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A literatura e o império lusitano: silêncio e palavra em tempos de exceção

Literature and the Lusitanian Empire: Silence and Word in Times of Exception

RESUMO

A sobreposição dos conceitos de pátria e império, muito incentivada pelo Estado-Novo, ainda incide nos debates sobre a história colonial, e por muito tempo reduziu o potencial crítico da política e da vida literária na metrópole lusitana. Recortada pelas contradições de um colonialismo obcecado pela ideia da singularidade, a sociedade portuguesa, somente depois da radicalização das relações nas colônias, formulou respostas que vieram a conferir densidade à crítica anticolonial, iniciada nos territórios invadidos, em que os escritores aliaram renovação estética e ética libertária.

Palavras-chave:
Pátria/império; colonialismo; vida literária; história/memória; crítica anticolonial

ABSTRACT

The overlapping of the concepts of homeland and empire, much encouraged by the Estado-Novo, still influences the debates on colonial history, and for a long time reduced the critical potential of politics and literary life in the Lusitanian metropolis. Drawn the contradictions of colonialism obsessed with the idea of singularity, only after the radicalization of relations in the colonies, the Portuguese society formulated responses that came to give density to the anti-colonial critique, initiated in the invaded territories, in which writers combined aesthetic renewal and libertarian ethics.

Keywords:
Homeland/empire; Colonialism; Literary life; History/memory; anticolonial criticism

Acompanhada de grande carga de subjetividade, a reflexão sobre as relações entre literatura e império integra um debate que não pode deixar de envolver dimensões da história, da memória e do já complicado terreno das identidades. Em se tratando do universo africano, a conexão entre escrita e geografia implica necessariamente considerar comportamentos e discursos que incidiram nas relações entre a metrópole e cada colônia. A estrutura colonizadora, apoiada em uma base triangular composta pelo “domínio do espaço físico, a reforma das mentes nativas, e a integração de histórias econômicas locais segundo a perspectiva ocidental” (Mbembe, 2014MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014., p. 16), abre poucas brechas para o questionamento de sua natureza e de seus propósitos. Diante de um “fato total”, como nos recorda Balandier (1993BALANDIER, Georges. A noção de situação colonial. Cadernos de Campo. Revista de Antropologia, São Paulo: Universidade de São Paulo, v. 3, n. 3, pp. 107-131, 1993. ) sobre o colonialismo, fica explicada a tibieza de uma crítica que se quisesse anticolonial. Principalmente a partir dos anos de 1930, quando se intensifica a ocupação dos territórios africanos, a instalação do regime ditatorial em Portugal torna menos viáveis posturas críticas a qualquer medida.

Somando-se a esse percurso, a interrupção recente da empresa colonial impõe outros condicionalismos à agenda relacionada com o império, pois o caráter de exceção que tinge a experiência dos atores envolvidos dificulta a serenidade crítica que outros quadros já permitem. Um inventário das narrativas revela dois aspectos importantes: por um lado, estamos diante de fatos ainda próximos do ponto de vista temporal, isto é, muitos participantes estão vivos e expondo a sua interpretação; por outro lado, particularidades atribuídas ao processo colonial lusitano assumem um caráter distintivo que se confunde com uma excepcionalidade que chega a saltar das avaliações do senso comum para o terreno da academia. Esse cenário, muito marcado pela “guinada subjetiva” (Sarlo, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo; Belo Horizonte: Companhia das Letras; Ed. da UFMG, 2007.), impôs padrões ao nosso tempo, provocando certo desequilíbrio entre a prevalência da memória e o pensamento, a que remete Beatriz Sarlo ao evocar Susan Sontag (Sarlo, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo; Belo Horizonte: Companhia das Letras; Ed. da UFMG, 2007., p. 21).

A convicção de que as análises devem considerar riscos trazidos pelos juízos anacrônicos e/ou pela condescendência diante do índice de barbárie nem sempre determina o rumo da argumentação. Sem desmerecer o sentido da memória como fonte de conhecimento, já se reconhece o perigo de seus abusos. Para muitos estudiosos, tais aspectos reclamam maiores investimentos na pesquisa histórica, e não só. Ao ressaltar a imprescindibilidade de “apuradas investigações que explorem, com métodos apropriados, o papel do Estado e de inúmeras instituições nesse processo e a constituição de redes de relações sociais variadas” (Jerónimo, 2016JERÓNIMO; Miguel Bandeira. Revisitando os lutos inacabados do império. In: RIBEIRO, António Sousa; RIBEIRO, Margarida Calafate. Geometrias da memória: configurações pós-coloniais. Porto: Afrontamento , 2016. pp. 61-94., p. 62), Miguel Jerónimo defende a interrogação da memória, inclusive com métodos comparativos, e a incorporação de material das ex-colônias.

A PÁTRIA NO IMPÉRIO E O IMPÉRIO NA PÁTRIA: PERIGOSAS LIGAÇÕES

Envolta em paixões que tornam mais sinuoso o terreno sobre o qual seria preciso pisar, a sociedade portuguesa revela-se especialmente permeável às ambiguidades cultivadas ao longo de sua história. A suposta ligação entre o projeto imperial e a ideia de pátria, construída desde a expansão e muito bem trabalhada pelo Estado Novo, interditou, durante um larguíssimo tempo, o surgimento de vozes críticas à história colonial e à independência dos territórios ocupados na África. Mesmo no campo literário, não obstante a marca da insubmissão que costuma acompanhar a trajetória dos escritores, só com a radicalização das condições políticas nas colônias, com a eclosão da luta armada de libertação, ecoaram na metrópole as notas de repúdio à opressão vivida do outro lado do mar.

O movimento que culminou com o golpe militar em 25 de Abril de 1974 viria, certamente, desenhar um cenário mais propício. Entretanto, o anúncio trazido pelos cravos no quadro da Revolução não bastou para afastar a nebulosidade subjacente às relações viciadas. Sob diversas formas, certas inquietações tingem a vida social e política, inserindo-se nos campos da memória, nos quais se abriga uma ideia nostálgica de império, fermentada tanto pelas instâncias mediáticas quanto pelos domínios da oficialidade, contra a qual, é bom ressalvar, uma enérgica reação tem propiciado um debate mais inclusivo para repensar esse passado, como comprova a proposta de edificação, na baixa de Lisboa, de um memorial alusivo às pessoas escravizadas, decisão que responde à iniciativa de uma associação civil, Djass - Associação de Afrodescendentes. A importância do fato cresce diante da notícia de que, a evocar o horror do tráfico, estará a obra de um artista africano: o angolano Kiluanji Kia Henda, com o projeto “Plantação: Pesadelo e Prosperidade”, que ficará junto ao rio Tejo (Lança, 2021LANÇA, Marta. Memorial de homenagem às pessoas escravizadas: uma mnemónica aberta à cidade sobre a escravatura. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.re-mapping.eu/pt/lugares-de-memoria/memorial-de-homenagem-as-pessoas-escravizadas . Acesso em: 15 jan. 2023.
https://www.re-mapping.eu/pt/lugares-de-...
).

Nesse quadro de avanços e recuos, também recentemente o mal-estar dessa história distante e, ao mesmo tempo, tão próxima, envolveu o projeto de criação, em Lisboa, do Museu das Descobertas, voltado à expansão e suas conquistas. O próprio nome acusava a evocação do passado colonial. A defesa da legitimidade de um itinerário cercado por contradições faz pensar no prédio como uma metonímia de um projeto mais amplo: no plano físico, estaria também edificado o patrimônio imaterial a que a sociedade não conseguiu renunciar peremptoriamente, o que explica a constante reiteração entre a expansão marítima e a mitologia nacionalista, em pronunciamentos de governantes, de artistas ou do cidadão comum. A força desse apego se desvela no próprio espaço físico, com abundantes alusões imperiais na toponímia a lembrarem a história majestosa do país, assim como na coleção de monumentos em homenagem a personagens como Vasco da Gama e o Padre António Vieira.

