviço. A partir deste critério, foram formadas 4 categorias:

  • sistema público: integrado pelos postos de saúde do bairro do entrevistado, outros postos de saúde, ambulatório da Faculdade de Medicina e pronto-socorro;

  • serviços contratados: constituído pelos ambulatórios de hospitais;

  • serviços conveniados e seguros: formado pelos ambulatórios de sindicatos e empresas, medicina de grupo, e seguros privados de saúde;

  • sistema privado: constituído, exclusivamente, pelos médicos particulares.

Foi realizado controle de qualidade, aplicando-se questionários simplificados em 10% das pessoas incluídas na amostra.

A codificação e a entrada de dados através do Programa Epi-Info foram efetuadas duas vezes, com o intuito de diminuir os erros de consistência. A análise dos dados foi realizada através do Programa SPSS, onde foram feitas comparações entre a prevalência de DPM em relação às variáveis socioeconômicas, demográficas, hábitos de vida, doenças crônicas não transmissíveis e utilização de serviços de saúde. Também foram calculadas as razões de prevalências e seus intervalos de confiança de 95%, testando-se a significância estatística através do teste do Qui-quadrado21. Uma vez que o desenho amostral foi em múltiplos estágios, estimou-se o efeito de desenho. O procedimento foi realizado no Stata.

Realizou-se regressão logística, seguindo modelo hierarquizado (Figura 1) para controle das variáveis de confusão22, calculando-se as razões de odds e seus intervalos de confiança. Entraram na análise multivariada as variáveis que mostraram associação estatística, ou seja, quando o valor de p fosse menor do que 0,05.


Resultados

A prevalência de distúrbios psiquiátricos menores, detectados através do SRQ-20, foi de 28,5% (IC95% 26,4-30,6%).

Em relação às variáveis socioeconômicas e demográficas, verificou-se que a maioria das pessoas incluídas no estudo pertenciam à classe C da ABIPEME, tinham renda familiar menor do que três salários mínimos e tinham idade entre 20-49 anos. Observa-se, na Tabela 1, que a maior da parte das pessoas consumiam uma quantidade menor do que 30 g/dia de álcool, não fumavam, apresentavam estado nutricional adequado, não apresentavam doença crônica, consultavam preferencialmente nos serviços de assistência médica conveniados e seguros e com uma freqüência de três ou mais consultas durante o ano.

Destaca-se, na Tabela 2, a associação marcante de distúrbios psiquiátricos menores com classe social, particularmente com as classes D e E. Os dados revelaram que a prevalência de distúrbios aumentava à medida que diminuíam as categorias de classe social da classificação da ABIPEME, caracterizando uma associação linear A mesma tendência linear foi detectada entre renda e DPM, sendo que as pessoas com renda familiar inferior a três salários mínimos apresentaram duas a três vezes maior prevalência da condição, em comparação com as pessoas com ganho maior que 10 salários mínimos per capita .

As mulheres apresentaram uma prevalência 62% maior de DPM do que os homens. E o efeito da idade tornou-se marcante a partir dos quarenta anos de idade. As prevalências foram aumentando de acordo com a idade, e mostraram tendência linear significativa.

Ao se analisar hábitos de vida, verificou-se o efeito protetor do consumo moderado de álcool sobre a prevalência de DPM (Tabela 2). As pessoas que fumavam mais que 19 cigarros por dia, com obesidade, manifestando presença de doenças crônicas, apresentaram maior prevalência de distúrbios psiquiátricos menores.

Quanto a utilização dos serviços de saúde, os dados revelaram que as pessoas que consultavam nos serviços contratados e no sistema público tinham maior prevalência de DPM do que os indivíduos que recorreram ao sistema privado, assim como as pessoas que consultaram três ou mais vezes durante o ano (Tabela 2).

Na análise multivariada, incluíram-se no modelo as variáveis que haviam apresentado significância estatística na análise bivariada, observando-se o efeito independente apenas do hábito de fumar, presença de doença crônica e freqüência de consultas médicas (Tabela 3). Observou-se que, após controle para as variáveis hierarquicamente determinantes no modelo, classe social, sexo e idade, hábito de fumar e presença de doença crônica estavam positivamente associados com a prevalência de distúrbios psiquiátricos menores. Por outro lado, constatou-se que três ou mais consultas médicas no último ano mostrou-se um marcador para a presença de distúrbios psiquiátricos menores.

Discussão

Uma das vantagens dos estudos populacionais é que a partir de seus achados é possível realizar inferências e estimativas para toda a população. Do ponto de vista do delineamento, pode-se afirmar que o rigor metodológico do estudo superou problemas inerentes ao seu desenho: viés de seleção, confusão e acaso23. Desta forma, verificou-se que as características demográficas dos indivíduos incluídos no estudo coincidem com a distribuição destas caraterísticas na população de Pelotas. A análise multivariada permitiu o controle de fatores de confusão e há consistência com os resultados identificados em outros estudos populacionais.

