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Características da Aids na terceira idade em um hospital de referência do Estado do Ceará, Brasil

Characteristics of Aids amongst the elderly at a reference hospital in the State of Ceará, Brazil

Resumos

Idosos contaminados pelo HIV ampliam as estatísticas ao redor do mundo. Este estudo teve como objetivo geral descrever as características da Aids em pessoas com 60 anos de idade ou mais, atendidos em hospital de referência para HIV/Aids no Ceará, no período de 1989 a 2004. Desenvolveu-se pesquisa documental utilizando fichas de notificação compulsória de Aids disponíveis no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). Obteve-se notificação de 107 casos, dos quais 50 encontravam-se vivos e 57 foram a óbito. Pela análise observou-se crescimento progressivo dos casos, que, em sua maioria (77,5%), concentravam-se em Fortaleza. A faixa etária mais comprometida foi a de 60 a 69 anos (77,5%). Grande parte dos indivíduos mostrou baixo nível de escolaridade (44,0%). A subcategoria heterossexual aumentou ao longo do tempo. Evidenciou-se maior letalidade entre as mulheres (73,9%). O conjunto de dados analisados permite inferir que entre a população acima de 60 anos com Aids no Ceará verifica-se tendência semelhante às demais faixas etárias e fenômenos observados no país, a saber: heterossexualização, feminização, envelhecimento, pauperização.

HIV-1; Síndrome de imunodeficiência adquirida; Idosos; Terceira idade; Epidemiologia


Elderly people contaminated by the HIV are increasing statistics throughout the world. This study's main aim was to describe the characteristics of AIDS in people aged 60 and over, seen at a benchmark hospital for HIV / AIDS in Ceará, Brazil, in the period between 1989 and 2004. Documentary research was performed using compulsory AIDS reporting forms available on the National Reporting Information System (SINAN) and data from the Mortality Information System (SIM). There were 107 cases reported, of which 50 patients were still alive and 57 deceased. Based on the analysis, a progressive growth in cases was observed, most of which (77.5%) were concentrated in Fortaleza. The most affected age group was the one between 60 and 69 (77.5%). Many of the individuals showed low level of schooling (44.0%). The subcategory of heterosexuals grew over time. Mortality amongst women was found to be higher (73.9%). The set of data analyzed enables one to infer that the population over 60 with AIDS in Ceará shows similar trends to other age groups and the phenomena observed throughout the country, that is: growth in cases among heterosexuals and women, and ageing and impoverishment.

HIV -1; Acquired Immune Deficiency Syndrome; Elderly; Senior Citizens; Epidemiology


ARTIGOS ORIGINAIS

Características da Aids na terceira idade em um hospital de referência do Estado do Ceará, Brasil

Characteristics of Aids amongst the elderly at a reference hospital in the State of Ceará, Brazil

Vera Lúcia Borges de AraújoI; Daniele Mary Silva de BritoII; Marli Teresinha GimenizII; Terezinha Almeida QueirozIII; Clodis Maria TavaresIV

IHospital São José em Doenças Infecciosas

IIFaculdade de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará

IIIFaculdade de Enfermagem da Universidade Estadual do Ceará

IVUniversidade de Fortaleza

Correspondência Correspondência: Vera Lúcia Borges de Araújo. Av. Jovita Feitosa 2326 Apto. 13 Parquelândia Fortaleza, CE, CEP: 60455-410 E-mail: veraborges-ar@oi.com.br

RESUMO

Idosos contaminados pelo HIV ampliam as estatísticas ao redor do mundo. Este estudo teve como objetivo geral descrever as características da Aids em pessoas com 60 anos de idade ou mais, atendidos em hospital de referência para HIV/Aids no Ceará, no período de 1989 a 2004. Desenvolveu-se pesquisa documental utilizando fichas de notificação compulsória de Aids disponíveis no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). Obteve-se notificação de 107 casos, dos quais 50 encontravam-se vivos e 57 foram a óbito. Pela análise observou-se crescimento progressivo dos casos, que, em sua maioria (77,5%), concentravam-se em Fortaleza. A faixa etária mais comprometida foi a de 60 a 69 anos (77,5%). Grande parte dos indivíduos mostrou baixo nível de escolaridade (44,0%). A subcategoria heterossexual aumentou ao longo do tempo. Evidenciou-se maior letalidade entre as mulheres (73,9%). O conjunto de dados analisados permite inferir que entre a população acima de 60 anos com Aids no Ceará verifica-se tendência semelhante às demais faixas etárias e fenômenos observados no país, a saber: heterossexualização, feminização, envelhecimento, pauperização.

