Acessibilidade / Reportar erro

Rastreamento de cardiopatias congênitas associadas ao diabetes mellitus por meio da concentração plasmática materna de frutosamina

Congenital cardiopathies screening associated with diabetes mellitus using maternal fructosamine plasma concentration

Resumos

OBJETIVO: avaliar a importância da concentração plasmática materna de frutosamina como indicador de cardiopatias congênitas fetais, em gestações complicadas pelo diabetes mellitus. MÉTODOS: o estudo retrospectivo incluiu 91 gestantes portadoras de diabetes mellitus, as quais foram submetidas à ecocardiografia fetal de rotina em centro universitário de referência em Medicina Fetal. Foram selecionadas 65 pacientes que apresentavam diabete pré-gestacional e registro em prontuário médico de frutosamina plasmática anterior ao exame ultrassonográfico. A primeira dosagem registrada foi confrontada com o resultado da ecocardiografia fetal de rotina, realizada por médico especialista do serviço. A presença ou ausência de achados ecográficos de cardiopatia congênita (AECC) foi relacionada aos níveis plasmáticos de frutosamina, por meio de teste de médias, e sua acuidade para AECC verificada por curva ROC. Foram discutidos como pontos de corte os valores da concentração plasmática materna de frutosamina de 2,68, 2,9 e 2,23 mmol/L, que são, respectivamente, o valor de referência local do laboratório, o do kit de dosagem empregado e o de maior acurácia global. RESULTADOS: o AECC foi encontrado em 52,3% dos fetos. A primeira dosagem de frutosamina durante o pré-natal aconteceu em média com 20,4±8,0 semanas de gestação. A capacidade da concentração materna de frutosamina em identificar fetos com AECC foi significante (p<0,0001) e apresentou área sob a curva ROC de 0,78 (IC95%=0,66-0,89). A concentração plasmática de frutosamina de 2,9 mmol/L apontou AECC com maior especificidade e, porém, com maior porcentual de falso-negativo (96,8 e 55,9%). Valores acima de 2,68 mmol/L associam-se à probabilidade de 4,6 em identificar fetos com AECC em relação a valores inferiores, com sensibilidade de 58,8% e especificidade de 87,1%. O valor de 2,23 mmol/L mostrou-se de maior acurácia global entre os três pontos sugeridos, com sensibilidade de 88,2% na identificação de fetos com anormalidades à ecocardiografia. CONCLUSÕES: é possível utilizar a dosagem plasmática de frutosamina materna, obtida no segundo trimestre, para direcionar gestantes de risco aos centros de referência em ecocardiografia fetal. Os achados são relevantes no seguimento de gestantes portadoras de diabetes mellitus que iniciam tardiamente o pré-natal.

Diabetes mellitus; Cardiopatias congênitas; Doenças congênitas, hereditárias e neonatais e anormalidades; Doenças fetais; Frutosamina; Ecocardiografia


PURPOSE: to evaluate the importance of maternal plasma concentration of fructosamine as an indicator of fetal congenital cardiopathies in pregnancies complicated by diabetes mellitus. METHODS: this was a retrospective study conducted on 91 pregnant women with diabetes mellitus who underwent routine fetal echocardiography at a university reference center in fetal medicine. Sixty-five patientes who presented pre-gestational diabetes mellitus and plasma fructosamine level were registered in the medical records prior to the ultrasound exam. The first measurement recorded was compared with the result of routine fetal echocardiography, carried out by a specialist physician of the service. The presence or absence of echocardiographic findings of congenital cardiopathies (EFCC) was related to plasma levels of fructosamine by the mean t-test and its accuracy for EFCC was verified by the ROC curve. Plsama fructosamine concentrations of 2.68, 2.9 and 2.23 mmol/L, which are, respectively, the local reference laboratory values, the value of the kit employed for measurement and the one of highest overall accuracy, were discussed as the cut-off values. RESULTS: EFCC was found in 52.3% of the fetuses. The first measurement of fructosamine, during the prenatal care period, was performed, on average, at 20.4±8.0 weeks of pregnancy. The maternal concentration ability of the fructosamine to identify fetuses with EFCC was significant (p<0.0001) and had an area under the ROC curve of 0.78 (95%CI=0.66-0.89). The 2.9 mmol/L plasma concentration of fructosamine revealed EFCC with better specificity, but with a higher percentage of false-negative results (96.8 and 55.9%). Values above 2.68 mmol/L were associated with a probability of 4.6 to identify fetuses with EFCC compared with lower values, with 58.8% of sensitivity and 87.1%, specificity. The value of 2.23 mmol/L proved to be the most overall accurate of the three values suggested, with a sensitivity of 88.2% in the identification of fetuses with echocardiographic abnormalities. CONCLUSIONS: it is possible to use a second trimester plasma fructosamine level to refer high risk pregnant women to a reference center of fetal echocardiography. These findings are important for the management of women with diabetes mellitus who initiate late prenatal care.