Esse jogo entre os ecos imperiais e o insurgente desejo de uma representação comprometida com a pluralidade deixa transparecer a forma hesitante com que são vistas as tensões entre uma grande dose de imperiofilia e a reivindicação de uma leitura pautada pela diversidade. Desse “imbróglio” deriva a urgência de um debate profundo sobre a descolonização das mentes (Thiong’o, 2005THIONG’O, Ngugi Wa. Decolonising the Mind: The Politics of Language in African Literature. Oxford: James Currey, 2005.), processo ainda embrionário inclusive no terreno da museologia. A partir da indagação “podemos descolonizar os museus?”, com que intitula um artigo, António Pinto Ribeiro coloca o dedo na ferida e defende a radicalidade como um caminho possível para a superação de velhos impasses. Para ele, no caso dos museus, “ou são pós-coloniais ou não são nada” (Ribeiro, 2016RIBEIRO; António Pinto. Podemos descolonizar os museus? In: RIBEIRO, António Sousa; RIBEIRO, Margarida Calafate. Geometrias da memória: configurações pós-coloniais . Porto: Afrontamento , 2016. pp. 95-111., p. 95).

O radicalismo dessa descolonização parece uma miragem. A argumentação de Pinto Ribeiro permite uma aproximação com o conceito de “zona de contato”, cunhado pela linguista Mary-Louise Pratt e incorporado por James Clifford ao analisar uma experiência no Museu de Arte de Portland1 1 O texto foi originalmente publicado em Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century (1997). Sua tradução está disponível em Clifford (2016). , uma abordagem muito bem integrada na zona interdisciplinar que as reflexões acerca do império reclamam. Sem deixar de realçar as dimensões interativas e improvisadas dos encontros coloniais, Pratt mantém o foco na “questão de como os sujeitos são constituídos nas e pelas suas relações uns com os outros”, com o olhar muito atento para as assimetrias que dão lastro ao poder (Pratt, 1999PRATT, Mary-Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999. , p. 37). E Clifford, ao explicitar sua posição, detalha:

Quando os museus são vistos como zonas de contato, sua estrutura organizacional enquanto coleção se torna uma relação atual, política e moral concreta - um conjunto de trocas carregadas de poder, com pressões e concessões de lado a lado. A estrutura organizacional de um museu-enquanto-coleção funciona como a fronteira de Pratt. Um centro e uma periferia são assumidos: o centro como ponto de reunião, a periferia como área de descoberta (Clifford, 2016CLIFFORD, James. Museus como zonas de contato. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza e Valquíria Prates. Periódico Permanente, n. 6, pp. 1-37, fev. 2016., p. 5).

Tantas particularidades dos laços envolvidos no caso português não permitem antever o fim da hegemonia das narrativas construídas sobre a desigualdade, alicerce decisivo do sistema colonial. Sem o abalo das assimetrias parece, portanto, improvável que instituições associadas a tais nexos tenham como norte “a descentralização e circulação das coleções em uma esfera pública multiplex”, viabilizando o que a perspectiva de contato propõe, isto é, “a especificidade local/global das lutas e escolhas relativas à inclusão, integridade, diálogo, tradução, qualidade e controle” (Clifford, 2016CLIFFORD, James. Museus como zonas de contato. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza e Valquíria Prates. Periódico Permanente, n. 6, pp. 1-37, fev. 2016., p. 25).

No caso português, a sobrevivência de marcos assimétricos penetra vários domínios e relativiza pressupostos do pensamento pós-colonial - corrente teórica cujo peso está articulado a sua “multiplicidade de autores e de programas de resgate, de denúncia, de representação da subalternidade ou de legitimação de movimentos sociais” (Ribeiro, 2016RIBEIRO; António Pinto. Podemos descolonizar os museus? In: RIBEIRO, António Sousa; RIBEIRO, Margarida Calafate. Geometrias da memória: configurações pós-coloniais . Porto: Afrontamento , 2016. pp. 95-111., p. 99), isto é, à recusa das narrativas-mestras e à crítica do eurocentrismo (Dirlik, 1997DIRLIK, Arif. The Postcolonial Aura: Third World Criticism in the Age of Global Capitalism. In: MCCLINTOCK, Anne; MUFTI, Aamir; SHOHAT, Ella. Dangerous Liaisons: Genre, Nation & Post-Colonial Perspectives. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997. pp. 501-528.). Formalmente abraçada por intelectuais portugueses, essa teoria tem seus efeitos limitados por uma espécie de obsessão memorial que insiste em subalternizar, quando não descartar, outras perspectivas.

A crítica ao apego a uma história fundacional, pouco propícia a exercícios analíticos mais consistentes, ganha radicalidade na leitura de Miguel Bandeira Jerónimo, que repudia a “privatização da memória”, uma consequência do indevido lugar que se vem dando ao testemunho, com graves prejuízos à distinção entre memória e identidade, que “surgem muitas vezes como uma e a mesma coisa, operação de constituição e interpenetração que tem beneficiado de uma participação ativa de certas escolas, ‘paradigmas’ e epistemologias oriundos do espaço acadêmico” (Jerónimo, 2016JERÓNIMO; Miguel Bandeira. Revisitando os lutos inacabados do império. In: RIBEIRO, António Sousa; RIBEIRO, Margarida Calafate. Geometrias da memória: configurações pós-coloniais. Porto: Afrontamento , 2016. pp. 61-94., p. 62). Tal indistinção projeta-se na desvalorização do rigor que deve presidir a produção do conhecimento, que precisa superar “uma memória desmesurada dos afetos, do testemunho pessoal, marcado pela instrumentalização do dramático, do singular, do acontecimento, do familiar, do pessoal e do intransmissível, inquestionável e propensa a todo tipo de usos e exclusões” (Jerónimo, 2016JERÓNIMO; Miguel Bandeira. Revisitando os lutos inacabados do império. In: RIBEIRO, António Sousa; RIBEIRO, Margarida Calafate. Geometrias da memória: configurações pós-coloniais. Porto: Afrontamento , 2016. pp. 61-94., p. 82).

A insistência na apreensão doméstica da história imperial faz da hesitação traço predominante em análises alimentadas por alguns atos incertos e muitas omissões ao longo dos séculos, em que a ideia do encontro entre colonizadores e colonizados não passava, porque não poderia passar, de uma miragem muito aproveitada pelo poder. E hoje, apesar das transformações alavancadas pela ação dos Capitães de Abril, quando o tema gira à volta da constituição imperial e das ações das metrópoles europeias, seja em discursos e ações de quadros políticos, de setores da sociedade civil ou de intelectuais, a reflexão não consegue barrar a carga emocional, reduzindo o alcance dos estudos pós-coloniais como opção metodológica na academia portuguesa.

PORTUGAL NÃO ESTAVA “ORGULHOSAMENTE SÓS”2 2 Expressão cunhada por Salazar como resposta ao isolamento diplomático sofrido por Portugal devido à sua política colonial a partir dos anos de 1960.

