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Prólogo ao dossiê "Demografia dos povos indígenas no Brasil: abordagens socioantropológicas"

No início de novembro de 2016, na mesma semana quando recebi a mensagem da editoria da Rebep solicitando a redação desse prólogo, participava de um congresso internacional sobre saúde de populações indígenas em Melbourne, na Austrália. Acostumado a participar de eventos no Brasil sobre o tema, que em geral reúnem pequenos grupos, não foi sem surpresa que me vi em um congresso, denominado "The Lowitja Institute International Indigenous Health and Wellbeing Conference 2016" (Conferência Internacional do Instituto Lowitja sobre Saúde e Bem-Estar dos Povos Indígenas), com aproximadamente 500 pesquisadores, ativistas e profissionais de saúde de diversas partes do mundo. Parcela expressiva dos trabalhos abordava investigações e relatos de experiências na Oceania (em particular na Austrália e Nova Zelândia). Refletindo a proposta temática do evento ("Identity, knowledge and strength", ou "Identidade, conhecimento e força"), uma questão recorrente nas sessões era a produção de dados demográficos e epidemiológicos com vistas a evidenciar e buscar reduzir, por meio de políticas públicas, iniquidades existentes entre indígenas (ou aborígenes, termo utilizado na Austrália) e não indígenas ("the gap", ou brecha, fresta, como frequentemente referido pelos acadêmicos australianos). Inclusive, uma das apresentações teve o significativo título "The right to be counted: statistics on indigenous peoples" ("O direito de ser contado: estatísticas sobre os povos indígenas"), realizada por Kalinda Griffiths, uma aborígene especialista em demografia e epidemiologia de populações indígenas da Austrália.

Curiosa e coincidentemente, essa minha imersão nos debates sobre demografia indígena na Austrália aconteceu duas semanas depois de eu ter participado do XX Encontro Nacional de Estudos Populacionais e do VII Congresso da Associação Latino-Americana de População, ocorridos em meados de outubro em Foz do Iguaçu, Brasil. Nesses eventos, tal como na Austrália, houve intensa agenda de discussão acerca da temática dos indígenas. Em Foz, o eixo geral do congresso ("Unidade e diversidade dos processos demográficos: desafios políticos para a América Latina e o Caribe em perspectiva internacional comparada") se refletiu intensamente nas sessões sobre demografia indígena, incluindo ênfase nos debates sobre análises e interpretações de dados censitários e de outras fontes gerados nas últimas décadas, assim como reiteradas manifestações acerca da centralidade de se discutirem as perspectivas sobre a coleta de dados referentes a indígenas no Censo de 2020. Um aspecto que não poderia deixar de mencionar é que em Foz, localizada na tríplice fronteira Argentina-Paraguai-Brasil, onde a presença (assim como a marginalização) dos povos indígenas é tão evidente, os eventos da Abep e Alap contaram com diversas apresentações de estudantes e pesquisadores indígenas.

Ao me referir a esses eventos na Austrália e no Brasil, não o faço para tão somente enfatizar que ocorreram quase simultaneamente, mas, sobretudo, para sinalizar como, em dois extremos do globo, com um oceano (Pacífico) no meio e 12 horas de diferença de fuso horário, conjuntos muito similares de questões foram abordados. Para minorias étnico-raciais indígenas, marcadamente marginalizadas nos mais variados contextos nacionais, é visível a existência de uma tendência em escala internacional no sentido de lhes dar maior visibilidade por meio da produção de estatísticas. Como enfatizado por Anderson et al. (2016)ANDERSON, I. et al. Indigenous and tribal peoples' health (The Lancet-Lowitja Institute Global Collaboration): a population study. Lancet, v. 388, n. 10040, p. 131-157, 2016., em recente estudo publicado na influente revista Lancet, no que é possivelmente a mais ampla investigação comparativa já realizada sobre saúde de povos indígenas em escala internacional, inclusive incluindo um componente sobre o Brasil, estima-se que a população indígena no mundo seja próxima de 300 milhões de pessoas. Em escala local/regional, os indígenas podem apresentar volumes e proporções reduzidos, mas globalmente constituem um conjunto populacional expressivo.

