Resumo
A literatura sobre equidade de gênero e fecundidade propõe uma curva em U para explicar a relação entre essas variáveis. À medida que as mulheres alcançam maior equidade na esfera pública (educação e trabalho), seus custos de oportunidade aumentam, o que, somado à responsabilidade quase integral pelo trabalho doméstico, reduz suas intenções reprodutivas e a fecundidade. Para reverter essa tendência de queda, seria necessária maior equidade na esfera privada da família, com maior participação masculina nas tarefas domésticas. Diversos estudos já investigaram essa associação positiva entre equidade de gênero na família e fecundidade ou intenções de fecundidade em países de alta renda e baixa fecundidade, contexto para o qual o modelo teórico foi desenvolvido. No entanto, há escassez de estudos sobre essa relação em países de renda menor, mas também de baixa fecundidade, como o Brasil. Este estudo é pioneiro ao investigar, no nível micro, a associação entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade no Brasil. Dada a inexistência de uma fonte de dados nacionalmente representativa que inclua ambas as variáveis de interesse, a estratégia analítica inclui a combinação de dados da PNDS de 2006 e das PNADs de 2006 e 2015 e o uso de métodos de machine learning para calcular a probabilidade predita de intenção de ter o segundo filho. A partir desta variável proxy, foi ajustada uma série de modelos e, de forma geral, os resultados sugerem uma relação negativa e, portanto, contrária ao arcabouço teórico. Uma possível explicação para estes resultados considera a discussão acerca da forma de operacionalização das variáveis. Alternativamente, discute-se que o relativo atraso do Brasil na primeira fase da revolução de gênero, isto é, na promoção de equidade na esfera pública, pode também explicar a associação negativa observada no contexto brasileiro.
Palavras-chave:
Intenções; Fecundidade; Equidade; Gênero; Família; Brasil;
Machine learning
Abstract
The literature on gender equity and fertility proposes a U-shaped curve to explain the relationship between these variables. As women achieve greater equity in the public sphere (e.g., through education and employment), their opportunity costs increase. Combined with their almost full responsibility for unpaid domestic work, this results in reduced reproductive intentions and, consequently, lower fertility. Reversing this downward trend would require greater equity in the private sphere, with increased male participation in domestic tasks. Several studies have examined the positive association between gender equity in the family and fertility or fertility intentions in high-income, low-fertility countries - the primary context for this model. However, few studies explore this relationship in lower-income, low-fertility countries like Brazil. This study is pioneering in investigating the association between gender equity in the family and fertility intentions in Brazil, at the micro level. Given the lack of a nationally representative data source that includes both variables of gender equity in the family and fertility intentions, our analytical approach combines data from the 2006 PNDS and the 2006 and 2015 PNADs, applying Machine Learning methods to calculate the predicted probability of intending to have the second child. Using this proxy variable, we adjusted a series of models, and, overall, the results indicate a negative relationship, contrary to the theoretical framework. This outcome may stem from how variables were operationalized. Alternatively, Brazil’s lag in the first phase of the Gender Revolution - advancing public sphere gender equity - might also explain the negative association observed in this context.
Keywords:
Intentions; Fertility; Gender; Equity; Family; Brazil; Machine learning
Resumen
La literatura sobre equidad de género y fecundidad propone una curva en forma de U para explicar la relación entre estas variables. A medida que las mujeres logran mayor equidad en la esfera pública (educación y trabajo), aumentan sus costos de oportunidad, que se suman a la responsabilidad casi total del trabajo doméstico, lo cual reduce sus intenciones reproductivas y la fecundidad. Para revertir esta tendencia a la baja, sería necesaria una mayor equidad en la esfera privada de la familia, con una mayor participación masculina en las tareas domésticas. Varios estudios han investigado esta asociación positiva entre equidad de género en la familia y fecundidad o intenciones de fecundidad en países de altos ingresos y baja fecundidad, contexto para el cual se desarrolló el modelo. Sin embargo, hay escasos estudios sobre esta relación en países de ingresos más bajos pero también de baja fecundidad, como Brasil. Este estudio es pionero al investigar, a nivel micro, la asociación entre equidad de género en la familia y las intenciones de fecundidad en Brasil. Dada la falta de una fuente de datos representativa a nivel nacional que incluya ambas variables de interés, la estrategia analítica combina datos de la PNDS de 2006 y de las PNADs de 2006 y de 2015 y utiliza métodos de machine learning para calcular la probabilidad de intención de tener el segundo hijo. A partir de esta variable proxy, se ajustaron una serie de modelos y, en general, los resultados sugieren una relación negativa, contraria al marco teórico. Una posible explicación para estos resultados considera la discusión sobre la forma de operacionalización de las variables. Alternativamente, se sugiere que el relativo retraso de Brasil en la primera fase de la revolución de género, es decir, en la promoción de la equidad en la esfera pública, también podría explicar la asociación negativa observada en el contexto brasileño
Palabras clave:
Intenciones; Fecundidad; Equidad; Género; Familia; Brasil; Machine learning
Introdução
O arcabouço teórico que explora a associação entre equidade de gênero na família e fecundidade ou intenções de fecundidade em países de alta renda e baixa fecundidade sugere uma relação positiva entre essas variáveis. O entendimento dessa associação positiva parte da premissa de que a emancipação alcançada pelas mulheres na esfera pública, isto é, altos níveis de escolaridade e paridade nas condições laborais e remuneratórias, acabou por produzir um “duplo fardo” para a população feminina, uma vez que elas continuaram assumindo a maior parte (ou quase a integralidade) das tarefas domésticas. A dificuldade em conciliar ambas as responsabilidades, remuneradas e não remuneradas, eleva os seus custos de oportunidade, acarretando o declínio das intenções e preferências reprodutivas. A chave para uma possível reversão dessa tendência de declínio da fecundidade seria maior equidade de gênero no nível da família, caracterizada por instituições e políticas públicas mais igualitárias (que possibilitem, por exemplo, melhores condições de licença parental e acesso a serviços de cuidados aos filhos) e, principalmente, maior participação masculina na realização do trabalho doméstico não remunerado (McDonald, 2000a, 2000b; Esping-Andersen; Billari, 2015; Goldscheider; Bernhardt; Lappegård, 2015; Raybould; Sear, 2021).
No nível macro, essa associação positiva é mais evidente, com países que apresentam maior equidade de gênero no ambiente familiar (medida por diversos indicadores), exibindo níveis mais altos de fecundidade e intenções de fecundidade. Já no nível micro, observa-se uma maior heterogeneidade nos resultados; ainda assim, um número significativo de estudos identifica uma associação positiva entre diferentes medidas de equidade de gênero na família - por exemplo, a proporção de horas que a mulher dedica às tarefas domésticas em relação ao total do casal - e variáveis de fecundidade ou intenções de fecundidade.1
Nesse contexto, o presente estudo tem como objetivo investigar a associação entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade no nível micro no Brasil, um país de menor renda, mas com fecundidade baixa semelhante à de países de alta renda, para os quais o arcabouço teórico foi originalmente desenvolvido e onde as investigações empíricas sempre se concentraram. Torr e Short (2004) e Raybould e Sear (2021) sugerem que essa abordagem permite explorar de forma alternativa a ideia central desse arcabouço teórico. Ou seja, em um contexto com razoável equidade de gênero na esfera pública - característica de diversos países de renda média e fecundidade baixa, como o Brasil -, espera-se que variações nos níveis de equidade de gênero na família tenham efeito na fecundidade ou nas intenções de fecundidade, ainda que tais países apresentem certo atraso em aspectos da primeira fase da revolução de gênero, focada na esfera pública (Torr; Short, 2004; Raybould; Sear, 2021).