Diabetes mellitus; Heart defects, congenital; Congenital, hereditary, and neonatal diseases and abnormalities; Fetal diseases; Fructosamine; Echocardiography


ARTIGO ORIGINAL

Rastreamento de cardiopatias congênitas associadas ao diabetes mellitus por meio da concentração plasmática materna de frutosamina

Congenital cardiopathies screening associated with diabetes mellitus using maternal fructosamine plasma concentration

Zilma Silveira Nogueira ReisI; Ana Paula Brum MirandaII; Cezar de Alencar Lima RezendeIII; Renan Bragança DetofolIV; Carolina Ribeiro CostaIV; Antônio Carlos Vieira CabralV

IProfessora Adjunta do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte (MG), Brasil

IIMédica do Centro de Medicina Fetal da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte (MG), Brasil

IIIProfessor-associado e Chefe do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte (MG), Brasil

IVAcadêmicos bolsistas de Iniciação Científica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte (MG), Brasil

VProfessor Titular do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte (MG), Brasil

Correspondência Correspondência: Zilma Silveira Nogueira Reis Faculdade de Medicina do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Professor Alfredo Balena, 190, sala 4.016 CEP 30310-100 - Belo Horizonte (MG), Brasil Fone: (31) 3409-9763 E-mail: zilma.medicina@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: avaliar a importância da concentração plasmática materna de frutosamina como indicador de cardiopatias congênitas fetais, em gestações complicadas pelo diabetes mellitus.

MÉTODOS: o estudo retrospectivo incluiu 91 gestantes portadoras de diabetes mellitus, as quais foram submetidas à ecocardiografia fetal de rotina em centro universitário de referência em Medicina Fetal. Foram selecionadas 65 pacientes que apresentavam diabete pré-gestacional e registro em prontuário médico de frutosamina plasmática anterior ao exame ultrassonográfico. A primeira dosagem registrada foi confrontada com o resultado da ecocardiografia fetal de rotina, realizada por médico especialista do serviço. A presença ou ausência de achados ecográficos de cardiopatia congênita (AECC) foi relacionada aos níveis plasmáticos de frutosamina, por meio de teste de médias, e sua acuidade para AECC verificada por curva ROC. Foram discutidos como pontos de corte os valores da concentração plasmática materna de frutosamina de 2,68, 2,9 e 2,23 mmol/L, que são, respectivamente, o valor de referência local do laboratório, o do kit de dosagem empregado e o de maior acurácia global.

RESULTADOS: o AECC foi encontrado em 52,3% dos fetos. A primeira dosagem de frutosamina durante o pré-natal aconteceu em média com 20,4±8,0 semanas de gestação. A capacidade da concentração materna de frutosamina em identificar fetos com AECC foi significante (p<0,0001) e apresentou área sob a curva ROC de 0,78 (IC95%=0,66-0,89). A concentração plasmática de frutosamina de 2,9 mmol/L apontou AECC com maior especificidade e, porém, com maior porcentual de falso-negativo (96,8 e 55,9%). Valores acima de 2,68 mmol/L associam-se à probabilidade de 4,6 em identificar fetos com AECC em relação a valores inferiores, com sensibilidade de 58,8% e especificidade de 87,1%. O valor de 2,23 mmol/L mostrou-se de maior acurácia global entre os três pontos sugeridos, com sensibilidade de 88,2% na identificação de fetos com anormalidades à ecocardiografia.

CONCLUSÕES: é possível utilizar a dosagem plasmática de frutosamina materna, obtida no segundo trimestre, para direcionar gestantes de risco aos centros de referência em ecocardiografia fetal. Os achados são relevantes no seguimento de gestantes portadoras de diabetes mellitus que iniciam tardiamente o pré-natal.