Outros dois estudos de base populacional realizados em Pelotas exploraram a prevalência de DPM. O primeiro, realizado em 1994 e que envolveu 1.277 indivíduos com mais de 15 anos de idade, encontrou uma prevalência de 22,7% (IC 95% 20,4-25,0)24 . Outro estudo também de base populacional, realizado em 1996, incluiu 841 adultos com idade entre 21 e 50 anos, identificando-se uma prevalência de 23,8% (IC 95% 20,9-26,7)25 . Destaca-se que este último estudo incluiu pessoas mais jovens e adotou pontos de corte no SRQ-20 de 7 para os homens e 8 para as mulheres. A escolha de pontos de corte mais elevados aumentou a especificidade do estudo, com conseqüente diminuição da sensibilidade. O presente estudo identificou 28,5% de DPM, prevalência mais elevada que a de 22,7% no estudo de 1994, e de 23,8% no estudo de 96. As diferenças metodológicas não são suficientes para justificar o aumento na prevalência, exceto as diferenças nos grupos etários. No estudo de 1994 foram incluídos indivíduos mais jovens, nos quais a prevalência é menor; e no estudo de 1996 a faixa etária limite foi de 50 anos, deixando de incluir os indivíduos mais velhos, em que a prevalência é maior. Para verificar se as diferenças etárias eram as responsáveis pelas diferenças nas taxas de prevalência, foram refeitos os cálculos para os grupos etários disponíveis nos três estudo. Identificou-se que a prevalência entre os 1364 indivíduos de 20 a 49 anos foi de 25,9% (IC 95% 23.5 a 28,2). Portanto, os intervalos de confiança não mostraram diferenças nas freqüências entre os estudos.

A etiologia de doenças crônicas não transmissíveis é multideterminada. Os fatores socioeconômicos que condicionam a situação de vida das pessoas têm estreita relação com os distúrbios psiquiátricos menores9. As associações das variáveis socioeconômicas com a prevalência de distúrbios psiquiátricos menores mostraram claramente a relação inversa com a posição social dos indivíduos. Como a temporalidade das variáveis socioeconômicas precede os DPM, pelo menos em relação à classe social, esses achados reforçam a hipótese de que as condições de vida sejam determinantes do aparecimento de doenças mentais. Tais resultados condizem com padrões encontrados em estudos realizados no Brasil11,12.

Verificou-se que a freqüência de distúrbios psiquiátricos menores aumentou com a idade, e acredita-se que o envelhecimento esteja associado com maior exposição a doenças crônicas não transmissíveis e a eventos psicossociais como, por exemplo, luto, separações conjugais, perda de emprego8.

Do ponto de vista da utilização de assistência médica, o presente estudo revelou que as diferenças do tipo de serviço de saúde em relação à prevalência de DPM não são independentes das variáveis socioeconômicas. Entretanto, os indivíduos que consultaram mais vezes com médicos apresentaram maior prevalência de DPM, caracterizando-se aqui um possível marcador da condição. Outras características também podem servir como marcadoras do problema, tais como sexo feminino e idade avançada. Merecem destaque o tabagismo e a presença de doenças crônicas, que apresentaram efeito independente de classe social, idade e gênero, sugerindo que pacientes com estas condições sejam avaliados para DPM, independentemente da queixa.

Sabe-se que a prevalência detectada por profissionais não especializados trabalhando em serviços de atenção primária à saúde geralmente é menor do que a esperada na população geral26. Neste contexto, a aplicação do SRQ-20 poderia ser útil no rastreamento de distúrbios psiquiátricos. Contudo, os DPM envolvem múltiplas estratégias, que ultrapassam o escopo da assistência à saúde. Entende-se que as intervenções em saúde mental devem considerar as condições de vida da população e que estas precisam ser melhoradas, para que as intervenções sejam efetivas quando implementadas em um contexto real. Espera-se que os achados da presente investigação possam contribuir para a formação dos profissionais de saúde e para um atendimento qualificado e efetivo do problema.

Recebido em 14/01/02; aprovado em 30/10/02

Auxílio financeiro

FAPERGS/CNPq - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Processo nº 520884-99-0)

O arquivo disponível sofreu correções conforme ERRATA publicada no Volume 5 Número 3 da revista.

