Resumo
O objetivo do artigo é identificar os efeitos econômicos da pandemia de gripe espanhola que atingiu São Paulo no final de 1918, analisando fontes primárias originais. A contribuição para a historiografia econômica é o entendimento dos impactos de curto prazo para a economia paulista dessa pandemia, geralmente preteridos pela literatura econômica devido aos efeitos da Primeira Guerra Mundial. Os resultados indicam que vários setores da economia de São Paulo foram afetados no lado da oferta e da demanda em função do aumento de mortalidade em decorrência da pandemia, principalmente no último trimestre de 1918. As implicações foram visíveis no investimento privado, com a queda do registro de empresas e empréstimos bancários, na diminuição física e de valor da produção industrial de produtos não essenciais e no aumento dos essenciais em um contexto de crise de saúde pública. No entanto, a recuperação também foi rápida, o que explica, em parte, a pouca atenção dada pela historiografia econômica para identificar os efeitos da gripe espanhola sobre a economia.
Palavras-chave: Gripe espanhola; Economia; Mortalidade
Abstract
The aim of the paper is to identify the economic effects of the influenza pandemic that hit São Paulo in 1918, analyzing original primary sources. The contribution to economic historiography is the understanding of the short-term effects on the economy of São Paulo of the great pandemic of 1918, generally ignored by the economic literature over the effects of WWI. The results indicate that several sectors of São Paulo’s economy were affected in supply and demand by the effects of the increase in mortality, mainly in the last quarter of 1918. The effects were visible in private investment, with the drop in business registration, bank loans, the physical and value decrease in the industrial production of non-essential products and the increase of essential products in a context of public health crisis. However, the recovery was also quick, which explains, in part, why economic historiography pays little attention to identify the effects of the influenza on the economy.
Keywords: Influenza; Economy; Mortality
Resumen
El objetivo del artículo es identificar los efectos económicos de la pandemia de gripe en São Paulo a finales de 1918, analizando fuentes primarias originales. La contribución a la historiografía económica es la comprensión de los efectos de corto plazo sobre la economía paulista de la gran pandemia de finales de 1918, en general ignorados por la literatura económica debido a los efectos de la Primera Guerra Mundial. Los resultados indican que varios sectores de la economía paulista se vieron afectados, por el lado de la oferta y la demanda, por los efectos del aumento de la mortalidad debido a la pandemia, principalmente en el último trimestre de 1918. Los efectos fueron visibles en la inversión privada, con la caída en el registro de empresas, los préstamos bancarios, la disminución física y de valor de la producción industrial de productos no esenciales y el aumento de productos esenciales en un contexto de crisis de salud pública. Sin embargo, la recuperación también fue rápida, lo que explica en parte la poca atención prestada por historiografía económica para identificar los efectos de la gripe española en la economía.
Palabras clave: Pandemia; Economía; Mortalidad
Introdução
A pandemia de gripe espanhola de 1918/1919 foi um dos grandes eventos relacionados à saúde mundial do século XX. Seus efeitos foram bem documentados com relação à mortalidade e aos seus impactos para o sistema de saúde. No entanto, os impactos econômicos geralmente foram deixados em segundo plano pelo fim da Primeira Guerra Mundial. As análises de pesquisas em história econômica focaram mais em consequências do fim da guerra do que da pandemia.
Com relação à mortalidade, a pandemia parece ter sido mais importante do que a guerra. As estimativas indicam que a Primeira Guerra Mundial matou no mundo cerca de oito milhões de pessoas e a pandemia de 1918/1919 entre 20 e 50 milhões de pessoas (Bertucci, 2002, p. 2). No Brasil, as estimativas de mortalidade da pandemia são contraditórias. Para o total do país, sugere-se que mais de 35 mil pessoas tenham morrido pela doença. No entanto, essas estimativas parecem estar subestimadas,1 uma vez que, apenas na cidade do Rio de Janeiro, em dois meses faleceram cerca de 12.700 indivíduos e, em São Paulo, foram 5.328 mortes entre outubro e dezembro de 1918.2 Menos controversa é a maior quantidade de mortes de brasileiros devido à pandemia em território nacional relativamente ao combate na Primeira Guerra. Mesmo dentro do grupo de combatentes na guerra, a principal causa de morte de brasileiros parece estar relacionada à própria gripe espanhola (Piovezan; Grassi, 2014, p. 222).
A relação da pandemia de 1918 com a economia foi pesquisada de forma mais consolidada em países desenvolvidos. Sobre seus efeitos para a economia dos Estados Unidos, Burns e Mitchell (1946) identificaram que a recessão econômica de 1918 foi breve e moderada, assim como Bell e Lewis (2004) encontraram limitado efeito macroeconômico em termos relativos. Velde (2020) revisitou essa questão e encontrou evidências de que houve recessão econômica, mas ela foi leve e breve, sendo visível seu impacto, mas não tão importante como a recessão de 1920-21. Assim, apesar do grande choque demográfico, a pandemia de 1918 teve impacto limitado de curto prazo na economia norte-americana. A produção foi afetada por um choque negativo de oferta de trabalho, com pouca consequência sobre a demanda e os balanços das empresas dos setores financeiro e não financeiro.
Correia, Luck e Verner (2020) pesquisaram as consequências econômicas da gripe espanhola tendo como foco os efeitos das intervenções não farmacêuticas das autoridades públicas (como distanciamento social, fechamento de escolas, teatros e igrejas e banimento de aglomeração, uso de máscara, quarentena e medidas de higiene) sobre a economia dos Estados Unidos. Os autores observaram que os efeitos da pandemia foram a queda rápida e persistente na atividade econômica real, com impactos negativos sobre a atividade manufatureira, estoque de bens duráveis e ativos bancários, sugerindo efeitos econômicos do lado da oferta e demanda. Outra conclusão foi que cidades norte-americanas que implementaram de forma mais rápida e persistente as intervenções não farmacêuticas não tiveram efeitos econômicos piores, ao contrário, experimentaram melhor desempenho sobre a atividade industrial e ativos bancários após a pandemia. Esses resultados sugerem que, embora as pandemias sejam desastrosas para a economia, medidas que reduzam e evitem a sua severidade também podem diminuir seus impactos na desaceleração econômica.
