O ensaio A velhice da filósofa francesa Simone de Beauvoir, publicado originalmente em 1970 e relançado no Brasil pela Editora Nova Fronteira em 2024, é um tratado sobre o processo de envelhecimento e seu significado - macro e micro - em diferentes culturas e sociedades, de modo a reivindicar a visibilidade de um público o qual tem se evitado tematizar ao longo da história: aquele composto pelos idosos. Conforme Beauvoir, o significado da velhice não está bem definido na França,1 seu país natal, ou além dela. Ademais, os indivíduos, em geral, negam a existência da velhice em si mesmos e tentam, de diferentes formas, se atrelar ao ideal do rejuvenescimento ou da morte natural e precoce, como se envelhecer fosse acontecimento trágico que sempre dissesse respeito ao outro. Esse distanciamento em relação à própria velhice, argumenta a autora, é reforçado por estruturas sociais que relegam os idosos à nebulosidade, tratando-os como segmento desprovido de agência e relevância cultural.
A não definição da velhice retroalimenta, em primeiro lugar, a dificuldade de caracterizar o que a definiria; seria essa uma fase de declínio orgânico/celular? Uma doença? Ou período de enfraquecimento físico e cognitivo? Para a autora, diferentes cientistas tentaram se vincular a uma ou outra dessas correntes de respostas ao longo do tempo, abrindo margem para questionamentos, já que o envelhecimento pode corresponder a um ou mais desses processos ou a nenhum deles. Ao mesmo tempo, ser velho é uma condição relativa, a depender do campo no qual o sujeito está situado. No mundo das profissões braçais, por exemplo, o envelhecimento pode ocorrer mais cedo do que no universo das profissões intelectuais, fato que está ligado às exigências do tipo de atividade concebida pelos indivíduos. O estatuto da velhice, por sua vez, é contingente, e depende do modo pelo qual a sociedade está organizada e qual o papel concedido aos idosos no interior dela.
Para responder às dúvidas quanto ao envelhecimento e suas dificuldades/singularidades, emergiu no início do século XX (1909) a geriatria, que é a ciência que estuda as doenças ocasionadas pelo processo do envelhecimento humano. Seu precursor foi o médico austríaco Ignatz Leo Nascher. Por sua vez, a análise do processo de envelhecimento em si passou a ser focalizada pela gerontologia, a qual emergiu em 1913 sob as pesquisas do biólogo francês Elie Metchnikoff. Ambas foram responsáveis por bibliografia que passou a elucidar e desmistificar sistematicamente as especificidades do envelhecimento, levantando as demandas, principalmente de saúde, dessa população. A existência desses dois corpos de conhecimento, contudo, não foi suficiente para afastar o estigma que cercara a velhice em cada época. Considerados ora como experientes/sábios ora como fardos, os velhos existem em sociedade desde uma posição que é concedida a partir do ponto de vista dos não velhos (majoritários numericamente). Ou seja, não são os idosos que indicam aquilo que irão representar para a coletividade, mas sim esta que irá atribuir um conteúdo para o seu papel. O lugar do velho, por sua vez, e segundo a filósofa, relaciona-se aos princípios e fins que cada comunidade almeja para si. Desde o modo como são tratados, é possível identificar o que cada nação reserva aos seus cidadãos.
Iniciando o aprofundamento da discussão, Beauvoir apresenta na primeira parte do livro (“O ponto de vista da exterioridade”) um balanço histórico sobre o lugar da velhice, inicialmente nas sociedades primitivas e posteriormente em sociedades ocidentais históricas. Nas primeiras, cujos dados densos são resgatados de estudos da área de etnologia, a autora demonstra a variabilidade no valor atribuído aos velhos. Houve, nas comunidades consideradas sem história (sem escrita), desde casos de abandono/assassinato de pessoas idosas2 como prática comunitária recorrente (exemplos: povos sirianos, Bolívia, povos tongas, África do Sul, e povos iacutos, Sibéria), até o posicionamento dos velhos como sábios, detentores de poderes mágicos ou inspiradores de grande respeito, tornando-os figuras centrais para o coletivo que os cercava (tais como nos povos yahgans, Terra do Fogo, e povos arandas, Austrália). Contudo, nesses contextos de ênfase no velho mágico/sábio (com suas simbologias), aqueles idosos que conviviam com a decrepitude logo perdiam o status atribuído de sacralidade, o que demonstra que a manutenção de determinado nível de saúde era condição sem a qual não poderia ocorrer sua valorização. Dessa forma, a ausência de uniformidade quanto ao tratamento dos velhos nesse cenário exponencializa, na interpretação da autora, a dificuldade de valorar os idosos, a qual é devida também, até a atualidade, à dificuldade de vislumbrar a velhice - ao contrário da infância, da adolescência e da juventude - como etapa bem demarcada do ciclo de vida e detentora de ritos de passagem que a inauguram.