Palavras-chave: HIV-1. Síndrome de imunodeficiência adquirida. Idosos. Terceira idade. Epidemiologia.

ABSTRACT

Elderly people contaminated by the HIV are increasing statistics throughout the world. This study's main aim was to describe the characteristics of AIDS in people aged 60 and over, seen at a benchmark hospital for HIV / AIDS in Ceará, Brazil, in the period between 1989 and 2004. Documentary research was performed using compulsory AIDS reporting forms available on the National Reporting Information System (SINAN) and data from the Mortality Information System (SIM). There were 107 cases reported, of which 50 patients were still alive and 57 deceased. Based on the analysis, a progressive growth in cases was observed, most of which (77.5%) were concentrated in Fortaleza. The most affected age group was the one between 60 and 69 (77.5%). Many of the individuals showed low level of schooling (44.0%). The subcategory of heterosexuals grew over time. Mortality amongst women was found to be higher (73.9%). The set of data analyzed enables one to infer that the population over 60 with AIDS in Ceará shows similar trends to other age groups and the phenomena observed throughout the country, that is: growth in cases among heterosexuals and women, and ageing and impoverishment.

Keywords: HIV -1. Acquired Immune Deficiency Syndrome. Elderly. Senior Citizens. Epidemiology.

Introdução

A Aids compromete indivíduos de todas as faixas etárias. No Brasil, dos 371.827 casos notificados de 1980 até junho de 2005, o número de pessoas entre 50 e 59 anos representou 6,2% da totalidade dos casos e em indivíduos com 60 anos ou mais: 2,1% do total entre os sexos1.

Em nosso país, especialmente nos últimos anos, observa-se que a porcentagem dos pacientes com 50 anos ou mais no diagnóstico de Aids aumentou progressivamente de 7% em 1996 para 13% em 20042.

O crescimento do número de infecções por HIV/Aids em pessoas com 60 anos ou mais resulta na mais nova característica da epidemia. Faz-se necessário campanhas de prevenção à DST/Aids direcionadas a esse segmento, proporcionando assim qualidade de vida para os idosos3.

No Estado do Ceará, o primeiro caso de Aids registrado ocorreu em 1983, paciente oriundo do sudeste do País. Dados acumulados até 2004 indicam 5.763 casos notificados. A Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (SESA) também contabilizou, do início da epidemia de Aids na terceira idade até 2004, 116 casos da doença.

Sabe-se que o primeiro caso de Aids do Ceará na terceira idade é datado de 1989, paciente do sexo masculino e forma de infecção sexual4.

Atribuem-se dois fatores como responsáveis pelo aumento de casos de Aids em idades mais avançadas. O primeiro deve-se àqueles idosos que possuem, entre outros fatores, maiores recursos, o que contribui para o acesso aos prazeres e serviços disponíveis, permitindo vida sexual mais ativa. O segundo fator deve-se, principalmente, à existência de tabu sobre sexualidade na terceira idade5.

É enganoso, porém, pensar que as pessoas idosas não fazem sexo e não usam drogas, a despeito de poucas campanhas de prevenção dirigidas a essa população. Portanto, de modo geral, estas pessoas estão menos informadas sobre o HIV e pouco conscientes de como se protegerem. Desse modo, tomam-se vulneráveis à infecção4. Velhice sem sexualidade é um mito7.

No Brasil, os casos de infecção de Aids na faixa etária de mais de 60 anos acontecem predominantemente por transmissão sexual. Em virtude da estigmatização da terceira idade, tanto os familiares como os profissionais negam-se a pensar que nesta fase a pessoa está ativa sexualmente. Essa falha traz graves conseqüências, sobretudo quanto à prevenção, pois esta só vai ocorrer se os familiares e profissionais de saúde estiverem atentos para discutir abertamente as formas de prevenção.

É difícil determinar os índices de infecção pelo HIV. Até os profissionais ainda são reticentes e raramente indagam sobre a vida sexual do idoso, nem suspeitam da possibilidade da contaminação pelo HIV e retardam o diagnóstico. Embora muitas vezes sintomas como desidratação, fraqueza, anorexia e febre sejam causas freqüentes de internação em idosos, podem levar os médicos a fazerem um diagnóstico incompleto.