Os efeitos macroeconômicos da mortalidade por gripe espanhola, em vários países ao redor do mundo, foram estudados por Barro, Ursúa e Weng (2000). Os resultados apontam para um impacto negativo médio de 6,2% no PIB e de 8,5% no consumo agregado dos países. A inovação dos autores foi calcular, separadamente, as implicações econômicas da guerra e da pandemia. No caso específico da pandemia, os impactos foram mensurados em estimativas de morte por gripe. Nos Estados Unidos, que tiveram uma taxa de mortalidade por gripe de 0,52% da população entre 1918 e 1920, as estimativas para o impacto econômico foram modestas, de 1,5% no PIB e 2,1% no consumo. Por outro lado, na Índia, que registrou uma mortalidade alta por gripe (5% da população entre 1918/1920), o impacto econômico negativo foi enorme, de 15,6% no PIB (Barro; Ursúa; Weng, 2000, p. 11-14).3
Para o Brasil, o trabalho de Guimbeau, Menon e Musacchio (2020) analisou os efeitos da pandemia de 1918 sobre a demografia, o capital humano e a produtividade no estado de São Paulo a curto e longo prazos. Segundo os autores, a pandemia afetou negativamente a mortalidade infantil, a razão de sexo ao nascer e a produtividade agrícola no curto prazo (em 1920) e os efeitos de longo prazo persistiram na saúde (internações hospitalares), na educação (deterioração da capacidade de ler e escrever, principalmente das mulheres) e na produtividade por mais de 20 anos (em 1940).
Em um período de escassez, para o Brasil, de dados econômicos de alta frequência (bimestrais, mensais ou semanais), para o estado de São Paulo há informações importantes sobre a atividade de investimento no comércio, na indústria e nos serviços e movimentação bancária (empréstimos) no período da gripe espanhola.
O objetivo do artigo é identificar os efeitos econômicos da pandemia de gripe espanhola que atingiu São Paulo no final de 1918, analisando fontes primárias originais, com informações de investimento no comércio, indústria e serviços, produção industrial setorial e movimentação bancária. A contribuição para a historiografia econômica é o entendimento dos efeitos de curto prazo para a economia paulista da grande pandemia do final de 1918, os quais geralmente são preteridos pela literatura econômica devido aos efeitos da Primeira Guerra Mundial.
A próxima seção revisita brevemente os acontecimentos sobre a mortalidade e os efeitos econômicos da gripe espanhola no mundo e, mais especificamente, em São Paulo. Posteriormente, são abordados os efeitos da mortalidade da gripe espanhola em São Paulo e detalhados os efeitos econômicos da pandemia, tendo como foco os investimentos privados no comércio, na indústria e nos serviços, a produção industrial e a movimentação bancária (empréstimos). Por fim, são apresentadas as principais conclusões.
Revisitando os acontecimentos históricos durante a gripe espanhola
A gripe espanhola apareceu no mundo na primavera de 1918 nos Estados Unidos e foi levada para a Europa, chegando na França em abril, possivelmente através das tropas para a Primeira Guerra Mundial, espalhando-se pelo continente a partir de maio do mesmo ano (Portugal e Espanha em maio; Alemanha, Escandinávia, Grã-Bretanha em junho, atingindo também a Polônia e a Romênia). Em julho, chegou na África do Norte, Índia, China e Austrália. Depois de mutações na Europa, a segunda onda alcançou a Nova Inglaterra no final de agosto ou início de setembro, atingindo seu pico de mortes em algumas semanas e diminuindo seu ritmo em novembro. A segunda onda rapidamente se difundiu ao redor do mundo.4 Algumas regiões dos Estados Unidos foram afetadas por uma terceira onda na primavera de 19195 (Patterson; Pyle, 1991, p. 4, 7; Velde, 2020, p. 1-2).
As estimativas de infecção pela doença no mundo são de 500 milhões de pessoas, ou um terço da população mundial da época, com uma taxa de mortalidade de 10% dos infectados. Nos Estados Unidos, o número de mortes estimado é de 550 mil a 675 mil pessoas ou 0,66% da população (Correa; Luck; Verner, 2020, p. 5). O impacto da mortalidade pela gripe espanhola ao redor do mundo foi muito desigual. Em países subdesenvolvidos, como a Índia, as melhores estimativas indicam por volta de 14 milhões de mortes, ou cerca de 5% da população. Na África Subsaariana, a gripe de 1918-1919 foi considerada, provavelmente, o maior desastre demográfico de curto prazo da história (Harper, 2021, p. 440, 463). As estimativas de mortalidade são de 5,8% da população no Quênia, 3,5% em Madagascar, 2,4% na Nigéria e 3,4% na África do Sul. Os países europeus com maior mortalidade foram Portugal (1,8% da população), Espanha (1,4%) e Itália (1,2%). Já a mortalidade na França e Alemanha ficou em torno de 0,7% da população, enquanto no Reino Unido foi de 0,5%. A Ásia, em termos absolutos, foi a região mais afetada, tendo a Rússia perdido 1,9% da população, China 1,4% e Japão 1%, além das taxas alarmantes na Índia (Barro; Ursúa; Weng, 2020, p. 21-22).
No Brasil, a doença chegou em 14 de setembro de 1918, pelo navio Demerara, que aportou no Rio de Janeiro, após passar por Lisboa, Recife e Salvador, e ao estado de São Paulo no início de outubro de 1918,6 com vários casos suspeitos se espalhando pelo interior do país na sequência. O pico de mortes ocorreu em novembro de 1918 e diminuiu a partir de janeiro de 1919, mas uma nova onda nesse ano atingiu o interior do estado de São Paulo (Guimbeau; Menon; Musacchio, 2020, p. 5; Bassanezi, 2013, p. 73-74; Bertucci, 2002, p. 95, 100).
O tempo da epidemia não foi o mesmo para todas as regiões, atingindo de forma distinta em termos de ritmo e intensidade as cidades do estado. Em Santos, onde foi identificada a primeira morte do estado (9 de outubro), o mês de outubro de 1918 registrou grande parte da proporção de mortes por gripe no último trimestre do ano (43,6%). Na cidade de São Paulo, 85,6% das mortes por gripe no último trimestre do ano ocorreu em novembro de 1918. Em Campinas7 e Ribeirão Preto, municípios do interior do estado, a proporção de mortes de dezembro em relação ao último trimestre do ano ainda foi elevada, apesar do pico de mortes ter sido registrado em novembro. Em Santos e São Paulo o número de óbitos diminuiu significativamente em dezembro de 1918, dando por encerrado o período epidêmico (Bassanezi, 2013, p. 77, 80-81).
