Open-access Disparidades geoprogramáticas do desempenho de indicadores da tuberculose na população em situação de rua no Brasil: uma abordagem ecológica

RESUMO

Objetivo:  Analisar o desempenho e a distribuição espacial de indicadores de controle da tuberculose na população em situação de rua no Brasil.

Métodos:  Estudo ecológico, que teve como unidade de análise as regiões e as unidades federadas do Brasil. Os indicadores considerados, referentes ao período de 2015 a 2021, foram: proporção de testagem para HIV, proporção de coinfecção tuberculose-HIV, proporção de realização do tratamento diretamente observado e proporção dos desfechos (cura, abandono do tratamento e óbito). O cálculo foi efetuado sobre cada unidade ecológica, conforme recomendações do Ministério da Saúde. Para a produção das figuras geográficas, utilizou-se a técnica de quebras naturais.

Resultados:  Identificou-se que as pessoas em situação de rua apresentaram: baixa testagem para HIV, com destaque para o Pará (71,7%); alta proporção de coinfecção tuberculose-HIV, especialmente no Rio Grande do Sul (39,9%); e implementação insatisfatória do tratamento diretamente observado, principalmente na Paraíba (7,7%). No que se refere aos desfechos, verificou-se elevado abandono do tratamento, com maior proporção em Roraima (52,9%), e alto número de óbitos, com ênfase para o Mato Grosso do Sul (23,1%), que também registrou a pior proporção de cura (28,7%).

Conclusão:  Evidenciou-se baixo desempenho dos indicadores de controle da tuberculose nas pessoas em situação de rua, com distribuição heterogênea entre os estados e as regiões do país, sendo notório que a maioria deles teve resultados insuficientes. Esses dados suscitam a persistência de dificuldades e desafios inerentes à implementação das estratégias de controle da tuberculose para essa população no território nacional.

Palavras-chave:
Pessoas em situação de rua; Tuberculose; Indicadores básicos de saúde; Análise espacial; Estudos ecológicos

ABSTRACT

Objective:  To analyze the performance and spatial distribution of tuberculosis control indicators in the homeless population in Brazil.

Methods:  Ecological study, which had the regions and federal units of Brazil as the unit of analysis. The indicators considered, referring to the period from 2015 to 2021, were: proportion of HIV testing, proportion of tuberculosis-HIV co-infection, proportion of directly observed treatment, and proportion of outcomes (cure, treatment abandonment and death). The calculation was performed on each ecological unit, as recommended by the Ministry of Health. For the production of geographic figures, the technique of natural breaks was used.

Results:  It was identified that people living on the streets had: low HIV testing, especially in Pará (71.7%); high proportion of tuberculosis-HIV coinfection, especially in Rio Grande do Sul (39.9%); and unsatisfactory implementation of directly observed treatment, mainly in Paraíba (7.7%). With regard to outcomes, there was a high rate of treatment abandonment, with a higher proportion in Roraima (52.9%), and a high number of deaths, with an emphasis on Mato Grosso do Sul (23.1%), which also recorded the worst cure rate (28.7%).

Conclusion:  There was evidence of poor performance of tuberculosis control indicators in homeless people, with heterogeneous distribution between states and regions of the country, and it is clear that most of them had insufficient results. These data raise the persistence of difficulties and challenges inherent to the implementation of tuberculosis control strategies for this population in the national territory.

Keywords:
III-Housed persons; Tuberculosis; Health status indicators; Spatial analysis; Ecological studies

INTRODUÇÃO

A tuberculose (TB) ainda representa um importante problema de saúde pública mundial1,2, e, com o advento da pandemia de COVID-19, considera-se que houve retrocesso nos avanços até então obtidos no controle da doença, sobretudo pelas repercussões causadas pela reorganização dos serviços e pelo redirecionamento dos esforços para o enfrentamento da pandemia1. Em 2020, houve redução de 18%, em relação a 2019, do número de pessoas recém-diagnosticadas com TB a nível global1.