Se é verdade que a situação portuguesa tem as suas especificidades, também é inegável que, contrariando o lema salazarista, as reverberações da grande assimetria se espalham por todo o planeta. Temos um reflexo na insistente propagação do desenho do planisfério de Mercator, mesmo depois de ter suas incongruências conhecidas. Na imagem disseminada do mapa-múndi que conhecemos, a África tem sua dimensão equiparada a da Groenlândia, um território 14 vezes menor que ela. Desnudando a incongruência do planisfério utilizado como uma ferramenta científica, Carlos Lopes assinala: “alors que l’on sait pertinemment qu’elle est fausse et surtout qu’il existe la projection de Peters qui représente exactement la proportion territoriale des diférents continents”3 3 Entrevista concedida a Raphael Bourgois (Lopes, 2021). (Lopes, 2021LOPES, Carlos. Carlos Lopes: “Le respect de la diversité est le défi le plus important pour la démocratie en Afrique”. Entrevista a Raphaël Bourgois. 12 mar. 2021. Disponível em: Disponível em: https://aoc.media/entretien/2021/03/12/carlos-lopes-le-respect-de-la-diversite-est-le-defi-le-plus-important-pour-la-democratie-en-afrique/#:~:text=International-,Carlos%20Lopes%20%3A%20%C2%AB%20Le%20respect%20de%20la%20diversit%C3%A9%20est%20le%20d%C3%A9fi,pour%20la%20d%C3%A9mocratie%20en%20Afrique%20%C2%BB&text=D%C3%A9but%20mars%2C%20l’Assembl%C3%A9e%20Nationale,national%20brut%20promis%20depuis%201970 . Acesso em: 15 jan. 2023.
https://aoc.media/entretien/2021/03/12/c...
). E assinala que nem a sofisticação tecnológica do mundo digital conseguiu provocar a substituição dessa falsa representação espacial usada para a educação geográfica das populações, prova de que ela funciona como uma metáfora do desequilíbrio referido por Pratt.

Como herança da história imperial operada pela expansão europeia, esse marco do desequilíbrio é configurado na contraposição Ocidente/Oriente, a partir da qual Eduardo Said produziu textos firmes na demonstração da convergência de atos e perspectivas que definiram o mapa do mundo desde o final do século XV e geraram o que ele chamou “consenso imperial” (Said, 1996SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras , 1996. , p. 89). Convertida na mola mestra de parte substancial de sua obra, a preocupação em mergulhar nas redes intricadas da história, da qual as grandes navegações são apenas a face épica, acompanha o intelectual palestino que se detém no exame de forças que podem dispensar soldados e canhões, razão por que devota especial atenção às construções simbólicas que revigoram algumas perversões.

A consciência das outras lutas a serem travadas contra a supremacia do centro sobre a periferia deve conduzir a outras arenas. Considerando, ainda com Said, que “o vínculo entre cultura e política imperial é assombrosamente direto” (Said, 1996SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras , 1996. , p. 39), compreendemos que, nos processos de representação que dominaram as variadas formas de narrativa, situam-se alguns desafios encarados pelos atores da operação imperial e a natureza dos dilemas com que os intelectuais e artistas se confrontaram. Colhida em “O 18 brumário de Luís Bonaparte”, a frase que abre o volume de Orientalismo é expressiva do lugar demarcado para os submetidos da ordem: “Eles não podem representar a si mesmos; devem ser representados”. Nos diferentes modos de lidar com essa “verdade” residem hipóteses que permitem avaliar o lugar ocupado pelos escritores no exercício de seu papel nos diversos contextos da crítica anticolonial.

Nos últimos anos, a seriedade de trabalhos de pesquisadores como Cláudia Castelo, Manuela Ribeiro Sanches, Margarida Calafate Ribeiro, Miguel Cardina e Miguel Vale de Almeida, para citar apenas alguns atuantes em diversas áreas, aponta para a constituição de pontos de vista que questionam a defesa frequente de que o império lusitano fugiria aos modelos britânico e/ou francês. Já forte no plano interno, a crença em tais singularidades, demasiadamente presente no espírito dos nacionais, foi alimentada por vozes externas. Seguindo o poema “Os Lusíadas” - esse marco na história da poesia portuguesa, que sacraliza a aventura da viagem para a Índia como uma aposta épica na convergência entre a nacionalidade e a grande conquista -, no século XX as elites portuguesas acharam oportuno assegurar um lastro científico ao direito sobre os terrenos conquistados.

UMA VOZ DE FORA, MAS NÃO MUITO

Do campo externo, uma contribuição efetiva, sabe-se, foi a do brasileiro Gilberto Freyre, que empenhou seu talento e sua capacidade científica na encenação da “excepcional vocação para a vida nos trópicos” como atributo distintivo do povo português.

A semente dessa visão estava presente em Casa grande e senzala, lançado em 1936, mas houve um notável incremento com a publicação das Conferências na Europa (1938), republicada com o título O Mundo que o português criou (1940). Aí temos um fato de relevo entre os motivos que levaram ao convite para uma famosa viagem por Portugal e pelos territórios portugueses nos continentes africano e asiático no começo da década de 1950. Em Aventura e rotina, o interessante livro de viagem resultante desse périplo, multiplicam-se os sinais da correspondência quase integral entre os relatos de Freyre e o que dele esperavam o regime e seus apoiantes. Alguns bastidores da preparação da viagem, registrados na correspondência trocada entre o ensaísta pernambucano e José Osório de Oliveira, revelam partes importantes da natureza do projeto. A começar pelo esclarecimento de que as despesas seriam custeadas pela Junta de Investigação do Ultramar, que pertencia à Agência-Geral do Ultramar, órgão diretamente comprometido com a política colonial. Cláudia Castelo, ao elencar dados documentais, permite aos estudiosos verificar que, se a motivação de Freyre ao sair do Brasil era o interesse na pesquisa de campo para confrontar suas intuições relativamente à tipologia do colonialismo lusitano, as condições em que a viagem se realizou dificultariam a necessária isenção:

No prefácio a Um Brasileiro em terras portuguesas, Freyre salienta que aceitou o convite do ministro do Ultramar da República Portuguesa porque estavam asseguradas condições de “inteira independência”; não aceitava “encomenda, mesmo subtil, de livro ou série de artigos apologéticos”. Esta declaração escamoteia o que se passou na prática: o Estado português, por meio de diferentes organismos centrais e dos governos coloniais, custeou os encargos da viagem; coube ao ministro em articulação com os governadores determinar em grande medida o circuito (Castelo, 2021CASTELO, Cláudia. No encalço de Gilberto Freyre pelo último império português (1951-1952). In: POLÓNIA, Amélia et al (Coords.). Não nos deixemos petrificar: reflexões no centenário do nascimento de Victor de Sá. Porto: CITCEM, 2021. pp. 25-48., p. 27).

Com o tratamento oferecido, envolvido em um pacote de honrarias, que não dispensou a hospedagem com familiares no Palácio de Queluz, construiu-se uma grande simpatia entre o intelectual e os homens fortes do regime, especialmente aqueles mais ligados ao projeto colonial. A hipótese da viagem de caráter investigativo, modulada por interesses intelectuais, parecia condenada pelo roteiro organizado de modo protocolar por autoridades do núcleo salazarista, concentrado em um circuito composto por instituições e cerimônias oficiais. Onde buscar a garantia de uma dose efetiva de distanciamento crítico? Como resistir à sedução de um programa coberto por uma sucessão de gentilezas? Atuantes nas iniciativas que precederam o convite, o Ministro do Ultramar, J. Sarmento Rodrigues, e o já citado José Osório de Oliveira destacaram-se também na preparação da grande aventura por cinco territórios.

