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O uso de anti-retrovirais em gestantes modifica o perfil lipídico?

Do antiretroviral agents modify lipid profile in pregnant women?

Resumos

OBJETIVO: avaliar o efeito das medicações anti-retrovirais sobre o metabolismo lipídico em gestantes portadoras do HIV. MÉTODOS: estudo prospectivo realizado em 57 gestantes que foram divididas em três grupos: grupo AZT, com 20 pacientes portadoras do HIV em uso de AZT; grupo TT, com 25 pacientes portadoras do HIV em uso de esquemas contendo três anti-retrovirais (AZT + 3TC + NFV) e grupo controle, com 12 pacientes. Os dados demográficos e antropométricos foram homogêneos entre os grupos estudados. Foram excluídas as pacientes com antecedentes pessoais ou familiares de hiperlipidemia. Amostras sanguíneas foram obtidas para avaliação dos lipídeos (colesterol total, frações LDL e HDL-colesterol e triglicerídeos) em quatro oportunidades durante a gravidez (1º = 14-20 semanas; 2º = 21-26 semanas; 3º = 27-32 semanas e 4º = 33-38 semanas). Os dados foram analisados utilizando-se os testes não paramétricos do chi², teste de Friedman e teste de Kruskal-Wallis. RESULTADOS: o uso de anti-retrovirais durante a gestação não induziu diferenças nas taxas do colesterol total e HDL, no entanto, o uso destes agentes esteve associado a elevação de 76,5 mg/dL e 84 mg/dL para 96 mg/dL e 105 mg/dL na concentração da fração LDL-colesterol para os grupos AZT e TT, respectivamente (p<0,01). Observou-se associação positiva significante entre os triglicerídeos e a carga viral nas gestantes do grupo AZT (r = 0,53; p = 0,015). CONCLUSÃO: a utilização dos anti-retrovirais durante a gestação eleva significativamente a concentração da lipoproteína LDL. Persistem as dúvidas se a gestação potencializa a longo prazo os efeitos dos anti-retrovirais sobre o metabolismo lipídico.

Drogas anti-retrovirais; Infecção HIV-1; Infecções na gravidez; Metabolismo lipídico


PURPOSE: to investigate the effect of antiretroviral drugs on the lipid metabolism in HIV-infected pregnant women. METHODS: a prospective study was conducted on 57 pregnant women. The women were divided into three groups: ZDV group, consisting of 20 HIV-infected women taking ZDV; TT group, consisting of 25 HIV-1-infected women on triple antiretroviral treatment (ZDV + 3TC + NFV), and control group, consisting of 12 pregnant women considered to be normal from a clinical and laboratory viewpoint. Demographic and anthropometric data were homogeneous. Patients with a personal and family history of hyperlipidemia were excluded. Blood samples were obtained for the determination of fasting lipids (total cholesterol, LDL and HDL, and triglycerides) at four periods during pregnancy (1st = 14-20 weeks; 2nd = 21-26 weeks; 3rd = 27-32 weeks and 4th = 33-38 weeks). Data were analyzed statistically using the nonparametric chi², Friedman and Kruskal-Wallis tests . RESULTS: the use of antiretroviral drugs during pregnancy induced no difference in total or HDL cholesterol but caused an increase from 76.5 and 84 mg/dL to 96 and 105 mg/dL in the concentration of the LDL fraction along gestation in ZDV and TT groups, respectively (p<0.01). A positive significant association was observed between triglycerides and viral burden in the ZDV group (r: 0.534; p=0.015). CONCLUSION: Antiretroviral agents during pregnancy increase serum LDL-colesterol levels. The risk of pregnancy regarding potentiation of long-term antiretroviral effects on lipid metabolism, remains to be established.

Antiretroviral drugs; HIV-1 infection; Infections in pregnancy; Lipid metabolism


TRABALHOS ORIGINAIS

O uso de anti-retrovirais em gestantes modifica o perfil lipídico?

Do antiretroviral agents modify lipid profile in pregnant women?

Patrícia El BeituneI; Geraldo DuarteI; José Ernesto dos SantosII; Silvana Maria QuintanaI; Ernesto Antonio Figueiró-FilhoI; Alessandra Cristina MarcolinI

IDepartamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

IIDepartamento de Clínica Médica, Divisão de Nutrologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência E ndereço para correspondência Geraldo Duarte Avenida Bandeirantes, 3900 Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP 14049-900 - Ribeirão Preto - SP Fone: (16) 602-2588 / Fax: (16) 633-0946 e-mail: gduarte@fmrp.usp.br

RESUMO

OBJETIVO: avaliar o efeito das medicações anti-retrovirais sobre o metabolismo lipídico em gestantes portadoras do HIV.

