EDITORIAL
Perdemos Richard Doll.
Nunca saberemos com certeza que nomes serão lembrados no futuro como referências no campo das idéias e da produção de conhecimento nas esferas da Epidemiologia e da Saúde Pública, mas além de John Snow, seguramente Richard Doll estará entre eles.
Seus trabalhos sobre a associação entre o tabagismo e câncer de pulmão são presença obrigatória nos livros texto de Epidemiologia e uma constante nas atividades de formação de profissionais de saúde e pesquisadores nestas áreas.
Embora os aportes de sua trajetória científica transcendam em muito o estudo dos efeitos do tabagismo na saúde humana, não é sobre estes que gostaria de comentar, mas sim do ser humano de olhar doce e franco que tive o privilégio de conhecer e conviver durante alguns poucos, mas sempre lembrados dias.
Durante os preparativos do IV Congresso Brasileiro de Epidemiologia, o EPI-RIO realizado em agosto de 1998, o nome de Richard Doll veio imediatamente à mente na estruturação da relação de palestrantes convidados. Ao contrário de alguns outros nomes _ felizmente poucos, e imediatamente desconsiderados- que ao serem convidados, responderam-nos perguntando quanto receberiam como pagamento para apresentarem conferências no Congresso, Doll prontamente aceitara o convite com satisfação. Cabe lembrar que então, com cerca de 85 anos de idade, tinha o compromisso já assumido de vir ao Rio de Janeiro no seguinte mês de setembro para dar uma conferência durante o Congresso Mundial de Câncer, igualmente aqui realizado duas semanas após o término do EPI-RIO.
Naqueles dias tivemos oportunidade de conversar bastante, e assim, conhecer um pouquinho do homem que se tornara o mito da Epidemiologia do século 20. Figura amável e de muito fácil conversação, dissera que fora como estudante de medicina que entrara em contato com o intenso debate ideológico entre as ideías liberais, socialistas e fascistas já presentes na sociedade inglesa na década de 30. Fora tambem como médico recém-formado, que se alistara voluntariamente no exército inglês para participar na luta contra o nazismo.
Finalizada a 2ª Guerra, ganhava força o debate entre trabalhadores e os dirigentes conservadores na Inglaterra para a criação do Sistema Nacional de Saúde, a primeira experiência dessa natureza no mundo capitalista. É no meio deste debate, que Doll é convidado por Bradford Hill um dos grandes nomes da Bioestatística naquele período _, para ajuda-lo na análise da crescente elevação de casos de câncer de pulmão em homens que estavam sendo diagnosticados no país.
O que Doll então nos comentou era que tanto ele como Bradford Hill acreditavam piamente que a causa daquele fenomêno era a crescente poluição urbana decorrente da ampliação da frota de automóveis circulando por Londres e demais grandes cidades inglesas. Esta convicção era tão marcada que seus estudos inicais foram realizados analisando a distribuição do câncer de pulmão em guardas de trânsito, em comparação com aquela verificada entre os demais trabalhadores.
Para sua surpresa, a similitude de resultados em ambos grupos, levou-os a ampliar o espectro de possiveis fatores de risco, o que acabou conduzindo aos clássicos resultados dos estudos revelando a associção daquela neoplasia com o hábito de fumar, hipótese então considerada inusitada e surpreendente. Na Inglaterra dos anos 40, cerca de 80% dos homens adultos eram fumantes, hábito de vida então considerado como sofisticado e de bom gosto. As contra-capas de importantes revistas médicas daquele período apresentavam propaganda da indústria do tabaco com pretensos diálogos nas quais os personagens centrais eram profissionais de saúde, como médicos e enfermeiras, destacando suas preferências pelas diferentes marcas de cigarro, assim associadas à imagem de credibilidade e aceitabilidade social daqueles profissionais. Com os trabalhos de Doll e a contundência de seus resultados, o tabagismo sofre um de seus primeiros grande golpes, e em poucos anos, diminui a prevalência de fumantes nas camadas socais de maior escolaridade e renda na Inglaterra. Seu impacto geral para a saúde pública e nas atividades de promoção da saúde foi tão marcado que Doll recebe da realeza inglesa o grau de "Sir", sendo seu nome várias vezes sugerido posteriormente na indicação para Premio Nobel de Medicina, o que acabou nunca se materializando.
Daquela figura de homem alto e magro, simples mas majestoso, restou a imagem de um verdadeiro cientista, de bem com a vida, e para quem a aposentadoria não fazia parte de seu vocabulário. Sua curiosidade nao tinha limites, abarcando desde os segredos da culinária brasileira, até os desafios contemporâneos do conhecimento, como o estudo da associação entre os campos eletromagnéticos e a ocorrência de câncer na infância.
Como cientista, deixa como poucos um exemplo de vida, envolvido na produção do conhecimento e com um claro posicionamento e compreensão sobre a natureza de sua atividade na sociedade.
Como indivíduo, era uma pessoa sempre atenta à vida que lhe circundava, e a última imagem de que dele guardo lembrança foi ao nos despedirmos no Riocentro durante o Congresso Mundial de Câncer. Estava apressado, pois não queria atrasar-se para tomar o vôo de regresso, já que ao chegar a Londres, a esposa o estaria esperando no aeroporto, para dali dirigirem-se diretamente a uma sessão de teatro...
Sergio Koifman
Editor Associado
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Out 2005 -
Data do Fascículo
Set 2005