Resumo
O objetivo do presente estudo é desenvolver um indicador sintético de acesso aos serviços de saúde em duas dimensões: de oferta dos serviços e de acessibilidade geográfica aos estabelecimentos de saúde. Para isso, foi utilizado um estudo ecológico com uso de indicadores sociodemográficos por região administrativa do Distrito Federal e com dados sobre os recursos dos estabelecimentos de saúde para atendimento à Covid-19. A construção de um indicador sintético, denominado Índice de Acesso aos Serviços de Saúde (Iass), compôs a soma das métricas entre a quantidade da oferta dos serviços de atenção especializada dos estabelecimentos de saúde, vinculados ao Sistema Único de Saúde, e a distância e o tempo da população em acessar geograficamente esses estabelecimentos. Os resultados demonstraram grandes diferenciais entre os equipamentos de saúde e as dificuldades em acessá-los, principalmente para os residentes em 59% das regiões administrativas, que concentram população negra, com renda precária e baixa escolaridade. Os gargalos levantados apresentam a necessidade de novos desenhos das políticas públicas locais.
Palavras-chave:
Acesso aos serviços de saúde; Sistema Único de Saúde; Covid-19; Iniquidades em saúde
Abstract
The goal of this study is to develop a synthetic indicator of access to health services in two dimensions: service supply and geographical accessibility to health facilities. To that end, we conducted an ecological study using sociodemographic indicators by Administrative Region of the Federal District, along with data on the resources of Health Facilities for COVID-19 care. The construction of a synthetic indicator, called the Health Services Access Index (IASS), was based on the sum of metrics between the number of specialized care services offered by health facilities linked to the Unified Health System (SUS) and the population’s geographical distance and travel time to access these facilities. The results showed significant disparities between health facilities and the difficulties in accessing them, particularly for residents of 59% of the Administrative Regions, which concentrate Black populations with low income and low education levels. The identified bottlenecks highlight the need for new local public policy design.
Keywords:
Access to health services; Unified Health System; COVID-19; Health inequities
Resumen
El objetivo de este estudio es desarrollar un indicador sintético de acceso a los servicios de salud en dos dimensiones: la oferta de servicios y la accesibilidad geográfica a los establecimientos de salud. Para ello, se hizo un estudio ecológico utilizando indicadores sociodemográficos por Región Administrativa del Distrito Federal, junto con datos sobre los recursos de los establecimientos de salud para la atención de COVID-19. La construcción de un indicador sintético, denominado Índice de Acceso a los Servicios de Salud (IASS), se basó en la suma de métricas entre la cantidad de servicios de atención especializada ofrecidos por los establecimientos de salud vinculados al Sistema Único de Salud (SUS) y la distancia geográfica y el tiempo de viaje de la población para acceder a esos establecimientos. Los resultados demostraron disparidades significativas entre los establecimientos de salud y las dificultades de acceso a ellos, en particular para residentes de 59 % de las regiones administrativas, que concentran población negra con bajos ingresos y bajo nivel de educación. Los cuellos de botella identificados resaltan la necesidad de nuevos diseños de políticas públicas locales.
Palabras clave:
Acceso a servicios de salud; Sistema Único de Salud; COVID-19; Desigualdades en Salud
Introdução
Um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) é a promoção da equidade, que está intimamente ligada às condições de acesso aos serviços de saúde (Matta, 2007). Essas condições dependem significativamente da localização geográfica e da estrutura de oferta dos serviços de saúde disponíveis para a população.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2024), as populações mais marginalizadas encontram inúmeras dificuldades para acessar serviços de saúde e alcançar resultados positivos (Arruda et al., 2018; Hart, 1971), especialmente quando se trata de doenças críticas que requerem atenção especializada (Brasil, 2021).