Palavras-chave:Diabetes mellitus; Cardiopatias congênitas; Doenças congênitas, hereditárias e neonatais e anormalidades; Doenças fetais; Frutosamina; Ecocardiografia

ABSTRACT

PURPOSE: to evaluate the importance of maternal plasma concentration of fructosamine as an indicator of fetal congenital cardiopathies in pregnancies complicated by diabetes mellitus.

METHODS: this was a retrospective study conducted on 91 pregnant women with diabetes mellitus who underwent routine fetal echocardiography at a university reference center in fetal medicine. Sixty-five patientes who presented pre-gestational diabetes mellitus and plasma fructosamine level were registered in the medical records prior to the ultrasound exam. The first measurement recorded was compared with the result of routine fetal echocardiography, carried out by a specialist physician of the service. The presence or absence of echocardiographic findings of congenital cardiopathies (EFCC) was related to plasma levels of fructosamine by the mean t-test and its accuracy for EFCC was verified by the ROC curve. Plsama fructosamine concentrations of 2.68, 2.9 and 2.23 mmol/L, which are, respectively, the local reference laboratory values, the value of the kit employed for measurement and the one of highest overall accuracy, were discussed as the cut-off values.

RESULTS: EFCC was found in 52.3% of the fetuses. The first measurement of fructosamine, during the prenatal care period, was performed, on average, at 20.4±8.0 weeks of pregnancy. The maternal concentration ability of the fructosamine to identify fetuses with EFCC was significant (p<0.0001) and had an area under the ROC curve of 0.78 (95%CI=0.66-0.89). The 2.9 mmol/L plasma concentration of fructosamine revealed EFCC with better specificity, but with a higher percentage of false-negative results (96.8 and 55.9%). Values above 2.68 mmol/L were associated with a probability of 4.6 to identify fetuses with EFCC compared with lower values, with 58.8% of sensitivity and 87.1%, specificity. The value of 2.23 mmol/L proved to be the most overall accurate of the three values suggested, with a sensitivity of 88.2% in the identification of fetuses with echocardiographic abnormalities.

CONCLUSIONS: it is possible to use a second trimester plasma fructosamine level to refer high risk pregnant women to a reference center of fetal echocardiography. These findings are important for the management of women with diabetes mellitus who initiate late prenatal care.

Keywords:Diabetes mellitus; Heart defects, congenital; Congenital, hereditary, and neonatal diseases and abnormalities; Fetal diseases; Fructosamine; Echocardiography

Introdução

As consequências do diabetes mellitus (DM) mal controlado durante a gestação podem ser de elevada gravidade, tanto para mãe quanto para o feto. O risco de cardiopatias congênitas entre filhos de mães diabéticas está relacionado à qualidade da assistência à saúde prestada a estas gestantes1. O DM tipo 1 e o 2 estão associados com uma elevação no risco de malformações congênitas. Um controle glicêmico insatisfatório no momento do diagnóstico ou o início dos cuidados está associado ao aumento do risco de anomalias fetais2.

O DM materno é capaz de afetar o coração fetal estruturalmente e funcionalmente. Na gestação precoce há um efeito teratogênico primário na cardiogênese. Na gestação tardia a doença maternal associa-se à miocardiopatia hipertrófica3-5. Cardiomegalia é também um achado frequente em recém-nascidos de mães com DM e parece contribuir para o risco de morte fetal nestas gestações4. A relação entre o DM e os defeitos cardíacos congênitos na prole foi bem estudada, usando-se os dados do Baltimore-Washington Infant Study, entre 1981 a 1989, verificando-se uma elevação na chance de defeitos cardiovasculares no DM materno tipo 16. O reconhecimento dos riscos de teratogenicidade fetais entre gestantes diabéticas é uma justificativa suficiente para uma avaliação bioquímica adequada e o oferecimento de rastreamento de cardiopatias congênitas pela ecocardiografia fetal a todas as gestantes diabéticas1. Esta recomendação de referenciamento sistemático tem mudado a proporção de achados de anomalias cardíacas fetais associadas ao DM materno7,8.