Na cidade de São Paulo, entre o final de outubro e meados de dezembro de 1918 (de 6 a 8 semanas), foram registrados 116.777 casos de gripe espanhola (22,3% da população da capital paulista) e 5.331 mortes. O total de casos estimados de pessoas que contraíram a doença na cidade de São Paulo foi de dois terços da população (350 mil casos). As principais medidas de combate à epidemia foram suspensão das atividades escolares, fechamento de bares e cinemas e restrição de atividades comerciais e industriais (Bertolli, 1986 apud Barata, 2000, p. 337).
Os efeitos da mortalidade da gripe espanhola em São Paulo
O objetivo desta seção é analisar o comportamento da mortalidade no município de São Paulo durante a pandemia de gripe, fazendo um comparativo com os períodos anterior e posterior à pandemia.
Os dados de mortalidade aqui utilizados foram coletados nos Annuarios Demographicos de 1917 a 1920 (DSS/SP, 1917-1920), os quais foram produzidos pela Secção de Estatistica Demographo-Sanitaria, que fazia parte da Directoria do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo. O Serviço Sanitário do Estado de São Paulo foi criado em 1892 e, entre suas muitas atribuições, estava a organização das estatísticas demógrafo-sanitárias, com o intuito de nortear a ação de prevenção e combate às moléstias transmissíveis (Bassanezi, 2013, p.75). Além dos Annuarios Demographicos, em função da própria pandemia, houve uma publicação especial denominada Boletim Trimestral de Estatistica Demógrapho-Sanitária (DSS/SP, 1919b), contemplando informações específicas e detalhadas sobre o último trimestre de 1918.
O município de São Paulo, além de ser a capital do estado, concentrava os serviços de estatística do estado, de forma que suas estatísticas demógrafo-sanitárias são mais completas e abrangem um maior número de informações que os demais municípios (Bassanezi, 2013, p. 75).
Analisar dados históricos de mortalidade não é uma tarefa simples, uma vez que nos deparamos com problemas de grau de cobertura, confiabilidade, imprecisão da classificação da causa de morte e invasão ou evasão de óbitos. No caso específico de óbitos por gripe, o código sanitário promulgado em 9 de abril de 1918 não considerava a gripe uma moléstia de notificação compulsória. No entanto, diante do volume de óbitos e de doentes por gripe, a pedido do Serviço Sanitário, os dados de mortalidade e morbidade gripal passaram a ser notificados. Mas foi somente em março de 1919 que a gripe passou a ser incluída como uma das doenças de notificação compulsória.
Bassanezi (2013, p. 77) aponta que outro fator importante a ser considerado é a inexistência de recenseamentos entre 19008 e 1920, justamente em um período de forte movimentação populacional, no qual a imigração teve um papel importante na dinâmica demográfica e no crescimento populacional paulista. Em 1900, os imigrantes representavam 23% da população do estado de São Paulo, contrastando com a média nacional de 7%. O estado absorveu mais da metade dos 4 milhões de imigrantes europeus que chegaram ao país entre 1880 e 1930 (Luna; Klein, 2019 p. 404). As estimativas existentes para a população do estado de São Paulo parecem estar subenumeradas, comprometendo o cálculo de taxas de mortalidade mais precisas, além de haver uma lacuna importante de dados desagregados da população nesse período.
Dadas estas questões, optamos por não utilizar, neste trabalho, as estimativas de população de São Paulo. Em função disso, não é possível calcular as taxas de mortalidade, que são indicadores fundamentais para analisar o risco de morte. Nossa análise, então, é concentrada unicamente no comportamento do número e proporções de óbitos ao longo dos anos, por algumas características demográficas disponibilizadas nos Anuários. Trata--se de uma análise relativa, que busca entender se ocorreram mudanças ocasionadas pelo excesso de óbitos por gripe. Importante salientar que os dados não permitem avaliar se houve maior ou menor risco de morte por gripe para grupos específicos (cor, sexo, estrangeiros, idade), mas podem indicar se houve maior proporção de mortes durante o período da crise, em comparação aos demais anos em análise.
Apesar das deficiências apresentadas, as informações trazidas pelos Annuarios Demógrapho-Sanitários permitem a comparação do ano de 1918 com os períodos anteriores e posteriores, contribuindo, assim, para o dimensionamento e entendimento da passagem da gripe espanhola pelo território paulistano.
A Tabela 1 apresenta o número total e a média diária de óbitos, por mês, para o município de São Paulo, entre 1917 e 1920. É possível perceber o efeito da gripe espanhola em 1918, uma vez que o número de mortes (14.811) é praticamente o dobro daquele registrado em 1917 (7.908), voltando a se reduzir em 1919 (9.985). Quando observamos os meses de 1918, tanto no número de óbitos quanto na média diária, fica clara a concentração das mortes no último trimestre do ano, especialmente em novembro. Das 14.811 mortes ocorridas em 1918, 6.156 aconteceram em novembro (42%). Em 1918 morreram por dia, em média, 40,57 pessoas. Em novembro do mesmo ano, a média foi de 205,20 indivíduos (Tabela 1).
Com o intuito de entender se o excesso de mortes afetou de forma distinta a proporção de óbitos para alguns grupos demográficos específicos, a Tabela 2 apresenta os óbitos segundo algumas características demográficas para o município de São Paulo, entre 1917 e 1920. Quando analisamos os óbitos por sexo, nacionalidade e cor/raça, percebemos que o forte aumento de número de mortes em 1918 não afetou a distribuição proporcional segundo essas características. Nos quatro anos em estudo, no total de mortes, aproximadamente 54% eram homens e 46% mulheres, 75% brasileiros e 25% estrangeiros e 90% brancos e 10% pretos e pardos9 (Tabela 2).
Já no que se refere aos óbitos de menores de um ano em 1918, observa-se que sua proporção foi alterada. Em 1917, 33,1% das pessoas que morreram tinham menos de um ano de idade, proporção que diminuiu para 26,8% em 1918 e voltou a ultrapassar os 30% em 1919 e 1920 (Tabela 2).