  • 1. Dias da Costa JS, Fachinni LA. Utilização de serviços ambulatoriais em Pelotas: onde a população consulta e com que freqüência. Rev Saúde Pública 1997; 31(4): 360-9.
  • 2. Assunção MC, Santos IS, Gigante DP. Atenção primária em diabetes no Sul do Brasil: estrutura, processo e resultado. Rev Saúde Pública 2001; 35(1): 88-95.
  • 3. Silveira DS, Santos IS, Dias da Costa JS. Atenção pré-natal na rede básica: uma avaliação da estrutura e do processo. Cad Saúde Pública 2001; 17(1): 131-9.
  • 4. Meerding WJ, Bonneux L, Polder JJ, Koopmanschap MA, van der Maas PJ. Demographic and epidemiological determinants of healthcare costs in Netherlands: cost of illness study. Br Med J 1998; 11: 317(7151): 111-5
  • 5. Andrade ALSS, Zicker F. Estudos de Prevalência. In: ____. Métodos de investigação epidemiológica em doenças transmissíveis: volume I Brasília (DF): Organização Pan-Americana da Saúde, Fundação Nacional de Saúde; 1997, p. 33-42.
  • 6. The WHO International Consortium in Psychiatric Epidemiology Cross-national comparisons of the prevalences and correlates of mental disorders. Bull World Health Organ 2000; 78(4): 413-26.
  • 7. Almeida-Filho N, Mari J, Coutinho E, Franca JF, Fernandes J, Andreoli SB, Busnello ED. Brazilian multicentric study of psychiatric morbidity. Methodological features and prevalence estimates. Br J Psychiatry 1997; 171: 524-9.
  • 8. Araya R, Rojas G, Fritsch R, Acuña J, Lewis G. Common mental disorders in Santiago, Chile: Prevalence and socio-demographic correlates. Br J Psychiatry 2001; 178: 228-33.
  • 9. Weich S, Lewis G. Material standard of living, social class, and the prevalence of the common mental disorders in Great Britain. J Epidemiol Community Health 1998; 52: 8-14.
  • 10. Coutinho E, Almeida-Filho N, Mari J, Rodrigues LC. Gender and minor psychiatric morbidity: results of a case-control study in a developing country. Int J Psychiatry Med 1999; 29(2): 197-208.
  • 11. Almeida-Filho N, Santana VS, Mari JJ. Princípios de epidemiologia para profissionais de saúde mental Brasília (DF): Ministério da Saúde, Secretaria Nacional de Programas Especiais de Saúde, Divisão Nacional de Saúde Mental; 1989.
  • 12. Facchini LA. Por que a doença? A inferência causal e os marcos teóricos de análise. In: Rocha LE, Rigotto RM, Buschinelli JTP. Isto é trabalho de gente? Vida, doença e trabalho no Brasil. Petrópolis: Vozes; 1994, p. 33-55.
  • 13. Coutinho E, Almeida-Filho N, Mari J, Rodrigues LC. Minor psychiatric morbidity and internal migration in Brazil. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol 1996; 31(3-4): 173-9.
  • 14. Mari JJ, Iacopini E, Williams P, Simões O, Silva JBT. Detection of Psychiatric Morbidity in the Primary Medical Care Settings in Brazil. Rev Saúde Pública 1987; 21: 501-7.
  • 15. Mari JJ. Morbilidad psiquiatrica en centros de atencion primaria. Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana 1988; 104: 171-81.
  • 16. Mari JJ, Williams P. A Validity Study of a Psychiatric Screening Questionnaire in Primary Care in the City of São Paulo. Br J Psychiatry 1986; 148: 23-6.
  • 17. Rutter M. Pesquisa de Mercado São Paulo: Ed. Ática; 1988.
  • 18. Bleecker E, Mark CL. Doenças Obstrutivas das Vias Aéreas. In Barker LR, Burton JR, Zieve PD (orgs.). Princípios de Medicina Ambulatorial Porto Alegre: Artes Médicas; 1993, p. 554-81.
  • 19. Moreira LB, Fuchs FD, Moraes RS, Bredemeier M, Cardozo S, Fuchs SC, Victora CG. Alcoholic beverage consumption and associated factors in Porto Alegre, a southern Brazilian city: a population-based survey. J Stud Alcohol 1996; 57(3): 253-9.
  • 20. World Health Organization. Obesity preventing and managing the global epidemic. Geneva; 1997. (Report of a WHO Consultation on Obesity).
  • 21. Altman DG. Practical Statistics for Medical Research London: Chapman & Hall; 1997.
  • 22. Victora CG, Huttly SR, Fuchs SC, Olinto MTA. The role of conceptual frameworks in epidemiological analysis: a hierarchical approach. Int J Epidemiol 1997; 26: 224-47.
  • 23. Albhom A, Norell S. Introduction to Modern Epidemiology Chestnut Hill: Epidemiology Resources Inc.; 1990.
  • 24. Lima MS, Hotopf M, Mari JJ, Béria JU, De Bastos AB, Mann A. Psychiatric disorder and the use of benzodiazepines: na example of the inverse care law from Brazil. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol 1999; 34: 316-22.
  • 25. Ustárroz LFL. Eventos estressantes, insatisfação na vida e morbidade psiquiátrica menor em Pelotas, RS [Dissertação de Mestrado]. Pelotas: Faculdade de Medicina da UFPel; 1997.
  • 26. Blatt AM, Dias CC, Marchi R. Detecção, encaminhamento e tratamento de transtorno mental por médicos não psiquiatras. Revista de Ciências Médicas PUCCAMP 1996; 5(3): 106-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2002

Histórico

  • Aceito
    30 Out 2002
  • Recebido
    14 Jan 2002
Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Dr. Arnaldo, 715 - 2º andar - sl. 3 - Cerqueira César, 01246-904 São Paulo SP Brasil , Tel./FAX: +55 11 3085-5411 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revbrepi@usp.br