No comportamento do antropólogo emergem as contradições que vão traduzir os sentidos da viagem. O gosto pelos livros, que rende elogios a personagens como Salazar e Sarmento Rodrigues, não é levado em conta por Freyre, que em nenhum território no qual esteve mostrou-se receptivo a encontros com intelectuais em processo de ruptura com o regime colonial. Em Lisboa, a primeira escala do seu itinerário, o encontro com estudantes angolanos da Casa dos Estudantes do Império, um local agitado por iniciativas culturais significativas, foi marcado por atitudes paternalistas e desatenção aos problemas que deveriam ser tratados. Em Moçambique, na então cidade de Lourenço Marques, procurado por um grupo de intelectuais já envolvidos no ativismo cultural como projeto político, mostrou pouca disponibilidade para ver o que se passava nas colônias, como registra Virgílio de Lemos, um poeta moçambicano que, embora pertencente à elite da colônia, estava em desacordo com o regime colonial:

Expliquei isso ao Gilberto Freyre: as nossas reticências em relação ao luso-tropicalismo. Escrevi dois artigos, em resposta ao que ele dizia no livro Aventura e rotina, foram publicados numa revista. Expliquei-lhe quais eram as nossas posições, que não podíamos ser luso-tropicais: éramos um misto de várias culturas, éramos antropofágicos culturalmente, éramos qualquer coisa por criar ainda, uma identidade sempre em movimento (Lemos, 1998LEMOS, Virgílio de. In: LABAN, Michel. Encontro com escritores - Moçambique. Porto: Fundação Engenheiro Antonio de Almeida, 1998., p. 368).

Essa refração ao contato com outras interpretações do colonialismo e do governo português desmascara a feição apolítica que ele procura imprimir à redação do relato. Considerando-se a qualidade intelectual do hóspede e viajante, torna-se quase impossível creditar seu silêncio sobre a postura coercitiva do Estado Novo na metrópole e sobre as iniquidades perpetradas nas colônias a uma ingênua posição de neutralidade.

Algumas vezes por decisão de Freyre, outras vezes pelas insuficiências estruturais enfrentadas pelas colônias, a extensa programação não foi totalmente cumprida. Na realidade, a indisponibilidade para ver com olhos bem abertos, que deve marcar a atitude de um antropólogo, explica que o contato direto com as realidades vividas pelas populações africanas pouco tenha alterado as impressões que viajaram com ele desde o começo. Sempre que o reencontro que buscava com o Brasil não se viabilizou, Freyre indispôs-se com o real que o desapontava, como ocorreu, por exemplo, em Cabo Verde, onde as marcas da mestiçagem, que ele via como uma das particularidades da colonização portuguesa, não se mostraram com a intensidade prevista. Desiludido, desiludiu também alguns interlocutores com um comentário em Aventura e rotina sobre a existência de “um parentesco muito vago entre Cabo Verde e o Brasil”. A atrapalhar a similaridade desejada surgiram a taxa muito “negróide” da população e a língua crioulo, que jogava uma mancha na dominância da língua portuguesa como um dos troféus da colonização. Seu desconforto gerou observações desfavoráveis mesmo nas aproximações que procurou promover entre o nordeste brasileiro e as ilhas, demasiadamente africanas para comporem a síntese vista como um sinal de grandeza do “mundo que o português criou”. Não poupou sequer a área da gastronomia, ao explicitar o desencanto: “nenhum prato regional que me parecesse uma daquelas ‘contribuições para o bem-estar da humanidade’” (Freyre, 1953FREYRE, Gilberto. Aventura e rotina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953., p. 306). Tão aguardada, a visita desapontou os caboverdianos que, ansiosos por se projetar no cenário brasileiro, entreviam no exasperado visitante um parceiro.

Não se restringem ao Arquipélago os sinais de choque de Freyre durante a visita. Em Angola, a sensação de mal-estar foi provocada pela situação dos trabalhadores da Diamang (uma subsidiária da Anglo-American Diamond Corporation), empresa responsável pela exploração de diamantes. As terríveis condições de trabalho e vida que ali encontrou eram inconciliáveis com a previsão do quadro ameno da presença portuguesa na África. Para não colocar em causa a sua defesa do lusotropicalismo, a saída encontrada foi atribuir o grau de espoliação à contaminação da presença estrangeira. De acordo com Fernando Arenas, Freyre encontra justificativa na adoção de um “paradigma sócio-económico não português (ou veja-se, não luso-tropical)”, e vê “o esquema de segregação racial/cultural praticado pela Diamang como sendo um sinal da perniciosa influência do colonialismo belga (no Congo Belga vizinho), ou mesmo dos sul-africanos, tidos ambos como racistas na sua essência, em contraste com o português” (Arenas, 2010ARENAS, Fernando. Reverberações luso-tropicais: Gilberto Freyre em África 1. Disponível em Disponível em https://www.buala.org.2010 . Acesso em: 15 jan. 2023.
https://www.buala.org.2010...
). Do mesmo modo, em Moçambique, a possibilidade de “traição” à essência portuguesa recai na conta do estrangeiro, nesse caso na vizinhança. No derradeiro estágio do percurso africano ele encontra traços que o fazem pensar no sul brasileiro, mas sob alguns riscos. Segundo Fernanda Peixoto:

E no extremo sul do continente africano ele reencontra o sul do Brasil: população mais sóbria, mais “arianizada” e “anglicizada” do que em Luanda e Benguela, diz ele, sobretudo em capas mais burguesas da cidade, o que pode ser observado de diversos modos: na maneira europeizada como os negros se vestem, no gosto pelos desportes e banhos, no feitio das relações entre rapazes e moças, de uma “liberdade quase inglesa”. Vislumbra também aí perigos da proximidade com a África do Sul, e com o racismo. Mas a forte presença de marcas orientais na cultura tranquiliza o intérprete, reconduzindo-o à rota interpretativa de antemão (Peixoto, 2015PEIXOTO, Fernanda Arêas. A Viagem Como Vocação: Itinerários, Parcerias e Formas de Conhecimento. São Paulo: EDUSP, 2015., p. 202).

Sua recusa em admitir a legitimidade das culturas africanas em si próprias limitou a densidade do conhecimento que poderia ter acumulado. Para além da plasticidade da figura física e de alguns gestos, em suas análises o africano inexiste. Como nas páginas da literatura colonial, sobretudo aquelas que se definem pela linha do exotismo prevalecente, em Aventura e rotina o negro é, quando muito, complementar, isto é, um elemento que pode ser trabalhado pelo colono na produção de um espaço cultural que se demarca dos territórios em que vivem outros povos europeus. Que diferença podemos encontrar entre essa visão e a concepção das terras africanas como um espaço vazio, detectada, por exemplo, nos textos de Henrique Galvão? Alguns traços da obra de Freyre, como o seu fascínio pela hibridização, um certo tipo de hibridização (eu acrescentaria), poderiam fazer dele um pós-colonial avant la lettre, como observa Miguel Vale de Almeida, que logo alerta: “Também cometeu alguns erros ao ver o híbrido como um agregado de culturas diferentes e predefinidas e não tendo visto os encontros culturais como eivados de relações de poder” (Almeida, 2007ALMEIDA, Miguel Vale de. O Atlântico pardo. Antropologia, pós-colonialismo e o caso “lusófono”. In: BASTOS, Cristiana; ALMEIDA, Miguel Vale de; FELDMAN-Bianco, Bel. Trânsitos coloniais: Diálogos críticos luso-brasileiros. Campinas: Unicamp, 2007. pp. 23-37., p. 37).

Podemos, novamente, recorrer a Mary-Louise Pratt e ao conceito de “zona de contato” para interpretar os limites da abordagem de Freyre, que elide a questão de poder na análise da presença do colono nas terras invadidas e reduz o papel de sujeito que, mesmo sob a desigualdade das relações, o colonizado pode exercer. Fechando-se a encontros diversificados, na bagagem de volta dessa impressionante viagem Freyre trouxe reforçada a convicção acerca da “singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos”, argumento já presente nas primeiras notas de Casa-grande e senzala, livro decisivo para se compreender a formação do Brasil. Para compreender o continente africano e outros territórios que os portugueses colonizaram, porém, a viagem pouco resultou. No conjunto de suas afirmações sobre os terrenos pisados, ao fim e ao cabo, “o novo aprendizado, menos do que alterar a rota da reflexão, endossa as teses lusotropicais já esboçadas (amparadas nas ‘constantes portuguesas de caráter e ação’, as descobertas se colocando a serviço de teorias antes projetadas” (Peixoto, 2015PEIXOTO, Fernanda Arêas. A Viagem Como Vocação: Itinerários, Parcerias e Formas de Conhecimento. São Paulo: EDUSP, 2015., p. 196). Mais grave ainda, a publicação do livro, com uma escrita fascinante e a autoridade científica de que seu autor já desfrutava, engrossaria o acervo daquela biblioteca colonial de que falou, e tão bem, Valentin Mudimbe (2013MUDIMBE, Valentin Y. A invenção de África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Luanda: Mulemba; Mangualde: Pedago, 2013.).