Essas desigualdades são explicadas pelos determinantes sociais da saúde, que incluem fatores econômicos, sociais, culturais e ambientais que influenciam as condições de saúde das pessoas (Buss; Pellegrini Filho, 2007). No Brasil, a pandemia de Covid-19 revelou e agravou essas desigualdades, aumentando a demanda por serviços de saúde e sobrecarregando o sistema, o que resultou em filas de espera prolongadas e falta de leitos hospitalares para casos graves (Pereira et al., 2020; Tomasiello et al., 2023).
Para melhor compreender as barreiras de acesso à saúde, é fundamental considerar a multidimensionalidade desse conceito (Oliveira et al., 2019; Sanchez; Ciconelli, 2012; Travassos; Martins, 2004), no que se refere a fatores organizacionais e geográficos, além da interação entre os usuários e o sistema de saúde (Penchansky; Thomas, 1981; Sanchez; Ciconelli, 2012).
Para analisar as barreiras de acesso, é preciso mapear quais são os mecanismos de tratamento e quais os serviços de atenção hospitalar disponíveis para combater determinada doença (Oliveira et al., 2019). Durante a pandemia, houve colapso no sistema de saúde por não haver preparação adequada para suprir a demanda crescente por tratamento, principalmente os casos de alta complexidade, o que acarretou sobrecarga nos hospitais.
Por isso, o presente estudo utiliza como caso real os dados ecológicos das regiões administrativas do Distrito Federal antes da pandemia, identificando as barreiras enfrentadas pela população na busca por atendimento especializado na pré-pandemia, com o objetivo de avaliar a capacidade de resposta desses serviços de atenção hospitalar à pandemia.
Procura-se destacar situações indicativas do acesso ou deslocamento no território, numa perspectiva que vai além da identificação das barreiras. Para tanto, é construído um indicador sintético, denominado Índice de Acesso aos Serviços de Saúde (Iass), considerando duas dimensões: oferta dos serviços de atenção especializada; e acessibilidade geográfica aos estabelecimentos de saúde vinculados ao SUS.
O Iass é uma ferramenta essencial para compreender as desigualdades no acesso aos serviços de saúde e, consequentemente, para o desenvolvimento de políticas públicas mais direcionadas e eficazes na redução de gargalos em áreas de ineficiência, podendo, assim, reorganizar e melhorar a atenção especializada de saúde para diminuição da mortalidade.
Métodos
Desenho do estudo
Estudo ecológico analítico para construção de um indicador sintético, utilizando indicadores sociodemográficos das unidades de análise, representadas por 32 RAs do DF e 13 estabelecimentos de saúde com atenção especializada vinculados ao SUS.
Fonte de dados e variáveis em estudo
Foram utilizados indicadores que avaliaram a situação do DF imediatamente antes da pandemia:
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indicadores sociodemográficos das RAs do DF, divulgados pela Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios 2018 - PDAD (IPEDF, 2019);
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registros do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde - CNES (Brasil, 2020), ativos em dezembro de 2019, para mapear a oferta dos serviços dos hospitais do DF, filtrando apenas os estabelecimentos com potencial capacidade para atender pacientes graves de Covid-19, definidos pela disponibilidade de leitos de UTI tipo II;
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variáveis de acessibilidade geográfica extraídas a partir da API de Matriz de Distância do Google, empregando o pacote Gmapsdistance (versão 4.0.4) do software R, com medições efetuadas em 15 de novembro de 2023, das 18h05 às 18h10, horário de Brasília (GMT-3).
Cálculo do indicador sintético
O Iass foi caracterizado em duas dimensões, a partir de um conjunto de variáveis:
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oferta: leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) tipo II, equipamentos para manutenção da vida e profissionais da saúde - médicos e enfermeiros (Penchansky; Thomas, 1981);
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acessibilidade geográfica: distância de carro e transporte público (em metros) e tempo de deslocamento de carro e transporte público (em segundos) (Neutens, 2015).
Como estudo de caso, analisaram-se estabelecimentos de saúde no Distrito Federal, selecionados conforme os critérios previamente descritos, utilizando a janela temporal de dezembro de 2019, período anterior à identificação dos primeiros casos de Covid-19 na região.
