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A formulação de política pública de preservação do patrimônio pelo parlamento brasileiro

The formulation of public policy for the preservation of heritage by the Brazilian parliament

COSTA, M. B. L. C.. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019, 524p. ISBN 978-85-9530-327-0.

O livro O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil, de Mila Batista Leite Corrêa da Costa, indica em seu título, com clareza, quais são seus objeto e propósito: estudar as formas de preservação do patrimônio cultural brasileiro. Lançado em 2019 pelo Grupo Editorial Letramento, ele representa uma importante contribuição tanto para a ciência jurídica brasileira quanto para os campos da história, da administração e da ciência política. A temática é também relevante para os estudos urbanos e regionais, uma vez que preservação do patrimônio e urbanismo estabelecem muitos diálogos.

Fruto das pesquisas desenvolvidas pela autora durante o curso de doutorado no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação de Mônica Sette Lopes, a obra traz uma reflexão sobre a “possibilidade (jurídica) de o Poder Legislativo produzir leis que conced[a]m o título de Patrimônio Cultural infringindo limites de competência do Poder Executivo” (LOPES apud COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 21). Vale pontuar, ainda, que Costa constrói uma abordagem inédita na literatura jurídica sobre a atuação do parlamento, dado que apresenta “a polêmica questão dos limites da lei como mecanismo de proteção direta do patrimônio” (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 27).

O livro se divide em apresentação, prólogo, introdução, quatro capítulos e conclusão. O primeiro capítulo é dedicado à compreensão do Estado moderno e da democracia, do Poder Legislativo e das políticas públicas. Já o segundo capítulo põe em evidência a noção de patrimônio cultural, bem como as questões vinculadas a tombamento e registro como instrumentos de proteção e salvaguarda. Em seguida, o terceiro capítulo dá destaque à pesquisa de campo da autora na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), no intuito de oferecer elementos para entender a prática de declaração de patrimônio cultural. O último capítulo ressalta a atuação institucional do Poder Legislativo na consolidação dos mecanismos de preservação.

Nesse conjunto de capítulos, a proposta de Costa é “contribuir para a consolidação do Poder Legislativo como locus por excelência na reverberação de demandas e de interesses coletivos, nos termos da ordem constitucional consolidada após 1988” (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 54), por meio da “construção de capacidades institucionais que deem suporte às funções de representar, legislar e fiscalizar em ambientes decisórios cada vez mais completos”, conforme defendem Fátima Anastasia e Magna Inácio. Tal perspectiva é enfatizada na apresentação do livro, na qual Maria Coeli Simões Pires afirma que se trata de “uma contribuição de excelência [...], notadamente no campo da legística formal, que, de modo sistemático e bastante completo, analisa a atuação do Parlamento na construção de política patrimonial” (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 26).

A autora desenvolveu seus estudos com base em sua experiência como consultora legislativa, monitorando e assessorando, no período de janeiro de 2016 a dezembro de 2017, a Comissão de Cultura da ALMG, especialmente a rotina de concessão do título de “Patrimônio Cultural do Estado” à sociedade, a partir de lei de iniciativa parlamentar. Segundo a autora,

por meio da interpretação da legislação em vigor e dos institutos de proteção e salvaguarda delineados no ordenamento jurídico federal e estadual e, bem assim, pela compreensão do modus operandi do processo legislativo, buscou-se verificar a efetividade do uso da via legislativa, mediante iniciativa parlamentar, para preservação efetiva e agasalho do patrimônio cultural (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 53).

O primeiro capítulo traça, de forma clara, os outputs e o desenvolvimento institucional das Assembleias Legislativas, com destaque para temas que envolvem o Estado moderno democrático, a Constituição da República de 1988, o Poder Legislativo e as políticas públicas no Brasil. As ideias da autora podem ser sintetizadas com o seguinte trecho:

o contexto democrático e o texto constitucional de 1988 [...] propiciaram a consolidação do Poder Legislativo no cenário político-administrativo brasileiro, considerada a trajetória constitucional de sedimentação da instituição no espaço democrático, e a densificação da administração no esteio do Estado Democrático de Direito, em que as funções estatais encontram-se em redefinição - formulação e implementação de políticas públicas pelo Poder Executiva; produção da atividade legiferante pelo Poder Legislativo; e exercício do controle jurisdicional pelo Poder Judiciário (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 127).

No que tange ao trabalho da casa legislativa, Costa realiza o “mapeamento de tendências e experiências [...] [segundo] quatro dimensões” (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 139), observáveis nos legislativos mais organizados, entre eles, a ALMG: 1ª) Agenda, processo e produção legislativa; 2ª) Controle e fiscalização do Poder Executivo; 3ª) Interlocução com a sociedade; e 4ª) Transparência no exercício da atividade legislativa. Com a aplicação dessas quatro dimensões na formulação da política pública do patrimônio, conforme Costa, há necessidade de identificar qual a propriedade da atuação do Poder Legislativo na elaboração de leis declaratórias, mesmo sendo de competência exclusiva do Poder Executivo.