MÉTODOS: estudo prospectivo realizado em 57 gestantes que foram divididas em três grupos: grupo AZT, com 20 pacientes portadoras do HIV em uso de AZT; grupo TT, com 25 pacientes portadoras do HIV em uso de esquemas contendo três anti-retrovirais (AZT + 3TC + NFV) e grupo controle, com 12 pacientes. Os dados demográficos e antropométricos foram homogêneos entre os grupos estudados. Foram excluídas as pacientes com antecedentes pessoais ou familiares de hiperlipidemia. Amostras sanguíneas foram obtidas para avaliação dos lipídeos (colesterol total, frações LDL e HDL-colesterol e triglicerídeos) em quatro oportunidades durante a gravidez (1º = 14-20 semanas; 2º = 21-26 semanas; 3º = 27-32 semanas e 4º = 33-38 semanas). Os dados foram analisados utilizando-se os testes não paramétricos do c2, teste de Friedman e teste de Kruskal-Wallis.

RESULTADOS: o uso de anti-retrovirais durante a gestação não induziu diferenças nas taxas do colesterol total e HDL, no entanto, o uso destes agentes esteve associado a elevação de 76,5 mg/dL e 84 mg/dL para 96 mg/dL e 105 mg/dL na concentração da fração LDL-colesterol para os grupos AZT e TT, respectivamente (p<0,01). Observou-se associação positiva significante entre os triglicerídeos e a carga viral nas gestantes do grupo AZT (r = 0,53; p = 0,015).

CONCLUSÃO: a utilização dos anti-retrovirais durante a gestação eleva significativamente a concentração da lipoproteína LDL. Persistem as dúvidas se a gestação potencializa a longo prazo os efeitos dos anti-retrovirais sobre o metabolismo lipídico.

Palavras-Chave: Drogas anti-retrovirais. Infecção HIV-1. Infecções na gravidez. Metabolismo lipídico.

ABSTRACT

PURPOSE: to investigate the effect of antiretroviral drugs on the lipid metabolism in HIV-infected pregnant women.

METHODS: a prospective study was conducted on 57 pregnant women. The women were divided into three groups: ZDV group, consisting of 20 HIV-infected women taking ZDV; TT group, consisting of 25 HIV-1-infected women on triple antiretroviral treatment (ZDV + 3TC + NFV), and control group, consisting of 12 pregnant women considered to be normal from a clinical and laboratory viewpoint. Demographic and anthropometric data were homogeneous. Patients with a personal and family history of hyperlipidemia were excluded. Blood samples were obtained for the determination of fasting lipids (total cholesterol, LDL and HDL, and triglycerides) at four periods during pregnancy (1st = 14-20 weeks; 2nd = 21-26 weeks; 3rd = 27-32 weeks and 4th = 33-38 weeks). Data were analyzed statistically using the nonparametric c2, Friedman and Kruskal-Wallis tests .

RESULTS: the use of antiretroviral drugs during pregnancy induced no difference in total or HDL cholesterol but caused an increase from 76.5 and 84 mg/dL to 96 and 105 mg/dL in the concentration of the LDL fraction along gestation in ZDV and TT groups, respectively (p<0.01). A positive significant association was observed between triglycerides and viral burden in the ZDV group (r: 0.534; p=0.015).

CONCLUSION: Antiretroviral agents during pregnancy increase serum LDL-colesterol levels. The risk of pregnancy regarding potentiation of long-term antiretroviral effects on lipid metabolism, remains to be established.

Keywords: Antiretroviral drugs. HIV-1 infection. Infections in pregnancy. Lipid metabolism.

Introdução

A redução objetiva da transmissão vertical do vírus da imunodeficiência humana tipo 1 (HIV-1) com o uso de drogas anti-retrovirais caracteriza-se como um dos mais notáveis avanços para os pesquisadores desse assunto, visto que permite reduzir esta forma de transmissão em mais de 70%1. O uso isolado da zidovudina (AZT) está indicado para gestantes portadoras do HIV-1 visando somente a profilaxia da transmissão vertical deste vírus2. Por sua vez, a combinação de três ou mais agentes anti-retrovirais está recomendada durante a gestação quando o tratamento da mãe é necessário em função da carga viral elevada ou do comprometimento orgânico decorrente da infecção, no que pese a associação desses medicamentos com alguns para-efeitos. Dentre esses possíveis para-efeitos destacam-se as alterações sobre o metabolismo lipídico, notadamente com o uso dos inibidores de proteases3-7.