Em 1995, em um hospital de Nova York, ao avaliar um grupo de 257 idosos infectados pelo HIV no período de um ano, pesquisadores já constatavam subnotificação de 5,05% (13 pacientes) em relação aos óbitos por HIV. A morte de nenhum destes foi atribuída 'a infecção pelo HIV8.

Como mostram os dados, a epidemia de HIV/Aids configura nas pessoas desta faixa etária um dos mais sérios problemas contemporâneos de saúde pública e apresenta alto grau de morbimortalidade, perspectivas de contínuo crescimento e propagação em todos os continentes. Se não forem tomadas medidas sérias de prevenção e contenção da doença, as possibilidades de controle da epidemia serão remotas, não obstante o desenvolvimento de novas terapias e os esforços mundiais na busca de uma vacina eficaz contra a infecção9.

Diante da perspectiva do aumento do número de idosos infectados na terceira idade, e em decorrência da ampliação da expectativa de vida facilitada pelos anti-retrovirais e pela descoberta de novos casos nesta faixa etária, faz-se necessário se conhecer características regionais dessa população já comprometida.

Em face do exposto, elaborou-se este estudo, cujo objetivo geral é descrever as características dos pacientes de Aids de terceira idade atendidos no hospital de referência para HIV/Aids no Estado do Ceará.

Métodos

No presente estudo, será utilizada para idoso a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), que especifica como população idosa aquela a partir de 60 anos10.

Desenvolveu-se estudo descritivo retrospectivo para caracterizar a epidemia de Aids no hospital de referência do Ceará. Como fonte de dados foram utilizadas fichas de notificação compulsória armazenadas no núcleo de vigilância epidemiológica do Hospital São José de Doenças Infecciosas as quais são processadas pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Estas informações foram validadas pela Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde do Ceará.

Foram considerados e estudados os casos de Aids notificados na instituição, por ano de diagnóstico, entre 1º de janeiro de 1989 e 31 de dezembro de 2004. A população de estudo constituiu-se de 107 casos de indivíduos com 60 anos ou mais de idade, atendidos e notificados no serviço. Todos os casos foram estudados. Este número correspondeu a 92,2%, num total de 116 casos nesta faixa etária no Estado.

As variáveis abordadas neste estudo foram as seguintes: sexo, idade, escolaridade (anos de estudo), número de habitantes do município de procedência, categoria de exposição e ano do diagnóstico. Os dados populacionais foram reunidos de censos demográficos e de projeções e estimativas por grupo de idade, acessadas por meio eletrônico, como no site www.datasus.gov.br/cgi/tabecgi.exe?ibge/cnv/pop.ce.def, em 20/09/2005. Também foi observada a ocorrência de mortes nessa população. Para isto utilizou-se o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), acessando o site www.datasus.gov.br, em 28/06/2005, observando-se os óbitos por Aids como causa mortis nessa população. O código 279.1 da 9ª revisão de Classificação Internacional de Doenças(CID) foi utilizado para os anos de 1989 a 1995 e os códigos B20 e B24 da 10ª revisão da CID para os anos de 1996 a 200411-14.

Foi estabelecida ligação entre os bancos de dados do SINAN e do SIM.

Os dados foram apresentados em forma de tabelas e gráficos.

O processo adotado na análise dos dados envolveu medidas de razão de sexos, coeficientes de incidência e letalidade.

Os coeficientes de incidência representam, por definição, medidas por excelência do risco de doença e de agravo, e o de letalidade permite avaliar a gravidade de uma doença.

Os valores calculados de incidência e letalidade obedeceram as fórmulas recomendadas para estudos epidemiológicos15.

Este estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital lócus da pesquisa, conforme recomendado pela Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde16.

Resultados

No período de 1989 a 2004, no hospital em estudo, o número de casos de Aids em indivíduos com 60 anos ou mais incidiu em 107 pessoas, das quais 84 (78,5%) eram homens e 23 (21,5%) mulheres.

Nesta pesquisa, entre os idosos notificados como portadores de Aids, o grupo etário mais acometido foi aquele com idades entre 60 e 69 anos (77,5%). Além disso, 6,7% dos casos comprometiam indivíduos com 80 anos ou mais (Tabela 1).

Quanto à escolaridade dos idosos, observou-se desde analfabetos até aqueles que cursaram o ensino superior. Conforme se percebe, as mulheres apresentaram menor ingresso no ambiente escolar, sendo 21,7% delas sem escolaridade. Entre os sexos destaca-se elevado percentual de ignorados (36,4%). (Tabela 1)

A Tabela 1 também demonstra os casos de Aids entre idosos por número de habitantes, os quais estiveram distribuídos entre municípios de pequeno porte (< 50.000 habitantes) até a capital do Estado, com população acima de 1.000.000 habitantes concentrando 77,5% da epidemia.