Estudos experimentais sugerem que a hiperglicemia é um teratógeno maior na gestação complicada pelo DM, mas também outros fatores podem interferir no resultado fetal9-11. A medida da hemoglobina glicosilada e da frutosamina sérica permitem uma avaliação do controle recente dos níveis glicêmicos maternos, com importância já estabelecida na avaliação de eficácia das medidas de controle adotadas. Sabe-se também que a concentração de hemoglobina glicosilada no sangue materno, no início da gravidez, além da idade materna de início da doença estão associados às malformações congênitas11. As frutosaminas são cetoaminas formadas pela reação não-enzimática entre glicose e proteína (60 a 70% é glicosilada com a albumina sérica) associadas à gravidade e duração da hiperglicemia, refletindo diretamente a dinâmica da concentração de glicose das últimas uma a três semanas12,13. No entanto, o papel das frutosaminas como marcador de teratogenicidade da hiperglicemia tem sido pouco estudado, uma vez que a maioria dos protocolos de seguimento pré-natal tem por base para este prognóstico os níveis de hemoglobina glicosilada no início da gravidez.

O presente estudo tem por objetivo avaliar a ocorrência de achados ecográficos de cardiopatia congênita (AECC) associados aos níveis elevados de frutosamina materno, obtidos no segundo trimestre gestacional, em gestantes portadoras de DM. Possíveis valores da concentração plasmática materna de frutosamina de prognóstico, para o achado ecográfico antenatal de cardiopatias congênitas fetais, serão discutidos.

Métodos

Foi realizada avaliação retrospectiva nos atendimentos de ecocardiografia fetal do Centro de Medicina Fetal da Universidade Federal de Minas Gerais, no período de janeiro de 2000 a dezembro de 2007. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.

Foram encontradas 91 gestantes referenciadas para o exame por apresentarem gestação complicada por DM, com registro de dosagem sérica de frutosamina realizada durante o pré-natal, em data anterior à realização da ecocardiografia fetal. Para análise de prognóstico foram selecionadas 65 gestantes cujo DM foi classificado como prévio à gestação (PGDM). Um especialista em gravidez de alto risco classificou as gestantes na primeira consulta realizada no serviço de referência, considerando como diabete melito pré-gestacional (DMPG) quando a doença já era informada no início da assistência pré-natal. Outras informações obtidas em registro de prontuário médico foram o uso de insulina, a paridade, a data e o resultado da primeira dosagem de frutosamina além da idade gestacional do referenciamento (primeira consulta no serviço). A dosagem de frutosamina plasmática foi realizada no Laboratório Central do Hospital das Clínicas da UFMG, sendo obtida pela técnica colorimétrica (kit Gold Analisa Diagnóstica Ltda). Os valores de referência considerados na análise foram: o recomendado pelo laboratório como referência para a população atendida, baseado na variabilidade de 95% da população saudável (2,68 mmol/L); aquele sugerido pelo fabricante do kit (2,9 mmol/L) e o escolhido pelo melhor equilíbrio entre a sensibilidade e a especificidade.

A ecocardiografia fetal, indicada pelo obstetra, foi realizada pelo mesmo examinador especialista em medicina fetal (APBM). Foi empregado o equipamento Sonoace 8800 ultrasound (Medison, Seoul, Korea) com sonda de 3.5 MHz. Uma avaliação detalhada da anatomia cardíaca foi realizada por um tempo médio de 40 minutos, consistindo em avaliação estrutural no modo B, Functional no modo M e hemodinâmica pela doplerfluxometria. A avaliação incluiu: determinação da posição fetal, avaliação de acúmulos de fluidos corporais sugestivos de hidropisia, identificação do situs visceral e da composição do cordão umbilical. A relação entre a circunferência cardíaca e a torácica foi determinada. Uma visão de quatro câmaras cardíacas padrão, assim como uma do sistema venoso de drenagem pulmonar; septo atrial, forame oval, morfologia e função das valvas átrio-ventriculares foram obtidas. Foi realizada uma avaliação detalhada da estrutura e da função dos ventrículos, do septo ventricular quanto a sua espessura, da movimentação e da integridade. Grandes artérias, valva semilunar, ducto e arco aórtico foram checados. A função cardíaca global foi verificada pela espessura do miocárdio. Os AECC foram considerados funcionais quando a função cardíaca estava alterada, mas nenhuma alteração estrutural foi detectada. A presença de quaisquer anomalias estruturais, com ou sem comprometimento funcional, foi considerada como um AECC estrutural. Nesse grupo, a miocardiopatia hipertrófica foi analisada individualmente.

