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A profissionalização da fisioterapia em Minas Gerais

Professionalization of physical therapy in Minas Gerais

Resumos

OBJETIVO: Com base em estudo qualitativo, utilizando a história oral e a análise de documentos, procurou-se identificar as raízes da fisioterapia em Minas Gerais, a fim de discutir o processo de profissionalização e o desenvolvimento da identidade do fisioterapeuta neste Estado. METODOLOGIA: O foco do estudo foi dirigido principalmente a Belo Horizonte, no período compreendido entre 1950 e 1980. O referencial teórico utilizado foi a sociologia das profissões, e teve como guia os cinco passos de profissionalização descritos por Wilensky¹ que são a necessidade da ocupação tornar-se de dedicação exclusiva, o estabelecimento de procedimentos de instrução e seleção, a formação de uma associação profissional, a regulamentação da profissão e a adoção do código de ética. Na pesquisa de campo, foram utilizadas entrevistas do tipo semi-estruturada para colher depoimentos de pessoas consideradas chave, mediante amostragem em série, e o método escolhido foi a análise de conteúdo. RESULTADOS: Avalia-se que o processo de profissionalização da fisioterapia em Minas Gerais é marcado pela hegemonia médica na saúde e que a indefinição das atribuições e competências foram os fatores que motivaram os conflitos internos e externos. CONCLUSÕES: Conclui-se que, para a afirmação efetiva da fisioterapia como profissão, torna-se necessária a delimitação das especificidades do seu saber e do seu fazer (teoria e prática), identificando o papel do fisioterapeuta na equipe multidisciplinar de saúde.

fisioterapia; história da fisioterapia; história oral; profissionalização


OBJECTIVE: To identify the roots of physical therapy in Minas Gerais, in order to understand the professionalization process and the development of identity among physiotherapists in this state, based on a qualitative approach, oral histories and analysis of documents. METHODS: The focus of this study was primarily Belo Horizonte between 1950 and 1980. The theoretical reference point utilized was the sociology of professions and the five steps towards professionalization described by Wilensky (1964) were taken as the guide. These were: the need for exclusive dedication to the profession; the establishment of education and selection procedures; the creation of a professional association; professional regulation; and the adoption of a code of ethics. A survey was conducted, utilizing semi-structured interviews to gather statements from key leaders, based on serial sampling and content analysis. RESULTS: It was found that the process of professionalization within physical therapy in Minas Gerais was influenced by medical hegemony within the health field. Lack of definition regarding functions and competencies were factors that had led to both internal and external conflicts. CONCLUSIONS: To ensure effective affirmation of physical therapy as a profession, it is necessary to define the specific limits of its knowledge and skills (theoretical and practical), so as to better identify the role of the physiotherapist within multidisciplinary health teams.

physical therapy; history of physical therapy; oral history; professionalization


ARTIGO METODOLÓGICO

A profissionalização da fisioterapia em Minas Gerais

Professionalization of physical therapy in Minas Gerais

Nascimento MC; Sampaio RF; Salmela JH; Mancini MC; Figueiredo IM

Departamento de Fisioterapia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG

Correspondência para Correspondência para: Maria do Carmo Nascimento Rua Bambuí 788, apto 102, CEP 30310-320, Belo Horizonte, Minas Gerais e-mail: carminha_sa@terra.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Com base em estudo qualitativo, utilizando a história oral e a análise de documentos, procurou-se identificar as raízes da fisioterapia em Minas Gerais, a fim de discutir o processo de profissionalização e o desenvolvimento da identidade do fisioterapeuta neste Estado.

METODOLOGIA: O foco do estudo foi dirigido principalmente a Belo Horizonte, no período compreendido entre 1950 e 1980. O referencial teórico utilizado foi a sociologia das profissões, e teve como guia os cinco passos de profissionalização descritos por Wilensky1 que são a necessidade da ocupação tornar-se de dedicação exclusiva, o estabelecimento de procedimentos de instrução e seleção, a formação de uma associação profissional, a regulamentação da profissão e a adoção do código de ética. Na pesquisa de campo, foram utilizadas entrevistas do tipo semi-estruturada para colher depoimentos de pessoas consideradas chave, mediante amostragem em série, e o método escolhido foi a análise de conteúdo.