A alteração na proporção de mortes infantis sugere que houve mudança na estrutura etária da mortalidade em 1918, provavelmente em função da gripe espanhola, uma vez que a proporção se estabiliza novamente em 1919 e 1920 em níveis semelhantes ao observado em 1917. Em outras palavras, há indícios de que a mortalidade por gripe espanhola afetou proporcionalmente menos as crianças menores de um ano, quando comparada à distribuição dos óbitos no ano anterior e nos dois anos posteriores (Tabela 2).
Nesse sentido, com o objetivo de entender o comportamento da estrutura etária dos óbitos nos anos em estudo, apresentamos no Gráfico 1 as pirâmides etárias dos óbitos, com valores relativos, que permite a comparabilidade entre os anos de 1917 a 1920.
Nos quatro anos em estudo, é possível perceber com clareza que os óbitos se concentraram entre zero e um ano de idade, na faixa de 20 a 50 anos e acima dos 50 anos, com uma maior concentração de homens. Os três grupos etários reúnem em torno de 70% de todos os óbitos em todos os anos. No entanto, ao comparar 1918 com os demais anos, algumas diferenças ficam evidentes. Em primeiro lugar, a proporção de óbitos infantis diminuiu em 1918. Esse dado já havia sido observado na Tabela 2. Enquanto em 1917, 1919 e 1920 os óbitos infantis representaram mais de 30% de todas as mortes, essa proporção diminuiu para 26% em 1918. Parece haver algum efeito da crise ainda em 1919, uma vez que o percentual de óbitos infantis só retomou o patamar de 1917 em 1920. Outra diferença diz respeito à proporção de mortes no grupo etário acima dos 50 anos. Em 1918, apenas 13% dos óbitos se concentraram nessas idades, ao passo que em 1917, 1919 e 1920 as proporções foram de 19%, 16% e 18%, respectivamente.
Por se tratar de uma análise relativa, a diminuição da proporção de mortes em alguns grupos etários faz com que, necessariamente, um ou mais grupos apresentem um aumento. No caso do ano de 1918, esse crescimento foi observado no grupo etário de 20 a 50 anos, o qual concentrou 29% de todos os óbitos naquele ano. Em 1917, 1919 e 1920 as proporções foram de 23%, 22% e 20%, respectivamente.
Os dados aqui apresentados sugerem que os adultos entre 20 e 50 anos foram mais atingidos pela pandemia de gripe, uma vez que a estrutura etária das mortes foi alterada em 1918, quando comparada aos demais anos em estudo. Com o objetivo de confirmar essa hipótese, o Gráfico 2 apresenta a estrutura etária dos óbitos por gripe no último trimestre de 1918, período que concentrou a maior parte das mortes durante a pandemia. O boletim especial deste trimestre traz dados mais desagregados, o que permitiu a construção da pirâmide por grupos etários mais fracionados.
A estrutura etária dos óbitos por gripe no último trimestre de 1918 confirma a hipótese de que os adultos em idade produtiva foram os mais afetados pela pandemia de influenza. Em 1918, 29% de todos os óbitos se concentraram entre as pessoas de 20 a 50 anos, especialmente os homens (ver Gráfico 1). No último trimestre do mesmo ano, 41% das mortes por gripe ocorreram no grupo de 20 a 50 anos (ver Gráfico 2), sendo que a maior parcela na faixa etária de 20 a 30 anos (11% homens e 9% mulheres), seguida pelas pessoas de 30 a 40 anos (7% homens e 5% mulheres) e de 40 a 50 anos (5% homens e 3% mulheres). Os óbitos infantis (menores de um ano) representaram apenas 16% e aqueles acima de 50 anos em torno de 6%.
Proporção de óbitos por gripe, por grupos de idade, segundo sexo Município de São Paulo - 4º trimestre de 1918
Os resultados aqui encontrados foram semelhantes a outros achados da literatura internacional. Embora a curva de mortalidade por idade sazonal por gripe tenha um formato de “U”, atingindo mais crianças e idosos, para a pandemia de 1918, especialmente na segunda onda, foi observado um padrão distinto da curva de mortalidade por idade, com aumento das mortes nos grupos etários entre 20 e 40 anos, transformando o padrão da curva para um formato de “W”. Segundo os autores, esse padrão foi observado em diferentes regiões do mundo (Lai, 2015; Rebelo-de-Andrade; Felismino, 2018).
Correa, Luck e Verner (2020, p. 6) apontam que a faixa etária mais atingida pela pandemia foi a de 18 a 44 anos, os trabalhadores mais produtivos, que contribuíam para o mercado de trabalho e também mais expostos ao vírus. A pandemia da gripe espanhola foi letal para jovens adultos saudáveis, no momento de maior potencial da sua vida produtiva. Durante a pandemia, complicações respiratórias da gripe, como a pneumonia, foram comuns em jovens adultos, evento raro em momentos anteriores e posteriores à pandemia (Osdstone, 2010, p. 306-307).
Os efeitos econômicos de curto prazo da gripe espanhola em São Paulo
Uma pandemia, como a da gripe espanhola, pode afetar a economia de diferentes formas, tanto no curto como no longo prazo. A princípio, do lado da oferta, pode desestabilizar a oferta de trabalho em todos os setores da economia, com o aumento do número de doentes e de mortes. O primeiro efeito, portanto, é diminuição da oferta, com risco de desabastecimento. A limitação da interação social e da atividade econômica, com restrição ao funcionamento do comércio e das fábricas, pode agravar a oferta de bens e serviços. Um impacto direto é a elevação dos preços dos produtos e serviços, com aumento no nível geral de preços. Este último pode ser mais direcionado para determinados setores essenciais, impactando em uma distribuição desigual dos efeitos da crise causada pela pandemia. Pelo lado da demanda, a incerteza dos eventos pode direcionar os agentes a adiar a realização da demanda, afetando depressivamente os mercados produtores.
Os pressupostos do trabalho são similares ao de Eichenbaum et al. (2020) sobre a noção de que a pandemia afeta negativamente a economia pelo lado da oferta e demanda. O efeito da oferta ocorre porque a epidemia expõe as pessoas que estão trabalhando ao vírus, reduzindo a oferta de trabalho. O efeito da demanda surge porque a epidemia expõe as pessoas que estão consumindo ao vírus, diminuindo o consumo. Os efeitos de oferta e demanda trabalham juntos para gerar uma queda da atividade econômica.10
Assim, os efeitos da pandemia podem ter impactado o investimento privado no comércio, na indústria e nos serviços, já que, em um ambiente de incerteza, o empresário pode ter retardado ou desistido de realizar novos negócios. A produção industrial também pode ter sido afetada, de forma diferente entre seus vários gêneros, uma vez que alguns produtos industriais são mais essenciais do que outros. Da mesma maneira, seu lado financeiro, ou seja, o movimento bancário, refletido pelos seus empréstimos, não deve ter operado de forma adequada em um momento de incerteza.