Mães cujos fetos apresentavam exame de ecocardiografia anormal foram comparadas àquelas cujos fetos exibiram exames normais quanto aos níveis plasmáticos de frutosamina pelo test t de médias. A acuidade das concentrações plasmáticas maternas de frutosamina em identificar fetos com presença ou ausência de AECC foi avaliada pela curva ROC. Os pontos de corte selecionados para a discussão foram: o valor de referência indicado pelo laboratório central do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, o valor sugerido pelo fabricante e o valor de melhor acurácia na análise da curva. O indicador J de Youden foi calculado para determinação do melhor ponto de equilíbrio entre a sensibilidade e especificidade: [(sensibilidade+especificidade)-1]%. O valor da sensibilidade e da especificidade, do falso-negativo e razão de verossimilhança positiva foram empregados para discussão dos três pontos de corte propostos. Empregou-se o programa SPSS, versão 15 e nível de significância de <0,005 para os testes de hipóteses.

Resultados

As características clínicas e obstétricas das 65 gestantes selecionadas, assim como o momento em que foi realizado o referenciamento para pré-natal de alto risco e a realização dos exames do estudo foram apresentados na Tabela 1. A maioria das mulheres fazia uso de insulina (64,6%), 32 (49,3%) delas tinham o diagnóstico de diabetes tipo 1, enquanto as demais eram portadoras do tipo 2 (50,78%). O tempo médio entre a primeira dosagem de frutosamina realizada no pré-natal e a realização da ecocardiografia fetal foi de cinco semanas.

O sumário dos achados do exame de ecocardiografia fetal, assim como as características maternas e ecográficas, categorizadas pela idade gestacional de inclusão no estudo, foram apresentados na Tabela 2. A primeira dosagem de frutosamina foi feita após as 20 semanas na maioria dos casos, devido à rotina de referenciamento do município. Nesse grupo, a paridade, o uso de insulina e a idade gestacional de realização da ecocardiografia foram similares àquelas avaliadas antes da 20ª semana. Entretanto, o grupo referenciado mais precocemente (<20 semanas) apresentava idade gestacional média na primeira dosagem de frutosamina mais precoce (p<0,0001) e os níveis plasmáticos mais elevados (0,0005) do que as referenciadas mais tardiamente. Apesar disto, não houve diferença entre a ocorrência de AECC entre os grupos (p=0,25).

Trinta e quarto fetos (52,3% de 65 fetos) apresentaram algum AECC. Na maioria deles, 28 fetos (82,3% de 34 fetos), foram detectadas alterações estruturais, isoladas ou associadas à alteração funcional. Os outros seis fetos (17,7%) com AECC apresentavam apenas alterações funcionais. Entre esses, a anormalidade funcional mais frequente foi o derrame pericárdico (66,7%), seguido de bradicardia (33,3%). Entre os achados de AECC estruturais, a cardiomegalia de quaisquer das câmaras cardíacas foi a anormalidade mais frequente, observada em 17 fetos (60,7%), seguida da comunicação intraventricular (39,3%). A miocardiopatia hipertrófica isolada estava presente em 14 fetos (50% das AECC estruturais).

Os níveis plasmáticos maternos da primeira dosagem de frutosamina no pré-natal variaram de 1,42 a 4,92 mmol/L. Se for considerado apenas o valor de referência recomendado pelo laboratório do serviço para a dosagem de frutosamina na gestação (2,68 mmol/L), 24 entre as 65 gestantes (36,9%) apresentavam valores anormalmente elevados. Entre essas, 83,3% gestavam fetos com AECC. Outro achado foi que nas gestantes cujos fetos apresentaram AECC foram encontrados valores médios mais elevados de frutosamina do que naquelas cuja ecocardiografia fetal não mostrou anormalidades (2,86±0,73 mmol/L, 2,22±0,54 mmol/L, respectivamente, p<0,0001).

A capacidade da concentração materna de frutosamina, dosada antes do exame ecocardiográfico fetal (20,4±8,0 semanas) para identificar fetos que apresentaram quaisquer AECC, foi significativa e pode ser avaliada na Figura 1, com área sob a curva ROC de 0,78 (IC95%=0,66-0,89; p<0,0001). Os pontos de cortes relacionados aos valores de referência maternos em uso pelo laboratório do serviço, o sugerido pelo fabricante e aquele com melhor acuidade diagnóstica foram apresentados na Tabela 3. A concentração plasmática de frutosamina de 2,23 mmol/L foi apontada como o melhor ponto de equilíbrio entre a sensibilidade e a especificidade. Valores acima deste identificam maior número de fetos com AECC em relação ao demais, pois apresenta maior sensibilidade (88,2%), mas se acompanha de 54,8% de resultados falso-positivos. O valor de 2,68 mmol/L, empregado como referência de normalidade para os níveis plasmáticos maternos, mostrou-se com elevada especificidade (87,1%) e está associado à chance 4,6 vezes de AECC em relação aos valores menores do que este ponto de corte. O valor de 2,9 mmol/L, sugerido no kit ANALISA, possui a maior especificidade (96,8%) e razão de verossimilhança positiva (13,7), mas com elevado porcentual de falso-negativo (55,9%) na identificação de fetos com AECC.