RESULTADOS: Avalia-se que o processo de profissionalização da fisioterapia em Minas Gerais é marcado pela hegemonia médica na saúde e que a indefinição das atribuições e competências foram os fatores que motivaram os conflitos internos e externos.

CONCLUSÕES: Conclui-se que, para a afirmação efetiva da fisioterapia como profissão, torna-se necessária a delimitação das especificidades do seu saber e do seu fazer (teoria e prática), identificando o papel do fisioterapeuta na equipe multidisciplinar de saúde.

Palavras-chave: fisioterapia, história da fisioterapia, história oral, profissionalização.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To identify the roots of physical therapy in Minas Gerais, in order to understand the professionalization process and the development of identity among physiotherapists in this state, based on a qualitative approach, oral histories and analysis of documents.

METHODS: The focus of this study was primarily Belo Horizonte between 1950 and 1980. The theoretical reference point utilized was the sociology of professions and the five steps towards professionalization described by Wilensky (1964) were taken as the guide. These were: the need for exclusive dedication to the profession; the establishment of education and selection procedures; the creation of a professional association; professional regulation; and the adoption of a code of ethics. A survey was conducted, utilizing semi-structured interviews to gather statements from key leaders, based on serial sampling and content analysis.

RESULTS: It was found that the process of professionalization within physical therapy in Minas Gerais was influenced by medical hegemony within the health field. Lack of definition regarding functions and competencies were factors that had led to both internal and external conflicts.

CONCLUSIONS: To ensure effective affirmation of physical therapy as a profession, it is necessary to define the specific limits of its knowledge and skills (theoretical and practical), so as to better identify the role of the physiotherapist within multidisciplinary health teams.

Key words: physical therapy, history of physical therapy, oral history, professionalization.

INTRODUÇÃO

No Brasil, estudos pioneiros sobre profissões foram desenvolvidos entre as décadas de 1960 e 1970, propiciados pela intensa expansão que o sistema universitário viveu nesse período2. A estruturação multidisciplinar da área de saúde vem favorecendo espaço para as discussões dos conceitos de profissão3.

A princípio, qualquer atividade humana no mundo do trabalho pode ser considerada uma atividade profissional. No entanto, a sociologia enfatiza alguns elementos que constituem uma profissão: autonomia, adesão ao ideal de serviço, forte identidade profissional traduzida pelo código de ética, e a demarcação do território profissional4.

Wilensky1 preconiza que, para uma ocupação exercer autoridade profissional, ela deve encontrar uma base técnica própria e uma jurisdição exclusiva, atrelando habilidade e jurisdição a padrões de treinamento, e deve, ainda, convencer o público de que seus serviços são confiáveis. Enfatiza que o grau de profissionalização é medido não só pelo grau de competência técnica exclusiva, mas também pelo grau de aderência ao ideal de serviço e às normas de conduta profissional.

Segundo Noronem et al.3, o debate em torno dos pressupostos filosóficos e teóricos para o desenvolvimento relevante da prática e da pesquisa em fisioterapia tem sido encorajado por vários autores. A fim de definir sua identidade e entender a cultura da fisioterapia fazem-se necessárias informações sobre seu desenvolvimento ao longo do tempo.

A produção científica brasileira na área de fisioterapia tem apontado algumas iniciativas acerca da discussão sobre a profissão, como por exemplo, o trabalho de Rebellato et al.5. Mas a escassez quanto à produção tem repercutido na dificuldade de se ter à disposição informações que incluam na história da fisioterapia, a discussão do processo de profissionalização e o desenvolvimento da identidade do profissional dessa área.