No cenário internacional, destaca-se a existência de metas pelo fim da TB como problema de saúde pública, pactuadas entre países membros das Nações Unidas. Essas metas buscam a redução da incidência da TB em 90% e das mortes pela doença em 95% até 2035, em comparação aos dados de 20151. Para tanto, visam-se a: ações de cuidado integrado e centrado na pessoa, construção de sistemas de apoio, fortalecimento da pesquisa e promoção do acesso equitativo às tecnologias disponíveis1.

O Brasil é um dos países com maior carga de TB, sobretudo pelas disparidades sociais e econômicas existentes entre as regiões e os estados do país, que interferem, também, nos indicadores de saúde3. Nesse sentido, impulsionar os conhecimentos e o debate sobre a TB, que está fortemente relacionada às iniquidades e à determinação social do processo saúde-doença, é primordial para que se consiga alcançar as metas de eliminação pactuadas globalmente e adotadas no contexto nacional4.

De acordo com dados do Ministério da Saúde do Brasil, constatou-se decréscimo da notificação dos casos durante o período de pandemia de COVID-19, passando de um coeficiente de incidência de 37,1 casos a cada 100.000 habitantes em 2019 para 32,0 a cada 100.000 habitantes em 20212. Paralela à redução da incidência, viu-se queda na proporção de cura, especialmente entre os casos de TB na população em situação de rua (PSR), cujos valores passaram de 39,9% em 2018 para 33,0% em 20202.

Estudos desenvolvidos em âmbito nacional demonstraram desempenho insatisfatório do manejo e do controle da TB em grande parte dos municípios avaliados5,6. Esse cenário de debilidades programáticas se torna ainda mais complexo ao se considerarem os custos catastróficos e as sequelas socioeconômicas decorrentes do adoecimento e do tratamento para TB, como desemprego, incapacidade de trabalho, perda de renda e exclusão social7, que dificultam a eliminação da doença no Brasil.

No que concerne à PSR, há risco de adoecimento por TB aumentado em torno de 56 vezes em comparação à população geral8. Além disso, essas pessoas se encontram mais suscetíveis a desfechos desfavoráveis do tratamento para a doença, especialmente aqueles relacionados à perda de seguimento e ao óbito4,8. Trata-se de um grupo que vivencia em seu cotidiano situações de insegurança sanitária e alimentar, violência e preconceito, prejudicando a disposição e a adesão ao cuidado9,10.

Considerando-se que as pessoas em situação de rua constituem um grupo prioritário para o controle da TB e que ainda persistem entraves socioeconômicos e programáticos relacionados ao manejo da doença no país, os quais influenciam direta e indiretamente o acompanhamento das pessoas acometidas, o presente estudo teve como objetivo: analisar o desempenho e a distribuição espacial de indicadores de controle da TB na PSR no Brasil.

MÉTODOS

Este foi um estudo ecológico geoespacial descritivo, que teve como unidade de análise as regiões geográficas e as unidades federadas (UF) do Brasil. Os dados foram provenientes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), acessados em outubro de 2022 pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus). Esta pesquisa seguiu as recomendações do Reporting of Studies Conducted using Observational Routinely-Collected Health Data (RECORD)11.

O Sinan é um sistema descentralizado aos municípios brasileiros que possibilita a contínua consolidação dos dados relativos aos agravos de notificação compulsória no Brasil, sendo a principal fonte de informação utilizada pela vigilância para o planejamento das ações de saúde12. Especificamente sobre a TB, são notificados, comumente pelos profissionais de saúde em qualquer nível de atenção, somente os casos confirmados, que passam a ser acompanhados por cerca de seis meses até a conclusão do tratamento12.

O Brasil possui 203.062.512 habitantes13 e apresenta desigualdades na distribuição de renda, com coeficiente de Gini de 51,0 em 202214. O país está segmentado em 27 UF, que se organizam em cinco regiões: Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste13. Apesar da inexistência de contagem oficial da PSR no Brasil, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) estimou que 221.869 pessoas estavam nessa situação em 2020, com aumento de 140% em relação a 201215.

Como população deste estudo, foram considerados os casos de TB registrados em pessoas adultas com idade de 20 a 59 anos. Para delimitar os casos em pessoas em situação de rua, utilizou-se a variável PSR (sim; não; ignorado) do Sinan, sendo incluídos somente os casos que apresentaram essa variável assinalada como “sim”. Ainda, delimitou-se o período de 2015 a 2021 tendo em vista que 2015 foi o ano de inserção dessa variável na ficha de notificação da TB12.