Faz crescer a nossa perplexidade a percepção de que essa viagem tenha se dado na década de 1950, quando as derrotas do nazismo na Alemanha e do fascismo na Itália já lançavam luzes sobre o anacronismo do que ocorria em Portugal. As deficiências internas, derivadas do fracasso da opção pelo sistema corporativo como via política, agravaram-se com a derrocada dos Estados autoritários, que repercutiria também nas colônias, balançadas pela esperança de que os ventos democráticos do hemisfério norte tivessem ali alguma ressonância, sentimento que provocou uma grande agitação cultural como um passo essencial para a consciência política. Como interpretar a miopia de um cientista tão perspicaz que passou, por exemplo, por Angola e Moçambique sem perceber os seus sintomas da insubordinação?

O MITO E AS MÍSTICAS DO VELHO ESTADO-NOVO

O concerto entre o cenário internacional e a agitação interna à África conduziria ao ciclo das independências que foram negociadas a partir dos anos de 1950 no continente. Depois do caminho aberto por Gana e Guiné-Conakri, já em 1960, a Costa do Marfim e a Nigéria viriam confirmar o roteiro. Diferentemente de outras metrópoles, Portugal recusou a negociação, tendo investido fortemente em uma articulação mítica: uma nação una e indivisível e um povo destinado a civilizar primitivos. O investimento para singularizar o seu lugar e o seu papel foi crescendo e se percebe, inclusive, nas mudanças efetivadas no plano ideológico, as quais não abdicam, contudo, dos vínculos entre a identidade portuguesa e a suposta “vocação” colonizadora. Eram também um modo para compensar a dificuldade de ações mais concretas para reprimir qualquer campanha de libertação.

Pari passu com a “vocação” caminhava a crença na singularidade essencial do projeto protagonizado pelo “gênio aventureiro português”. A potencialização de algumas especificidades ocorreu a partir do golpe de estado que, em 1928, colocou António de Oliveira Salazar no centro de um sistema político com uma pauta ideológica que mesclava elementos insuflados pela presença do fascismo em outros países da Europa a uma base nacionalista, formada pelo conservadorismo católico e por matrizes integralistas. Com uma duração prolongada, o regime do Estado Novo, iniciado em 1933, elegeria como um dos mitos fundadores justamente o “mito imperial”, configurado no artigo 2º do Acto Colonial. Promulgado em 1930, esse primeiro documento de natureza constitucional do novo regime exprimia a sua proposta: “É da essência da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar populações indígenas” (Rosas, 2013ROSAS, Fernando. Salazar e o poder: a arte de saber durar. Lisboa: Tinta da China , 2013., p. 324). Mais que um compromisso, colonizar e civilizar tornam-se uma espécie de destino.

Com a subida de Salazar, o novo ciclo político no país instaurou outras abordagens da questão colonial, assumindo uma agenda que, em defesa de uma vinculação entre o país e a empresa colonial, procurava minimizar efeitos da conferência de Berlim, realizada em 1885. A alteração no código geopolítico exigia medidas do regime interessadíssimo em afirmar seu poder, dentro e fora do país. Para o ditador era fundamental tratar a “missão colonial” como um fato estrutural, um fenômeno constitutivo da nacionalidade, de tal modo que qualquer restrição ao projeto fosse vista como um atestado de lesa-pátria. A centralidade do fato colonial seria amparada juridicamente pela promulgação do Acto Colonial em 1930 e ganharia reforço com o lema “Portugal uno e indivisível, do Minho ao Timor”, incidindo na vida pública, ecoando no sistema de educação e na dinâmica da vida cultural.

Iniciava-se o ciclo das grandes exposições coloniais, do incentivo à produção da Literatura Colonial, estímulo que vinha especialmente da criação do Concurso de Literatura Colonial, da inclusão de mapas alusivos à extensão dos domínios pelo mundo afora, tudo a compor um conjunto a que Manuel Ferreira viria chamar de “pirotecnia colonial”. A finalidade era criar “uma verdadeira mística imperial, capaz de mobilizar os espíritos, arraigando no conjunto da população portuguesa o ‘amor’ pelos domínios coloniais” (Ferreira, 1989FERREIRA, Manuel. O discurso no percurso africano. Lisboa: Plátano, 1989., p. 62). Também contribuiria para a consolidação do império a simbiótica relação entre o papel colonizador do Estado Novo e o papel evangelizador da Igreja Católica, com larga atuação das missões na “educação dos indígenas”. O empenho dessas medidas pretendia superar a ligação entre pátria e império, apostando, na verdade, na justaposição desses conceitos.

Apesar de seu caráter unitário, o Estado Novo abrigava dissensões, e elas recaíam também na forma de atuar na gestão colonial. Com as crises que se avizinham no pós-guerra, emergem mesmo entre os próprios partidários de Salazar propostas de compatibilização da política para as colônias com o espírito que nascia. O medo inspirado pela implantação de uma outra ordem internacional - expressando o mundo bipolar em formação -, expresso na reformulação das relações entre algumas metrópoles e suas colônias, fez sentir a necessidade de adaptação. Nesse compasso, o governo é instado a fazer alterações que acabam por traduzir o “novo” espírito imperial na afirmação nacionalista: em lugar do império, uma nação pluricontinental e pluriétnica. Desse modo, os africanos não seriam povos submetidos a um país estrangeiro, mas “portugueses com outra cor de pele”. Tudo isso sem prejuízo para a desigualdade que continuava a reger a vida nas colônias. Em depoimentos de personagens dessa fase, Valentim Alexandre, apontando para a confluência entre a oposição e a situação, entre políticos, militares e diplomatas, transcreve, entre exemplos que comprovam a intenção de mudar sem alterar a substância, uma declaração do Comandante Lopes Alves, que, em alusão às restrições ao uso de palavras como “colônia” na Organização das Nações Unidas, sintetiza: “Por mim renuncio a ela de bom grado desde que continuemos com a autoridade que hoje temos para fazer aceitar a orientação que seguimos de ligar cada vez mais fortemente à Mãe Pátria os nossos territórios de além-mar” (Alexandre, 2017ALEXANDRE, Valentim. Contra o vento: Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960). Lisboa: Círculo dos Leitores, 2017., pp. 203-204).

Em resumo, a ordem portuguesa mantinha-se refratária à atmosfera de turbulência que envolvia o contexto internacional. Em sua perene aversão à mudança, seu Primeiro-Ministro, fiel a si próprio, e com o apoio da Igreja, dos pequenos camponeses do Norte e de grandes proprietários do Sul, governava o país com o desejo de congelar a realidade que via como ideal, apegado à obstinada defesa de “uma imagem romântica de Portugal e seu império, um mundo perdido no tempo, convicto de verdades há muito descartadas em outros lugares, atraente não só para os turistas” (Maxwell, 2006MAXWELL, Kenneth. O império derrotado: revolução e democracia em Portugal. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 37). Esse desejo de Salazar é confirmado por George Ball, um diplomata americano que, após uma visita a Lisboa em 1963, afirmou que “Salazar parecia viver ‘em mais de um século, como se o príncipe Henrique, o Navegador, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães ainda fossem agentes ativos na formação da política portuguesa’” (Maxwell, 2006MAXWELL, Kenneth. O império derrotado: revolução e democracia em Portugal. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 37). O diplomata poderia a essa lista ter acrescentado o nome de Luís de Camões, pelos versos consagrados à proeminência do gênio lusitano.