Sobre este último ponto, o Gender Inequality Index (GII), elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2024), oferece uma medida de equidade de gênero na esfera pública ao incluir dimensões como mercado de trabalho, escolaridade, representação feminina na política e saúde materna e adolescente. O índice brasileiro é relativamente alto (indicando desigualdade) em comparação com países de alta renda, o que revela um atraso no progresso da revolução de gênero (Goldscheider; Bernhardt; Lappegård, 2015). Contudo, esse índice ainda é menor do que em muitos países de renda média ou baixa e, combinado com a já persistente fecundidade abaixo do nível de reposição, coloca o Brasil em uma posição intermediária, mas próxima aos países de alta renda. Essa condição torna o Brasil um caso apropriado para uma investigação alternativa sobre essa associação (Torr; Short, 2004; Raybould; Sear, 2021).
De forma relacionada e em sintonia com a abordagem e o objetivo desse trabalho, os estudos de Yoon (2016) e Kolpashnikova e Kan (2021), focados na Coreia do Sul e em Taiwan, demonstram que o contexto de rápida e acentuada queda da fecundidade nesses países permite investigar a relação entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade em cenários que diferem daqueles dos países de alta renda da Europa e América do Norte, para os quais o arcabouço teórico foi primariamente desenvolvido. Esse contexto, caracterizado por níveis de fecundidade semelhantes, mas com equidade de gênero comparativamente mais baixa (tanto na esfera pública quanto na privada), é similar ao encontrado no Brasil. Além disso, Mencarini (2018) observa que, independentemente do nível geral de equidade de gênero em um país, existe uma heterogeneidade significativa no nível micro, ou seja, nas famílias. Em uma sociedade considerada mais tradicional, dominada, por exemplo, por um modelo de homens provedores e mulheres responsáveis pelo lar, também se encontra uma parcela de casais com maior equidade de gênero no ambiente familiar. Da mesma forma, em sociedades vistas como mais modernas, com um nível geral mais elevado de equidade de gênero no domicílio, ainda existem famílias com uma divisão de tarefas e atitudes menos equitativas. Esse cenário apoia a ampliação da análise da relação entre equidade de gênero na família e fecundidade para outros contextos de baixa fecundidade, além daqueles já amplamente estudados.
Diferentemente dos países de alta renda, o Brasil não dispõe de uma fonte de dados que reúna variáveis sobre fecundidade ou intenções de fecundidade e equidade de gênero na família. Essa limitação provavelmente contribuiu para a ausência de estudos que investiguem a associação entre essas variáveis no Brasil, tornando este trabalho o primeiro a propor tal análise. Para contornar essa restrição de dados, adota-se uma estratégia que inclui a construção de uma proxy para intenções de fecundidade. Utilizando dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS), é calculada, por meio de um algoritmo de machine learning (ML), uma função de probabilidades para a intenção de ter o segundo filho, a qual é então imputada na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em que se encontra a variável de equidade de gênero na família.
Posteriormente, são ajustados diferentes modelos de regressão para analisar a associação entre equidade de gênero na família e (a proxy de) intenções de fecundidade. Especificamente, portanto, esse procedimento permite analisar a associação entre equidade de gênero na família (medida a partir da proporção de horas que a mulher dedica às tarefas domésticas em relação ao total do casal) e a probabilidade de ter a intenção de ter o segundo filho no Brasil. Por fim, para além da própria acurácia encontrada no modelo de ML, considerando que a variável dependente é uma probabilidade predita e não uma medida direta de intenções de fecundidade, diferentes modelos de regressão são ajustados a partir de anos distintos da PNAD para testar a robustez dos resultados e explorar a convergência de achados.
A seguir, apresentam-se os principais pontos da literatura relevante ao tema deste estudo. Posteriormente é detalhada a abordagem analítica e metodológica e são discutidos os resultados encontrados.
O que discute a literatura que analisa a relação entre equidade de gênero e fecundidade?
McDonald (2000a, 2000b) argumenta que o aumento da equidade de gênero é uma pré-condição tanto para a elevação da fecundidade nos países de alta renda quanto para seu declínio em países de baixa renda. Segundo o autor, essa aparente contradição deve-se à necessidade de analisar a equidade de gênero sob duas perspectivas institucionais: aquelas voltadas ao indivíduo e as direcionadas à família. Essa divisão fundamenta duas principais premissas de sua teoria. A primeira afirma que, em países de renda média e baixa, a transição da fecundidade de altos para baixos níveis está associada, sobretudo, ao aumento da equidade de gênero dentro da família. A fecundidade tende a cair à medida que as mulheres conquistam maior poder de decisão e um leque mais amplo de opções, o que lhes permite, entre outras escolhas, optar por ter menos filhos (McDonald, 2000a, 2000b). No entanto, sobre essa primeira premissa, a discussão acerca da relação entre as variáveis em estágios iniciais da transição demográfica é inconsistente e possui evidências empíricas limitadas que sugerem algum tipo de associação (McDonald, 2000a; Raybould; Sear, 2021). McDonald (2000a) reforça esse ponto ao afirmar que há mais sentido e espaço para investigações da teoria em contextos posteriores, nos quais pode ser observada uma queda avançada e contínua da fecundidade para níveis abaixo da reposição.
É no contexto de queda contínua da fecundidade para níveis muito baixos que a segunda premissa de McDonald (2000a) se aplica. Segundo o autor, em países de alta renda, o rápido avanço da equidade de gênero em instituições voltadas ao indivíduo (como o sistema educacional e o mercado de trabalho), combinado com os baixos níveis de equidade de gênero em instituições voltadas à família (como políticas públicas de apoio familiar), resultou em níveis de fecundidade mais baixos. Dessa forma, ele defende que uma maior equidade de gênero nas instituições de orientação familiar seria fundamental para elevar as intenções reprodutivas e os níveis de fecundidade.
De forma semelhante, Goldscheider, Bernhardt e Lappegård (2015) argumentam que o desequilíbrio nos níveis de equidade de gênero entre as esferas pública (educação e trabalho) e privada (divisão do trabalho doméstico não remunerado) é fundamental para o declínio da fecundidade para níveis abaixo da reposição em países de alta renda. As autoras introduzem sua proposta, conhecida como revolução de gênero, situando-a a partir do período pós-Revolução Industrial, momento em que a separação entre o trabalho produtivo e a vida doméstica fomentou normas sociais que privilegiaram o modelo “male-breadwinner-female-homemaker” (homem provedor e mulher dona de casa), inicialmente mantendo a fecundidade elevada. Nesse modelo, os custos de oportunidade para a fecundidade eram baixos ou praticamente nulos, uma vez que os homens, salvo raras exceções, não se envolviam nas tarefas domésticas, responsabilidades que recaíam inteiramente sobre as mulheres (Goldscheider; Bernhardt; Lappegård, 2015).