A hiperlipidemia é situação conhecida por levar a comprometimento da saúde em humanos8. O desenvolvimento de aterosclerose é um processo que dura a vida inteira, tendo início na infância. A extensão e gravidade das lesões arteriais aórtica e coronariana em homens e mulheres jovens sem doença cardiovascular clínica são proporcionais às concentrações séricas de colesterol total e colesterol-LDL9. Observa-se também que adultos hipercolesterolêmicos têm probabilidade de gerar crianças hipercolesterolêmicas10. Adicionalmente, a ocorrência de dislipidemia, em especial as hipertrigliceridemias, durante o período gestacional é fator predisponente para complicações maternas e perinatais, face à elevação da morbidade cardiovascular e pancreatite não raro associadas a essa condição, representadas pela elevação das taxas de mortalidade materna, parto pré-termo e piora dos indicadores de saúde perinatal11,12.

Apesar da clara associação entre o uso de inibidores da protease com eventos metabólicos lipídicos adversos, são raros os estudos que enfatizam estas alterações em gestantes utilizando esses fármacos. O presente estudo teve como objetivo portanto, avaliar prospectivamente o efeito dos anti-retrovirais sobre o metabolismo lipídico em gestantes portadoras do vírus HIV-1.

Pacientes e Métodos

Estudo longitudinal e prospectivo realizado na cidade de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, Brasil, no período de setembro de 2001 a março de 2003. O estudo foi realizado com 57 gestantes com idade entre 16 e 43 anos, com gestação única, independente de raça ou paridade. Dessas pacientes, 45 gestantes eram portadoras do HIV-1 e foram selecionadas no momento do seu ingresso na Divisão de Moléstias Infecto-Contagiosas em Ginecologia e Obstetrícia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP). As outras 12 gestantes foram categorizadas como grupo controle (clínica e laboratorialmente normais) e foram selecionadas na Divisão de Pré-Natal de Baixo Risco do HCFMRP-USP. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HCFMRP-USP e incluiu somente as pacientes que concordaram em participar do mesmo.

Considerou-se como portadora do HIV-1 a gestante com exames imunoenzimáticos (ELISA) positivos para anticorpos contra o HIV-1 em duas amostras séricas distintas, confirmados pelo teste de Western blot.

O presente estudo selecionou as pacientes portadoras do HIV-1 sem uso prévio de medicações anti-retrovirais. Essas gestantes foram subdivididas em dois grupos, designados grupo AZT e grupo TT. O grupo AZT foi composto de 20 gestantes que preenchiam os requisitos para uso profilático de zidovudina, com contagem de células TCD4 (CD4) >500 células/mL e carga viral <1.000 cópias/mL. O grupo TT foi composto por 25 gestantes com indicação clínica e laboratorial (CD4 <500 células/mL, independente da carga viral) para receberem terapia anti-retroviral tríplice (zidovudina + lamivudina + nelfinavir). Estes critérios são os estabelecidos pelo Perinatal HIV Guidelines Working Group Members quanto ao uso de terapia anti-retroviral na gestante13.

A dosagem orientada para o grupo AZT foi zidovudina 300 mg/dose em duas tomadas diárias. Para o grupo TT, utilizaram-se zidovudina 300 mg, lamivudina 150 mg e nelfinavir 1250 mg por dose em duas tomadas diárias.

Foram excluídas as portadoras de insuficiên-cia renal, hepática, coronariopatia, síndrome nefrótica, aquelas com história pessoal e familiar em primeiro grau de dislipidemia, diabete melito, portadoras de doença de Cushing, hipotiroidismo, doença do armazenamento de glicogênio, lúpus eritematoso sistêmico, porfiria aguda, obstrução biliar extra-hepática e anorexia nervosa. Excluíram-se também pacientes com índice de massa corpórea (IMC) inicial acima de 30 kg/m2, pacien-tes sem adesão ao uso regular dos anti-retrovirais e aquelas que utilizaram medicações que induzem anormalidades lipêmicas secundárias, como anti-hipertensivos (diuréticos tiazídicos, furosemida, beta-bloqueadores), corticosteróides, fenotiazinas, cimetidina, ciclosporina e amiodarona.