INQUIETANTES SILÊNCIOS E O VIGOROSO CONTRAPONTO

A adesão de Salazar e seus acólitos à ideia de que a expansão selava o destino do país e justificava essas opções não causa surpresa, afinal, o conservadorismo político e de costumes casava-se muito bem com a manutenção das colônias e a administração da imagem nacional. O que surpreende é o silêncio das forças de oposição identificadas com ideias progressistas acerca do colonialismo como projeto e como prática. A postura do Partido Comunista Português é emblemática. Situado na ponta extrema da contraposição ao salazarismo, fundado em 1921 e com uma longa história na ilegalidade, por uma questão de estratégia ou convicção o PCP manteve fora de suas preocupações, por longo tempo, a solidariedade com os colonizados. Dos anos de 1920, quando seu secretário-geral defendia a venda das colônias para fomentar a agricultura e o comércio do país, até a aprovação do programa da Revolução Democrática e Nacional, no 6º Congresso, em 1965, seu caminho é cheio de reticências. Em 1943, no seu 3º Congresso, no informe do próprio Secretário-Geral podemos ler:

Nós, comunistas, reconhecemos aos povos coloniais o direito a constituírem-se em estados independentes, embora os povos das colónias [sic], pouco desenvolvidos sob todos os aspectos, não possam por si sós, nas circunstâncias presentes, assegurar a sua independência (Guerra, 1993, p. 366).

Sobre a diferença entre Álvaro Cunhal e Oliveira Salazar não se pode ter dúvida. No entanto, o tom concessivo que marca o discurso algo ambíguo do primeiro faz lembrar a postura do segundo em suas advertências sobre a necessidade de defender o povo português de si próprio. A despeito da decisão do 5º Congresso, já apontando para uma aproximação com os movimentos de libertação das colônias, essas ambiguidades só foram efetivamente rompidas a partir de meados dos anos de 1960, com a organização de ações contra a guerra colonial no território metropolitano. Essa nebulosidade em que vemos envolvida a travessia das forças progressistas, de que o PCP é um substancial exemplo, comprova o sucesso da condução do ditador que, entre a violência preventiva e a violência punitiva, exercitou a “a arte de saber durar”, para usar a inspirada definição de Fernando Rosas (2013ROSAS, Fernando. Salazar e o poder: a arte de saber durar. Lisboa: Tinta da China , 2013.). Não sem uma dose de espanto, percebemos hoje, na atuação dos setores de esquerda, algumas reminiscências dessas nuvens, como as que podemos vislumbrar na proposta apresentada em 2017, pelo PCP, à Câmara de Lisboa, de um festival intitulado “Literatura dos Descobrimentos”, como nos recorda Livia ApaAPA, Livia. Giro di storia. Intorno al progetto del Museu dos Descobrimentos e ad altri esempi di patrimonializzazione del passato. Inédito. no artigo “Giro di storia. Intorno al progetto del Museu dos Descobrimentos e ad altri esempi di patrimonializzazione del passato”4 4 O artigo, ainda inédito, me foi cedido pela autora, a quem agradeço muito a gentileza do acesso. .

A VIDA LITERÁRIA: SILÊNCIO E VOZES DA EXCEÇÃO

Outro exemplo do sucesso do Estado-Novo vamos encontrar no panorama cultural português, com nosso foco na vida literária. Como militantes ou simpatizantes do PCP, ou mesmo como simples cidadãos, em sua grande parte os escritores portugueses exprimiam sua insatisfação com o fascismo, mas eximiram-se de avaliar a questão colonial e de promover uma campanha contra o racismo que grassava a sociedade portuguesa. Antes do fim da guerra colonial, até mesmo como elemento espacial, a África pouco figurou no sistema literário português, restando às suas “terras viciosas” apenas o lugar de cenário para o desenrolar das narrativas que compõem a chamada literatura colonial. Reis Ventura, Brito Camacho, Eduardo de Sousa Dias e Ferreira da Costa são alguns dos nomes que, durante os anos de realização do Concurso de Literatura Colonial, depois renomeado como Concurso de Literatura Ultramarina, aceitaram o desafio de preencher o que o Estado Novo chamou de vazio. Nenhum desses nomes costuma aparecer nas listas de escritores portugueses, o que denota a marginalidade dessa produção. Os holofotes dos prêmios voltados para esse repertório, que era uma maneira de construir um saber, como tanto defendeu Henrique Galvão, nome icônico da cultura colonial, não conseguiram assegurar a visibilidade que se pretendia.

Tendo como alvo tanto o público da metrópole quanto o número bem reduzido de possíveis leitores nas colônias, a ideia central da escrita colonial era convencer, nos dois lados, da grandeza e da legitimidade do projeto. Uma leitura apurada das obras mostra que o seu conjunto deixava a desejar e comprometia, de algum modo, o prestígio da literatura portuguesa, o que torna ainda mais espantosa a falta de resposta por parte dos escritores consagrados. Materialmente ocupados, os territórios foram também apropriados por uma literatura apoiada na exterioridade, sem fôlego para tratar da complexidade das relações que se desenhavam nesses contextos. Longe de mobilizar o interesse dos metropolitanos, essa escrita motivou, por outro lado, um sentimento de indignação que se mostrou produtivo para a vida literária nas colônias. Em entrevista concedida a Orlando Távora, pseudônimo de António Jacinto, José Luandino Vieira, que seria um dos maiores nomes da literatura de Angola, não escamoteia a sua indignação:

A literatura do tipo colonial que, ainda, infelizmente, se vem publicando. Também ela é responsável pela minha obra: era perante a leitura dessa “literatura” que jurava a mim mesmo escrever na senda que escolhera... Ela dava-me aquela raiva necessária para o fortalecimento da vontade (Topa, 2014aTOPA, Francisco. Luandino por reconhecer: uma entrevista, estórias dispersas, bibliografia. Porto: Sombra pela cintura, 2014a., p. 19).

As pistas presentes na poderosa síntese de Luandino Vieira levam-nos ao contraste entre o silêncio na metrópole e a dinâmica que começava a ganhar corpo nas colônias. Em Angola, Cabo Verde e Moçambique, principalmente, intelectuais identificados com a ideia de liberdade integram-se em movimentos culturais com evidente teor político. Baltasar Lopes, Jorge Barbosa, Agostinho Neto, Antonio Jacinto, Viriato da Cruz, José Craveirinha e Noémia de Sousa, entre outros, inserem-se em um coro cujo denominador comum é a insatisfação com a sociedade em que viviam. Para alguns, a consequência da rebeldia seria a prisão e/ou o exílio. Outros teriam uma sorte mais amena. Mas nas obras de cada um assomam os sintomas da sublevação contra o regime, contra o silenciamento e a deturpação das vozes dos colonizados.

Em Cabo Verde, onde o grau de mestiçagem racial alcançou níveis superiores em relação às outras colônias - resultado de uma colonização um tanto específica, a que não é indiferente o fato de se tratar de um arquipélago -, também a literatura trilhou veredas particulares, e linhas mais próximas da conciliação costuraram, nos anos de 1930, a sua história. O enfrentamento se deu de modo menos incisivo, com vozes firmes no que diz respeito ao desenho de uma transformação social, mas sem a contundência contra as raízes do sistema colonialista que localizamos em Angola e Moçambique.