As localizações geográficas das sedes das 32 RAs do DF serviram como pontos de origem. Identificaram-se 13 estabelecimentos de saúde como pontos de destino que cumpriram os critérios de seleção previamente estabelecidos.
Cada unidade geográfica l tem duas matrizes: A, contendo as variáveis da dimensão de oferta; e B, contendo as variáveis da dimensão de acessibilidade geográfica. As fórmulas a seguir são aplicadas a essas matrizes.
Para alinhar as variáveis, valores maiores em distâncias e tempos (matriz B) são convertidos para representar menor desempenho.
A próxima etapa envolve transformar as escalas de variáveis das duas dimensões em uma única escala, usando decis.
Considere X j = {x 1 , x 2 ,..., x n } o vetor de dados que representa as observações da variável j. Inicialmente, ordena-se X j em ordem crescente e calculam-se os decis D 0 , D 2 ,..., D 10 , onde D 0 é o valor mínimo e D 10 é o valor máximo em X j .
Com base nestes decis, definem-se 10 intervalos I K para k = 1, 2,..., 10. Cada intervalo é dado por I K = (D K-1 , D K ), indicando que ele começa imediatamente após D K-1 (excluindo D K-1 ) e se estende até D K , incluindo este valor. O primeiro intervalo, I 1 , é uma exceção, incluindo ambos os seus limites I 1 = [D 0 , D 1 ].
Para cada observação x i em X j , atribui-se uma pontuação N (x i ), variando de 1 a 10, com base no intervalo ao qual ela pertence:
Quando os decis têm valores repetidos, a nota para observações nesses intervalos é a média das posições possíveis, calculada como:
Onde m e n são as posições iniciais e finais dos intervalos duplicados (inclusive) que x i poderia ocupar.
Assim, aplica-se a fórmula (2) ou a (3) às matrizes A e B para cada unidade geográfica l, obtendo-se as matrizes de pontuações A’ e B’.
Após a avaliação, as pontuações de oferta e acessibilidade são somadas, formando uma matriz coluna que consolida esses componentes.
Para a acessibilidade geográfica, aplica-se o fator de ponderação λ, indicando percentual de domicílios que possuem carro na unidade l.
O índice para cada unidade observada l é calculado multiplicando os componentes.
Por último, padronizam-se as pontuações IASS l .
A aplicação do método é exemplificada utilizando a RA de Águas Claras como ponto de origem para acessar os 13 estabelecimentos selecionados. Na Figura 1, os dados originais de oferta são classificados por decil através da fórmula (2) ou (3), transformando, por exemplo, um valor de 411 em 9. Após isso, a fórmula (4) é aplicada, resultando na matriz A * de oferta, igual para todas as 32 RAs.
A Figura 2 mostra os procedimentos para a matriz B de acessibilidade geográfica, cobrindo 416 trajetos entre 32 regiões administrativas e 13 estabelecimentos de saúde. Inicialmente, ajusta-se a matriz de acessibilidade (fórmula 1) e classifica-se por decil (fórmula 2 ou 3). As pontuações são, então, consolidadas em matrizes coluna (fórmulas 4 e 5), aplicando-se o fator de ponderação λ (fórmula 6). Finalmente, as matrizes são combinadas (fórmula 7) e padronizadas (fórmula 8), sendo este método aplicado a todas as regiões.
Procedimentos para atribuição de pontuações às variáveis da dimensão acessibilidade geográfica e cálculo do Iass
Os valores resultantes são padronizados para refletir desvios padrão em relação à média das unidades geográficas: alto (acima de 1 desvio padrão); moderado-alto (0,5 a 0,99); moderado (-0,49 a 0,49); moderado-baixo (-0,5 a -0,99) e baixo (abaixo de -1 desvio padrão).
Vale ressaltar que as unidades geográficas que estão próximas aos limites entre os grupos podem não mostrar grandes diferenças qualitativas, sugerindo que pequenas variações na classificação não implicam necessariamente mudanças significativas no acesso aos serviços de saúde.