Pelo percurso da fisioterapia no Brasil, decidiu-se pela utilização do sociólogo Wilensky1, como referência teórica para a discussão da profissionalização da fisioterapia no Estado de Minas Gerais. Com base em um estudo com 18 profissões nos Estados Unidos, este autor identificou cinco passos no processo de profissionalização: ocupação de dedicação exclusiva, estabelecimento de procedimentos de instrução e seleção, formação de uma associação profissional, regulamentação da profissão, elaboração e adoção de um código formal de ética.

Neste contexto, este estudo buscou na sociologia das profissões subsídios teóricos para discutir a organização e o processo de profissionalização da fisioterapia em Minas Gerais, por meio do resgate histórico da profissão. Resgatar a história da fisioterapia é recuperar sua organização enquanto categoria profissional, e o desenvolvimento de sua identidade enquanto profissão. Em virtude da dificuldade encontrada para reunir dados sistemáticos sobre a fisioterapia em Minas Gerais, o foco deste estudo foi dirigido principalmente para a capital e maior cidade do Estado, Belo Horizonte, num período compreendido entre os anos de 1950 a 1980. Essa reconstituição é parcial, orientada pelos interesses já demarcados para a abordagem que aqui se faz desse campo profissional.

A intenção deste trabalho é que a análise dos fatos ocorridos em Belo Horizonte possa contribuir para o entendimento da profissionalização da fisioterapia em Minas Gerais. Cabe destacar que a compreensão das questões levantadas no caso de Belo Horizonte (micro) só pode ser alcançada levando-se em conta o processo estadual e nacional (macro), e que essa divisão da realidade só tem pertinência para uma análise mais aprofundada do tema reconhecendo-se que a vida das profissões, assim como a de qualquer organização social, não pode ser desconectada de fatores mais gerais que as moldam e a limitam.

METODOLOGIA

A metodologia escolhida foi a qualitativa, por ser freqüentemente utilizada quando se propõe compreender processos que ocorrem em dada instituição, grupo ou comunidade6. A metodologia qualitativa tem a possibilidade de utilizar uma variedade de procedimentos e instrumentos de coleta de dados. Neste estudo, foram utilizadas a análise de documento e a história oral.

Os documentos utilizados foram as "Leis e Atos Normativos das profissões do fisioterapeuta e do terapeuta ocupacional", publicação do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da 4ª região (CREFITO-4); as atas da Associação Mineira de Fisioterapeutas (AMF); fotografias e matérias de jornais da época.

A forma de entrevista escolhida foi a semi-estruturada ou entrevista com roteiro, por ser considerada apropriada para a coleta de depoimentos pessoais7. O roteiro foi organizado com tópicos ou temas orientadores, seguindo os passos do processo de profissionalização de Wilensky1.

A princípio, foram selecionadas duas pessoas consideradas chave, pessoas que tiveram atuação no surgimento do primeiro curso de Fisioterapia de Minas Gerais. A análise dessas primeiras entrevistas levou a inclusão de outros participantes, a fim de explorar novos aspectos relevantes ou outros temas do roteiro, caracterizando uma amostragem em série ou em cadeia6,8. Dessa forma, a análise acompanhou toda a coleta, identificando novas questões que emergiam.

O número de entrevistas encerrou quando as informações alcançadas foram consideradas suficientes e atingiram a chamada saturação ou exaustão ou ponto de redundância6, sendo 12 os entrevistados: 8 fisioterapeutas (E2, E3, E4, E5, E6, E7, E9, E11), 2 médicos (E1, E8), 1 enfermeiro (E10) e 1 auxiliar de fisioterapia (E12). As entrevistas foram registradas em gravador e posteriormente transcritas, de forma a recuperar a integralidade dos relatos. Com base na transcrição, essas se tornaram documento e base de dados para a análise9.

O método de análise escolhido foi a análise de conteúdo10,11. O processo de categorização, possibilitado pela utilização das entrevistas semi-estruturadas, com o agrupamento de respostas por afinidade específica, permitiu a organização temática dos resultados das entrevistas12, tendo como grandes temas os passos de profissionalização de Wilensky1. Essa análise facilitou a utilização do recurso de triangulação ou da prática de confrontar variadas evidências sobre o mesmo fenômeno, permitindo a comparação dos relatos uns com os outros e estes com os documentos e as obras existentes sobre a história da fisioterapia13.