Entre as colônias, Angola se destaca pela criação de um projeto coletivo francamente interessado em fazer da atividade literária um instrumento de luta. No roteiro traçado pelas letras afirma-se a convergência entre os escritores e os militantes, autorizando-nos a afirmar que poucos sistemas literários estiveram tão misturados à vida concreta e dialogaram tão fortemente com a História, em um movimento que vai além dos conteúdos e das formas dos textos, envolvendo de perto o processo e os próprios locais de produção das obras. O argumento da censura, que inibiu a ação dos escritores portugueses, não foi suficientemente forte para conter os angolanos. No final dos anos de 1940, eles iriam romper o silêncio que a literatura portuguesa tinha incorporado.

Aquela atmosfera do pós-guerra, que teria despertado o Estado-Novo para a oportunidade de alterações direcionadas para a proteção do legado dos bravos navegadores, teve em Angola um efeito diferente: em algumas de suas principais cidades a agitação cultural ficou para sempre associada ao resgate da identidade cultural e à emergência da moderna literatura angolana. No plano literário, seriam cultivados laços entre um movimento de libertação política e um projeto de reconstrução da cultura cujo eixo era constituído pela reinvenção de concepções e práticas votadas à ligação entre matrizes tradicionais e referências da modernidade. Essa aposta não perderia de vista a elaboração estética e determinaria o curso da poesia e da prosa de ficção.

Na primeira fase, o protagonismo coube aos chamados Novos Intelectuais de Angola, que imprimiram um outro ritmo às atividades literárias e grande perturbação ao funcionamento da gestão colonial. A revista Mensagem, com apenas três números editados entre 1950 e 1953, trazendo o lema “Vamos descobrir Angola”, catalisou um grupo de jovens, os quais confrontaram os mecanismos de repressão em atos de insubmissão só interrompidos com a independência, apenas conquistada em 1975, após onze anos de luta armada. As iniciativas no universo da cultura, com a organização de palestras, debates, concursos literários, saraus e outras atividades afins, preparavam o terreno para a insubordinação política.

Na organização desses atos, sobretudo a partir da década de 1960, é que se pode falar na colaboração entre os angolanos e individualidades portuguesas como as que integravam entidades promotoras de concursos literários. A Sociedade Cultural de Angola e a Associação dos Naturais de Angola são ótimos exemplos de instituições atentas à qualidade da literatura ali produzida. A excepcionalidade da produção também encontrou acolhida no Prêmio Mota-Veiga, organizado pelo jornal ABC: em 1964, foi concedido o primeiro lugar ao fabuloso Luuanda (1963VIEIRA, José Luandino. Luuanda. Lisboa: Edições 70 , 1963.), de José Luandino Vieira, livro que marcaria em vários níveis a história da literatura angolana, a história de seu autor e a história da repressão e da resistência até a independência (Topa, 2014aTOPA, Francisco. Luandino por reconhecer: uma entrevista, estórias dispersas, bibliografia. Porto: Sombra pela cintura, 2014a.). No júri que decidiu pelo vencedor estavam Alfredo Bobela-Motta, Mário Corte-Real, Maurício Ferreira Gomes e Eugénio Ferreira. Entre esses, para além do antifascismo evidente em suas posições, dois alimentavam um sentimento de comunhão com a terra. Eugénio Ferreira, autor de vários ensaios sobre Angola, seria um notável advogado de presos políticos, inclusive do autor do livro premiado, que, aliás, estava preso na altura do concurso. Alfredo Bobela-Motta, jornalista, também agregou à luta contra o fascismo formas de combate pelo nacionalismo angolano. Ele é autor de dois belíssimos volumes de contos: Não Adianta Chorar (Contos coloniais) (1979BOBELA-MOTTA, Alfredo. Não adianta chorar (Contos Coloniais). Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1979.) e Sô Bicheira e Outros Contos (1978BOBELA-MOTTA, Alfredo. Sô Bicheira e outros contos. Luanda-Lisboa: União dos Escritores Angolanos; Edições 70, 1978. ), publicados após a independência, que, em vivo contraste com a proposta exotizante da literatura colonial, ofereciam imagens atravessadas pela aspereza do sistema, na crueldade reservada aos homens da terra. Na montagem do foco narrativo, questão tão decisiva para o campo literário, emerge a perspectiva dominante de alinhamento com os da terra africana.

A existência de figuras como a de Bobela-Motta e Eugénio Ferreira, homens brancos pertencentes a um setor privilegiado no quadro social da colônia, poderia nos convencer da energia das redes contra o autoritarismo e a postura anticolonial. Na verdade, penso, trata-se de honrosas exceções para confirmar a regra de alheamento do conflito já aberto. Apesar das evidências da crise, mesmo entre os intelectuais preponderavam os casos de silêncio ou atitudes paternalistas baseadas na hipótese da infantilidade e do despreparo para a autonomia entre os africanos. Na metrópole ou nas colônias, agora chamadas de províncias ultramarinas, fixada a linha que demarcava os territórios, a segmentação racial vivia seu vigor. Dividida entre a cidade dos colonos e a dos colonizados, a sociedade colonial apostava em seu prolongamento.

A realidade das desigualdades socioeconômicas e, consequentemente, a baixíssima dose de letramento que, aos olhos dos colonizadores de boa-vontade, colocavam em causa o direito à autonomia dos povos, não impediram o aparecimento de uma literatura que segue merecendo a atenção de leitores e críticos. A participação dos escritores no roteiro da insubordinação assegurou um particular compromisso entre o sentimento nacionalista e o que chamamos de dinâmica cultural, gerando uma relação muito viva entre um projeto ético, ligado à libertação, e um projeto estético que perseguia formas próprias de dizer o mundo, com intrigantes ressonâncias na escrita literária. A resposta do colonialismo seria a condenação dos intelectuais e artistas aos chamados espaços de exceção, tratamento também reservado à produção musical e ao teatro. Além de Luandino Viera, já aqui referido algumas vezes, a trajetória de muitos, como Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz, António Cardoso, Costa Andrade, Pepetela, Liceu Vieira Dias (e outros integrantes do conjunto musical Ngola Ritmos) é emblemática da resistência dos angolanos e do olhar atentíssimo do regime, que tinha no jogo entre a violência preventiva e a violência punitiva um de seus pilares (Rosas, 2013ROSAS, Fernando. Salazar e o poder: a arte de saber durar. Lisboa: Tinta da China , 2013., pp. 190-210).

Utilizada sem qualquer hesitação no relacionamento com os colonizados, especialmente com os negros, a violência conheceria alguns matizes, porém, com a eclosão da guerra colonial/luta de libertação, integraria, de maneira cada vez mais intensa, o código regulador dos usos e costumes das terras ocupadas, e atingiria a metrópole. O endurecimento do regime tornava-se inquestionável quando a questão colonial vinha à tona. Dialeticamente, à radicalização da brutalidade do regime correspondeu a consolidação de algumas pontes a ligarem insubmissos da metrópole e das colônias. Mais uma vez, o nome de Luandino pode ser evocado, juntamente com o seu impressionante Luuanda. Parágrafos antes, fizemos referência ao Prêmio Mota-Veiga e à atitude corajosa dos membros do júri, que atribuiu o primeiro lugar a um livro de um autor detido “por atividades subversivas contra a segurança do Estado”, como constava da narrativa do regime. Episódios ainda mais espantosos envolveriam o mesmo livro, agora premiado pelo Concurso de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, com sede em Lisboa. A distinção do livro daria azo a medidas que evidenciariam a natureza e a definição do salazarismo e da ideologia colonial. Os acontecimentos, já bastante estudados (cf. Topa, 2014aTOPA, Francisco. Luandino por reconhecer: uma entrevista, estórias dispersas, bibliografia. Porto: Sombra pela cintura, 2014a. e 2014bTOPA, Francisco. Luuanda há 50 anos: críticas, prémios, protestos e silenciamentos. s.l.: Sombra pela cintura, 2014b.), envolvendo a invasão da sede da entidade, a prisão do júri e a perseguição dos dirigentes (não poupando nomes de prestígio, como Alexandre Pinheiro Torres, Augusto Abelaira, Jacinto Prado Coelho e Manuel da Fonseca) e, por fim, o encerramento da Sociedade, compõem um roteiro que remete finalmente à formação de uma rede entre a colônia e a metrópole. Despertado pelo combate nacionalista dos povos africanos, o mundo intelectual metropolitano quebra o silêncio que se arrastava. Um pouco tardia do ponto de vista dos angolanos, essa comunhão propicia outras aproximações.