A pesquisa foi realizada com dados secundários de domínio público, sendo garantido o anonimato de todos os participantes cujos registros foram analisados, em consonância com as recomendações da Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466, de 12 de dezembro de 2012, dispensando-se a submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
Em 2019, metade das RAs do Distrito Federal estava classificada entre os níveis moderadamente baixo e baixo no Iass, apresentando a nota mediana de apenas -0,14 desvio padrão, com o valor mais baixo sendo registrado em Brazlândia (-1,68) e o mais alto em Sudoeste/Octogonal (1,62). Esse resultado reflete as grandes disparidades geográficas em termos de oferta e acessibilidade geográfica.
Nos componentes de oferta, observa-se uma alta variabilidade tanto em termos de leitos de UTI e equipamentos para manutenção da vida, quanto na quantidade de profissionais de saúde (coeficientes de variação de 0,84, 0,88 e 0,64, respectivamente).
Para os leitos de UTI, o estabelecimento com maior capacidade possui 40 leitos, o que é 13 vezes mais do que aquele com menor capacidade, que tem apenas três leitos. Quanto aos equipamentos para manutenção da vida, a disparidade é ainda mais acentuada: o número máximo observado (1.285 equipamentos) é aproximadamente 160 vezes maior que o mínimo (8), e pelo menos 4 vezes superior ao da metade dos estabelecimentos, que possuem até 310 equipamentos.
Em relação aos profissionais de saúde, a diferença também é grande, com o maior número de ocupações em um estabelecimento (4.146 trabalhadores), cerca de 415 vezes maior que o mínimo (10) e pelo menos 3 vezes maior que a metade dos estabelecimentos, que têm até 1.393 profissionais de saúde.
Em relação à distância percorrida até os estabelecimentos de saúde, existe uma alta variação com ambos os modais, embora haja similaridade na distribuição dessas distâncias. Em média, percorrem-se 26,84 km de carro e 29,68 km de transporte público.
Em contraste, o tempo médio de deslocamento é muito maior para o transporte público (1,34h) em comparação com o carro (0,53h). Representando a mediana de 1,27 hora para o transporte público, ela é quase 3 vezes a mesma medida do deslocamento por carro (0,51h), o que evidencia a disparidade dos tempos de trajeto entre os modos de transporte, apesar de apresentarem distribuições de distâncias similares.
Nota-se que, em 50% das RAs, até 68% da população possui carro no domicílio. Além disso, o Lago Sul, com o maior percentual de posse de carro (96,9%), tem uma proporção quase 3 vezes maior que a do Varjão, que registra o menor percentual, com apenas 38,4%.
Em termos de deslocamento, como mencionado anteriormente, há uma diferença significativa entre os tempos de viagem de carro e de transporte público. Portanto, algumas RAs podem estar geograficamente próximas dos melhores estabelecimentos de saúde, mas o acesso a esses locais é prejudicado pela dependência do transporte público.
O Iass está fortemente associado a diversos indicadores socioeconômicos e demográficos. Observa-se uma alta correlação positiva (0,79) com a renda per capita, sugerindo que maiores rendas estão ligadas a um melhor acesso aos serviços de saúde. Por outro lado, correlações negativas fortes são evidentes com a falta de ensino superior completo (-0,87), a ausência de plano de saúde (-0,89), a predominância de população negra (-0,88) e a não condição de servidor público (-0,79). Menos acentuada, mas ainda substancial, é a correlação negativa com a presença de entulho próximo à residência (-0,83), refletindo como infraestruturas precárias estão associadas a limitações de acesso a serviços de saúde (Figura 3).
Os extremos do Iass, representados pelo mínimo em Brazlândia e pelo máximo em Sudoeste/Octogonal, destacam não apenas a disparidade em termos de acesso aos serviços de saúde, mas também a dinâmica centro-periferia, em termos de uma série de outros fatores socioeconômicos e demográficos que contribuem para a vulnerabilidade da população nessas áreas.