Investimento privado
O objetivo da presente seção é analisar a evolução do investimento privado no comércio, indústria e serviços no estado de São Paulo no período da pandemia, olhando também para os períodos anterior e posterior. Para realizar esse objetivo utilizamos os registros de empresas em sociedade na Junta Comercial de São Paulo, publicados no Boletim da Diretoria da Indústria e Comércio (Deic/Sacop/SP, 1907-1928).11
A Tabela 3 resume as médias mensais de registros (número de empresas e seu capital a preços constantes) de empresas em sociedade12 na Junta Comercial de São Paulo, entre 1918 e 1919.
Optamos por utilizar os registros das empresas em sociedade (sociedade em comandita, sociedades em nome coletivo ou com firma, sociedades de capital e indústria e a sociedade em conta de participação) e não firmas individuais e sociedades anônimas. Apesar de existirem informações para as firmas individuais (a partir de janeiro de 1919) e sociedades anônimas (a partir de janeiro de 1913) na fonte primária (Deic/Sacop/SP, 1907-1928), essas informações são muito mais limitadas do que as empresas em sociedades (que temos registros disponíveis de janeiro de 1911 a dezembro de 1920). Por exemplo, não é possível classificar os registros das firmas individuais e sociedades anônimas em atividades manufatureiras, comerciais ou de serviços, já que não existe registro de “objeto do negócio” como são apresentados para as empresas em sociedade. Além disso, os investimentos das sociedades anônimas são mais localizados no tempo, aparecendo em grande volume (como as ferrovias) em determinado período e não aparecendo em alguns meses. Ao contrário, as empresas em sociedade seguem uma regularidade uniforme, refletindo melhor as decisões de investimento no curto prazo. Como o objetivo do artigo é entender os efeitos da pandemia de 1918 sobre o investimento no curto prazo, com dados de alta frequência (meses), consideramos que a melhor forma de fazê-lo é utilizar as empresas em sociedade. Realizamos uma estimativa tentando classificar a atividade econômica das sociedades anônimas pelo nome das empresas industriais e, neste setor, as empresas em sociedade representavam 37% e as sociedades anônimas 63% do capital industrial registrado na Junta Comercial no período de janeiro de 1911 a dezembro de 1920. O Censo Industrial apresenta o estoque do capital industrial e o número de firmas por modo de organização das empresas em setembro de 1920. Nesse período, a proporção do estoque de capitais das sociedades de capitais e sociedades mistas no Brasil era de 62% do total e a das sociedades de pessoas e firmas individuais correspondia a 38% do total (DGE/Maic, 1927, p. 5).
Na Tabela 3 são apresentadas as médias mensais dos meses anteriores à chegada da gripe espanhola (antes de setembro de 1918), do pior período da pandemia (outubro a dezembro de 1918) e do período posterior à pandemia (1919), quando a doença ainda se manifestava pelo estado, mas apresentava efeitos mais amenos na mortalidade.
O efeito da pandemia em São Paulo sobre o investimento privado, medido pelo registro de novas firmas em sociedade na Junta Comercial de São Paulo, foi significativo, com queda de 60% no número e 65% no valor do capital de firmas registradas entre os períodos de janeiro a setembro de 1918 e outubro a dezembro de 1918 (período de registro de infectados e mortes na cidade de São Paulo e pior período no estado). Antes da pandemia, a média mensal de registro de firmas em sociedade na Junta Comercial era de 70 empresas, diminuindo para 28 no pior período da pandemia (outubro a dezembro de 1918). O setor com maior queda foi o comércio, tanto no número de firmas registradas (-63%) como no valor do capital (-71%). A indústria teve redução de 56% no número e 50% no valor do capital das firmas registradas mensalmente. Depois da queda acentuada, a recuperação foi rápida e forte, superando os registros da média dos meses anteriores à pandemia a partir de janeiro de 1919. Talvez essa recuperação rápida esteja relacionada com as características epidemiológicas da gripe espanhola, que atingiu o mundo de forma avassaladora, mas desapareceu relativamente rápido, sem muita explicação.
O Gráfico 3 apresenta a relação entre o número de óbitos na cidade São Paulo e o investimento empresarial paulista.13 É possível notar o aumento no número de óbitos em São Paulo entre outubro e dezembro de 1918.14 O investimento, indicado pelo valor de capital total de empresas em sociedade registradas na Junta Comercial reduziu-se já em setembro de 1918, refletindo as notícias da chegada da pandemia no país. A queda do valor do capital de novas firmas registradas entre setembro e novembro (o mês de menor valor registrado) foi de 86%. A partir de dezembro, o investimento voltou a subir, com a melhora nos indicadores da pandemia e, já em janeiro de 1919, retomou os patamares médios anteriores à crise.15
Relação entre o número total de óbitos na cidade de São Paulo e o capital total de empresas em sociedade registradas na Junta Comercial de São Paulo, entre janeiro de 1916 e dezembro de 1920
O Gráfico 4 apresenta o impacto dos efeitos da pandemia no investimento industrial paulista. Como é possível perceber, houve uma grande queda no fluxo de capital registrado no setor industrial paulista no período de novembro a dezembro de 1918. Assim, as notícias da pandemia em setembro, além das mortes em outubro, demoraram a afetar a expectativa do empresário industrial, já que ainda em outubro mantinha e ampliava o fluxo de capital para novas empresas do setor. Esse atraso entre expectativa e realidade foi ajustado a partir de novembro, com forte queda do capital registrado, mantendo o baixo patamar em dezembro. A partir de janeiro de 1919 a recuperação já é visível, com forte aceleração em fevereiro, com investimento represado inclusive com o fim da guerra e melhoria das condições de importação de equipamentos. A partir de 1919 mudou o patamar de investimento na indústria se comparado ao período anterior, no qual os efeitos da Primeira Guerra restringiam os investimentos na indústria.