RESULTADOS

O percurso dos cinco passos para a profissionalização, considerada por Wilensky1, pôde então ser identificado ao ser reconstituída a história da fisioterapia em Minas Gerais, no período compreendido entre 1950 e 1980.

A necessidade da ocupação

Na década de 1940, as termas mineiras capacitavam e absorviam pessoal com experiência em massagem e hidroterapia. Nessas termas, a concepção de saúde ainda estava interligada com a aparência física das pessoas, os hábitos saudáveis e a higiene pessoal: "1945. O grande era massagem. As termas recrutavam pessoas com aparência saudável. Era uma exigência" E2. Nesse início, os recursos que posteriormente seriam identificados como específicos da fisioterapia eram utilizados mais para a manutenção da saúde do que propriamente para o tratamento das doenças.

Em 1952, foi criado um serviço direcionado ao atendimento à criança com tuberculose óssea e com poliomielite em Belo Horizonte, o Hospital da Baleia: "O professor Mata Machado foi levado pelo professor Baeta Viana, que aproveitou os conhecimentos que ele adquiriu na América, e implantaram a ortopedia na Baleia" E8. Este novo serviço aumentou a necessidade, principalmente por parte dos médicos ortopedistas, de recurso humano qualificado para o atendimento em reabilitação. As madres da Congregação Franciscana Missionárias de Maria, que já trabalhavam na área de enfermagem, foram treinadas para realizar o trabalho: "As irmãs aprenderam a lidar com estes pacientes. Eram treinadas e orientadas por ortopedistas"E8.

Durante a década de 1950, o grupo de ortopedistas do Hospital da Baleia passou a liderar a área de reabilitação em Belo Horizonte, com um modelo de reabilitação pós-guerra, importado dos Estados Unidos, em que o foco do trabalho era a recuperação de lesões traumáticas14 : - "Os residentes de ortopedia americanos estavam todos servindo exército, na ocasião da guerra. E o José Henrique [da Mata Machado], ele e alguns outros [...] fizeram aprendizado na América e voltaram operando tudo" E8.

Dada a necessidade de que aquela ocupação, exercida por irmãs de caridade e práticos, passasse a ser desempenhada por pessoal mais qualificado, quem tinha alguma experiência com massagem ou com hidroterapia era aproveitado para as atividades de reabilitação. Pode-se perceber pelas entrevistas que a relação entre os médicos e os que seriam os primeiros fisioterapeutas mineiros era de cooperação: - "Os médicos entravam na piscina de igual para igual" E2.

Apesar das dificuldades, o serviço de reabilitação do Hospital da Baleia passou a ser reconhecido e considerado como referência no Estado de Minas Gerais. Valendo-se desse reconhecimento, os médicos da área idealizaram um hospital especializado para o atendimento aos portadores de deficiência física, o Hospital Arapiara, e organizaram a capacitação de pessoal de maneira padronizada, mediante os cursos de Fisioterapia e de Fisiatria da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais FCMMG. Entrevistados informaram que a criação do curso de Fisioterapia por esse grupo de médicos que liderava a área de reabilitação no Estado foi motivada pela necessidade de mão-de-obra para os serviços por eles coordenados. "Eles fizeram fisiatria nos Estados Unidos e voltaram para Belo Horizonte. Sentiram a necessidade de criar um curso para suprir a necessidade principalmente dos hospitais que atuavam" E5.

Também pode ser percebido nas entrevistas que houve um momento em que médicos e futuros fisioterapeutas idealizaram um trabalho em equipe. "A idéia de Márcio de Lima Castro era de que o Arapiara fosse um hospital onde todos trabalhassem de mãos dadas" E2. Outro ponto a destacar é que, desde o início, a proposta era que o curso de fisioterapia criado pelo Hospital Arapiara estivesse vinculado a uma faculdade. A exigência legal de que houvesse uma fundação por trás do convênio entre o Arapiara e a FCMMG é que retardou o processo. "Com a idéia do curso, simultaneamente formaram a Fundação Arapiara. Era uma exigência ser ligado a uma fundação" E2. Fato importante, uma vez que demonstra que, apesar de o primeiro curso de Fisioterapia ter sido criado por necessidade dos médicos do Hospital Arapiara, a idéia não era manter o curso atrelado ao hospital. Cabe então destacar a importância do Arapiara para o desenvolvimento da reabilitação e para o processo de profissionalização da fisioterapia no Estado.