Por outro lado, há casos em que a relação entre o centro e a periferia se mostra contraditória (Neutens, 2015), como na RA do Varjão, que está inserida no espaço geográfico pertencente a uma área central com alta concentração de infraestrutura e recursos de saúde. A região possui um baixo percentual de uso de automóvel, apenas 38,4%, e esse fator impacta diretamente na pontuação do Iass, que foi de -0,96, colocando-a no grupo de baixo acesso.
Correlação de Pearson (ρ) entre o Índice de Acesso aos Serviços de Saúde e indicadores socioeconômicos e demográficos
A seguir, apresentam-se os agrupamentos de acesso, de acordo com a categorização baseada em quintis da distribuição do Iass padronizado.
Grupo 1 - Sudoeste/Octogonal (1,62), Park Way (1,61), Plano Piloto (1,39), Cruzeiro (1,40), Lago Sul (1,26), Guará (1,10), Águas Claras (1,13).
Grupo 2 - Lago Norte (1,08), Vicente Pires (1,00), Núcleo Bandeirante (0,53), Arniqueira (0,51), Candangolândia (0,49), Taguatinga (0,43).
Grupo 3 - Riacho Fundo (0,15), Jardim Botânico (0,09), Riacho Fundo II (-0,05), Recanto das Emas (-0,23), Samambaia (-0,35), Gama (-0,39).
Grupo 4 - Ceilândia (-0,47), Sobradinho (-0,56), Santa Maria (-0,58), Sobradinho II (-0,65), Sol Nascente/Pôr do Sol (-0,82), SCIA/Estrutural (-0,85).
Grupo 5 - Varjão (-0,96), São Sebastião (-1,23), Itapoã (-1,08), Paranoá (-1,15), Fercal (-1,19), Planaltina (-1,57), Brazlândia (-1,68).
Grupos de quintis do Índice de Acesso aos Serviços de Saúde (Iass) Regiões administrativas do Distrito Federal - 2018
A média do grupo 1 está a 2,62 desvios padrão acima do grupo 5. Além disso, todas as RAs nos grupos 3, 4 e 5 estão classificadas entre os níveis moderado, moderado-baixo e baixo, representando 59% do total de RAs. Isso cria um contraste claro entre as localidades não apenas no acesso aos serviços de saúde, mas também por apresentarem uma população predominantemente negra e de baixa renda, com nível educacional limitado, acesso restrito aos serviços de saúde, tanto públicos quanto privados, além de enfrentarem desafios significativos em termos de infraestrutura urbana (Tabela 1).
Esses grupos indicam uma concentração de diversos recursos em um número limitado de RAs. No grupo 1, a renda per capita média é de R$ 5.715, cerca de 3 vezes maior que a do grupo 3, quase 5 vezes superior à do grupo 4 e quase 6 vezes maior que a do grupo 5. A proporção de pessoas fora do serviço público aumenta de 73,1% no grupo 1 para 91% no grupo 3, 91,2% no grupo 4 e 95,4% no grupo 5. A disparidade educacional é grande, com o percentual de pessoas sem ensino superior completo saltando de 30,2% no grupo 1 para 74%, 81,8% e 89,6% nos grupos 3, 4 e 5, respectivamente. A população negra é quase o dobro nos grupos 3, 4 e 5 em comparação ao grupo 1. Problemas com entulho são de 2 a 3 vezes mais comuns nos grupos 3, 4 e 5 do que no grupo 1. Além disso, a ausência de plano de saúde é entre 3 e 4 vezes mais prevalente nos grupos 3, 4 e 5 em relação ao grupo 1.
Discussão
No estudo de caso do DF, foi possível constatar o diferencial de acesso aos serviços de saúde, ressaltado pela distribuição desigual dos equipamentos e recursos humanos dos estabelecimentos de saúde, juntamente com as dificuldades em acessá-los, tornando-se obstáculos ainda maiores para a população em regiões de maior vulnerabilidade social.
Conforme demonstrado por Noronha et al. (2020), a pandemia trouxe “desafios adicionais, especialmente se a distância que o paciente tiver de percorrer para acessar os serviços de saúde for muito grande”, afetando principalmente públicos vulneráveis e aqueles que dependem do transporte coletivo (Pereira et al., 2020; Tomasiello et al., 2023).