Relação entre o número total de óbitos na cidade de São Paulo e o capital das empresas industriais em sociedade registradas na Junta Comercial de São Paulo, entre janeiro de 1916 e dezembro de 1920
Em trabalho anterior,16 no qual um dos objetivos era identificar quebra estrutural na série de investimento da indústria em São Paulo, foi possível identificar quebra positiva na série de dados em janeiro de 1919, com a recuperação do encerramento da Primeira Guerra Mundial e o fim da gripe espanhola sobre a economia do estado de São Paulo. Ao olhar para a década como um todo (entre janeiro de 1911 e dezembro de 1920), o efeito negativo da gripe espanhola sobre o investimento na indústria em São Paulo, apesar de claramente visível, não é identificado como quebra estrutural pelos parâmetros adotados. Ou seja, o efeito positivo de recuperação em janeiro de 1919 foi mais significativo e importante para a série de investimento na indústria do que a queda ocasionada pela pandemia (em outubro e dezembro de 1918).
Os efeitos econômicos da gripe espanhola em São Paulo foram devastadores no final de 1918, mas a recuperação do investimento privado foi rápida e forte.
Produção industrial
A produção industrial é um indicador importante da atividade econômica do estado de São Paulo nos anos 1910. Foi nessa década que São Paulo tornou-se a principal região industrial do país, ultrapassando o Rio de Janeiro. O período é marcado pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial na economia brasileira. Para a indústria, os efeitos da guerra hoje são relativamente bem conhecidos. A diminuição do fluxo de comércio exterior e a desvalorização cambial resultaram em um ambiente difícil para o investimento industrial, já que a importação de máquinas era limitada pelo bloqueio comercial ou encarecimento com a desvalorização cambial. Para a produção, os efeitos dependeram de características específicas do setor industrial. A diminuição da concorrência dos produtos importados e seu encarecimento, com a desvalorização cambial, poderiam criar um ambiente favorável para a produção industrial em setores que não eram dependentes de importação de matérias-primas e tinham antes da guerra capacidade ociosa acumulada em período anterior.17
As análises levaram em consideração os efeitos da guerra, sendo que pouca atenção foi dada aos impactos da pandemia de gripe espanhola de 1918 sobre a produção industrial. Com um olhar mais atento sobre a evolução da produção industrial em São Paulo, é possível inferir as possíveis consequências da pandemia sobre a indústria. A Tabela 4 apresenta as taxas de crescimento do valor da produção industrial no estado de São Paulo entre 1911 e 1919. Com relação ao valor da produção industrial total, chamam a atenção a queda do crescimento entre 1913, antes, portanto, do início da guerra, até 1916, com recuperação em 1917, e a redução de 9% em 1918. A maior parte dos setores industriais teve queda na taxa de crescimento em 1918, com destaque para produtos de perfumaria (-31%) e derivados de fumo (-23%), ou seja, setores que, diante de um contexto de pandemia, podem ser considerados supérfluos. Chama a atenção também o setor de ferragens, que apresentou aumento de 24% em 1917, queda de 10% em 1918, voltando a crescer fortemente em 1919 (32%). Os setores ligados à alimentação, como conservas, doces e biscoitos e bebidas, experimentaram leve decréscimo de, respectivamente, -2% e -3%, refletindo até certa estabilidade se forem consideradas as quedas dos períodos anteriores.
Os setores que tiveram o maior crescimento do valor da sua produção industrial em 1918 foram os de confecções (227%), refletindo possivelmente um baixo valor da produção em período anterior, produtos farmacêuticos e químicos (38%) e velas (31%). Esses resultados não são surpreendentes se considerarmos que em uma pandemia haveria aumento de demanda por cobertores e medicamentos para os doentes e, provavelmente, velas18 para os óbitos.
Em 1919, o valor da produção industrial paulista voltou a crescer (30%), com forte recuperação de seu setor mais representativo, a produção de tecidos, com crescimento de 39%. Alguns gêneros industriais, que tiveram grande queda em 1918 ou mantiveram estabilidade no valor da produção, registraram forte crescimento em 1919, como o setor de perfumes (38%), bebidas (38%), chapéus, gorros e bonés (38%). Assim, a recuperação no valor da produção industrial paulista da maior parte dos setores foi forte e rápida.
As indicações das informações sobre o valor da produção industrial são confirmadas pela produção industrial física do período. Poucos produtos industriais tiveram sua produção, em quantidade, significativamente aumentada em 1918. Pela Tabela 5, os produtos que tiveram os maiores crescimentos na produção física foram os cobertores, xales e colchas (47%), velas (43%) e especialidades farmacêuticas (36%), potenciais produtos com aumento de demanda em uma pandemia. As maiores quedas foram de produtos de ferragens (-23%), perfumaria (-20%) e chapéus (-9%).
Há um forte indício de que a pandemia de gripe espanhola contribuiu para diminuir o valor da produção industrial paulista em 1918 e alterou a estrutura de produção industrial, com foco em aumento de produtos demandados por uma crise de saúde pública, como cobertores, produtos farmacêuticos e velas, e queda de produtos supérfluos, como perfumaria, derivados de fumo e chapéus.
Movimento bancário
Os efeitos da pandemia de gripe espanhola poderiam ter afetado não apenas o lado produtivo - investimento privado, criação de novas empresas e produção industrial -, como visto nas seções anteriores, mas também o lado financeiro da economia paulista.
Para analisar os efeitos da pandemia sobre o sistema bancário, construímos uma série de dados de empréstimos, com as contas garantidas e letras descontadas, com informações de balanço dos bancos da cidade de São Paulo.19
Relação entre o número total de óbitos e o movimento bancário (empréstimos) Município de São Paulo - jan. 1916-dez. 1920
Como é possível perceber pelo Gráfico 5, a evolução dos empréstimos bancários na capital paulista iniciou uma tendência de crescimento moderado em meados de 1917. A crise da gripe espanhola do último trimestre de 1918 parece interromper essa tendência, pois, a partir de dezembro de 1918, ocorreu retração dos empréstimos bancários em termos reais. O patamar da movimentação bancária de novembro de 1918 foi recuperado somente a partir de maio de 1919. Assim, parece que os efeitos da pandemia foram visíveis também no sistema financeiro. Mas, a partir de meados de 1919, a recuperação da movimentação bancária foi acelerada até atingir o pico de empréstimos no período analisado em dezembro de 1919.