Discussão

Os resultados do estudo confirmam evidências anteriores de que a hiperglicemia, mesmo assintomática durante a gravidez, está associada à maior morbidade da prole9-11. Presente durante a embriogênese ela tem sido associada aos defeitos congênitos em gestações complicadas pelo DM e, nestes casos, o sistema cardiovascular fetal é um dos mais frequentemente afetados2,10. É orientação corrente de que a mulher portadora de DM deve planejar sua gestação para um momento euglicêmico, o que poderia reduzir o risco de doença cardíaca fetal1,13. Foi realmente desapontador reconhecer que poucas mulheres deste estudo tiveram acesso precoce ao serviço de referência e provavelmente à tal orientação. A dosagem de frutosamina antes ou após a 20ª semana de gestação não se associou a nenhum achado específico de AECC, e ambos os grupos apresentaram elevada frequência de achados ecocardiográficos. Acreditamos que esse grupo apresenta características particulares de referenciamento tardio e de gravidade do DM, pois a maioria delas fazia uso de insulina (64,6%). Tais características explicam a elevada ocorrência de AECC, presentes em 52,3% desta coorte. A realidade dos serviços de referência pôde ser evidenciada também em estudo realizado no hospital-escola de Porto Alegre (RS)14, que detectou frequência de 24,4% de fetos com anomalias cardíacas entre as 127 gestantes diabéticas, incluindo-se a forma pré-gestacional e gestacional.

Fetos nos quais foram identificadas quaisquer AECC apresentaram valores médios mais elevados de frutosamina do que nas gestantes cuja ecocardiografia fetal não mostrou anormalidades (2,86±0,73 mmol/L, 2,22±0,54 mmol/L, respectivamente). Apesar de a embriogênese cardíaca acontecer no primeiro trimestre e a primeira dosagem de frutosamina ter acontecido em média com 20,4±8,0 semanas, acredita-se que tais mulheres permaneceram com DM mal controlado, pelo menos até serem encaminhadas para o serviço de referência. Muitos estudos relatam maior chance de malformações fetais em gestantes que apresentam mau controle glicêmico no início da gestação. Entretanto, assim como estas, um substancial número de mulheres diabéticas não acessam precocemente programas de cuidados específicos1,15. Desta forma, é pouco provável ser possível acessar informações sobre os níveis glicêmicos do primeiro trimestre, sendo necessário encontrar marcadores que sejam também úteis no segundo trimestre. No presente estudo, 24 entre as 65 gestantes (36,9%) avaliadas tinham a primeira dosagem de frutosamina anormal registrada em seu prontuário e 83,3% de seus fetos apresentaram AECC.

Sabe-se também que, no período pré-concepcional e no início da gestação, os níveis glicêmicos e da concentração de hemoglobina glicosilada maternos sabidamente se associam à ocorrência de malformações fetais9. No entanto, a maioria das pacientes incluídas não apresentava esta informação registrada em prontuário.

A dosagem de frutosamina é o ensaio de proteína sérica glicosilada mais comumente usado. Uma vez que a albumina tem uma vida média de aproximadamente 14 dias, este teste representa os níveis glicêmicos médios das últimas duas a três semanas16. Se o nível de frutosamina está elevado, indica que o controle glicêmico neste período foi inadequado. A American Diabetes Association (ADA) reconhece a frutosamina como um teste útil em situações onde a glicohemoglobina não está acessível ou para ser usada associada a ela na monitorização das gestantes diabéticas17,18.