O indicador proposto desenvolveu uma metodologia que avalia o desempenho do acesso ao sistema de saúde para atendimento especializado na pré-pandemia, destacando áreas potencialmente vulneráveis ao cuidado complexo da Covid-19, nas dimensões de oferta de serviços e acessibilidade geográfica no DF, conforme definidas por Penchansky e Thomas (1981). Com a aplicação metodológica do indicador no estudo de caso, foi possível revelar que a população residente no centro urbano do DF tem maior acesso aos serviços públicos de saúde, uma vez que os estabelecimentos com melhor estrutura de oferta concentram-se nesse centro urbano (Rodrigues; Ribeiro, 2021). Além da menor distância, essa população, com renda mais elevada, tem carro como o modal mais frequente no seu deslocamento, o que garante uma acessibilidade mais rápida. Sem esquecer que é a região com maior nível de acesso aos serviços de saúde particular, devido à elevada concentração de usuários de planos privados de saúde.
Segundo Vasconcelos et al. (2022), as RAs que sofrem processos intensos de vulnerabilização têm dificuldades que vão “além da renda, se diferenciam quanto ao acesso a serviços públicos, especialmente os relativos à saúde, a infraestrutura urbana, o acesso e qualidade da educação, e a inserção no mercado de trabalho”, ou seja, possuem sobreposições de desigualdades e maiores barreiras.
A relação direta entre agravos à saúde e concentração de renda é acentuada nas dificuldades de acesso a serviços do bem-estar social (Albuquerque; Ribeiro, 2020; Barrozo et al., 2020). O Iass apontou grandes disparidades entre as regiões administrativas do DF, estando, entre os extremos, a RA do Sudoeste/Octogonal - uma das regiões com maior concentração de renda domiciliar per capita, em torno de R$ 7 mil, e ótima infraestrutura urbana e de saúde (IPEDF, 2019), a qual atingiu o nível máximo de acesso (1,62) - e da RA de Brazlândia - região de baixa renda domiciliar per capita, em torno de R$ 1,1 mil, cuja população depende do transporte público, tem grandes dificuldades com mobilidade urbana e está distante 80 km da região central, além de registrar baixo nível de acesso medido pelo indicador (-1,68).
Os resultados indicam que as desigualdades são persistentes entre as populações de raça/cor negra, de menor renda, com baixa escolaridade e precária infraestrutura domiciliar, resultando em maiores entraves no acesso aos serviços de saúde (Romero et al., 2022). Revela-se que 59% das RAs com piores indicadores concentram população negra, de baixa renda e baixa escolaridade, enfrentando desafios de infraestrutura e acesso à saúde.
Este trabalho ilustra como o Iass pode ser útil na construção de diversas perspectivas de acesso à saúde, para outros agravos que necessitem de diferentes ofertas de infraestrutura nos estabelecimentos de saúde. Porém, é crucial exercer cautela na interpretação de resultados do índice, evitando extrapolar as conclusões para o nível individual, o que poderia levar à falácia ecológica.
Também, deve-se reconhecer as limitações, como a falta de consideração para o custo das viagens e a demanda por recursos de saúde, o que levou à suposição de que todas as opções de estabelecimentos de saúde são igualmente atraentes. Além disso, todos os elementos da estrutura de oferta de saúde foram tratados com igual importância, e a delimitação do estudo às condições anteriores à pandemia excluiu a análise de situações emergenciais, como a instalação de hospitais de campanha. Essas limitações, juntamente com a análise do acesso à saúde em unidades agregadas, requerem uma interpretação cuidadosa dos resultados, apontando áreas potenciais para aprimoramento do indicador. O estudo evidencia as limitações do sistema de saúde em 2019 diante da iminente pandemia e a necessidade de políticas públicas que reduzam as desigualdades no acesso à saúde, priorizando a atenção às populações mais vulneráveis, bem como a desconcentração dos serviços, a ampliação da oferta e a melhoria da acessibilidade como medidas essenciais para garantir o direito universal à saúde.