Em uma segunda fase, surge a chamada Nova Economia da Família, ou New-Home-Economics (Becker, 1981), na qual o papel feminino começa a se transformar. Diversos fatores, incluindo a crescente demanda capitalista por mulheres no mercado de trabalho, mudanças nos cursos de vida e pressões por igualdade, impulsionaram avanços como o aumento dos níveis de escolaridade, da participação no mercado de trabalho e dos salários das mulheres. Estes progressos são denominados avanços na esfera pública e constituem a primeira fase da revolução de gênero (Goldscheider; Bernhardt; Lappegård, 2015; Raybould; Sear, 2021). Esses avanços enfraquecem o modelo familiar consolidado (male-breadwinner-female-homemaker), ao eliminar a separação predefinida de papéis e gerar conflitos entre homens e mulheres. Ademais, esses avanços acarretam uma “dupla jornada” para as mulheres, que assumem tanto o trabalho remunerado quanto o doméstico não remunerado, aumentando, assim, seus custos de oportunidade e levando ao adiamento das uniões e à queda na fecundidade (Becker, 1981; Lee, 2015; Goldscheider; Bernhardt; Lappegård, 2015). A reversão dessa tendência de declínio seria possível com a segunda fase da revolução de gênero, agora voltada à esfera privada - caracterizada pelo aumento da participação masculina nas tarefas domésticas (Goldscheider; Bernhardt; Lappegård, 2015).
Essa dinâmica, descrita por uma curva em “U” (com declínio e posterior aumento da fecundidade), é também discutida por Esping-Andersen e Billari (2015). No ponto A dessa curva, prevalece o modelo male-breadwinner-female-homemaker, caracterizado por uniões estáveis, baixa participação feminina na esfera pública e, consequentemente, fecundidade mais elevada. O ponto B reflete um contexto em que a revolução feminina já avançou na esfera pública, mas a sociedade ainda não se adaptou à nova configuração familiar, gerando instabilidade nas uniões e baixa fecundidade. No ponto C, a sociedade encontra-se adaptada a essas mudanças, com a revolução feminina em estágio maduro e elevada participação masculina no domicílio, o que acarreta aumento da fecundidade. Os autores também discutem que, embora o modelo male-breadwinner-female-homemaker no ponto A possa produzir eficiência econômica, o modelo de equilíbrio no ponto C é mais provável de alcançar um ótimo de Pareto, pois, ao contrário do ponto A, proporciona justiça (isto é, equidade) entre os parceiros, além de ganhos mais eficientes que beneficiam ambos. Em outras palavras, ambos “ganham” em justiça e equidade, com menores chances de conflitos familiares, e “ganham” economicamente, uma vez que as mulheres têm mais oportunidades de alcançar melhores salários e posições no mercado de trabalho (Esping-Andersen; Billari, 2015).
Seguindo a mesma linha dos autores anteriores, Raybould e Sear (2021) exploram a associação entre equidade de gênero e fecundidade, reformulando alguns termos e conceitos. Eles sugerem substituir a expressão “modelo male-breadwinner-female-homemaker” (utilizada para se referir a famílias tradicionais, com homens provedores e mulheres donas de casa) por “normas rígidas de gênero com divisão de trabalho complementar” ao tratar do primeiro ponto da curva em U, caracterizado por alta fecundidade. Essa substituição é proposta porque o modelo male-breadwinner-female-homemaker reflete a rigidez dos sistemas de gênero presentes a partir de meados do século XX. Nesse contexto, ainda que os papéis de homens e mulheres fossem complementares, cabia aos homens a esfera pública e, às mulheres, a esfera privada, como definido por essas normas rígidas de gênero (Raybould; Sear, 2021).
No vale da curva em U, conforme já discutido, a fecundidade atinge níveis baixos devido aos avanços femininos na esfera pública, enquanto a rigidez das normas de gênero persiste na esfera privada. Nesse ponto, a divisão de trabalho entre os casais deixa de ser complementar: enquanto o homem se dedica exclusivamente ao trabalho remunerado, a mulher, além de atuar na esfera pública, continua sendo a principal responsável pelo trabalho não remunerado no lar. Assim, prevalece o que chamam de “normas rígidas de gênero com divisão de trabalho não complementar”. Finalmente, a fecundidade volta a crescer à medida que “normas de gênero mais flexíveis e uma divisão complementar” do trabalho tornam-se predominantes. Nesse segundo extremo da curva, homens e mulheres compartilham em maior grau tanto o trabalho remunerado (esfera pública) quanto o trabalho doméstico não remunerado (esfera privada) (Raybould; Sear, 2021).
Estudos teóricos recentes revisaram investigações empíricas que buscam identificar se maiores níveis de equidade de gênero na família estão, de fato, associados a maiores intenções e níveis de fecundidade em países de alta renda. Como pontuado na Introdução deste artigo, no nível macro, o conjunto de evidências empíricas não apresenta contradições significativas. Com raras exceções, países com maiores níveis de equidade de gênero na família - independentemente da forma como essa variável é operacionalizada - apresentam níveis mais altos de fecundidade e de intenções de fecundidade em comparação com aqueles com menor equidade de gênero na família (Raybould; Sear, 2021; Leocádio; Verona; Wajnman, 2025). Hong (2021), por exemplo, observa, para um conjunto de países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que a duração da licença-maternidade está positivamente associada à fecundidade. Arpino, Esping-Andersen e Pessin (2015) realizam uma análise longitudinal de diversos países de alta renda na Europa e América do Norte, fornecendo evidências da curva em U discutida anteriormente. Isto é, a fecundidade diminui à medida que os países se afastam do modelo tradicional male-breadwinner-female-homemaker em direção à maior equidade de gênero na esfera pública, e depois aumenta quando cresce a participação masculina na esfera privada. De forma semelhante, ao conduzirem uma análise transnacional, Stefani e Prati (2024) demonstram uma associação em forma de U entre ideologia de gênero e fecundidade.
Se, no nível macro, as evidências não apresentam contradições notórias, no nível micro há uma maior heterogeneidade, com estudos identificando tanto associações positivas quanto negativas. A principal causa dessa heterogeneidade parece ser o uso de diferentes fontes de dados, cada uma com suas próprias variáveis e métodos de mensuração da fecundidade, das intenções de fecundidade e, sobretudo, da equidade de gênero na família (Westoff; Higgins, 2009; Miettinen; Basten; Rotkirch, 2011; Raybould; Sear, 2021). Ademais, como apontam Westoff e Higgins (2009), parece nunca ter havido um consenso quanto à melhor maneira de se medir equidade de gênero. Tampouco há uniformidade quanto ao próprio conceito, resultando no uso de diferentes terminologias, como equidade de gênero, igualdade de gênero, status feminino e empoderamento feminino, frequentemente empregadas como sinônimos (Westoff; Higgins, 2009; e, para uma revisão acerca desses conceitos, ver Leocádio; Verona; Wajnman, 2025).
A diversidade de resultados gerados pelas distintas formas de operacionalização de dados e variáveis pode ser ilustrada pelos achados de Lappegård, Neyer e Vignoli (2021). Com base em dados do Generations and Gender Survey (GGS) para diversos países europeus, os autores demonstram que a relação entre atitudes sobre papéis de gênero e intenções de fecundidade varia conforme a dimensão analisada, como, por exemplo, papéis de gênero na esfera pública, papel das mães e dos pais na família. Essa associação também varia segundo sexo, país e parturição. Em consonância, Duvander, Lappegård e Andersen (2019) identificam, para Suécia e Noruega, que essa relação varia conforme a parturição, sendo positiva para o segundo filho e negativa para o terceiro.