No início de 1920 ocorreu uma queda acentuada no fluxo de empréstimos, com recuperação entre março e maio e nova redução acentuada até o final do ano. Essa retração em 1920 é explicada, possivelmente, por características endógenas da economia paulista e brasileira, além da crise da economia dos Estados Unidos e dos países industriais, com aumento da taxa de juros nesses países, que atingia o Brasil com o declínio dos preços de exportações do país e com a desvalorização da moeda nacional e a falta de crédito em geral (Velde, 2020; Peláez; Suzigan, 1981, p. 181).
Conclusões
Ao longo do trabalho procuramos entender como a pandemia de gripe espanhola de 1918 afetou a mortalidade e quais foram os efeitos para a atividade econômica privada em São Paulo. Fizemos um esforço no sentido de levantar dados de alta frequência na tentativa de detectar alterações no principal período da pandemia. A análise buscou identificar as alterações de curto prazo na economia paulista.
Pelo exame da mortalidade no município de São Paulo, fica claro o impacto da pandemia de gripe espanhola no último trimestre de 1918, especialmente em novembro, no número total e na média diária de óbitos. Não foi possível verificar alterações na distribuição proporcional de óbitos por sexo, nacionalidade e cor/raça. No entanto, identificamos alteração na estrutura etária da mortalidade em 1918, com diminuição da proporção de óbitos de menores de um ano de idade e do grupo etário acima de 50 anos. A redução relativa dos óbitos de menores de um ano e acima de 50 anos foi compensada pelo aumento no grupo etário entre 20 e 50 anos.
Assim, nossos resultados de mortalidade na cidade de São Paulo sugerem que a pandemia de gripe atingiu de forma mais significativa os adultos entre 20 e 50 anos, alterando a estrutura etária de mortes em 1918. Mais especificamente, a análise da mortalidade por gripe no último trimestre de 1918 confirma a hipótese de que adultos em idade produtiva, especialmente entre 20 e 30 anos, foram os mais afetados pela pandemia de gripe espanhola. Importante ressaltar, no entanto, que os dados aqui analisados não permitem inferir especificamente sobre o risco de mortalidade entre diferentes grupos demográficos, uma vez que não foi possível utilizar dados populacionais e calcular as taxas de mortalidade. Apesar disso, a análise possibilitou concluir que o excesso de óbitos por gripe gerou uma mudança de padrão etário nas proporções de morte. A maior proporção de mortes em adultos em idade produtiva foi observada também em outros estudos.
Os resultados da mortalidade ajudam a explicar os efeitos econômicos no setor produtivo de São Paulo no período. O primeiro efeito econômico da pandemia de gripe poderia ser a diminuição da oferta de trabalho, já que os adultos em idade produtiva (entre 20 e 50 anos) foram os mais atingidos pelo indicador de mortalidade, com a diminuição da produção e aumento no nível geral de preços, mas com impacto desigual entre os setores da economia. Do lado da demanda, há indicação de uma retração devido à incerteza dos eventos, mas também de forma desigual entre os setores, já que alguns são mais essenciais do que outros.
Os efeitos da mortalidade em decorrência da pandemia de gripe sobre a oferta e a demanda afetaram o investimento privado em geral, medido pelo registro de novas empresas, e o investimento e a produção industrial e também o lado financeiro, refletidos nos empréstimos bancários em São Paulo.
O efeito da pandemia em São Paulo sobre o investimento privado foi significativo, com queda no número e valor de registro de empresas no comércio, indústria e serviços no último trimestre de 1918. O setor com maior retração no investimento foi o comércio. No entanto, depois da queda acentuada, a recuperação foi rápida e forte, superando os registros da média dos meses anteriores à pandemia a partir de janeiro de 1919.
Os efeitos econômicos da gripe espanhola para o investimento industrial em São Paulo foram devastadores no final de 1918, mas a recuperação também foi rápida. Ao olhar para a década como um todo (entre janeiro de 1911 e dezembro de 1920), o efeito negativo da gripe espanhola (entre outubro e dezembro de 1918) sobre o investimento na indústria em São Paulo, apesar de claramente visível, parece ter menor importância do que o efeito positivo de recuperação a partir de janeiro de 1919.
Para a produção industrial, os impactos foram diferentes entre os setores. A maior parte dos setores industriais teve queda na taxa de crescimento do valor da produção em 1918, de forma que as maiores reduções foram observadas em setores considerados supérfluos em um contexto de pandemia, como produtos de perfumaria e derivados de fumo. Os setores que tiveram o maior crescimento foram o de confecções, produtos farmacêuticos e químicos e velas, produtos provavelmente essenciais no contexto da pandemia. A evolução da produção industrial física confirma essa hipótese, uma vez que houve aumento na produção de cobertores, xales e colchas, velas e especialidades farmacêuticas e queda em produtos de perfumaria e chapéus. Há uma indicação de que a pandemia da gripe espanhola contribuiu para diminuir o valor da produção industrial paulista em 1918 e alterou a estrutura de produção industrial, com foco em aumento de produtos demandados por uma crise de saúde pública. No entanto, a recuperação no valor da produção industrial paulista em 1919, da maior parte dos setores, foi forte e rápida.
É possível perceber os efeitos da pandemia de 1918 também no setor bancário. A evolução dos empréstimos bancários na capital paulista iniciou uma tendência de crescimento moderado desde meados de 1917. A crise da gripe espanhola do último trimestre de 1918 parece ter interrompido essa tendência de crescimento. A partir de dezembro de 1918 ocorreu retração dos empréstimos bancários em termos reais. O patamar da movimentação bancária de novembro de 1918 foi recuperado apenas a partir de maio de 1919. Assim, há indícios de que os efeitos da pandemia foram visíveis também no sistema financeiro. Mas, a partir de meados de 1919, a recuperação da movimentação bancária foi acelerada, até atingir o pico de empréstimos, no período analisado, em dezembro de 1919.
Nossos resultados indicam que vários setores da economia paulista e paulistana foram afetados, no lado da oferta e da demanda, pelos efeitos do aumento de mortalidade em decorrência da pandemia, principalmente no último trimestre de 1918. Os efeitos foram visíveis no investimento privado, com a queda do registro de empresas, na redução de empréstimos bancários e na diminuição física e de valor na produção industrial de produtos não essenciais e aumento dos essenciais em um contexto de crise de saúde pública. No entanto, a recuperação também foi rápida, o que explica, em parte, a pouca atenção dada pela historiografia econômica para identificar os efeitos da gripe espanhola sobre a economia.