A falta de estudos a respeito da associação entre níveis de frutosamina e malformações fetais provavelmente se deve à posição já bem estabelecida da hemoglobina glicosilada avaliada no período da embriogênese. Valores de referência que quantifiquem a importância da concentração plasmática de frutosamina não foram ainda bem estudados. Ainda que a curva ROC tenha demonstrado uma significativa capacidade de concentração materna de frutosamina na identificação de fetos com AECC, possíveis pontos de corte merecem discussão e podem trazer informações relevantes. O valor de referência recomendado em nossa população (2,68 mmol/L), embora esteja associado à elevada especificidade (87,1%), mostrou baixa sensibilidade (58,8%). No entanto, uma gestante com níveis considerados elevados de frutosamina no segundo trimestre gestacional apresenta probabilidade 4,6 vezes maior de apresentar feto com AECC do que aquelas com níveis abaixo deste valor. Quando estes valores são superiores a 2,90 mmol/L, referência sugerida pelo fabricante do kit empregado, a especificidade para um achado de AECC será elevada (96,8%) assim como a probabilidade do teste alterado indicar o achado de 13,7 vezes maior, embora apenas 44,1% dos fetos comprometidos sejam identificados. No entanto, como a sensibilidade em identificar fetos com AECC deve ser suficientemente elevada para que um maior número de casos seja reconhecido no período antenatal, é sugerido também o ponto de corte matematicamente apontado de 2,23 mmol/L por apresentar maior sensibilidade entre os três propostos.

Baseado nestes achados, os níveis maternos anormais de frutosamina maternos, mesmo que no segundo trimestre gestacional, podem ser considerados marcadores de anormalidades cardíacas fetais. Gestantes com diagnóstico de DM são consideradas de alto risco para as anomalias cardíacas fetais e devem ser referenciadas para realização de ecocardiografia no segundo trimestre gestacional1, embora tal recomendação não esteja ainda bastante clara nas recomendações do último consenso nacional19. Entretanto, quando estes valores forem superiores a 2,23 mmol/L, recomenda-se que o exame de ecocardiografia seja realmente garantido à gestante e realizado em um serviço de referência para o diagnóstico, acompanhamento e abordagem pós-natal de cardiopatias congênitas.

Alterações ecográficas estruturais e funcionais nos fetos de mães diabéticas estão associadas ao mau controle glicêmico20. A miocardiopatia fetal é geralmente transitória sem consequências aparentes na maioria das crianças, mas pode responder por uma maior suscetibilidade à hipóxia e morte fetal nesta população21,22. O presente estudo aborda de uma forma global quaisquer anormalidades ecográficas e se restringe ao período antenatal, o que representa uma limitação na interpretação dos níveis circulantes maternos de frutosamina no prognóstico de anormalidades cardíacas permanentes. Estudos longitudinais e análises futuras com maior número de casos e seguimento pós-natal poderão elucidar melhor estes achados, os quais possuem limitações próprias da análise retrospectiva.

Recebido 12/1/10

Aceito com modificações 17/2/10

Trabalho realizado no Centro de Medicina Fetal da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte (MG), Brasil.