Entre os indicadores para o monitoramento da TB no Brasil2,15, foram selecionados aqueles necessários para explicar aspectos do seguimento e do desfecho dos casos: proporção de casos novos testados para vírus da imunodeficiência humana (HIV); proporção de casos novos com coinfecção TB-HIV; proporção de casos novos que realizaram tratamento diretamente observado (TDO); proporção de casos novos curados; proporção de casos novos que abandonaram o tratamento; e proporção de casos novos que evoluíram a óbito.

Assumiu-se como caso novo o conceito adotado pelo Ministério da Saúde, que considera as pessoas que nunca realizaram tratamento ou que o fizeram por menos de 30 dias. Além disso, casos em que essa informação é inexistente (entrada no Sinan como “não sabe” ou “pós-óbito”) também são considerados como novos2,16. Ao se referir somente a casos de TB, consideraram-se os registros com qualquer entrada no sistema (caso novo; recidiva; reingresso após abandono; não sabe; transferência; pós-óbito; ignorado).

Os dados foram baixados por ano de diagnóstico e local de residência (região e UF), considerando-se as variáveis necessárias à construção dos indicadores, a saber: testagem de HIV (positivo; negativo; em andamento; não realizado; ignorado); realização do TDO (sim; não; ignorado); e situação de encerramento (cura; abandono; óbito por TB; óbito por outras causas; transferência; mudança de diagnóstico; TB-drogarresistente; mudança de esquema; falência; abandono primário; ignorado).

O cálculo dos indicadores de controle da TB na PSR foi efetuado sobre cada região e UF, a partir do quantitativo de dados contabilizados no ano, de acordo com as fórmulas preconizadas pelo Ministério da Saúde (Quadro 1)2,16. Dada a inexistência de um denominador censitário da PSR para cada unidade ecológica, utilizou-se como medida a proporção. Primeiramente, realizou-se a elaboração da série histórica com vistas a visualizar o comportamento dos indicadores ao longo de 2015 a 2021.

Quadro 1.
Descrição dos indicadores de avaliação do desempenho de controle da tuberculose e das respectivas fórmulas empregadas para o cálculo neste estudo2,16.

Para a distribuição do desempenho dos indicadores, considerou-se a média aritmética dos dados para o período de 2015 a 2019, anos anteriores à pandemia de COVID-19. Essa delimitação levou em consideração a possível interferência provocada pela reestruturação dos sistemas de saúde ante a excepcionalidade sanitária imposta pela COVID-19, especialmente dos serviços de vigilância e dos sistemas de informação17, o que pode ter alterado a realidade epidemiológica da TB na PSR.

Com base nisso, foram produzidas figuras geográficas por meio do software QGIS®, em sua versão 2.8, utilizando-se o shapefile do mapa do Brasil obtido no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)12. Para a distribuição espacial, empregou-se a técnica de quebras naturais, que permitiu a visualização de arranjos em diferentes categorias, representados, neste caso, por cores mais escuras em estados com maiores proporções e cores mais claras para locais com menores proporções.

Com relação aos aspectos éticos, menciona-se que esta pesquisa, vinculada à dissertação de mestrado, obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá, conforme preconizado pela Resolução nº 466/2012 (parecer no 5.721.740/2022). Ressalta-se ainda que, por se tratarem de dados agregados e não nominais, cujo acesso é de domínio público, solicitou-se a dispensa do termo de consentimento livre e esclarecido.

RESULTADOS

Entre 2015 e 2021, foram notificados 21.165 casos de TB na PSR em todo o país, dos quais 11.772 foram registrados como casos novos e incluídos neste estudo. Observou-se, a nível nacional, que os indicadores referentes às proporções de pessoas em situação de rua testadas para HIV (85,0% em 2019 para 76,9% em 2021), com coinfecção TB-HIV (21,9% em 2019 para 20,4% em 2021) e que realizaram o TDO (32,1% em 2019 para 18,2% em 2021) apresentaram queda (Figura 1).

Figura 1.
Proporção dos indicadores de acompanhamento e encerramento dos casos de tuberculose na população em situação de rua no Brasil de 2015 a 2021.