O valor da mediana da idade materna das pacientes do grupo controle foi 22,5 anos com variação interquartil de 6 anos. No grupo AZT foi de 24 anos (7 anos) e no grupo TT foi de 27 anos (6 anos), não sendo detectada diferença estatística entre estas variáveis (teste de Kruskal-Wallis, p=0,13). Quanto à raça (branca e não branca), observou-se que 83, 50 e 68% das gestantes respectivamente do grupo controle, AZT e TT apresentaram cor branca (teste do c2, p=0,14). A avaliação dos dados referentes ao tabagismo também não revelou diferenças significativas, observando-se que 91, 60 e 80% das gestantes do grupo controle, AZT e TT respectivamente não eram tabagistas (teste do c2, p=0,10). Quanto ao aspecto etilismo observou-se que 83, 70 e 52% das gestantes do grupo controle, AZT e TT, respectivamente, não ingeriam bebidas alcoólicas (teste do c2, p=0,14).

As amostras sanguíneas para dosagens séricas dos lípides (colesterol total, frações LDL e HDL-colesterol e triglicerídeos) após jejum de 12-14 horas foram coletadas por ocasião da primeira consulta e repetidas mais três vezes ao longo da gravidez, em intervalos entre a 14ª e a 20ª semana, a 21ª e a 26ª semana, a 27ª e a 32ª semana e entre a 33ª e a 38ª semana. Adicionalmente, foram avaliados o IMC e o ganho de peso obtidos no momento do ingresso no pré-natal e no momento do parto.

As amostras plasmáticas foram acondicionadas sob refrigeração a -70ºC até o seu processamento. O sangue foi coletado em vacutainer sem anticoagulante, processado em duplicatas para dosagem de colesterol e triglicerídeos pelos métodos enzimáticos automatizados, no equipamento Cobas Integra 400 da Roche.

A variabilidade dos níveis séricos dos lipídeos (colesterol total, LDL-colesterol, HDL-colesterol e triglicérídeos) durante a gestação foi analisada considerando-se a mediana e a variação interquartil (respectivamente no 1º e 3º quartis). Foram utilizados os testes não paramétricos do c2, Mann-Whitney, Kruskal-Wallis para comparações múltiplas entre grupos, o teste de Friedman para comparações múltiplas pareadas, com o teste post hoc de Dunn e o teste de correlação de Spearman. Consideraram-se significativas as diferenças com p<0,05. A análise estatística foi realizada utilizando-se o programa computacional SPSS 10.0.

Resultados

Os dados relativos ao número de linfócitos T-CD4+ e da carga viral do HIV-1 encontram-se na Tabela 1. Conforme esperado, a carga viral, ini-cialmente elevada (14.370 cópias/mL), reduziu significativamente no grupo com tratamento tríplice (TT), chegando a 40 cópias/mL. Os resultados mostram diferenças significativas entre os grupos AZT e TT (Mann-Whitney, p<0,0001). Quanto à contagem de linfócitos T-CD4+, observou-se recuperação significativa nas pacientes do grupo TT, inicialmente com mediana de 399 células/mL, chegando a 543 células/mL no final da gestação. Comparando os grupos TT e AZT, verificou-se diferença significativa destes números entre os dois grupos (teste de Mann-Whitney, p<0,0052).

Na Tabela 2 estão representados os valores das medianas do IMC inicial, do IMC ao término da gestação e do ganho de peso obtido desde o momento do ingresso das gestantes no pré-natal até o momento do parto, nos três grupos estudados. Pode-se observar que o IMC inicial dos grupos controle, AZT e TT foi, respectivamente, 21,9 kg/m2, 24,3 kg/m2 e 22,6 kg/m2 (teste de Kruskal-Wallis, p=0,13). A avaliação do IMC final também mostrou distribuição uniforme entre os grupos controle, AZT e TT, com medianas de 25,5 kg/m2, 27,7 kg/m2 e 26,5 kg/m2, respectivamente (teste de Kruskal-Wallis, p=0,25). Apesar do maior ganho de peso entre as gestantes do grupo controle, não se observaram diferenças entre as pacientes dos três grupos (teste de Kruskal-Wallis, p=0,10).