Erfani e Pilon (2024), com dados do General Social Survey do Canadá, também encontraram resultados variados dependendo das variáveis de equidade de gênero na família e das formas de modelagem utilizadas. Ao não controlarem por características sociodemográficas, observam de maneira consistente - isto é, para diferentes atividades de trabalho doméstico, sejam elas rotineiras (como cozinhar e limpar) ou intermitentes (como fazer compras e pagar contas) - que uma divisão igualitária entre os parceiros está associada a uma maior probabilidade de ter um filho nos três anos seguintes à pesquisa. No entanto, ao incluírem controles para as características sociodemográficas das mulheres, os autores encontraram resultados mistos, dependendo principalmente da variável de divisão do trabalho doméstico analisada.
Além disso, Erfani e Pilon (2024), assim como Han, Gowen e Brinton (2024) para o contexto europeu, argumentam que a associação entre equidade de gênero na família e fecundidade ou intenções de fecundidade pode ser moderada por fatores como a posição ocupacional das mulheres na esfera pública e a ideologia de papéis de gênero - isto é, a priorização do papel de cuidadora versus a carreira profissional. Dessa forma, a associação com outras características também pode ajudar a explicar porque os resultados acerca da relação entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade variam tanto.
Com o intuito de transcender a explicação amplamente discutida na literatura para a observância de resultados contraditórios sobre a relação entre equidade de gênero na família e fecundidade - o uso de diferentes variáveis e formas de categorização dessas variáveis -, Leocádio, Verona e Wajnman (2024) propõem uma explicação alternativa. Com base em dados do GGS para um conjunto distinto (e ampliado) de países - em relação àqueles analisados por Lappegård, Neyer e Vignoli (2021) -, os autores mostram que maior equidade na divisão das tarefas domésticas (housework) está positivamente associada à intenção de ter o segundo filho, enquanto maior equidade no cuidado infantil (childcare) tem associação negativa. Eles argumentam que essa diferença decorre das percepções subjetivas sobre tais atividades: o cuidado infantil é geralmente visto como prazeroso e gratificante, enquanto o trabalho doméstico (que não envolve o cuidado direto dos filhos) é associado a injustiça e desigualdade (Koster et al., 2021).
Finalmente, no que tange aos países de renda média e fecundidade baixa, um único estudo, utilizando dados da Colômbia, indica associação positiva entre divisão dos cuidados com os filhos e intenções de ter o segundo filho. Além disso, não foi encontrada associação entre a divisão dos afazeres domésticos (aqueles que não incluem o cuidado direto com os filhos) e preferências reprodutivas pelo segundo filho (Portaccio, 2019).
Metodologia
Bases de dados
A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS) faz parte do Demographic and Health Survey (DHS) Program, o qual conduz investigações em escala global, apoiado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (USAID), com o objetivo de fornecer dados sobre população, saúde e nutrição de mulheres e crianças em países de média e baixa renda. A PNDS descreve o perfil da população feminina em idade reprodutiva e também de menores de cinco anos no Brasil. Sua terceira edição foi produzida em 2006, tendo ocorrido duas anteriores em 1986 e 1996, com o nome de Pesquisa Nacional sobre Saúde Materno-Infantil e Planejamento Familiar (PNSMIPF) (BRASIL, 2009).2
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) é realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e possui, até 2015, investigações permanentes acerca de características gerais da população, escolaridade, trabalho, rendimento e habitação, assim como levantamentos periódicos de outros temas, definidos conforme necessidade. A PNAD (regular) foi encerrada em 2016, sendo substituída pela PNAD Contínua, a qual, a partir de metodologia atualizada, fornece cobertura territorial mais abrangente e disponibiliza informações trimestrais sobre a força de trabalho em âmbito nacional (IBGE, 2024).
Conforme discutido na introdução, são utilizadas duas bases de dados distintas neste estudo devido à ausência de uma fonte que contenha tanto uma variável de intenções de fecundidade quanto uma medida de equidade de gênero na família para o Brasil. A partir da PNDS de 2006, constrói-se a variável dependente de intenções de fecundidade. Já a variável explicativa de equidade de gênero na família é extraída das PNADs de 2006 e 2015. A escolha de 2006 deve-se ao fato de ser o ano da PNDS, base da criação da variável de intenções de fecundidade. A inclusão de 2015, último ano da PNAD regular, permite examinar se a associação identificada em 2006 é replicável em um período mais recente, o que fortalece a robustez dos resultados. A PNAD de 2015 foi preferida à PNAD Contínua (mais recente) em função da presença da variável explicativa, conforme detalhado na seção seguinte.
Estimação da variável dependente proxy de intenções de fecundidade
Tendo em vista que as variáveis dependente e explicativa não se encontram, portanto, num mesmo conjunto de dados, este estudo propõe um método de imputação de uma função de probabilidades (como uma variável proxy para intenções de fecundidade) na PNAD, a partir de dados da PNDS, e através de um modelo de predição. Para tal, adotou-se um modelo de machine learning (ML) como estratégia de predição. Em modelos de ML, um algoritmo é treinado em um conjunto de dados específico, e, uma vez testada e avaliada a acurácia do modelo, este pode ser utilizado para realizar predições com base em novos dados (James et al., 2014; Bruce; Andrew, 2017; Escovedo; Koshiyama, 2020).
A PNDS possibilita a criação de uma variável binária de intenções de fecundidade: quer ter o próximo filho; não quer ter o próximo filho. Em seguida, identifica-se um conjunto de regressores do modelo de ML que se relacionam com intenções de fecundidade e estão disponíveis em ambas as bases de dados (PNDS e PNAD). É essencial que essas variáveis sejam idênticas nas duas fontes, para que, após o treinamento do modelo e a avaliação da sua acurácia, seja possível realizar predições na PNAD (a partir do modelo de ML ajustado na PNDS). Essas predições constituem a variável proxy de intenções de fecundidade, que é então imputada na PNAD (em que já está presente a variável explicativa), permitindo a análise da associação entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade. Ao investigar ambas as bases e considerar os fatores associados às intenções de fecundidade (Leocádio; Verona; Wajnman, 2023), as variáveis comuns à PNDS e PNAD incluem: ordem de parturição; grupo etário (intervalos quinquenais de 15 a 49 anos); ocupação (se está ou não ocupada); raça/cor (branca, preta, parda e outras); região geográfica (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul); e divisão rural-urbano (rural ou urbano).
Tendo em vista a variável dependente binária (quer ou não ter o próximo filho), foram utilizados algoritmos de classificação, que são apropriados para a predição de variáveis categóricas (James et al., 2014; Bruce; Andrew, 2017; Escovedo; Koshiyama, 2020). Optou-se pela regressão logística binária, que não apenas produziu uma acurácia elevada e satisfatória, mas também permitiu a aplicação do design de amostra complexa, essencial para garantir que a amostra da PNDS seja nacionalmente representativa. Outros algoritmos, como árvores de decisão e random forest, foram testados, mas não apenas não melhoraram a já elevada acurácia obtida com a regressão logística, como também não viabilizaram a utilização do design de amostra complexa necessário para a operacionalização dos dados da PNDS.