Reconhecimentos:
Não aplicável.
Referências
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1
A estimativa de mortes pela pandemia de gripe no Brasil de Patterson e Pyle (1991, p. 14) é de 180 mil.
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2
Ver verbete do Dicionário histórico-biográfico da Primeira República 1889-1930. Coordenação: Alzira Alves de Abreu/FGV, disponível em: https://atlas.fgv.br/verbetes/gripe-espanhola.
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3
O trabalho de Barro, Úrsua e Weng (2000) traz a estimativa de que 0,69% da população brasileira teria morrido por gripe espanhola entre 1918 e 1920. Utilizando essa estimativa e o modelo proposto pelos autores (calculados por nós com base nas Tabelas 1 e 3), o impacto macroeconômico negativo da gripe espanhola no Brasil seria de 2% no PIB e 2,8% no consumo (Barro; Ursúa; Weng, 2000, p. 21, 25).
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4
Para informações detalhadas da difusão da gripe de 1918-1919 ao redor do mundo, ver Patterson e Pyle (1991, p. 4-13). Para as consequências demográficas, com estimativas de morte para vários países, ver Patterson e Pyle (1991, p. 14-15, Tabela 1) e Barro, Ursúa e Weng (2020, p. 21-22, Tabela 1).
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5
O período da gripe espanhola no mundo pode ser dividido em três ondas: a primeira com menor gravidade, entre março e junho de 1918; a segunda onda a mais grave, entre agosto de 1918 e janeiro de 1919; e uma terceira onda entre o final de fevereiro e maio de 1919, menos letal (Bertucci, s/d, p. 2 apud Bassanezi, 2013, p. 80).
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6
A primeira morte por gripe espanhola na cidade de São Paulo foi registrada oficialmente em 21 de outubro de 1918 pelos jornais da época, corrigida posteriormente por publicação do Serviço Sanitário para o dia 17 de outubro de 1918 (Bertucci, 2002, p. 114, nota 179).
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7
Além do momento de disseminação mais tardio do que no litoral e na capital, em Campinas a gripe apresentou outros comportamentos distintos, uma vez que atingiu mais mulheres (59%) do que homens (41%), além de uma proporção alta de pretos e pardos (42,7%) em 1918 (Bassanezi; Cunha, 2019, p. 16-17).
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8
Bassanezi (2000) reúne uma série de informações, compiladas e sistematizadas, sobre a população do município de São Paulo para os anos de 1836, 1854, 1872, 1886, 1890 e 1920. O recenseamento de 1900 não foi utilizado pela autora porque o que está disponível para consulta é a synopse, a qual contém um único quadro com a população dos municípios paulistas segundo o sexo (Bassanezi, 2000, p. 29). Nesse sentido, durante o período da pandemia de gripe espanhola, há uma lacuna no que diz respeito a dados desagregados sobre a população do município.
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9
Em 1890, a proporção da população por cor na capital paulista era a seguinte: 81,94% de brancos; 6,85% de pretos; 1,37% de caboclos e 9,85% de mestiços (Bassanezi, 2000, p. 530). Os censos de 1900 e 1920 não permitem a desagregação da população por cor. Entre 1890 e 1920, a população da capital paulista foi fortemente afetada pelas imigrações, o que pode ter alterado essas proporções.
-
10
A principal conclusão do trabalho de Eichenbaum et al. (2020) é que há um trade off entre gravidade da recessão econômica no curto prazo causada pela pandemia e as consequências para a mortalidade. O modelo dos autores indica que a decisão das pessoas de reduzir o consumo e o trabalho diminui a gravidade da epidemia, mensurada pelo total de mortes. Essas decisões são refletidas no tamanho da recessão causada pela epidemia. O trabalho faz parte de uma corrente que deduz que fatores econômicos afetam as decisões de interação humana e fazem parte do mecanismo de transmissão da doença, sendo que o comportamento econômico tem um papel importante na transmissão da doença (Perrings et al., 2014). O objetivo do nosso trabalho é diferente, ou seja, identificar os efeitos da pandemia sobre a economia.
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11
Para informações adicionais sobre a fonte primária, ver Marson (2019, seção 3).
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12
As empresas em sociedades não incluem as sociedades anônimas e as firmas individuais; ver Marson (2019, seção 4).
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13
A evolução da tendência do investimento do comércio, ou seja, dos valores de capital registrado pelas empresas comerciais na Junta Comercial de São Paulo é muito semelhante à registrada pelo total do capital de empresas do estado de São Paulo. Isso ocorre porque o setor comercial representava em média 76% do total do capital registrado por todas as empresas entre 1916 e 1920. Por esse motivo não apresentaremos a evolução do capital das empresas comerciais no artigo. Caso seja de interesse, os dados podem ser solicitados aos autores.
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14
Em setembro de 1918 a cidade de São Paulo registrou 609 mortes, passando para 1.212 em outubro, com pico de 6.156 mortes em novembro e caindo para 1.480 em dezembro, 911 em janeiro de 1919 e voltando à média de antes da pandemia em fevereiro de 1919, com 704 óbitos.
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15
O mês de agosto foi atípico, tendo um registro de valor duas vezes superior à média dos meses de 1918.
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16
Ver Marson (2019), especialmente Tabela 1 e Figura 3, p. 545-547.
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17
Assim, a indústria têxtil aumentou a produção no período enquanto o setor de cervejas diminuiu.
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18
É importante ressaltar que o setor de velas vinha aumentando o valor da sua produção industrial desde 1916, o que pode refletir o mesmo efeito do setor de confecções, ou seja, o crescimento diante de um baixo valor da produção em períodos anteriores.
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19
Apesar dos dados serem da capital de São Paulo, os bancos com filiais no interior (como em Santos, Campinas, Ribeirão Preto, São Carlos, Jaú e outras) apresentavam informações conjuntas em seus balancetes. Dessa forma, esses dados agregam informações de crédito em todo o estado, dando um bom índice do crédito bancário para o estado de São Paulo no período.
Apêndice
Disponibilidade de dados
Não aplicável.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
27 Jan 2024 -
Aceito
11 Jun 2024