Nas sociedades ocidentais históricas, o estatuto do velho também era diferenciado a depender do período e da cultura instituída. Na Grécia, em Roma, em Esparta ou no Egito Antigo, passando pela Idade Média europeia e chegando até a França do século XIX, os idosos sempre foram enxergados por meio de representações estereotipadas, mais uma vez tanto os colocando como figuras eivadas de magia/sabedoria quanto os vislumbrando como decrépitos e empecilhos para a estruturação das organizações familiares patriarcais. Para isso, nos contextos da antiguidade, conforme Beauvoir, a mitologia exercia papel central, tendo em vista que a representação dos grupos sociais nas trajetórias dos deuses acabava inspirando a visão que seria dominante nas práticas dos atores em sociedade. Parte significativa do terceiro capítulo da primeira parte da obra (“A velhice nas sociedades históricas”) diz respeito à descrição exegética desses mitos, passando por figuras como Zeus, Apolo, Tirésias e os Titãs. Beauvoir também resgata os filósofos gregos, os pensadores romanos e os pintores renascentistas, com suas respectivas concepções sobre a “melhor idade”.
A literatura de ficção cumpriu historicamente função semelhante à da mitologia na constituição das subjetividades e do olhar sobre os idosos. Nesse campo do conhecimento e da criatividade, ao recorrer a diferentes autores (Victor Hugo, Charles Dickens, Goethe, Shakespeare), os velhos sempre oscilaram da posição de sujeitos a posição de objetos, variando de uma função de humanidade nos personagens retratados até o local predominante de coadjuvância, estorvos ou peças de humor, especialmente quando adotavam comportamentos que não são esperados de pessoas velhas. A autora cita, por exemplo, diferentes casos em que a poesia e a prosa reprovaram ou funcionaram como paródia de idosos apaixonados ou marcados por desejos sexuais. Dos mais velhos, tradicionalmente, há expectativa de assexualidade e não apaixonamento, bem como de retidão moral absoluta, como se o acúmulo de idade atribuísse naturalmente conhecimento e serenidade. Somam-se a essas ferramentas as religiões e as narrativas bíblicas que cumpriram função crucial na representação dos idosos ao longo do tempo, mobilizando adjetivações similares, fundamentadas na glorificação e/ou condenação. Nessa altura, Beauvoir (2024, p. 177) destaca:
Do antigo Egito ao Renascimento, vê-se que o tema da velhice foi quase sempre tratado de maneira estereotipada; mesmas comparações, mesmos adjetivos. A velhice é o inverno da vida. A brancura dos cabelos e da barba evoca a neve, o gelo; há uma frieza do branco à qual se opõem o vermelho - o fogo, o ardor - e o verde, cor das plantas, da primavera, da juventude. Os clichês se perpetuam, em parte porque o velho sofre um imutável destino biológico. Mas também, não sendo agente da história, o velho não interessa, não nos damos ao trabalho de estudá-lo em sua verdade. E, além disso, há na sociedade uma determinação que é a de silenciar sobre ele. Seja exaltando-o, seja aviltando-o, a literatura o dissimula em clichês. Esconde-o, ao invés de revelá-lo. Com relação à juventude e à maturidade, ele é considerado uma espécie de referência negativa: não é o próprio homem, mas seu limite; fica à margem da condição humana; nele não a reconhecemos e não nos reconhecemos nele.
A história política e as legislações também contribuíram para a constituição do lugar e do apreço ou não pelos velhos no mundo social. Em alguns regimes antigos e modernos, os anciãos tiveram papel preeminente nas decisões do Estado, o que inspirava respeito, embora contrariado, dos mais jovens. Em outros regimes, como a França absolutista, esses anciãos eram retirados da esfera pública, por não serem considerados convenientes. Nessa mesma época (século XVII em diante), a marginalização dos idosos, comparável à das crianças - sem lugar na sociedade -, era acentuada quando o foco eram os velhos pobres, profundamente marginalizados e dependentes do socorro da Igreja Católica, e as mulheres velhas, comparáveis nos textos e canções populares a figuras monstruosas. Com sua erudição, Beauvoir retoma diferentes ilustrações dessa tradição aporofóbica e misógina, destacando o papel das instituições confessionais de caridade no socorro aos idosos prejudicados pelas modificações fundadoras do capitalismo (como o sequestro de pequenas propriedades na Inglaterra) e o modo como uma minoria de velhos burgueses foi a grande beneficiária, entre a população idosa, do progresso financeiro trazido pela Revolução Industrial. Portanto, a certa altura, a autora irá vincular a discussão dos conflitos e papéis geracionais à discussão marxista da luta de classes.