A estimação de um modelo de machine learning inicia-se com a divisão da base de dados em um conjunto de treino (training data) e outro de teste (test data).3 O passo seguinte consiste em ajustar o modelo (ou algoritmo) de regressão logística a partir do conjunto de dados de treino, isto é, treinar o modelo. Em seguida, com os dados de teste, avalia-se a acurácia desse modelo. Foram alcançados 80% de acurácia, considerado um elevado percentual. Como um teste adicional de precisão da previsão, foi plotada a curva ROC (Figura 1). Observa-se que a curva apresenta comportamento crescente desejado e, adicionalmente, o valor de AUROC foi de 0,83, o que também indica elevada capacidade de previsão desse modelo de ML (James et al., 2014; Bruce; Andrew, 2017; Escovedo; Koshiyama, 2020).4
Curva ROC do modelo de machine learning ajustado e avaliado a partir de dados da PNDS de 2006
Uma vez confirmada a elevada capacidade preditiva do modelo treinado, ele é utilizado, a partir do novo conjunto de dados da PNAD, para prever a probabilidade de intenção de ter o próximo filho (James et al., 2014; Bruce; Andrew, 2017; Escovedo; Koshiyama, 2020). Ao final, se encontram em uma única base (PNAD) as variáveis dependente (probabilidade de intenção de ter o próximo filho) e explicativa (apresentada a seguir). A imputação dessa função de probabilidades é realizada em ambas as PNADs de 2006 e 2015, pois, como já mencionado, modelos são ajustados para cada um desses anos. Por fim, vale destacar que a função de probabilidades criada e apresentada até aqui (probabilidade de intenção de ter o próximo filho) ainda não representa a variável dependente final que será utilizada nos modelos que investigam a associação entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade. Isso ocorre porque, devido à natureza deste estudo, são necessários alguns recortes. A variável dependente final será apresentada adiante, juntamente com os modelos finais. Antes disso, na seção a seguir, será descrito o processo de construção da variável explicativa.
Definição e construção da variável explicativa de equidade de gênero na família
Desde 2001, a PNAD pergunta: “Número de horas que dedicava normalmente por semana aos afazeres domésticos”. Essa questão manteve o mesmo formato em 2006 e 2015, o que permite a análise e a comparação dos resultados desses anos. Por afazeres domésticos, a PNAD considera as seguintes tarefas realizadas no âmbito do domicílio: arrumar ou limpar toda ou parte da moradia; cozinhar ou preparar alimentos; passar roupa, lavar roupa ou louça, utilizando, ou não, aparelhos eletrodomésticos para executar estas tarefas para si ou para outro(s) morador(es); orientar ou dirigir trabalhadores domésticos na execução das tarefas domésticas; cuidar de filhos ou menores moradores; e limpar o quintal ou terreno que circunda a residência (IBGE, 2024).
As amostras finais incluem apenas mulheres que convivem com seus parceiros, formal ou informalmente, o que permite medir o total de horas dedicadas ao trabalho doméstico por ambos e construir a variável explicativa, seguindo a abordagem de Torr e Short (2004). A variável é definida como o percentual de horas que a mulher dedica ao trabalho doméstico não remunerado em relação ao total de horas do casal. Essa medida relativa oferece vantagens em relação à medição em horas absolutas, pois evita a influência de fatores como o tamanho da família ou o tempo disponível, que podem afetar o número de horas dedicadas ao trabalho doméstico (Greenstein, 2000).
Considerando uma relação não linear entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade (Dommermuth; Hohmann-Marriott; Lappegård, 2017), o percentual de horas que a mulher dedica ao trabalho doméstico não remunerado em relação ao total do casal foi categorizado em: maior equidade e menor equidade. E, assim como em Torr e Short (2004), utilizou-se a própria distribuição do percentual de horas das mulheres nas tarefas domésticas para essa categorização, conforme mostra a Figura 2. Isto é, em vez de adotar pontos de corte arbitrários, a própria distribuição dessa medida relativa reflete o que pode ser considerado maior ou menor equidade no contexto brasileiro. Segundo Torr e Short (2004), definir pontos de corte arbitrários e neutros em relação à distribuição, como menos de 25%, entre 25% e 50% e mais de 50% do trabalho doméstico, parece intuitivo, mas não se aplica em casos como o dos EUA, onde mais de 75% das mulheres realizavam mais da metade do trabalho doméstico e menos de 2% realizavam menos de 25%. Algo semelhante ocorre no Brasil, onde, em ambos os anos analisados, cerca de 90% das mulheres realizavam mais da metade do trabalho doméstico, e apenas 2% dedicavam menos de 25% das horas totais.
Assim, não é viável assumir uma neutralidade nas distribuições para definir os pontos de corte, o que é visível na Figura 2. Ambas as distribuições, 2006 e 2015, são concentradas à direita, evidenciando que a maioria das mulheres realizava a maior parte do trabalho doméstico, enquanto poucas dedicavam uma pequena parcela. O valor modal de 100% no percentual de horas dedicadas pelas mulheres indica que quase 40% das amostras realizavam a totalidade do trabalho doméstico. Em 2006, as mulheres respondiam, em média, por 83,41% do trabalho doméstico não remunerado do casal, caindo ligeiramente para 81,54% em 2015. Esses percentuais elevados, somados à leve variação em um intervalo de nove anos, reforçam a persistente desigualdade na distribuição das tarefas domésticas entre homens e mulheres no Brasil (Barbosa, 2018).
Distribuição percentual de horas de trabalho doméstico não remunerado realizado pelas mulheres Brasil - 2006-2015
Nesse contexto, aplica-se uma análise da distribuição quartílica do percentual de horas de trabalho doméstico não remunerado realizado pelas mulheres (Torr; Short, 2004). O primeiro quartil corresponde ao grupo em que a mulher realiza uma menor proporção do trabalho doméstico. Esse primeiro quartil abrange, na PNAD de 2006, as mulheres que realizam menos de 71,43% do total de horas e, na PNAD de 2015, aquelas que realizam menos de 66,67% do total. Esses percentuais elevados também demonstram a forte concentração das tarefas domésticas entre as mulheres, embora haja uma diminuição de quase 5% entre os anos. A categoria “maior equidade” foi atribuída ao primeiro quartil, enquanto “menor equidade” refere-se aos três quartis restantes das amostras. É importante destacar que outras formas de categorização foram testadas. Por exemplo, uma alternativa foi considerar “maior equidade” para as mulheres que realizam até 50% do trabalho doméstico, e o restante classificado como “menor equidade”. Os resultados, contudo, foram semelhantes. Assim, optou-se por apresentar apenas os achados baseados na distribuição quartílica, conforme já testado anteriormente para outros países (Torr; Short, 2004).
Amostras, variáveis e modelos finais utilizados na estimação da associação entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade
Assim como realizado com os dados da PNDS nos modelos de ML, utilizou-se o design de amostra complexa para garantir a representatividade nacional das amostras em todas as etapas da análise dos dados das PNADs. Conforme mencionado anteriormente, as amostras finais das PNADs de 2006 e 2015 incluem mulheres brasileiras unidas (formal ou informalmente) que vivem com seus parceiros e têm entre 15 e 49 anos. Além disso, essas amostras se restringem a mulheres com um filho, pois investigar intenções de ter o segundo filho apresenta vantagens em comparação à análise de intenções para o primeiro ou terceiro filho. Isso ocorre porque casais sem filhos ainda não vivenciaram a divisão de tarefas domésticas em um ambiente familiar com uma criança, nem experimentaram atividades de cuidado infantil (Morgan, 2003; Raybould; Sear, 2021; Sobotka; Beaujouan, 2014). Adicionalmente, focar no segundo filho reduz as complexidades associadas ao adiamento da maternidade ou à ausência de filhos (Torr; Shor, 2004). E, no Brasil, como em países de alta renda, observam-se baixa fecundidade e um padrão normativo de dois filhos por mulher (Leocádio; Verona; Wajnman, 2023; Sobotka; Beaujouan, 2014). A variável dependente incluída nos modelos finais se refere, portanto, à probabilidade de ter a intenção de ter o segundo filho.