  • 1. Allen VM, Armson BA, Wilson RD, Allen VM, Blight C, Gagnon A, et al. Teratogenicity associated with pre-existing and gestational diabetes. J Obstet Gynaecol Can. 2007;29(11):927-44.
  • 2. Schaefer-Graf UM, Buchanan TA, Xiang AN, Songster G, Montoro M, Kjos SL. Patterns of congenital anomalies and relationship to initial maternal fasting glucose levels in pregnancies complicated by type 2 and gestational diabetes. Am J Obstet Gynecol. 2000;182(2):313-20.
  • 3. Chaudhari M, Brodlie M, Hasan A. Hypertrophic cardiomyopathy and transposition of great arteries associated with maternal diabetes and presumed gestational diabetes. Acta Paediatr. 2008;97(12):1755-7.
  • 4. Russell NE, Holloway P, Quinn S, Foley M, Kelehan P, McAuliffe FM. Cardiomyopathy and cardiomegaly in stillborn infants of diabetic mothers. Pediatr Dev Pathol. 2008;11(1):10-4.
  • 5. Hornberger LK. Maternal diabetes and the fetal heart. Heart. 2006;92(8):1019-21.
  • 6. Ferencz C, Correa-Villasenor A, Loffredo CA, Wilson PD. Genetic and environmental risk factors of major cardiovascular malformations: the Baltimore-Washington infant study: 1981-1989 [Perspectives in Pediatric Cardiology, 5]. Armonk: Futura Publishing; 1997.
  • 7. Hamar BD, Dziura J, Friedman A, Kleinman CS, Copel JA. Trends in fetal echocardiography and implications for clinical practice: 1985 to 2003. J Ultrasound Med. 2006;25(2):197-202.
  • 8. Avagliano L, Grillo C, Prioli MA. Congenital heart disease: a retrospective study of their frequency. Minerva Ginecol. 2005;57(2):171-8.
  • 9. Aberg A, Westbom L, Källén B. Congenital malformations among infants whose mothers had gestational diabetes or preexisting diabetes. Early Hum Dev. 2001;61(2):85-95.
  • 10. Buchanan TA, Kjos SL. Gestational diabetes: risk or myth? J Clin Endocrinol Metab. 1999;84(6):1854-7.
  • 11. Leonard CM, Bergman M, Frenz DA, Macreery LA, Newman SA. Abnormal ambient glucose levels inhibit proteoglycan core protein gene expression and reduce proteoglycan accumulation during chondrogenesis: possible mechanism for teratogenic effects of maternal diabetes. Proc Natl Acad Sci U S A. 1989;86(24):10113-7.
  • 12. Weerasekera DS, Peiris H. The value of serum fructosamine in comparison with oral glucose tolerance test (OGTT) as a screening test for detection of gestational diabetes mellitus. J Obstet Gynaecol. 2000;20(2):136-8.
  • 13. Jenkins KJ, Correa A, Feinstein JA, Botto L, Britt AE, Daniels SR, et al. Noninherited risk factors and congenital cardiovascular defects: current knowledge: a scientific statement from the American Heart Association Council on Cardiovascular Disease in the Young: endorsed by the American Academy of Pediatrics. Circulation. 2007;115(23):2995-3014.
  • 14. Behle I, Zielinsky P, Zimmer LP, Pontremoli M, Risch JN. Níveis de hemoglobina glicosilada e anomalias cardíacas em fetos de mães com diabetes mellitus. Rev Bras Ginecol Obstet. 1998;20(5): 237-43.
  • 15. Lapolla A, Dalfrà MG, Di Cianni G, Bonomo M, Parretti E, Mello G; Scientific Committee of the GISOGD Group. A multicenter Italian study on pregnancy outcome in women with diabetes. Nutr Metab Cardiovasc Dis. 2008;18(4):291-7.
  • 16. Goldstein DE, Little RR, Lorenz RA, Malone JI, Nathan D, Peterson CM, et al. Tests of glycemia in diabetes. Diabetes Care. 2004;27(7):1761-73.
  • 17. Goldstein DE, Little RR, Lorenz RA, Malone JI, Nathan DM, Peterson CM. Tests of glycemia in diabetes. Diabetes Care. 2004;27 Suppl 1:S91-3.
  • 18.Chaudry R, Gilby P, Carroll PV. Pre-existing (type 1 and type 2) diabetes in pregnancy. Obstet Gynaecol Reprod Med. 2007;17(12):339-44.
  • 19. Reichelt AJ, Oppermann MLR, Schmidt MI. Recomendações da 2a. Reunião do Grupo de Trabalho em Diabetes e Gravidez. Arq Bras Endocrinol Metab. 2002;46(5):574-81.
  • 20. Lopes APB, Costa CR, Bragança RD, Reis ZSN, Osanan GC, Cabral ACV. Echocardiographic findings of congenital cardiopathies among fetuses whose mothers had diabetes and their relationship with frutosamine plasma levels. J Perinat Med. 2009;37(s1): 579.
  • 21. Sheehan PQ, Rowland TW, Shah BL, McGravey VJ, Reiter EO. Maternal diabetic control and hypertrophic cardiomyopathy in infants of diabetic mothers. Clin Pediatr (Phila). 1986;25(5):266-71.
  • 22. Sardesai MG, Gray AA, McGrath MM, Ford SE. Fatal hypertrophic cardiomyopathy in the fetus of a woman with diabetes. Obstet Gynecol. 2001;98(5 Pt 2):925-7.
  • Correspondência:

    Zilma Silveira Nogueira Reis
    Faculdade de Medicina do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Minas Gerais
    Avenida Professor Alfredo Balena, 190, sala 4.016
    CEP 30310-100 - Belo Horizonte (MG), Brasil
    Fone: (31) 3409-9763
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Fev 2010

    Histórico

    • Aceito
      17 Fev 2010
    • Recebido
      12 Jan 2010
    Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3421, sala 903 - Jardim Paulista, 01401-001 São Paulo SP - Brasil, Tel. (55 11) 5573-4919 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: editorial.office@febrasgo.org.br