Muitos são os fatores e contextos sociopolíticos que têm estimulado os debates sobre a produção de dados demográficos acerca dos povos indígenas, seja no Brasil, na América do Sul ou no plano global. No caso de agências multilaterais, como a Organização das Nações Unidas, há o "Fórum Permanente para as Populações Indígenas", que aproximadamente uma década atrás, em 2007, divulgou a Declaração sobre os direitos dos povos indígenas (UN, 2008UN - United Nations. United Nations Declaration of the Rights of Indigenous Peoples. New York: UN, 2008.). Nesse documento, a produção de dados demográficos e em saúde voltados para concepção, implementação e monitoramento de políticas públicas é também indicada como de central importância. No mais recente State of the world's indigenous peoples (Situação dos povos indígenas no mundo), a relevância da temática é colocada de forma explícita: "because indigenous peoples are essentially invisible in the data collection of many international agencies and in most national censuses, the disparities in their health situation as compared to other groups continue to be obscured. The lack of data means ongoing shortcomings in plans, programmes and policies that seek to improve global health" (UN, 2009_________. State of the World's Indigenous Peoples. New York: UN, 2009., p. 165-166). Desse modo, esforços no sentido de reverter a "preocupante invisibilidade demográfica e epidemiológica" (COIMBRA; SANTOS, 2000COIMBRA JR., C. E. A.; SANTOS, R. V. Saúde, minorias e desigualdade: algumas teias de inter-relações, com ênfase nos povos indígenas no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 5, n. 1, p. 125-132, 2000., p. 125) dos povos indígenas fazem parte dos debates no plano de agendas internacionais voltadas para a redução das iniquidades de recorte étnico-racial.

Nesse cenário, o que temos experimentado no Brasil e na América Latina em décadas recentes, no tocante à produção de informações demográficas sobre os povos indígenas, em larga medida reflete cenários sociopolíticos em operação em escala global. Claro, no âmbito local/regional, as dinâmicas adquirem tonalidades próprias, como é o caso das categorias implementadas nos censos nacionais e em outras fontes de informação sobre os povos indígenas. De uma maneira ou de outra, felizmente, a preocupação com a temática indígena vem experimentando marcante expansão nas rodadas recentes dos censos demográficos realizados na América Latina (CELADE, 2014CELADE - Centro Latinoamericano y Caribeño de Demografía. Los pueblos indígenas en América Latina: avances en el último decenio y retos pendientes para la garantía de sus derechos. Santiago: Celade, 2014.; LOVEMAN, 2014LOVEMAN, M. National colors: racial classification and the State in Latin America. New York: Oxford University Press, 2014.).

É com tal pano de fundo que devem ser lidos os trabalhos desse dossiê. Em sua maioria, as contribuições derivam de reflexões produzidas nos últimos anos por participantes do Grupo de Trabalho (GT) de Demografia dos Povos Indígenas, da Abep. Ao longo de sua trajetória, esse GT, que foi criado em 2002, tem sido uma importante instância catalizadora de discussões sobre os mais diversos aspectos relacionados à demografia indígena no Brasil. Além de uma ativa agenda de eventos, incluindo mesas e sessões nos encontros nacionais da Abep realizados a cada dois anos, assim como envolvimento em discussões promovidas pelo IBGE a respeito da captação de dados sobre "indígenas" nos censos demográficos, os participantes do GT têm ativamente produzido e participado de publicações as mais diversas (ANDERSON et al., 2016ANDERSON, I. et al. Indigenous and tribal peoples' health (The Lancet-Lowitja Institute Global Collaboration): a population study. Lancet, v. 388, n. 10040, p. 131-157, 2016.; CARDOSO et al., 2012CARDOSO, A. M.; SANTOS, R. V.; COIMBRA JR., C. E. A.; GARNELO, L.; CHAVES, M. B. G. Políticas públicas de saúde para os povos indígenas. In: GIOVANELLA, L.; ESCOREL, S.; LOBATO, L. V. C.; NORONHA, J. C.; CARVALHO, A. I. (Org.). Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. p. 911-932.; DEL POPOLO et al., 2011DEL POPOLO, F.; CUNHA, E. M. G. P.; RIBOTTA, B.; AZEVEDO, M. (Coord.). Pueblos indígenas y afrodescendientes en América Latina: dinámicas poblacionales diversas y desafios comunes. Rio de Janeiro: Alap, 2011 (Serie Investigaciones, n. 12).; IBGE, 2005IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2005.; PAGLIARO et al., 2005PAGLIARO, H.; AZEVEDO, M.; SANTOS, R. V. (Org.). Demografia dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz e Abep, 2005.; WONG; SÁNCHES, 2014WONG, L. L. R.; SÁNCHEZ, J.A. (Org.). La población afro descendiente y indígena en América Latina: puntos de reflexión para el debate sobre Cairo+20. Belo Horizonte: Alap, 2014 (Serie e-Investigaciones, n. 4)., entre outras). Na própria Rebep, em 2009, foi publicado um significativo conjunto de trabalhos sobre a temática indígena (volume 26, número 1).