Conforme mostrado em detalhes no Anexo, as distribuições da probabilidade de ter a intenção de ter o segundo filho diferem consideravelmente de uma distribuição normal. Portanto, para analisar a associação entre equidade de gênero na família (categorizada em maior ou menor equidade, conforme o percentual de horas de trabalho doméstico não remunerado realizadas pelas mulheres) e intenções de fecundidade (probabilidade de ter a intenção de ter o segundo filho), foram utilizados modelos de Poisson e binomial negativo. Contudo, para verificar a consistência dos resultados, também foram ajustados modelos de regressão linear múltipla, tanto com a variável dependente original quanto com a variável dependente logaritmizada. Entre os modelos de contagem, optou-se por apresentar os resultados do modelo binomial negativo, que não assume igualdade entre média e variância, sendo adequado para dados com superdispersão (Atake; Ali, 2019; Osgood, 2000). Ainda assim, destaca-se que os modelos de Poisson produziram coeficientes e erros padrão iguais aos obtidos com o binomial negativo.
Em relação às variáveis de controle, foram utilizadas três relacionadas ao trabalho remunerado: número de horas (absolutas) dedicadas ao trabalho remunerado; parcela de horas de trabalho remunerado realizadas pela mulher em relação ao total do casal (calculada de forma análoga à variável explicativa de trabalho não remunerado); e situação ocupacional (ocupada ou não). Foi ajustado um modelo para cada uma dessas variáveis de controle para avaliar a estabilidade dos resultados frente a diferentes formas de controle por trabalho remunerado. Considerando essas três variáveis de controle de trabalho remunerado e os três métodos de regressão (binomial negativo, regressão linear e regressão linear com variável dependente logaritmizada), totalizam-se nove modelos ajustados para cada ano em análise (2006 e 2015). Todos os modelos incluem os seguintes controles adicionais: divisão rural-urbano (rural vs. urbano); região (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul); raça/cor (branca, preta, parda e outras); idade simples; e escolaridade (sem instrução, 1 a 7 anos, 8 a 10 anos, 11 a 14 anos e 15 anos ou mais).
Resultados
Estatísticas descritivas
A Tabela 1 apresenta as estatísticas descritivas das amostras utilizadas nos modelos finais (2006 e 2015), mostrando a distribuição das amostras segundo as variáveis categóricas, além das médias para as variáveis numéricas. Quanto à probabilidade média estimada de intenção de ter o segundo filho, os resultados são bastante próximos entre os anos analisados. Em 2006, a probabilidade predita média é de 49,1%, caindo para 44,2% em 2015, o que representa uma diminuição de aproximadamente 5% nessa variável proxy de intenções de fecundidade. Ao comparar as categorias da variável de equidade de gênero na família (divisão do trabalho doméstico), observa-se que, em ambos os anos, as mulheres em contextos de menor equidade apresentam uma probabilidade média de intenção de ter o segundo filho ligeiramente maior do que aquelas em contextos de maior equidade de gênero na família - uma diferença de 1,2% em 2006 e 1,3% em 2015. Comparando os percentuais entre os anos, assim como na média total, também ocorreu uma redução nas intenções dentro de cada categoria de equidade de gênero: 5% para a categoria de maior equidade e 5,1% para a de menor equidade, valores muito próximos.
Em relação à variável explicativa de divisão do trabalho doméstico, a composição se baseia na divisão em quartis apresentada na seção anterior (a pequena variação nos percentuais decorre dos cortes realizados nas bases). Ademais, conforme discutido anteriormente, a Figura 2 mostra que as médias dos percentuais de horas de trabalho doméstico não remunerado realizadas pela mulher no total do casal ficam entre 80% e 85%, confirmando a desigualdade na distribuição de tarefas entre mulheres e homens no Brasil.
No que tange às variáveis de controle, as mulheres dedicam, em média, cerca de 20 horas ao trabalho remunerado, com um leve aumento de 1,2% entre 2006 e 2015, passando de 20,5 para 21,7 horas. A variável de proporção das horas de trabalho remunerado das mulheres (em relação ao casal) também apresenta um ligeiro crescimento, saindo de uma média de 27,2% em 2006 para 30,7% em 2015. Os resultados acerca da divisão dos trabalhos remunerado e não remunerado confirmam o padrão descrito na literatura: as mulheres dedicam mais tempo ao trabalho doméstico, enquanto os homens dominam o tempo dedicado ao trabalho remunerado (Barbosa, 2018; Sullivan; Gershuny; Robinson, 2018). Além disso, em 2006, cerca de 54% da amostra era composta por mulheres ocupadas, em comparação com 46% de não ocupadas. Esse percentual de mulheres ocupadas diminui ao longo do período, sendo de apenas 42,5% em 2015 (em oposição aos 57,5% de não ocupadas).
Concluindo a descrição das amostras segundo as variáveis de controle, observa-se que a maioria das mulheres reside em áreas urbanas, com pouca variação entre os anos analisados. Além disso, as regiões Sudeste e Nordeste concentram a maior parte da amostra, seguidas pelo Sul, enquanto as regiões Norte e Centro-Oeste apresentam os menores percentuais. Essas proporções mantêm-se próximas em 2006 e 2015. Quanto à variável raça/cor, as mulheres brancas são as mais frequentes, seguidas pelas pardas e pretas, em ambos os períodos. Nota-se, contudo, uma redução de quase 7% no percentual de brancas, com um aumento correspondente nas categorias de pardas e pretas. No que diz respeito à idade média, as mulheres com apenas um filho (que compõem estas amostras finais) têm, respectivamente, 30,1 e 32,5 anos em 2006 e 2015. Por fim, a divisão das amostras conforme o nível de escolaridade mostra que a categoria mais frequente é aquela com 11 a 14 anos de estudos e a menos frequente é aquela sem instrução. Observa-se ainda um aumento no percentual de mulheres nas duas categorias de escolaridade mais alta (11 a 14 anos e 15 anos ou mais).
Resultados dos modelos
Antes de apresentar os resultados dos modelos, é importante destacar alguns detalhes sobre os ajustes realizados. Embora o R² obtido para cada modelo de regressão linear tenha sido elevado (cerca de 0,9), foram identificados indícios de heterocedasticidade e não normalidade dos resíduos (o que era, de certa forma, esperado, dada a distribuição da variável dependente apresentada anteriormente). Os modelos de binomial negativo mostraram boa qualidade de ajuste, conforme análise do desvio dos resíduos. Também foram realizados testes qui-quadrado com base no -2Log Likelihood, os quais indicaram que os modelos completos (com a variável explicativa e todos os controles) ajustam-se melhor do que os modelos reduzidos testados. Além disso, foi testada a multicolinearidade (VIF) entre as variáveis, e nenhum viés foi identificado.
As Tabelas 2 e 3, referentes a 2006 e 2015, respectivamente, apresentam os coeficientes (β) e p-valores dos modelos. Independentemente do método de regressão ou da variável de controle utilizada para o trabalho remunerado, observa-se que uma maior equidade na divisão do trabalho doméstico reduz a probabilidade de a mulher ter a intenção de ter o segundo filho. Esse padrão de resultados é consistente para ambos os anos analisados. Em 2006, os resultados foram significativos a um nível de 0,01 nos modelos de binomial negativo, 0,05 nos modelos de regressão linear e 0,1 nos de regressão linear com a variável logaritmizada. Em 2015, encontrou-se significância estatística no modelo 1 de binomial negativo (a 0,1), nos três modelos de regressão linear (a 0,05) e também nos três modelos de regressão linear com a variável logaritmizada (a 0,05 nos modelos 7 e 9 e a 0,1 no modelo 8). Portanto, de forma geral, tanto no ano de realização da PNDS (2006), base utilizada para a geração da variável dependente predita, quanto em um período mais recente (2015), os resultados para o Brasil sugerem uma associação negativa entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade.