Pode-se então notar que o surgimento da ocupação de fisioterapia no Estado de Minas Gerais deu-se pela necessidade de mão-de-obra especializada para atender a uma demanda dos profissionais médicos, principalmente ortopedistas, fisiatras e reumatologistas. Parece que, à medida que se investe em determinada área ou ocupação, cria-se um espaço social para ela e, a partir daí, a demanda pelo profissional começa a crescer; no caso da profissão aqui estudada, não foi diferente. Esses médicos mineiros, dimensionando a falta do profissional de reabilitação trouxeram um modelo americano de reabilitação, uma vez que se especializaram em ortopedia ou fisiatria nos Estados Unidos da América, sendo alguns, como Márcio de Lima Castro, no Instituto de Reabilitação da Universidade de New York, dirigido por Howard Rusk14 E1, E5, E8. Na época, tais médicos dominavam todos os grandes serviços de saúde que tinham algum vínculo com reabilitação, passando, assim, a controlar a formação dos futuros profissionais.

A formação profissional

Em 1962, teve início o curso de Fisioterapia com a parceria entre o Hospital Arapiara e a FCMMG. O modelo de saúde curativo e reabilitador do pós-guerra influenciou a cultura do fisioterapeuta, sendo esse o eixo central do processo de formação e instrução da categoria no Estado. Embora a escola representasse o início da profissionalização, quase todos os professores ainda eram médicos e investiu-se em um treinamento de cunho mais prático, mesmo porque, como apontado em entrevistas: "não tinha muita coisa pra você estudar" E3. A formação desse profissional atravessada pela medicina parece ter dificultado a autonomia e a vinculação do fisioterapeuta com a comunidade, transformando-o em um profissional auxiliar, subordinado às regras emitidas pelos médicos: "Ficava o médico especializado para prescrever o tratamento do fisioterapeuta. Você [fisioterapeuta] só podia atuar, não podia mudar uma vírgula" E2.

A partir de 1969, a formação profissional passa a ser orientada por parâmetros mais definidos para a fisioterapia, como a ampliação do curso para quatro anos, a contratação de professores fisioterapeutas e a busca por locais de estágio não controlados por médicos, como a Santa Casa de Misericórdia. Apesar do avanço, as dificuldades encontradas na definição das atribuições se complicaram, somando-se à hierarquização externa das ações médicas uma hierarquização interna, indicando um conflito entre a formação teórica institucionalizada e o saber prático adquirido. Os conflitos entre fisioterapeutas e médicos, principalmente fisiatras, e entre fisioterapeutas e auxiliares foram salientados: "Teve coisa braba, de rixas, de não aceitação" E4.

De acordo com o desenvolvimento profissional caracterizado por Wilensky1, em outras profissões, como a fisioterapia em Minas Gerais o processo foi semelhante, a saber: os primeiros professores eram os que lideravam a reabilitação no Estado; o primeiro curso começa vinculado a uma faculdade; o treinamento padronizado passa a ser requisito para ingressar na ocupação e, com base no curso, é criada uma associação profissional. Cabe ressaltar a importância das primeiras turmas desse curso no desenvolvimento da identidade profissional do fisioterapeuta mineiro, quando:"as primeiras turmas têm o grande mérito de ter conseguido a independência da profissão e a respeitabilidade dela" E4.