Seguindo o texto e ainda observando o cenário da Revolução Industrial, Beauvoir aponta que o envelhecimento passou a ganhar evidência na Europa apenas com a chegada da segunda metade do século XIX. As condições medicinais e sanitárias tiveram progresso no continente, possibilitando aumento da expectativa de vida e, portanto, uma explosão demográfica (oscilando de 187 milhões de habitantes em 1800 para 300 milhões em 1850). Se antes, para os romancistas, só existiam os anciãos privilegiados, aqueles pertencentes às classes inferiores começaram a alçar espaço nas narrativas com esse incremento populacional, principalmente entre autores da França, da Inglaterra e da Rússia. Paralelamente, cresceu o interesse pelos idosos e seus estados característicos, o que motivou a emergência de estudos científicos sobre o tema, fato que irá desembocar no já mencionado surgimento da geriatria e da gerontologia. Essa explosão demográfica teve continuidade ao longo do século XX, motivando a transformação da velhice em objeto de política pública.
Frente a isso, no quarto capítulo da primeira parte do livro, a autora deixa para trás o histórico das intepretações clássicas da velhice e passa a discutir o estado atual (anos de 1960) dos idosos nas sociedades europeias e norte-americana/canadense, mas, principalmente, na francesa. A partir daí o ensaio adquire caráter de denúncia. Beauvoir aponta, a partir de dados qualitativos e quantitativos, que a maioria da população idosa sobrevive a condições insalubres de higiene, moradia, trabalho e saúde, não conseguindo se sustentar com rendimentos próprios. Nessa etapa do livro, Beauvoir também problematiza: o preconceito do mercado de trabalho para com a população idosa, o qual não aproveita habilidades dessa parcela da força de trabalho, que possui vantagens comparativas aos jovens em alguns campos, como a dedicação e a disciplina; as condições precárias dos asilos franceses, que jogam os idosos habitantes no ócio absoluto, não fornecem nenhum tipo de privacidade a eles e contam com instalações questionáveis, conjunto o qual resulta em antecipação da morte desses sujeitos; além da ambiguidade da aposentadoria na vida dos idosos - momento ambicionado e defendido como direito pelas forças trabalhistas, mas que pode ser tanto vivido como período de descanso quanto como período no qual o indivíduo se sente inútil e carente de identidade. Mais uma vez, a autora reforça suas reflexões com base em série de estudos empíricos, dessa vez acerca da condição das aposentadas e aposentados franceses; condição essa que é vivida de maneira mais dramática pelos homens, já que os mesmos têm sua masculinidade fortemente atrelada ao exercício laboral.
Na segunda parte do livro (“O ser no mundo”), a autora mobiliza a discussão do envelhecimento desde o ponto de vista dos próprios velhos, rompendo com a ideia da observação dos idosos como atribuição meramente exterior. Em geral, a condição da velhice é vivenciada de forma incrédula ou depressiva por aqueles que ingressam nela. Ocorre, na velhice, o não reconhecimento da própria aparência, ainda mais cruel para as mulheres, como se essa etapa representasse uma impossibilidade em si. Os relatos clássicos - remontados desde os tempos de Voltaire - enfatizavam o isolamento social e a perda das capacidades físicas e cognitivas que advém com o avanço da idade, bem como a rejeição sofrida da família e dos sujeitos-objetos de desejo. Nessa direção, também na segunda parte da obra, é promovida discussão a respeito da sexualidade na velhice; tida como indesejável conforme os padrões morais dominantes, ela permanece vívida, como atesta a literatura levantada pela filósofa.
Ainda na segunda parte, Beauvoir problematiza a vivência da velhice enquanto vivência da lembrança. Em tom que se assemelha à linguagem poética, a autora descreve - mais uma vez no diálogo com a filosofia de Sartre - a existência do eu idoso como existência marcada pela tentativa de resgate, desde as angústias e sensações evocadas pela memória, das experiências vivenciadas na infância e na juventude - fases que legam ao indivíduo felicidades e neuroses persistentes. O apego ao passado opera, para os velhos, como forma de negação da existência atual. Ademais, são uma forma de mobilizar diferentes momentos nos quais o futuro ainda poderia estar no centro da vida, dada a alta disponibilidade de tempo que é presumida na aurora das biografias. Nessa linha, e discorrendo sobre a própria experiência, Beauvoir (2024, p. 390) faz uma citação marcante:
Há muitas coisas que não conseguimos evocar e que, entretanto, somos capazes de reconhecer. Mas nem sempre esse reconhecimento nos restitui o calor do passado. Este último nos toca porque é passado. Mas é também por isso que, com tanta frequência, ele nos decepciona: nós o vivemos como um presente rico do futuro para o qual ele se lançava; só resta dele um esqueleto. É o que torna tão vãs as peregrinações. Com bastante frequência nos é impossível reencontrar o vestígio de nossos passos. O espaço volta a assumir as traições do tempo: os lugares mudam. Mas mesmo os que aparentemente permaneceram intactos não o são mais, para mim. Posso passear em certas ruas de Uzerche, de Marselha, de Ruão. Reconhecerei as pedras dessas cidades, mas não reencontrarei meus projetos, meus desejos, meus medos: não me reencontrarei. E se evoco nesses lugares uma cena de outrora, ela está ali espetada como uma borboleta numa caixa. Os personagens não vão mais a lugar nenhum. Suas relações estão atingidas pela inércia. E quanto a mim, não espero mais nada.