Esse achado confirma as análises descritivas na seção anterior, que mostram uma probabilidade média menor de intenção de ter o segundo filho entre mulheres com maior equidade em comparação às de menor equidade, embora a diferença entre os grupos seja pequena. Esse padrão é consistente com os baixos coeficientes observados nos modelos. O maior efeito identificado foi -0,013 para o modelo 1 (binomial negativo), que utilizou as horas de trabalho remunerado como controle em 2006; para 2015, o maior efeito foi também encontrado no mesmo modelo 1, com um coeficiente de -0,010. Portanto, além de indicar uma associação negativa, os resultados também apresentam coeficientes de pequena magnitude (razões possíveis para esses pequenos coeficientes são discutidas na seção final deste trabalho).
Em relação às variáveis de controle associadas ao trabalho remunerado, observa-se um efeito positivo na probabilidade de intenção de ter o segundo filho em ambos os períodos analisados. Quanto maior o número de horas de trabalho remunerado ou a proporção de horas trabalhadas pela mulher (em relação ao total do casal), maior é a probabilidade de manifestar a intenção de ter o segundo filho. Além disso, estar ocupada (versus não estar ocupada) também aumenta essa probabilidade. Dentre as três variáveis de controle relacionadas ao trabalho remunerado, a proporção de horas trabalhadas pela mulher apresenta os coeficientes mais elevados nos dois anos analisados.
Quanto às demais variáveis de controle, morar em uma área rural aumenta a probabilidade de intenção de ter o segundo filho em comparação com as áreas urbanas. Em relação à variável de região, todas as categorias apresentaram um efeito negativo em relação ao Centro-Oeste (referência). Esses resultados são consistentes para os nove modelos e para ambos os períodos de 2006 e 2015. No que se refere à raça/cor, ser preta ou parda reduz a probabilidade de intenção de ter o segundo filho em comparação com a raça branca, em ambos os anos analisados. Além disso, o aumento da idade está associado a um efeito negativo sobre a variável resposta. Por fim, no que tange à escolaridade, observa-se que, nos modelos de binomial negativo, em comparação ao grupo sem instrução (referência), ter de 1 a 7 ou de 8 a 10 anos de estudo reduz as intenções de fecundidade em ambos os períodos analisados. Por outro lado, possuir entre 11 e 14 anos de estudo ou 15 anos ou mais aumenta a probabilidade de intenção de ter o segundo filho.
Discussão
O arcabouço teórico deste trabalho discute que, em contextos de fecundidade baixa e maior nível de renda, há uma associação positiva entre equidade de gênero na família e fecundidade (Mcdonald, 2000a, 2000b; Goldscheider; Bernhardt; Lappegård, 2015; Esping-Andersen; Billari, 2015; Raybould; Sear, 2021). Com base nessa literatura e nos resultados heterogêneos de estudos empíricos (principalmente em nível micro) que investigam essa associação em países de alta renda (Raybould; Sear, 2021; Leocádio; Verona; Wajnman, 2025), este estudo buscou oferecer uma perspectiva alternativa sobre a associação entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade em um contexto de baixa fecundidade e renda média, como o Brasil (Torr; Short, 2004). Com exceção de um estudo na Colômbia, que encontrou associação positiva para cuidados com filhos, mas não afazeres domésticos (Portaccio, 2019), este é o primeiro estudo a aplicar essa análise em um contexto de baixa fecundidade e renda média, e o primeiro voltado ao contexto brasileiro.
Dada a ausência de uma fonte de dados única que reúna variáveis sobre fecundidade ou intenções de fecundidade e equidade de gênero na família, adotou-se uma estratégia em duas etapas. Considerando mulheres unidas, entre 15 e 49 anos, e com um filho, primeiro foi calculada a probabilidade predita de intenção de ter o segundo filho utilizando dados da PNDS de 2006, por meio de um algoritmo de machine learning (ML). Após verificar a acurácia preditiva do modelo de ML, essa função de probabilidades foi imputada nas PNADs de 2006 e 2015, que já continham a variável de equidade de gênero na família, categorizada em “maior equidade” e “menor equidade”, com base na distribuição quartílica do percentual de horas que a mulher dedica ao trabalho doméstico não remunerado em relação ao total de horas do casal.
De maneira geral, os resultados indicaram que maior equidade de gênero na família reduz a probabilidade de intenção de ter o segundo filho, apontando para uma associação negativa e contrária às principais teorias sobre o tema. Diferentemente do estudo sobre a Colômbia (Portaccio, 2019), e considerando a formulação da pergunta na PNAD, a variável de equidade de gênero na família nesta análise sobre o Brasil abrange as horas dedicadas tanto a afazeres domésticos quanto aos cuidados com filhos. Embora as diferentes formas de mensuração de equidade de gênero na família dificultem a comparação direta dos resultados, cabe ressaltar que o padrão encontrado para o Brasil difere daquele da Colômbia, onde foi observada uma associação positiva para cuidados com filhos e ausência de associação para afazeres domésticos. A impossibilidade de separar essas duas dimensões (cuidados com filhos e afazeres domésticos) representa uma limitação dos dados e, por consequência, deste trabalho. Estudos futuros que possam realizar essa distinção devem ser uma prioridade na agenda de pesquisa sobre o caso brasileiro, assim que os dados necessários estiverem disponíveis.
Conforme discutido na segunda seção deste estudo, em que pese a observância de explicações alternativas pontuais, as diferentes formas de mensurar as variáveis em análise, especialmente a equidade de gênero na família, são apontadas como a principal explicação para a heterogeneidade de resultados encontrados em estudos de nível micro sobre a relação entre equidade de gênero na família e fecundidade ou intenções de fecundidade (Westoff; Higgins, 2009; Miettinen; Basten; Rotkirch, 2011; Raybould; Sear, 2021). É possível que, ao operacionalizar a equidade de gênero na família de maneira distinta, surgisse uma associação diferente para o caso brasileiro. Contudo, para transcender uma análise limitada à forma de mensuração das variáveis, e considerando que cada contexto possui uma gama particular e limitada de fontes de dados, propõe-se uma explicação alternativa baseada nas premissas teóricas apresentadas também na segunda seção (Mcdonald, 2000a, 2000b; Goldscheider; Bernhardt; Lappegård, 2015; Esping-Andersen; Billari, 2015; Raybould; Sear, 2021).
Essa explicação alternativa, contextualizada para o Brasil, sugere que o país ainda não atingiu o mesmo estágio da curva em formato de U que descreve, segundo o arcabouço teórico, a relação entre equidade de gênero (nas esferas pública e privada) e fecundidade. Embora o Brasil apresente níveis de fecundidade próximos aos de países de alta renda, estes últimos ainda se destacam significativamente em indicadores gerais de equidade de gênero na esfera pública (como o já citado Gender Inequality Index - GII). Em outras palavras, o Brasil ainda se encontra atrasado na primeira fase da revolução de gênero, ou seja, na promoção da equidade na esfera pública, que é uma condição necessária para o avanço à segunda fase, focada na esfera privada. Dessa forma, segundo essa explicação aqui proposta, o Brasil não apresenta condições suficientes para observar uma associação positiva típica de estágios mais avançados da revolução de gênero, nos quais o foco está na esfera privada. Assim, em que pese o fato de outros trabalhos proporem que os contextos que conjugam baixa fecundidade e menor renda também devam ser analisados (Torr; Short, 2004; Raybould; Sear, 2021), é plausível argumentar que o arcabouço teórico desenvolvido para países de alta renda talvez não explique a associação em países de menor renda, ainda em fases anteriores dessa curva, como o Brasil. Quando o Brasil alcançar estágios mais avançados e estiver mais próximo das condições dos países para os quais o arcabouço teórico foi originalmente desenvolvido, novas análises, com dados potencialmente provenientes de uma fonte única, poderão avançar o debate neste e em outros contextos semelhantes.