Em relação à categoria de exposição, a maioria (42,9%) dos homens foi notificada na subcategoria homo-bissexual, seguida pela forma heterossexual (34,5%). Entre as mulheres, a maior porcentagem (56,5%) ocorreu por transmissão heterossexual. Houve apenas uma contaminação por UDI (usuário de drogas injetáveis) entre os homens. Entre os sexos, observa-se alto percentual de notificação classificada como "ignorada" (Tabela 1).

Os casos de Aids entre os idosos, ano a ano, por categoria de exposição no presente estudo, foram apresentados por ano de ocorrência como mostra o Gráfico 1. Quanto à forma de contaminação pelo HIV, no sexo masculino, de 1989 a 1993, todos os casos diagnosticados pertenciam à subcategoria homo-bissexual (100,0%). A partir de 1998, no entanto, verifica-se o aumento e permanência dos casos entre os sexos na subcategoria heterossexual.


Neste estudo, os idosos apresentaram 53,2% de mortes em decorrência da Aids (Tabela 1).

Incidência

Para se compreender melhor a importância deste estudo no Ceará, calculamos a incidência de Aids na terceira idade mostrando a série histórica do Ceará e do Hospital de referência para uma melhor visualização da epidemia.

No Gráfico 2 observa-se que, de um modo geral, a incidência de casos de Aids na terceira idade no Estado do Ceará e no Hospital de Referência apresenta valores praticamente iguais na maioria dos anos.


Gráfico 3


Entre os homens houve um aumento da incidência a partir de 1993 (6,28 por 100.000 hab.). Em 1996 este se mostra de forma expressiva (10,88 por 100.000 hab.), alcançando o ápice em 1998, com uma incidência de 18,78 por 100.000 hab., mantendo-se em patamares elevados até 2003 (14,30 por 100.000hab.) Em relação às mulheres, em 1999 a epidemia atinge o pico (9,09 por 100.000 hab., apresentando um ligeiro declínio em 2003, com uma incidência de 2,78 por 100.000 hab.

Razão entre os sexos

Pelo estudo da proporção dos casos entre os sexos (Razão: Homem/Mulher) houve ampla oscilação quanto à razão entre os sexos. O primeiro caso de Aids do sexo feminino em idosos, em Fortaleza, ocorreu no ano de 1994. De 1989 até 1993 verificou-se razão nula, enquanto em 1998 observou-se razão 12:1. Em 2004, mantém-se elevada com 6H:1M (Tabela 2).

Coeficiente de letalidade

Em relação à letalidade de Aids na população com idade igual ou superior a 60 anos no estudo, percebe-se, durante os primeiros anos da epidemia, letalidade de 100%, embora, a partir de 1996, possa ser visualizada uma queda no coeficiente de letalidade. Essa redução coincide com o início da utilização da terapia anti-retroviral no país.

A mortalidade por Aids em mulheres atingiu o máximo em 1999. Contudo, entre os anos de 2000 e 2003, mostrou certa estabilização.

Discussão

A propagação da Aids no Brasil evidencia uma epidemia de múltiplas dimensões que, ao longo do tempo, tem apresentado profundas transformações na sua evolução e distribuição. Vista a princípio como uma epidemia específica de indivíduos jovens e considerados de "grupos de risco" , passou a atingir qualquer indivíduo da sociedade, independente de sexo e idade.

No Brasil, concomitantemente à expansão da infecção pelo HIV, os portadores têm sido beneficiados pelo acesso gratuito aos anti-retrovirais, que proporcionam maior chance de sobrevivência, mesmo no caso de idades antes não alcançadas.

Envelhecimento

No início da década de 1990 (a partir de 1994 e 1995), no Brasil, a epidemia de Aids na faixa de 50 a 70 anos mostrou leve aumento, ao contrário do ocorrido em outras faixas etárias nas quais houve estabilização. Diante desta situação, e no intuito de. compreender o comprometimento de pessoas idosas, pesquisadores indagam, com diversos questionamentos, conforme exposto a seguir: Poderiam essas mudanças terem sido provocadas por diversos fatores ligados à sexualidade, como questões culturais, baixa noção de riscos, prática de sexo sem proteção, heterossexualização e feminização, terapias mais eficazes, aumento de expectativa de vida e aumento da atividade sexual? É possível que, com maior expectativa de vida e vida mais ativa, a sexualidade seja promovida entre os idosos, e resulte em ampliação das relações sexuais, provavelmente sem uso de preservativo17,18?