Na Tabela 3 estão os resultados referentes à evolução dos níveis séricos do colesterol total das pacientes dos três grupos avaliados. Observou-se acréscimo do colesterol total ao longo da gestação, independente do regime anti-retroviral utilizado (teste de Friedman, p<0,05). A comparação entre os níveis séricos de colesterol total entre os grupos nos quatro períodos gestacionais não se traduziu em diferença significativa (teste de Kruskal-Wallis, p>0,05).

Os resultados referentes à evolução dos níveis séricos do LDL-colesterol das pacientes dos três grupos avaliados estão na Tabela 4. Observou-se aumento significativo da fração LDL ao longo da gestação apenas nos grupos de portadoras do HIV-1, independente do esquema anti-retroviral utilizado (teste de Friedman, p<0,01). No grupo controle, apesar da elevação dos níveis séricos do LDL-colesterol de 89 mg/dL para 101 mg/dL, essa variação não foi significativa (teste de Friedman, p=0,06).

Observou-se estabilidade dos níveis séricos da fração HDL-colesterol durante a gestação. A mediana da fração HDL entre a 33ª e a 38ª semana foi de 59 mg/dL para o grupo controle, 54,5 mg/dL para o grupo AZT e 61 mg/dL para o grupo TT, não se demonstrando influência do período gestacional e dos anti-retrovirais sobre a fração HDL-colesterol (teste de Friedman, p>0,65).

Quanto à concentração sérica dos triglicerídeos, observou-se acréscimo mínimo de 50% dos níveis séricos dessa variável no período entre a 33 e a 38 semana, comparativamente ao período da 14ª à 20ª semana nos três grupos estudados ao longo da gestação, independente do uso de anti-retroviral (teste de Friedman, p<0,0001). A comparação entre as gestantes dos três grupos estudados demonstrou valores das medianas dos triglicerídeos de 225 mg/dL para o grupo controle, 157,5 mg/dL para o grupo AZT e 250 mg/dL para o grupo TT, no período compreendido entre a 33ª e a 38ª semana da gestação (teste de Kruskal-Wallis, p=0,09).

Na Figura 1 observa-se associação positiva entre os níveis dos triglicerídeos e a carga viral das gestantes portadoras do HIV-1 (coefi-ciente de correlação de Spearman, p=0,015) no período de 33 a 38 semanas nas pacientes do grupo AZT. No grupo TT não se verificou a mesma associação (coeficiente de correlação de Spearman, p=0,41).


Discussão

Hoje, não existem dúvidas de que a gestação não é razão para postergar a utilização da terapia anti-retroviral se necessária à saúde da mulher. Deve-se considerar, no entanto, dois aspectos: o uso de anti-retroviral como profilaxia para reduzir os riscos de transmissão perinatal do HIV-1 e a necessidade de terapia anti-retroviral para tratamento. Para este último objetivo, a utilização de esquemas contendo anti-retrovirais combinados é a opção mais adequada1,2,14,15.

Dentre os vários questionamentos relacionados ao uso dos anti-retrovirais combinados durante a gestação, existem dúvidas sobre o papel dos inibidores da protease (IP) na potencialização do risco de dislipidemia associada à gestação2. Após pesquisa nos principais bancos de dados médicos e experimentais, não se conseguiu encontrar resultados sobre os efeitos dos anti-retrovirais sobre o metabolismo lípidico, quando utilizados em gestantes. Sob esta ótica, a avaliação da presente casuística é inédita.

A literatura é rica em relatos a respeito dos efeitos da hiperlipidemia na saúde em humanos, aumentando o risco de morbidade cardiovascular5,8,16. O objetivo básico da intervenção nas dislipidemias é retardar o desenvolvimento de doença aterosclerótica, reduzindo as contribuições dos fatores circulantes para a progressão da doença. Estimou-se que a redução da concentração sérica de colesterol total de 300 para 200 mg/dL pode aumentar a expectativa de vida em até três anos e pode retardar a morbidade cardiovascular sintomática em até cinco anos17. As condições que favorecem a formação de placa aterosclerótica geralmente refletem o metabolismo anormal das lipoproteínas circulantes18,19.