No que se refere à já discutida limitação de fonte de dados para essa análise no Brasil, vale ressaltar novamente que a variável resposta neste estudo não é uma medida direta de intenções de fecundidade, mas uma proxy. Nesse sentido, é possível que os baixos efeitos encontrados sejam decorrentes do fato de a variável tratar de uma probabilidade predita imputada. Alternativamente, esses pequenos efeitos também podem indicar uma falta de associação entre equidade de gênero na família e intenções de fecundidade no contexto brasileiro, o que reforçaria o argumento de que o arcabouço teórico sobre o tema não se aplica a países de menor renda, ainda que apresentem níveis de fecundidade semelhantes. Apesar desses pequenos efeitos e das limitações apresentadas, até o momento não havia sido realizada qualquer investigação sobre o tema no Brasil, sendo este estudo uma primeira tentativa, teórica e metodologicamente fundamentada, de explorar essa relação no contexto brasileiro.
Os resultados referentes às variáveis de controle indicam uma relação positiva entre o número de horas remuneradas trabalhadas e a probabilidade de intenção de ter o segundo filho. Este achado contraria a hipótese de que mais tempo dedicado pelas mulheres ao mercado de trabalho e maior renda elevam os custos de oportunidade da maternidade, reduzindo as intenções reprodutivas (Becker, 1981; Lee, 2015). De forma relacionada, também se observou que quanto maior a proporção de horas trabalhadas pelas mulheres em relação ao casal, maior é a probabilidade de intenção de ter o segundo filho.
Em relação ao local de residência, mulheres que moram em áreas rurais apresentam maior probabilidade de intenção de ter o segundo filho do que aquelas em áreas urbanas. Tal resultado pode dever-se ao fato de que, no contexto brasileiro, regiões rurais tendem a apresentar um menor custo de vida e menores barreiras à fecundidade do que os centros urbanos e as grandes cidades, o que pode contribuir para a elevação das preferências reprodutivas (Coutinho; Golgher, 2018). Além disso, residir na região Centro-Oeste está positivamente associado à probabilidade de intenção de ter o segundo filho em comparação a residir em outras regiões brasileiras.
A menor probabilidade de intenção de ter o segundo filho entre mulheres pretas e pardas, em relação às brancas, poderia estar associada a dinâmicas do mercado de casamento. A literatura aponta que mulheres pretas e pardas enfrentam maiores dificuldades para encontrar um parceiro (Longo, 2011), o que impacta diretamente suas trajetórias reprodutivas. No entanto, este trabalho utiliza informações de mulheres unidas no momento da pesquisa. É fundamental que pesquisas futuras avancem na explicação dos diferenciais de intenções reprodutivas segundo a raça/cor da mulher.
O aumento da idade reduz a probabilidade de intenção de ter o segundo filho, em consonância com estudos prévios (Leocádio; Verona; Wajnman, 2023). Esse padrão se deve, entre outros fatores, à revisão das preferências reprodutivas ao longo da vida e à relação negativa entre idade e fertilidade, o que também impacta o cálculo das mulheres acerca da fecundidade futura (Régnier-Loilier, 2006; Liefbroer, 2009). E, no que tange à escolaridade, mulheres com 1 a 10 anos de estudo apresentam menor probabilidade de intenção de ter o segundo filho em comparação às sem instrução. Por outro lado, aquelas com 11 anos ou mais possuem maior probabilidade, um achado semelhante ao de Coutinho e Golgher (2018) para o contexto brasileiro, o qual sugere que mulheres com maior renda e escolaridade podem desejar mais filhos por se sentirem financeiramente aptas a arcar com os custos da maternidade.
Por fim, vale ressaltar novamente que, além de constituir uma tentativa inédita de analisar a associação entre equidade de gênero na família e fecundidade no Brasil, este estudo também contribui para a literatura ao propor uma abordagem metodológica inovadora, baseada na estimação de modelos de machine learning para análises demográficas, um tema ainda pouco explorado em pesquisas da área.
Reconhecimentos:
Não aplicável.
Agradecimento
Os autores agradecem ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) pelo suporte ao longo do desenvolvimento deste trabalho.
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*
Este trabalho compreende a versão revisada e ampliada do estudo preliminar “Associação entre intenções de fecundidade e equidade de gênero na família em países desenvolvidos e no Brasil”, disponível em: http://hdl.handle.net/1843/54658.
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Financiamento:
Não aplicável.
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Aprovação ética:
Os autores certificam que o trabalho não inclui seres humanos ou animais.
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1
Para uma revisão detalhada dos estudos empíricos que investigam essa associação em países de alta renda, ver Raybould e Sear (2021) e Leocádio, Verona e Wajnman (2025).
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2
Até a produção deste estudo, os microdados da quarta edição da PNDS de 2023 ainda não se encontravam disponíveis.
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3
Essa divisão foi feita por meio de um método de amostragem estratificada, a partir da variável dependente de intenções de fecundidade como estrato, utilizando a função createDataPartition do R (linguagem de programação e software estatístico usado em todas as análises de dados deste trabalho). Foram definidos 80% da amostra como dados de treino e 20% como dados de teste, conforme preconizado pela literatura (James et al., 2014; Bruce; Andrew, 2017; Escovedo; Koshiyama, 2020).
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4
Foram também ajustados modelos mais simples, isto é, com menos regressores, mas eles apresentaram pior acurácia de previsão. O ajuste que apresentou maior acurácia foi aquele que utilizou o conjunto completo de variáveis de controle.
Anexo
Distribuição da probabilidade predita de ter a intenção de ter o segundo filho na PNAD de 2006 (frequência relativa / densidade vs. distribuição normal)
Distribuição da probabilidade predita de ter a intenção de ter o segundo filho na PNAD de 2015 (frequência relativa / densidade vs. distribuição normal)
O lado esquerdo de cada painel exibe a frequência relativa, onde se observa que os picos mais altos estão em torno de 5%, 40%, 50% e 60% de probabilidade. Já o lado direito apresenta essa mesma distribuição em formato de densidade, com uma curva de distribuição normal sobreposta (linha pontilhada em vermelho). As distribuições para ambos os anos são semelhantes, com a principal diferença sendo um pico em 5% um pouco mais alto em 2015 do que em 2006.
Disponibilidade de dados
os dados estão disponíveis sob demanda dos pareceristas.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
05 Nov 2024 -
Aceito
03 Abr 2025





Fonte: Ministério da Saúde. PNDS 2006. Elaboração dos autores.
Fonte: IBGE. PNAD 2006 e 2015. Elaboração dos autores.
Fonte: Elaboração dos autores com base nas probabilidades preditas calculadas via algoritmo de ML e dados da PNDS 2006.
Fonte: Elaboração dos autores com base nas probabilidades preditas calculadas via algoritmo de ML e dados da PNDS (2015).