A mencionada situação do aumento de indivíduos com idades mais velhas do que se via normalmente também era alvo de atenção de outros profissionais. Segundo informações, pesquisadores chamavam a atenção para o aumento da incidência de Aids na faixa etária de 60 a 69 anos, no Brasil, a partir de 199518.

A incidência da Aids no Brasil, na faixa etária de 60 a 69 anos, passou de 6,84 casos por 100.000 habitantes, em 1990, para 18,74 casos por 100.000 habitantes em 1998. A partir deste período houve crescimento neste grupo de idade. Essa mesma tendência foi evidenciada no presente estudo. Entretanto, conforme referido, campanhas educativas e de prevenção específica para fases mais avançadas da vida não têm sido promovidas no país.

Feminização e heterossexualização

No Brasil a via de transmissão heterossexual constitui a mais importante característica da dinâmica da epidemia. Este atributo tem contribuído decisivamente para o aumento de casos em mulheres. Segundo ressaltado, a inserção da mulher na epidemia de Aids não se restringe à faixa etária mais jovem, pois tem sido observado aumento das notificações em idades mais avançadas, a partir dos 50 anos. A tendência de crescimento do número de mulheres na epidemia, sobretudo na subcategoria heterossexual, desde 1992, traduz-se na maior vulnerabilidade feminina e menor acesso aos serviços de saúde reprodutiva, além da dificuldade em negociar o uso de preservativo com o parceiro na maioria dos casos19.

As mudanças do processo natural de envelhecimento entre as mulheres, como estreitamento vaginal, diminuição da elasticidade e das secreções vaginais e o desgaste das paredes vaginais, são situações que favorecerem o risco da infecção pelo HIV durante as relações sexuais. Essa situação, associada à ausência da percepção de risco, pode conduzir um número maior de mulheres idosas à epidemia do HIV9.

Ainda sobre o modo de transmissão, a proporção de ignorados foi de 26,1%. Este alto percentual é uma limitação no conhecimento da real situação da transmissão do HIV.

No presente estudo, evidencia-se predomínio de homens idosos (78,5%) com Aids. Contudo, pode-se observar uma oscilação da Aids entre as mulheres, cuja razão alcançou proporção de 12:1. A diminuição da magnitude da razão entre os sexos tem confirmado a manutenção da tendência da feminização da epidemia no país também entre os idosos. Como mostram os dados, a Aids aumenta paulatinamente entre todas as idades no sexo feminino, e as mulheres compõem a maior porcentagem de casos de Aids à medida que aumenta a idade20.

Nesta pesquisa, a maior proporção de casos verificou-se no grupo de indivíduos com idades entre 60 e 69 anos (77,5%). Vale ressaltar que, entre os idosos, esta faixa de idade concentra maior número de pessoas. A maioria dos danos à saúde mostra variação de incidência em função da idade. Entretanto, para aquisição do HIV, há formas de se prevenir. Nesta faixa etária a maior porcentagem de contaminação pelo vírus ocorreu por via sexual e, em sua maioria, entre os heterossexuais. A situação a que o indivíduo se expõe é plenamente prevenível, como recomenda a prática de sexo seguro, utilizando-se devidamente o preservativo masculino e feminino nas relações sexuais. Há, porém, referência de que a maioria dos idosos realiza o ato sexual sem a proteção do preservativo, talvez até mesmo por não acreditar que possam contrair Aids e ser contaminados por esta doença21.

Associado ao descrédito do idoso de contrair o HIV, segundo observado, dá-se pouca importância à sexualidade do idoso e à Aids nesta faixa etária, pois os velhos são excluídos da sociedade, da comunidade científica e das políticas públicas9.

A forma de transmissão do HIV no sexo masculino, quando da ocorrência dos primeiros casos neste estudo (1989 a 1993), é observada na categoria homo-bissexual. No Brasil, a partir de 1998, evidencia-se o aumento e a permanência dos casos entre os sexos na subcategoria heterossexual, sendo esta a que mostrou o maior aumento e a que mais tem contribuído para o processo de feminização, ao influenciar de forma decisiva a expansão da epidemia entre as mulheres22,23.

Pauperização

De acordo com o demonstrado por pesquisa sobre conhecimento relacionado à transmissão do HIV, práticas sexuais e comportamento de vulnerabilidade quanto à infecção pelo HIV, quanto menor o grau de instrução, menor o percentual de acerto sobre conhecimento correto referente às formas de transmissão do HIV24.