Com relação ao desfecho dos casos de TB nas pessoas em situação de rua, as proporções de cura (35,5% em 2019 para 8,4% em 2021), de abandono (36,9% em 2019 para 16,7% em 2021) e de óbito (14,0% em 2019 para 11,1% em 2021) também tiveram declínio na comparação entre o ano imediatamente anterior à pandemia e o segundo ano da pandemia, o que denota que os desfechos desses casos se concentraram nas categorias de encerramento não analisadas neste estudo (Figura 1).

Na análise por região, a testagem do HIV variou entre 77,0% no Norte e 90,3% no Sul. A proporção de coinfecção TB-HIV oscilou entre 17,5% no Centro-Oeste e 34,8% no Sul. Quanto à realização do TDO, as proporções variaram entre 28,2% e 43,5% no Nordeste e Norte, respectivamente. Com relação ao desfecho, a proporção de cura variou de 34,5% no Sul a 42,7% no Norte; o abandono entre 32,1% no Norte e 38,1% no Sudeste; e o óbito de 11,0% no Nordeste a 16,6% no Centro-Oeste (Tabela 1).

Tabela 1.
Número de casos novos e proporção dos indicadores de acompanhamento e encerramento dos casos de tuberculose na população em situação de rua, segundo regiões e unidades federadas do Brasil, 2015-2019.

As maiores proporções de testagem para HIV foram no Tocantins, no Paraná e no Rio Grande do Sul (89,2-94,7%) e as menores foram no Mato Grosso e no Pará (67,8-71,7%) (Figura 2A). Com relação à coinfecção TB-HIV, o Rio Grande do Sul (39,9%) teve a maior proporção, e Amapá e Acre não registraram casos (Figura 2B). Quanto ao TDO, observaram-se maiores proporções em Roraima, Acre e Paraná (55,7-76,5%) e menores na Paraíba, no Amazonas e no Alagoas (7,7-10,0%) (Figura 2C).

Figura 2.
Distribuição espacial dos indicadores de proporção para testagem para HIV (A), de coinfecção tuberculose-HIV (B) e de realização do tratamento diretamente observado (C) dos casos de tuberculose na população em situação de rua, segundo unidades federadas do Brasil de 2015 a 2019.

Observou-se maior proporção de cura no Acre (73,7%) e menor no Mato Grosso do Sul, na Paraíba, no Espírito Santo e no Rio Grande do Sul (28,7-31,4%) (Figura 3A). A menor proporção de abandono foi identifica no Acre (10,5%) e a maior em Roraima (52,9%) (Figura 3B). No que se refere ao óbito, notaram-se menores proporções no Amapá, em Rondônia e no Alagoas (0,0-2,5%) e maiores no Mato Grosso do Sul e no Paraná (18,0-23,1%), respectivamente (Figura 3C).

Figura 3.
Distribuição espacial dos indicadores de proporção de encerramento por cura (A), por abandono (B) e por óbito (C) dos casos de tuberculose na população em situação de rua, segundo unidades federadas do Brasil de 2015 a 2019.

DISCUSSÃO

Este estudo revelou baixo desempenho dos indicadores de acompanhamento e de encerramento dos casos de TB na PSR. Viu-se baixa testagem para HIV, alta proporção de indivíduos com coinfecção TB-HIV e implementação insatisfatória do TDO, com distribuição heterogênea entre as UF e as regiões do país. Com relação aos desfechos dos casos, foram identificadas alta taxa de abandono do tratamento e óbito por TB e baixa proporção de cura entre as pessoas em situação de rua.

As estratégias de controle da TB, para além dos aspectos biológicos, devem estar atreladas às questões sociais e estruturais18, que, por vezes, marcam-se pela desigualdade e por piores condições de vida. Assim, faz-se necessário ampliar o entendimento acerca do processo saúde-doença atinente à TB, introduzindo-se indicadores e marcadores que contemplem integralmente os aspectos relativos ao indivíduo, aos seus contextos e aos recursos que ele dispõe para o enfrentamento da doença19,20.