Anos depois, com a vitória dos movimentos africanos e a instauração de outros pactos, a cena literária portuguesa conheceria novos sinais da relevância da conquista que a conjugação entre a palavra e a práxis revolucionária favoreceu. A guerra, com suas dores e os prejuízos que gerou para africanos e portugueses, seria um tópico importante no mapeamento da memória. Muito apagada no domínio oficial, ela dá visibilidade, na poesia e na prosa, a autores da dimensão de António Lobo Antunes, Fernando de Assis Pacheco, João de Mello, Lídia Jorge e Manuel Alegre, oferecendo a possibilidade de um conhecimento sequestrado pela literatura colonial.

Na sequência de títulos como Nós, os do Makulusu(1974), de Luandino VieiraVIEIRA, José Luandino. Nós, os do Makulusu. São Paulo: Ática , 1991 [1974]., de Baixa & musseques(1980), de António CardosoCARDOSO, António. Baixa & musseques. Lisboa: Edições 70, 1980., Estórias do musseque(1980), de Jofre RochaROCHA, Jofre. Estórias do musseque. São Paulo: Ática , 1980., As aventuras de Ngunga(1981), de PepetelaPEPETELA. As aventuras de Ngunga. São Paulo: Ática, 1981., no campo da prosa de ficção, que romperam o silêncio em Angola, muitos anos depois vimos surgir textos contra a farsa do colonialismo suave, conduzido pela fé e pela abnegação. Depois da longa fase de contenção do exercício crítico que se espera da atividade literária, alguns escritores portugueses manifestaram indignação perante os desmandos do colonialismo. Contra os protocolos da amnésia e da edulcoração de um tempo vincado por tanta violência, obras como Partes de África (1991MACEDO, Helder. Partes de África. Lisboa: Presença, 1991.), O Esplendor de Portugal (1997), e O Retorno(2011), de Dulce Maria CardosoCARDOSO, Dulce Maria. O retorno. Lisboa: Tinta da China, 2011., cumprem o papel de desmentir o “colonialismo inocente”, na irônica e sábia expressão de Eduardo Lourenço (2014). A legitimidade dessas vozes integra o movimento de descolonização do olhar, mas não há, todavia, como negar que foi necessária a radicalização da revolta pelas lutas de libertação para que, na metrópole, a solidariedade ganhasse corpo. E foram necessários muitos anos para que a literatura assumisse a responsabilidade de desmitificar as relações nos territórios invadidos. Efetivamente foi preciso muito tempo para que uma obra como o Caderno de memórias coloniais (2009FIGUEIREDO, Isabela. Cadernos de memórias coloniais. Lisboa: Editorial Caminho, 2009.), narrativa extraordinária de Isabela Figueiredo, desnudasse a brutalidade tão minimizada nas recordações dos “retornados”. Contrapondo-se à nostalgia que estrutura uma avalanche de obras incansáveis na edulcoração do “ultramar”5 5 Contrapondo-se à linha nostálgica de resgate colonial, foi lançado em 2022 o livro Memórias em tempo de amnésia, relato autobiográfico de Álvaro Vasconcelos. , o “diário” de Isabela, tão contundente em sua decisão de desvelar a segregação e a espoliação, colocaria em cena um sistema que insistia em confiscar a humanidade da imensa maioria de um território ocupado.

Ao trazerem experiências que desmentem a natureza dos brandos costumes cuja existência tanto encantou intelectuais como José Osório de Oliveira, de lá, e Gilberto Freyre, de cá, esses textos investem contra a nostalgia e a disposição celebratória que tingem o desejo de visitar a história do império. Graças à natureza de sua linguagem e à sua capacidade de produzir sentidos, a literatura opera outros modos de representar o real e permite outros modos de ler a história. Ainda que não tenham sido muitos os escritores que souberam ou puderam usar tal propriedade para se colocar contra a corrente imperial, com as obras de que dispomos hoje é possível compor uma hipótese de ponte sobre a qual se pode analisar, diacrônica e sincronicamente, as relações políticas e culturais entre Portugal e os novos países. E, assim, revitalizar a nossa compreensão a respeito do alcance e dos limites da crítica anticolonial em diferentes tempos e espaços, observando ainda a sua capacidade de fugir ao desconcerto do silêncio que é o selo da exceção que marca o colonialismo.

REFERÊNCIAS

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  • Errata

    No artigo “A literatura e o império lusitano: silêncio e palavra em tempos de exceção”, DOI <http://dx.doi.org/10.1590/1806-93472023v43n93-05>, publicado no periódico Revista Brasileira de História, vol. 43, n. 93, pp. 61-83,
    Na página 80
    Onde se lia:
    “Contra os protocolos da amnésia e da edulcoração de um tempo vincado por tanta violência, obras como Partes de África (1991), O Esplendor de Portugal (1997), e O Retorno (2011), de Dulce Maria Cardoso [...].”
    Leia-se:
    “Contra os protocolos da amnésia e da edulcoração de um tempo vincado por tanta violência, obras como Partes de África (1991), de Hélder Macedo, O Esplendor de Portugal (1997), de António Lobo Antunes, e O Retorno (2011), de Dulce Maria Cardoso [...].”
  • 1
    O texto foi originalmente publicado em Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century (1997CLIFFORD, James. Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century. Cambridge; London: Harvard University Press, 1997.). Sua tradução está disponível em Clifford (2016)CLIFFORD, James. Museus como zonas de contato. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza e Valquíria Prates. Periódico Permanente, n. 6, pp. 1-37, fev. 2016..
  • 2
    Expressão cunhada por Salazar como resposta ao isolamento diplomático sofrido por Portugal devido à sua política colonial a partir dos anos de 1960.
  • 3
    Entrevista concedida a Raphael Bourgois (Lopes, 2021LOPES, Carlos. Carlos Lopes: “Le respect de la diversité est le défi le plus important pour la démocratie en Afrique”. Entrevista a Raphaël Bourgois. 12 mar. 2021. Disponível em: Disponível em: https://aoc.media/entretien/2021/03/12/carlos-lopes-le-respect-de-la-diversite-est-le-defi-le-plus-important-pour-la-democratie-en-afrique/#:~:text=International-,Carlos%20Lopes%20%3A%20%C2%AB%20Le%20respect%20de%20la%20diversit%C3%A9%20est%20le%20d%C3%A9fi,pour%20la%20d%C3%A9mocratie%20en%20Afrique%20%C2%BB&text=D%C3%A9but%20mars%2C%20l’Assembl%C3%A9e%20Nationale,national%20brut%20promis%20depuis%201970 . Acesso em: 15 jan. 2023.
    https://aoc.media/entretien/2021/03/12/c...
    ).
  • 4
    O artigo, ainda inédito, me foi cedido pela autora, a quem agradeço muito a gentileza do acesso.
  • 5
    Contrapondo-se à linha nostálgica de resgate colonial, foi lançado em 2022VASCONCELOS, Álvaro. Memórias em tempo de amnésia. Porto: Afrontamento , 2022. o livro Memórias em tempo de amnésia, relato autobiográfico de Álvaro Vasconcelos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2023
  • Aceito
    21 Mar 2023
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