No presente estudo pudemos comparar grupos homogêneos quanto à idade, obesidade, tabagismo, etilismo, história pessoal e familiar de diabete melito e dislipidemia8,9,18,19. Adicionalmente, entre os critérios de inclusão optou-se por incluir aquele que indicava mulheres com IMC inicial inferior a 30 kg/m2. Esse estudo selecionou gestantes com IMC inicial de 21,9 kg/m2, 24,3 kg/m2 e 22,6 kg/m2 entre os grupos controle, AZT e TT, respectivamente. O IMC ao término da gestação foi 25,6 kg/m2, 27,7 kg/m2 e 26,5 kg/m2 para os mesmo grupos, não havendo diferenças entre os grupos.

Presume-se que o quadro clínico lipidogênico secundário ao uso de anti-retrovirais seja devido à supressão do catabolismo da forma nuclear da proteína ligadora do elemento regulador de esteróis, favorecendo acúmulo dessas proteínas, com conseqüente aumento da biossíntese de colesterol e dos ácidos graxos no fígado e resistência insulínica no tecido periférico. Supõe, também que ocorram acréscimos na produção e secreção dos triglicerídeos e lipoproteínas, secundários ao uso dos inibidores da protease devido à inibição da clivagem da apolipoproteina B, bioquimicamente mediada pelas proteasomas20. Outro mecanismo infere que possa estar envolvida uma menor expressão dos receptores LDL21. No entanto, ainda não se encontram estudos aprofundados sobre a fisiopatologia das alterações induzidas por estes fármacos22-24.

A gravidez está associada a alterações fisiológicas importantes do metabolismo dos lipídeos. A primeira é a estimulação da lipólise e da cetogênese, fenômenos progressivos à medida que a gestação evolui. A segunda diz respeito ao aumento gradativo da concentração dos triglicerídeos circulantes com o evolver gestacional, porém, mais constantes no terceiro trimestre da gestação, período em que atingem concentrações de 1,5 a duas vezes acima dos níveis pré-gravídicos25.

No presente estudo observou-se elevação dos níveis de colesterol total durante a gestação nos três grupos estudados. Adicionalmente, observou-se elevação significativa dos níveis da fração LDL-colesterol apenas em gestantes portadoras do HIV-1, independente do esquema anti-retroviral utilizado. Os valores individuais dos níveis de triglicerídeos variaram de acordo com o período estudado nos três grupos, à semelhança dos achados observados em outro estudo que apontam aumento em 1,5 a duas vezes nesses níveis ao longo da gestação25.

Quando se comparam os valores encontrados nos três grupos, por faixa de idade gestacional, pode-se inferir que não houve diferença significativa entre os parâmetros do lipidograma (colesterol total e frações e triglicerídeos) entre as pacientes do grupo TT e as pacientes do grupo controle. O grupo AZT, apesar de delinear as mesmas tendências de acréscimo dos níveis dos triglicerídeos durante a gestação, exibiu acréscimo de 1,5 vezes em relação aos níveis gestacionais iniciais. A concentração dos triglicerídeos do grupo TT mostrou-se mais elevada que no Grupo AZT. Este fato pode ser justificado pela associação entre os níveis dos triglicerídeos e a carga viral verificada na presente casuística, achados semelhantes àqueles divulgados por Hadigan et al.23. Segundo esses autores, esses resultados sugeriram anormalidades metabólicas que ocorrem à presença do vírus no organismo. Reconhecem, entretanto, que esses achados podem representar o efeito dos fármacos piorando o controle lipídico associado com a melhora clínica e ganho de peso que estas medicações proporcionam. Adicionalmente, no presente estudo não se evidenciou mudança significativa no perfil do HDL durante a gestação, à semelhança dos achados observados em outro estudo, no qual se observou que os inibidores da protease não modificaram o perfil dessa lipoproteína em adultos3.

Apesar de os resultados da presente casuística demonstrarem elevação anormal do LDL-colesterol secundária ao uso de anti-retrovirais, deve-se considerar que os benefícios na redução da transmissão vertical do HIV-1 e no controle da saúde materna suplantam os riscos advindos do uso destas medicações. No entanto, persistem as dúvidas se a gestação poderia potencializar os efeitos metabólicos lipídicos dos anti-retrovirais, como o risco de pancreatite e aterosclerose prematura. A prospecção destas mulheres no período puerperal e a longo prazo poderia trazer importantes intervenções neste sentido.

Auxílio Financeiro: FAPESP (processo nº 01/08450-8)

Recebido em: 25/8/2003

Aceito com modificações em: 15/9/2003

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  • E
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Dez 2003
    • Data do Fascículo
      Set 2003

    Histórico

    • Recebido
      25 Ago 2003
    • Aceito
      15 Set 2003
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