No Brasil, preconiza-se a testagem para o HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST) para todas as pessoas em situação de rua com TB21. No entanto, verificou-se que, neste estudo, na maioria dos estados, a proporção de pessoas testadas foi menor que 90%, com exceção de Tocantins, Paraná e Rio Grande do Sul. Esse achado sinaliza um alerta às autoridades públicas, uma vez que a TB é a causa de morte mais comum em pessoas vivendo com HIV/AIDS22.

A proporção de coinfecção TB-HIV, por sua vez, foi elevada entre a PSR em todas as regiões do país, e os piores indicadores foram visualizados nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Esses achados podem estar atrelados à alta circulação do HIV nesses territórios. Rio Grande do Sul e Santa Catarina apresentaram a segunda (21,8/100.000 habitantes) e a quarta (19,7/100.000 habitantes) maiores taxas de detecção de HIV do país em 2021, respectivamente23.

Estudos ecológicos desenvolvidos na Etiópia identificaram que o acesso precário aos cuidados de saúde, o uso abusivo de substâncias psicoativas, o baixo índice de riqueza e a baixa taxa de alfabetização de adultos foram importantes preditores para a coinfecção TB-HIV24,25. Esses fatores podem ser comumente encontrados nas pessoas em situação de rua e variar entre os estados brasileiros. Desse modo, devem ser considerados como potenciais fatores de explicação para os achados deste estudo.

Embora o diagnóstico precoce e o tratamento oportuno sejam fundamentais para reduzir a morbimortalidade entre as pessoas com coinfecção TB-HIV22, os resultados desta pesquisa apontaram para a fragilidade do cuidado à PSR, que diariamente defronta com barreiras no acesso aos serviços de saúde26. Portanto, é essencial que haja a integração entre os programas de controle da TB e do HIV/AIDS com vistas a reduzir a presença acentuada da coinfecção entre esse público no país.

Evidenciou-se, também, baixa realização do TDO; a proporção foi inferior a 40% em âmbito nacional. Esse valor está em desencontro com a recomendação de que essa modalidade de tratamento seja ofertada a todas as pessoas em situação de rua21. Esses achados corroboram pesquisas brasileiras que evidenciaram o débil desenvolvimento e a implementação escassa do TDO em outros grupos populacionais, dadas dificuldades estruturais e operacionais dos serviços de saúde27,28,29.

A realização do TDO está associada a maiores proporções de cura e à redução da perda de seguimento, o que reforça a efetividade dessa ação como abordagem para gestão do cuidado27. Estudo de coorte retrospectiva realizado em Hunan, China, que incluiu 306.860 pessoas com TB, identificou que a supervisão completa do tratamento nos serviços de saúde, em relação à autoadministração ou à supervisão parcial, foi um fator associado ao desfecho bem-sucedido dos casos30.

Na Namíbia, estudo de séries temporais interrompidas, que avaliou o emprego do TDO na comunidade, mostrou que essa estratégia aumentou a taxa anual de sucesso do tratamento para TB em 12,9%31. Complementarmente, revisão sistemática com metanálise também reportou o TDO comunitário, ação de descentralização do tratamento da TB das unidades de saúde para a comunidade, como uma ferramenta promissora, sobretudo em países de baixa renda e alta carga da TB32.

Estudo ecológico desenvolvido no estado de São Paulo, Brasil, demonstrou que a menor realização do TDO se associou à formação de áreas de risco para a incidência da coinfecção TB-HIV e para o abandono do tratamento33. Isto posto, sinaliza-se um alerta para os estados com as menores taxas de implementação do TDO, como Amazonas, Alagoas e Paraíba, no que se refere à necessidade de fortalecer essa ferramenta de cuidado em todos os pontos da rede de atenção à saúde e, especialmente, à PSR.

No Brasil, recomenda-se que os indicadores de cura sejam superiores a 90% e que os de abandono e óbito sejam reduzidos a menos de 5% dos casos34. Neste estudo, foi evidenciada grande discrepância entre a realidade observada e esperada. Similarmente, pesquisa descritiva com dados do Sinan e do Cadastro Único (CadÚnico) identificou que, em 2018, apenas 34,5% da PSR com TB alcançou a cura da doença, 32,6% dessas pessoas tiveram perda de seguimento e 7,5% foram a óbito por TB35.