No segundo capítulo, a autora resgata o conceito de patrimônio cultural, “definido como tudo o que é valorizado, transmitido e perpetuado entre gerações, tornando-se fator constitutivo de identidade e de diversidade cultural local” (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 144). Logo após, explica o funcionamento da política de preservação do patrimônio cultural, com suas especificidades, regramentos próprios e composição de forças.

Costa apresenta ao leitor, com riqueza de detalhes, as transformações da valorização dos bens culturais materiais e imateriais no Brasil, especialmente pela passagem da noção de patrimônio histórico para patrimônio cultural. A esse respeito, ela assinala que, já na década de 1920, movimentos na esfera política e intelectual questionavam os modelos culturais da República Velha. Porém, foi no final do “Estado Novo que a nação e a identidade nacional compuseram as políticas de Estado, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional - Sphan em 1937” (CHUVA, 2012, p. 67 apud COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 174).

Em termos de transformações, a autora pontua, quanto ao §1º do art. 216 da CR/88, que, embora “defina como instrumentos de acautelamento e preservação inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e outras formas, a práxis de formação do patrimônio cultural e seu enquadramento jurídico” (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 197) dependerão de lei ordinária prevendo “os métodos a serem usados na determinação de que bens o devem compor” (SILVA, 2001, p. 115 apud COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 198).

Por sua vez, no terceiro capítulo, apoiada nos resultados da estratégia metodológica de estudo de caso no parlamento mineiro, Costa demonstra a viabilidade e juridicidade da produção de normas de efeito concreto para seleção de bens culturais como patrimônio. Segundo ela, “a cronologia da legislação de preservação do patrimônio cultural em Minas Gerais narra a trajetória de um estado com papel de relevo no cenário nacional de desenho de políticas patrimoniais” (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 214).

Novamente, a obra dá provas concretas da profundidade e do pioneirismo de sua abordagem sobre patrimônio cultural. Nesse capítulo, a pesquisadora traz dados sobre o tratamento conferido ao tema no Congresso Nacional e nas Assembleias Estaduais. Como indica, “referente à legislação em vigor no âmbito federal e nos 26 (vinte e seis) estados brasileiros e Distrito Federal, foi identificada a existência de leis declaratórias de patrimônio cultural, nomeadamente de natureza imaterial, em praticamente todos os entes federados” (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 218). Para uma maior compreensão, ainda apresenta dois anexos com o levantamento e a sistematização da legislação, revelando um extenso repertório em vigor em todas as regiões do país. Ela realiza a tabulação de dados e constrói tabelas e gráficos para revelar “a intensa atuação dos parlamentares mineiros, testemunhada pela prevalência de alguns deles no rol dos maiores propositores de leis de declaração na ALMG” (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 301).

Por fim, no quarto capítulo, Costa apresenta e debate, efetivamente, a questão do papel do Poder Legislativo nas políticas públicas. Destaca os instrumentos tombamento e registro para proteção e salvaguarda do Poder Executivo, mediante indicação de decisões do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e do Poder Judiciário. Ela evidencia, ainda, as fórmulas alternativas de acautelamento pelo Poder Legislativo, bem como os mecanismos de democratização.

Encerrando a obra, a autora elenca algumas conclusões sobre o tema. A primeira delas se foca na ideia de que o papel desempenhado pelo Poder Legislativo na preservação do patrimônio cultural necessita ser analisado à luz da interação com o Poder Executivo. A segunda salienta que o patrimônio cultural é um importante indicador da formação e da estrutura de identidades culturais. A terceira, mais direcionada à preservação do patrimônio, aponta para o fato de que novas vozes passam a ser ouvidas nesse procedimento. Essa última conclusão fixa, conforme a estudiosa indica, a consolidação do Poder Legislativo como agente no campo do desenho institucional das políticas de preservação do patrimônio cultural (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 365).

A respeito do estudo minucioso desenvolvido por Costa, é preciso assinalar que se trata do resultado de uma tese que “não é apenas um texto fechado do tipo mais usado em nossa academia” (COSTA, 2019COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019., p. 29). De fato, é um trabalho dotado de alta técnica, profundidade e olhar crítico, o qual vai além da identificação de problemas. Cabe salientar, ainda, que O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil carrega muitas marcas de um grande livro: capacidade de interpelação, poder de síntese de correntes de pensamento relevantes para o tema, apresentação de uma visão original sobre as questões ligadas ao patrimônio cultural, estilo de escrita envolvente.

Enfim, é uma leitura indispensável!

Referências

  • COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. O poder legislativo no desenho institucional da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2021
  • Aceito
    17 Jun 2021
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