O Sistema Único de Saúde está distribuído de forma desigual no Distrito Federal. Há a distribuição discrepante de estabelecimentos, equipamentos e recursos humanos de saúde em áreas menos desenvolvidas.
Por sua definição clara e específica de acessibilidade geográfica, o Iass acrescenta uma nova dimensão de análise que pode ser combinada com outros indicadores sociais. Isso permite enriquecer a compreensão das desigualdades no acesso à saúde, oferecendo uma perspectiva mais completa sobre como as barreiras físicas interagem com fatores socioeconômicos e demográficos.
O indicador é projetado para ser calculado em unidades menores, como municípios, regiões administrativas ou setores censitários, garantindo maior riqueza de informação ao considerar múltiplos pontos de origem-destino. Cálculos em agregações maiores podem perder essa precisão. No entanto, após o cálculo inicial, os resultados podem ser facilmente agregados em unidades maiores, como regiões de saúde ou UFs, utilizando estatísticas simples, como a média, o que oferece uma ideia clara da direção e magnitude das desigualdades.
Por fim, o indicador proposto, resultante de uma “nova” conceituação, auxiliará a gestão focando nas fragilidades do acesso dos usuários aos serviços de saúde no território, podendo dialogar e produzir efeitos sobre as propostas para os desenhos das políticas públicas, o que poderá oportunizar alargamento do seu escopo e colocar em evidência as responsabilidades do Estado, em todos os seus níveis, da promoção da saúde ao bem-estar dos cidadãos.
Reconhecimentos:
Não aplicável.
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Este artigo está baseado no estudo de Fechine, Fleury, Vanconcelos e Cruz (2024).
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Financiamento:
O estudo faz parte do projeto intitulado “Determinantes sociais da mortalidade adulta na Área Metropolitana de Brasília (AMB)” e foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo n. 308063/2021-0.
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Aprovação ética:
Os autores certificam que o trabalho não inclui seres humanos ou animais.
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Disponibilidade de dados e material:
Os microdados da PDAD 2018 por agrupamento das 31 Regiões Administrativas estão disponíveis no site do IPEDF (2019), os registros ativos do CNES estão disponíveis no site do Ministério da Saúde (BRASIL, 2020).
Disponibilidade de dados
Os microdados da PDAD 2018 por agrupamento das 31 Regiões Administrativas estão disponíveis no site do IPEDF (2019), os registros ativos do CNES estão disponíveis no site do Ministério da Saúde (BRASIL, 2020).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Jul 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
08 Out 2024 -
Aceito
08 Abr 2025





Fonte: Elaboração dos autores.
Fonte: Elaboração dos autores.
Fonte: IPEDF. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios - PDAD 2018. Elaboração dos autores.
Fonte: IPEDF. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios - PDAD 2018. Elaboração dos autores. Nota: Grupo 1: 22 - Sudoeste/Octogonal, 24 - Park Way, 11 - Cruzeiro, 1 - Plano Piloto, 16 - Lago Sul, 20 - Águas Claras, 10 - Guará. Grupo 2: 18 - Lago Norte, 30 - Vicente Pires, 8 - Núcleo Bandeirantes, 33 - Arniqueiras, 19 - Candangolândia, 3 - Taguatinga. Grupo 3: 17 - Riacho Fundo, 27 - Jardim Botânico, 21 - Riacho Fundo II, 15 - Recanto das Emas, 12 - Samambaia, 2 - Gama. Grupo 4: 9 - Ceilândia, 5 - Sobradinho, 13 - Santa Maria, 26 - Sobradinho II, 32 - Sol Nascente/Pôr do Sol, 25 - SCIA/Estrutural. Grupo 5: 23 - Varjão, 28 - Itapoã, 7 - Paranoá, 31 - Fercal, 14 - São Sebastião, 6 - Planaltina, 4 - Brazlândia.