A associação profissional

Mobilizados principalmente pelos conflitos internos e externos, em 1968 os profissionais se uniram em uma associação Associação Mineira de Fisioterapeutas (AMF) , considerando que essa seria uma forma de auto-regulação, que serviria para preservar ou melhorar o padrão dos serviços prestados, aumentar o prestígio profissional e diminuir a competição externa (médicos) e interna (práticos e auxiliares). Mas a associação mineira era frágil, tinha dificuldades que iam do financeiro à pouca clareza de seus objetivos, não conseguindo cumprir, na maioria das vezes, com o papel esperado para entidades com essas características.

Alguns autores 1,15 consideram que a fase de formação de uma associação representa a busca de identidade profissional. Um fator que contribui para a formação dessa identidade é o profissionalismo, que compreende atitudes como o uso da organização profissional, a crença na auto-regulação, o sentido de vocação e de autonomia16. A idéia de corporativismo, referida por Machado4, como fator também importante para o profissionalismo, pôde ser identificado nas entrevistas, como ao ser citado que naquela época: "a gente abraçava mesmo" ou "a gente se dava muito as mãos" E4.

Segundo Noronem et al.3a autonomia pode ficar comprometida se não houver a definição da especificidade da fisioterapia e uma apropriação por parte do fisioterapeuta. Neste estudo, foi verificado que a autonomia do fisioterapeuta esteve prejudicada pela medicina em vários momentos. Inicialmente, pelo monopólio dos saberes e das condutas no controle e no gerenciamento dos serviços de reabilitação, na prescrição do tratamento, e, mais recentemente, na dependência do encaminhamento para o tratamento fisioterapêutico.

Questões relacionadas à denominação parecem ter dificultado a identificação profissional, como a rejeição do fisioterapeuta ao rótulo de massagista, denominação percebida como menos profissional: "nós começamos a mudança da história de deixar de ser massagista pra ser fisioterapeuta" E4.

A definição das competências também trouxe conflitos internos e externos, mesmo porque não existia clareza quanto ao modelo a seguir. O desenvolvimento dessas competências foi-se dando ao longo do tempo pelos próprios conflitos entre os profissionais. A divisão do trabalho foi-se estruturando de forma hierárquica, ou seja, as atividades foram transferidas em função da complexidade para os profissionais de acordo com a sua qualificação: "Um procedimento que era mais específico, era a gente [fisioterapeuta] mesmo que fazia. Mas a coisa mais corriqueira normalmente eles [auxiliar] faziam" E3.

As entrevistas apontaram que o ideal de serviço era focado no bem-estar do paciente. Era valorizada a visão do indivíduo "como um todo" E3, o poder de cura relacionado ao toque, e o fisioterapeuta "que tivesse uma excelente relação terapeuta/paciente" E5. Nesse período, o contato próximo do fisioterapeuta com o paciente, "transmitindo aquela vibração que se tem em trabalhar com ele" E2, proporcionada pelo "instrumento de cura da fisioterapia - a mão do fisioterapeuta" E9 e pelo acompanhamento do processo de reabilitação, geralmente longo, que valorizava mais "a relação terapeuta paciente que a técnica empregada" E9 - , foi considerado especificidade e vantagem da fisioterapia.

A proteção do território ocupacional

Segundo Wilensky1 a regulamentação da profissão vem assegurar o monopólio do saber e da prática profissional. Para tanto, a especificidade da fisioterapia deveria estar melhor definida, para que tal regulamentação viesse ao encontro da real necessidade da categoria.

De acordo com Rebelatto et al.5, um dos primeiros documentos oficiais que definem a ocupação do fisioterapeuta é o Parecer nº 388/63 do Conselho Federal de Educação. Esse parecer representa a força do papel reabilitador do fisioterapeuta na época; embora tivesse formação de nível superior, ele ainda era denominado técnico. O termo técnico vem marcar a competência de auxiliar do médico. Esse parecer serviu de guia até 1969, quando a fisioterapia é reconhecida como profissão de nível superior. Usando das atribuições em atos institucionais, os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, em 13 de outubro de 1969, por meio do Decreto-Lei nº 93817, reconheceram os fisioterapeutas diplomados por escolas e cursos reconhecidos pelo MEC como profissionais de nível superior e tornaram exclusiva a execução de métodos e técnicas específicas à categoria18.