Dentre os eventos mais recentes capitaneados pelo GT de Demografia dos Povos Indígenas, podem ser mencionados: o seminário "Os Indígenas no Censo Demográfico de 2010", realizado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em 2013; o "VIII Seminário de Demografia dos Povos Indígenas: Saúde, Território e Ambiente", que ocorreu no Centro de Inteligência Corporativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Rio de Janeiro, em 2015; e a "Oficina de Análise e Redação de Artigos sobre o Tema da Demografia Indígena", que aconteceu em Cuiabá, em novembro de 2015. Foram nesses vários eventos, apoiados por financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) para o projeto "Demografia Antropológica e Saúde de Indígenas a partir do Censo Demográfico de 2010" (projeto n. E-26/102.352/2013), que diversos trabalhos aqui publicados foram inicialmente apresentados e debatidos.

Os artigos, notas de pesquisa, pontos de vistas e resenhas veiculados nesse dossiê atestam a vitalidade do campo de estudos sobre demografia dos povos indígenas no Brasil. Incluindo desde análises demográficas alimentadas por informações derivadas de contextos etnográficos específicos até investigações baseadas em dados produzidos pelos censos nacionais, as reflexões contribuem no sentido de expandir e aprimorar nosso entendimento sobre as complexas interfaces históricas e sociopolíticas presentes no campo da demografia dos povos indígenas. Nesse amplo espectro, vale chamar atenção para duas dimensões que, de forma particularmente proeminente, emergem em diversas contribuições, ao mesmo tempo quando questões demográficas mais "clássicas" se fazem presentes. A primeira delas é a ênfase em estabelecer interfaces entre análises que interliguem conhecimentos locais/regionais sobre dinâmicas populacionais com aquelas evidenciadas pelos dados censitários. A segunda vincula-se às reflexões sobre categorias como línguas indígenas e pertencimento a etnias específicas, temas introduzidos no Censo de 2010.

Como membro do corpo editorial da Rebep envolvido na organização desse dossiê, manifesto meus agradecimentos aos colegas que submeteram trabalhos, assim como a atenção dispensada pela editoria da revista. Mais que tudo, espero que as reflexões aqui sistematizadas contribuam para ampliar a visibilidade dos povos indígenas nas estatísticas oficiais, potencialmente informando políticas públicas socioculturalmente mais sensíveis, ao mesmo tempo quando acopladas a um reconhecimento da centralidade da diversidade sociodemográfica indígena no Brasil.

Referências

  • ANDERSON, I. et al. Indigenous and tribal peoples' health (The Lancet-Lowitja Institute Global Collaboration): a population study. Lancet, v. 388, n. 10040, p. 131-157, 2016.
  • CARDOSO, A. M.; SANTOS, R. V.; COIMBRA JR., C. E. A.; GARNELO, L.; CHAVES, M. B. G. Políticas públicas de saúde para os povos indígenas. In: GIOVANELLA, L.; ESCOREL, S.; LOBATO, L. V. C.; NORONHA, J. C.; CARVALHO, A. I. (Org.). Políticas e sistemas de saúde no Brasil 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. p. 911-932.
  • CELADE - Centro Latinoamericano y Caribeño de Demografía. Los pueblos indígenas en América Latina: avances en el último decenio y retos pendientes para la garantía de sus derechos. Santiago: Celade, 2014.
  • COIMBRA JR., C. E. A.; SANTOS, R. V. Saúde, minorias e desigualdade: algumas teias de inter-relações, com ênfase nos povos indígenas no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 5, n. 1, p. 125-132, 2000.
  • DEL POPOLO, F.; CUNHA, E. M. G. P.; RIBOTTA, B.; AZEVEDO, M. (Coord.). Pueblos indígenas y afrodescendientes en América Latina: dinámicas poblacionales diversas y desafios comunes. Rio de Janeiro: Alap, 2011 (Serie Investigaciones, n. 12).
  • IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2005.
  • LOVEMAN, M. National colors: racial classification and the State in Latin America. New York: Oxford University Press, 2014.
  • PAGLIARO, H.; AZEVEDO, M.; SANTOS, R. V. (Org.). Demografia dos povos indígenas no Brasil Rio de Janeiro: Editora Fiocruz e Abep, 2005.
  • UN - United Nations. United Nations Declaration of the Rights of Indigenous Peoples New York: UN, 2008.
  • _________. State of the World's Indigenous Peoples New York: UN, 2009.
  • WONG, L. L. R.; SÁNCHEZ, J.A. (Org.). La población afro descendiente y indígena en América Latina: puntos de reflexión para el debate sobre Cairo+20. Belo Horizonte: Alap, 2014 (Serie e-Investigaciones, n. 4).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
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