Conforme revelam determinados estudos, o número de casos aumentou nos estratos de menor escolaridade, remetendo à condição de pior cobertura dos sistemas de vigilância e de assistência médica entre os economicamente menos favorecidos, sob a hipótese de que a escolaridade é uma variável importante de estratificação social25.

As populações já tradicionalmente marginalizadas estão cada vez mais se infectando pelo HIV. Como agravante, acrescenta-se a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e à informação. Tudo isso somado à necessidade de estarem voltados para a busca de sobrevivência, dificultando as ações destinadas à prevenção por meio da prática do sexo seguro e diagnóstico precoce da doença, questões essas que demonstram as desigualdades socioeconômicas de acesso à informação e recursos de saúde no Brasil19.

Neste estudo observa-se que 44,0% apresentam baixa ou nenhuma escolaridade e que 36,4% têm grau de estudo ignorado. Isto poderá influir nos resultados encontrados. Essa limitação também se observa em outros estudos realizados no Brasil25.

Neste estudo, a análise da distribuição dos casos de Aids, segundo o tamanho populacional dos municípios, mostrou que a capital deteve o maior número de casos, embora o vírus não tenha poupado cidadãos idosos de municípios de pequeno porte.. Em tais localidades, a pobreza e a miséria são constantes, e geram sérias dificuldades de acesso desses indivíduos aos diferentes serviços de saúde, ocasionadas pela distância entre as localidades, pela ausência de profissionais e até pela insatisfatória qualidade dos serviços de saúde oferecidos.

Mortes por Aids

A Aids é uma das principais causas de morte prematura em diferentes países do mundo. No Brasil, cerca de 50% dos pacientes ainda morrem no período de até seis meses após o diagnóstico da primeira infecção oportunista. A mortalidade é um dos indicadores mais sensíveis para avaliar o efeito de medidas preventivas e terapêuticas. Neste aspecto, observou-se no Brasil que o acesso gratuito e universal aos anti-retrovirais a partir da segunda metade da década de 1990 reduziu a mortalidade por Aids em 50%26,27.

Como assinalada por alguns autores, a introdução de potentes esquemas anti– retrovirais na prática clínica e o emprego rotineiro de tratamentos para infecções oportunistas têm sido medidas efetivas de queda da letalidade e morbidade associadas à infecção pelo HIV28.

Entretanto, mesmo na vigência de tratamentos altamente eficazes, a morte constitui ocorrência constante. Nesta pesquisa, a razão entre o número de óbitos por Aids entre homens e mulheres caiu de 2,5 em 1998 para 2,0 em 2003, em virtude do crescimento da letalidade no sexo feminino, que foi de 73,9%.

Essa situação também foi observada no país. De acordo com alguns estudos, a mortalidade por Aids em mulheres, no Brasil, vem aumentando. Na faixa etária de 80 anos e mais, a letalidade é de 100,0%. Nesta condição, como afirmam alguns autores, idosos com Aids adoecem e morrem mais rápido do que os jovens. Isto decorre do diagnóstico tardio da doença e da combinação de outras enfermidades que possivelmente aceleram a progressão da moléstia6,29.

Conclusão

Algumas tendências caracterizam a epidemia da Aids neste estudo. Observou-se uma oscilação na proporção de mulheres, aumento da heterossexualização e da incidência no idoso.

A transmissão heterossexual constituiu a principal fonte de contaminação do HIV entre homens e mulheres idosos, apesar da transmissão entre homens com prática de natureza homo-bissexual ser relevante,

Conforme se conclui, os vários fatos identificados por este estudo devem ser aprofundados sobremaneira, incentivando pesquisas comportamentais de vulnerabilidade relacionadas à infecção pelo HIV em idosos. Desse modo, será possível o monitoramento do comportamento sexual de risco, com vistas à intervenção na epidemia, e, conseqüentemente, redução da morbimortalidade por Aids na terceira idade.

Recebido em: 01/09/06

Versão final reapresentada em: 04/09/07

Aprovado em: 10/09/07

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  • Correspondência:

    Vera Lúcia Borges de Araújo.
    Av. Jovita Feitosa 2326 Apto. 13 Parquelândia
    Fortaleza, CE, CEP: 60455-410
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      10 Set 2007
    • Revisado
      04 Set 2006
    • Recebido
      01 Set 2006
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