A autora analisa igualmente a questão do envelhecimento para artistas, cientistas e intelectuais, na tentativa de responder à seguinte questão: como ser velho afeta, para o bem e para o mal, a criação artística, científica e intelectual? Beauvoir também mescla a trajetória de personalidades famosas com biografias de personalidades anônimas (capítulos “Tempo, atividade e história” e “Velhice e vida cotidiana”), de modo a expor os desafios vivenciados pelas pessoas na velhice, dentre os quais são discutidos como centrais: a senilidade em decorrência da senescência; a sensação de substituição causada pela sucessão geracional; a ausência de projetos e de expectativas sobre o futuro em razão da espera de um fim próximo; a dificuldade de criar novos hábitos e estabelecer novas rotinas, tendo em vista que as mudanças na velhice representam uma ameaça ao mundo já conhecido; a transição da independência da vida adulta para a dependência resultante de um declínio cognitivo e físico e, consequentemente, a convivência com a sensação de ser um fardo para seus cuidadores, em geral os filhos; a angústia do envelhecimento que pode se tornar revolta contra tudo e todos ou rejeição às convenções sociais; e, por fim, tem ênfase a discussão sobre as neuroses dessa etapa da vida.
Ao fim do ensaio, a autora constrói um capítulo de fechamento intitulado “Alguns exemplos de velhices”, no qual opta pela continuidade da reconstrução das trajetórias de personalidades, com ênfase no impacto do envelhecimento nestas e propõe a solução de uma reforma radical dos sistemas econômicos e da vida social. Essa via de saída apregoada pela autora dialoga com a condição problemática dos velhos que, em um regime capitalista, são dignos de humanidade apenas quando produtivos. Em um universo no qual a “bela velhice” fosse possibilidade generalizável, homens e mulheres, em vez de alienados pelos preceitos laborais, poderiam se dedicar a novos projetos de vida, alcançando outros horizontes intelectuais e afetivos. Com esses parâmetros, não haveria a perpetuação da associação do velho com degeneração e melancolia.
Após atravessar a jornada de leitura do ensaio A velhice, é possível concluir que o texto de Simone é a obra mais importante já escrita sobre o tema do envelhecimento, constituindo um registro multidisciplinar que investiga as inquietudes ainda hoje persistentes na análise da condição das pessoas idosas. Dessa forma, é livro basilar para todos aqueles que desejam começar os estudos sobre o tema, ainda que não necessariamente pela ótica humanista da filósofa. O envelhecimento como fenômeno demográfico tem sido objeto de análise e preocupação no contexto de redução das taxas de fecundidade e aumento da expectativa de vida, atravessado pelo Brasil e diversos países do mundo (Camarano, 2014). Logo, a investigação científica desse fenômeno, cujos impactos perpassam diferentes espaços, permanece urgente, demanda que ainda não se reflete no incremento das formações e produções, especialmente no Brasil do século XXI. Esse gap pode ser explicado por aquilo que Beauvoir denunciou em seu livro: o preconceito contra os velhos e a negação da velhice operam como barreiras para que os dilemas relacionados a esse público sejam priorizados na ordem do dia. Revisitar as considerações da filósofa é, portanto, importante para dar seguimento, de forma qualificada, a esse protesto.
Referências
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1
Terra natal de Simone e país, junto com a Suécia, com a maior proporção de velhos (pessoas acima de 60 anos) no mundo à época da produção do ensaio: 12% da população.
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2
Fenômeno que podia ser acompanhado pela prática do infanticídio. O assassinato dos idosos era motivado pela escassez de recursos que levava ao privilegiamento das gerações mais jovens em prejuízo das mais antigas, as quais teriam cumprido sua trajetória.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Jun 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
20 Jan 2025 -
Aceito
20 Mar 2025