Pode-se observar o quanto a legislação era vaga, quando não se tem a definição dos métodos e técnicas específicas ao fisioterapeuta, como apresentado no artigo 3° do Decreto-Lei nº 938:

"É atividade privativa do fisioterapeuta executar métodos e técnicas fisioterápicas com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade física do paciente"17. Segundo Wilensky1, "quando o conhecimento é geral e vago, ou muito estreito e específico, traz uma base fraca para a jurisdição exclusiva".

Em 3 de dezembro de 1971, é reconhecido o Curso de Fisioterapia da FCMMG, por meio do Decreto-Lei nº 69.68719, com importante participação da AMF e dos alunos: - "Passava fins de semana fazendo levantamento de biblioteca, tratando dos bichos no biotério pra quando viesse a comissão do MEC" E4. Após o reconhecimento da profissão no Brasil e do primeiro curso em Minas Gerais, o próximo passo foi o de regulamentação da profissão. Em 17 de dezembro de 1975, por meio da Lei nº 6.31620, decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, General Ernesto Geisel, foram criados o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional COFFITO - e os Conselhos Regionais de Fisioterapia e Terapia Ocupacional - CREFITOs.

Como apontado em algumas entrevistas, a legislação se mostrou mais como uma troca de favor obtida mediante articulações políticas "A gente sempre usa das oportunidades" E5, -"A gente procurava alguém que pudesse ajudar, influenciar lá em cima. Influência política, uma influência militar" E3.

A indefinição de suas atribuições levou os fisioterapeutas a lutar por uma legislação que reduzisse a competição interna, por meio da exclusão dos práticos e auxiliares - "a gente [o fisioterapeuta] acabou excluindo estas pessoas [auxiliares de fisioterapia e práticos]" E5 -; mas que pouco assegurou com relação à autonomia profissional e ao monopólio do saber e das condutas"A profissão realmente tá mais conhecida, mais divulgada. [...]O fisioterapeuta ainda depende muito do médico" E6.

O código de ética

A aderência a um conjunto de normas profissionais, por meio do código de ética, vem assumir um aspecto de controle e de organização do trabalho, acrescentando um critério distinto ao trabalho técnico do profissional, baseado no conhecimento adquirido por um longo treinamento1. Essas regras morais vêm com o intuito de eliminar os não qualificados e de reduzir a competição interna, protegendo os clientes e enfatizando o ideal de serviço. A criação do código de ética profissional do fisioterapeuta no Brasil deu-se em 197821, com a participação das associações profissionais regionais, dentre elas a AMF22. Esse código é centrado na auto-identidade do profissional e no ideal de serviço, características consideradas comuns naquelas profissões que procuram certo grau de autonomia. Wilensky1 considera que, na maioria das profissões em processo de consolidação, o estabelecimento de um código de ética aparece como o último passo.

Esse código21 contém seis capítulos, quais sejam: Das Responsabilidades Fundamentais, Do Exercício Profissional, Do Fisioterapeuta Perante as Entidades de Classe, Do Fisioterapeuta Perante os Colegas e Demais Membros da Equipe de Saúde, Dos Honorários Profissionais e Disposições Gerais. Nesses capítulos, pode-se observar o enfoque no profissional indo ao encontro da auto-identidade, e o enfoque no cliente indo ao encontro do ideal de serviço, como também observou Purtilo23.

Quanto ao enfoque no profissional, são apontados a valorização da honra, o prestígio e as tradições da profissão. É afirmada a atribuição de fazer o diagnóstico fisioterápico e elaborar o programa de tratamento, e é colocado como um dever pertencer a uma entidade associativa de classe. Como direito, a justa remuneração, como necessidade, a concorrência leal e o tratamento com respeito entre os colegas21.

Quanto ao enfoque no cliente, são colocados como dever a proteção, o respeito à vida e à intimidade, o poder de decisão e o sigilo profissional. Como proibições, negar ou abandonar assistência, divulgar terapia cuja eficácia não seja publicamente reconhecida ou prescrever tratamento sem examinar21.