Na literatura internacional, o desfecho desfavorável da TB na PSR também tem sido reportado. A exemplo, estudo de coorte realizado na Itália mostrou que estar em situação de rua aumentou em 3,23 vezes (intervalo de confiança de 95% [IC95%] 2,58-4,54) a chance de óbito, falha ou perda de acompanhamento36. Nos Estados Unidos da América, evidenciou-se que a chance de óbito da PSR foi elevada em 2,26 vezes (IC95% 1,68-3,03) quando comparada às pessoas com residência fixa37.

Revisão sistemática apontou que a TB em pessoas em situação de rua permanece negligenciada em todo o mundo, especialmente nos países em desenvolvimento dada a carga de pobreza e desigualdade social vivenciada38. Esse cenário impulsiona a necessidade de ações intersetoriais que visem atender esse público em sua integralidade, uma vez que essas pessoas apresentam uma dinâmica complexa de vida, que dificulta a prevenção, o diagnóstico e a conclusão do tratamento para TB35.

No Brasil, além dos desafios cotidianos enfrentados pelas pessoas em situação de rua, existem inúmeras adversidades impostas aos serviços que dificultam a implementação do Programa de Controle da Tuberculose (PCT) e a melhoria dos indicadores da doença, tais como: escassez de recursos humanos, alta rotatividade profissional, fragmentação do cuidado, despreparo profissional no manejo dos casos, falta de integração entre coordenação e unidades de saúde, entre outros39.

Assim, os achados desta pesquisa confirmam a posição de extrema vulnerabilidade em que as pessoas em situação de rua se encontram, independentemente do espaço geográfico que ocupam. De maneira geral, todos os estados do país apresentaram indicadores operacionais insatisfatórios no que se refere ao controle da TB. Isso reitera que, para além das questões sociais e individuais, há que se considerar a importante influência dos aspectos programáticos no manejo da doença.

Destaca-se que este estudo apresenta limitações, entre elas: a possibilidade de incompletude e preenchimento errôneo das fichas de notificação que alimentam o Sinan, o que pode ter falseado os reais indicadores da TB na PSR. Para mais, admite-se como limitação a incorporação da variável para PSR no Sinan somente nos primeiros anos da série histórica, o que pode ter favorecido o sub-registro devido ao período de adaptação por parte dos profissionais de saúde.

Estudo prévio evidenciou baixa completude do campo PSR e seguimento do tratamento, como realização do TDO; não atualização da variável teste para HIV; e existência de registros sem encerramento. Portanto, achados com base nesses dados podem não representar com fidedignidade o cenário epidemiológico; contudo, reconhece-se a fundamentalidade do Sinan como fonte de informação para o planejamento e a tomada de decisão em saúde no contexto brasileiro13.

Em suma, este estudo ecológico geoespacial evidenciou que o desempenho dos indicadores de controle da TB na PSR apresentou distribuição heterogênea entre os estados e as regiões do país. Observou-se, também, que a maioria dos indicadores teve desempenho insatisfatório em todos os locais, o que expressa a existência de dificuldades e reafirma os complexos desafios envolvidos na implementação das ações de controle da TB para essa população no território nacional.

Nesse sentido, reconhece-se a importância da articulação e da integração entre os diversos atores sociais, como serviços de saúde, assistência social, segurança pública e sociedade civil, por meio de atuação interprofissional e interdisciplinar40, com vistas à oferta de cuidado integral e continuado às pessoas em situação de rua. Para mais, urge a necessidade de qualificar e de implementar novas estratégias destinadas à atenção à saúde da PSR, visando à melhoria do cuidado e do controle da TB.

REFERÊNCIAS

  • COMO CITAR ESSE ARTIGO:
    Pavinati G, Lima LV, Radovanovic CAT, Magnabosco GT. Disparidades geoprogramáticas do desempenho de indicadores da tuberculose na população em situação de rua no Brasil: uma abordagem ecológica. Rev Bras Epidemiol. 2023; 26: e230048. https://doi.org/10.1590/1980-549720230048.2
  • FONTE DE FINANCIAMENTO:
    o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2023
  • Revisado
    04 Ago 2023
  • Aceito
    04 Ago 2023
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