O código de ética vem afirmar a necessidade de aderência do profissional ao ideal de serviço, ao enfocar o cliente até mesmo o protegendo. Vem penalizar ou até eliminar os não-qualificados, com penas disciplinares, e vem reduzir a competição interna. Apesar de que, no capítulo Disposições Gerais, o art. 3421 trata da possibilidade de alteração do código pelo COFFITO, não houve nenhuma alteração desde que foi criado.

Purtilo22 considera que, da década de 1950 até a atualidade, a ética do profissional fisioterapeuta se encontra em um período da identidade focada no paciente, e aponta um período futuro emergente quando se estabelecerá uma parceria mais ampla com cidadãos e instituições.

CONSIDERAÇOES FINAIS

Segundo Wilensky1 o futuro do profissionalismo depende do desenvolvimento na organização do trabalho e no conhecimento específico. Já para Machado4 o corpo esotérico do conhecimento deve conter os segredos e as técnicas próprias de cada profissão, assim como visibilidade social. Para a afirmação efetiva da fisioterapia, como profissão, torna-se então necessária a delimitação das especificidades do seu saber e do seu fazer (teoria e prática), com instrumentos próprios de apropriação e intervenção. Assim como em outras profissões24, também no caso da fisioterapia deve existir um esforço de se repensar sobre o objeto de trabalho e a metodologia que delimita sua ação, levando ao afastamento e à diferenciação do modelo médico de trabalho.

É indiscutível o quanto a fisioterapia tem avançado, tanto na produção de conhecimento específico e na implementação desse conhecimento na clínica, a chamada prática baseada em evidências, quanto em programas de pós-graduação lato sensu e stricto sensu; porém, a socialização necessária para o reconhecimento público ainda não foi alcançada.

Autores como Noronem3 acreditam que, enquanto o fisioterapeuta não identificar o seu papel e ser capaz de falar claramente sobre ele nas equipes multidisciplinares de saúde, a profissão não irá avançar. Machado25 reforça essa questão quando coloca que, apesar de o fisioterapeuta ter tradição de trabalho, essa é uma profissão nova, com pouca participação nas equipes do Sistema Único de Saúde.

Por fim, cabe destacar a importância de entender e teorizar sobre a história da estruturação do campo da fisioterapia, dando visibilidade ao processo ininterrupto das transformações impostas pelos condicionantes de cada momento histórico de sua profissionalização. Compreender as raízes da fisioterapia torna-se então fundamental para definir quem é esse profissional e para traçar os rumos da profissão no País.

Para finalizar, algumas questões importantes devem ser apontadas em pesquisas que utilizam fontes como entrevistas, atas de reuniões, leis e outros documentos para reconstruir e entender fatos históricos, no que se refere ao alcance desse material para tal fim. Considerando que grande parte do material utilizado neste trabalho foi obtida por meio de entrevistas, é pertinente lembrar que esta informação representa uma percepção social dos fatos, portanto está sujeita as pressões sociais do contexto em que são obtidas. Por outro lado, destaca-se também que um volume extenso da ciência social moderna em antropologia, sociologia, psicologia e educação é baseado na utilização de entrevistas como dado científico26,27.

Ao acompanhar como se deu a profissionalização da fisioterapia em Minas Gerais, pôde-se perceber certas características também encontradas em outras profissões1. A compreensão de como foi definida a necessidade da fisioterapia no estado, de como ela se organizou, e de como se deu a construção da identidade do profissional poderá contribuir para o entendimento da importância de se definir a especificidade da fisioterapia. A continuidade de estudos com esse enfoque poderá colaborar para o entendimento da fisioterapia nas Ciências da Saúde, e para a sua participação integrada na equipe multidisciplinar.

Recebido: 15/06/2005 — Aceito: 30/11/2005

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  • Correspondência para:

    Maria do Carmo Nascimento
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      2006

    Histórico

    • Aceito
      30 Nov 2005
    • Recebido
      15 Jun 2005
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