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Sabina das Laranjas: gênero, raça e nação na trajetória de um símbolo popular, 1889-1930

Resumos

Este trabalho parte de uma passeata realizada em 1889 por estudantes de medicina em favor de uma quitandeira desalojada de seu posto de venda, passando a discutir as maneiras pelas quais o evento foi tematizado ao longo da Primeira República. Com isto, pretende-se lançar luz sobre os meandros das políticas cotidianas raciais e de gênero no período, bem como a relação deste processo com a negociação da identidade nacional.

políticas raciais; identidade nacional; massificação cultural


This paper takes as its starting-point an 1889 march organized by medical students on behalf of a street-vendor displaced from her position. It goes on to explore the ways in which that event was taken up over the course of the First Republic, hoping to shed light on the twists and turns of the period's everyday racial and gender politics, and their relationship to the negotiation of national identity.

national identity; mass culture; racial politics


Sabina das Laranjas: gênero, raça e nação na trajetória de um símbolo popular, 1889-19301 1 Os autores gostariam de agradecer, além dos nomes citados ao longo do texto, a pessoas que debateram idéias aqui contidas, apresentando valiosas sugestões: Robert W. Slenes, Wlamyra Albuquerque, Camilla Agostini e os membros da linha de pesquisa História Social da Cultura, do programa de pós-graduação em História Social da Unicamp, onde uma versão anterior deste trabalho foi debatida.

Micol Seigel

Doutoranda, New York University

Tiago de Melo Gomes

Doutorando, Unicamp/ Fapesp

RESUMO

Este trabalho parte de uma passeata realizada em 1889 por estudantes de medicina em favor de uma quitandeira desalojada de seu posto de venda, passando a discutir as maneiras pelas quais o evento foi tematizado ao longo da Primeira República. Com isto, pretende-se lançar luz sobre os meandros das políticas cotidianas raciais e de gênero no período, bem como a relação deste processo com a negociação da identidade nacional.

Palavras-chave: políticas raciais; identidade nacional; massificação cultural.

ABSTRACT

This paper takes as its starting-point an 1889 march organized by medical students on behalf of a street-vendor displaced from her position. It goes on to explore the ways in which that event was taken up over the course of the First Republic, hoping to shed light on the twists and turns of the period's everyday racial and gender politics, and their relationship to the negotiation of national identity.

Keywords: national identity; mass culture; racial politics.

Na manhã de 25 de julho de 1889, em meio aos intensos debates políticos que marcaram o período, o Rio de Janeiro assistiu a uma manifestação bastante singular. Durante muitos anos, a vendedora de laranjas Sabina havia mantido seu comércio em frente à porta da Faculdade de Medicina. Um dia, o subdelegado da Freguesia de São José proibiu-a de manter seu pequeno comércio naquele local. O motivo possivelmente tenha sido a irreverência republicana dos alunos que ali se reuniam2 2 TINHORÃO, José Ramos. Música Popular: teatro & cinema. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 17. . Tendo em vista este fato, os estudantes tomaram uma iniciativa visando a revogar a proibição. Os relatos desta ação diferem em alguns detalhes mas convergem no essencial:

(...) os acadêmicos de todos os anos da escola reuniram se em frente ao edifício da Faculdade, às 10 H e, munidos todos de laranjas, fincadas nas pontas das bengalas e dos guarda-sol, saíram da academia, dois a dois, precedidos do homem dos sete instrumentos, e da mulher que o acompanha, formando o préstito mais original que temos visto.

Rompia a marcha uma espécie de estandarte, tendo à lança, uma coroa feita com bananas, chuchus e outros legumes, pendendo da bandeira duas largas fitas, nas quais foram gravadas as seguintes inscrições, em uma: Ao subdelegado do 1º distrito da freguesia de S. José oferece a Escola de Medicina; e em outra: Ao eliminador das laranjas.

Saindo do largo da Misericórdia, tomaram os rapazes a rua deste nome, passando pela 1º de Março, por entre alas de povo, que os saudava, enquanto, das janelas, as senhoras, rindo-se, acenavam, com os lenços, cumprimentando os.

Na rua do Ouvidor, onde foram saudadas todas as redações dos jornais que aí têm os seus escritórios, o préstito alongava-se, desde a rua 1º de Março, até a da Uruguaiana, formando uma enorme serpente, coleando por entre a multidão, dando as laranjas um aspecto imensamente alegre a tudo aquilo.

Caminhando sempre por entre um cortejo de vivas e de palmas, ao chegarem em frente ao edifício ocupado pela redação, escritório e oficinas desta folha, a mocidade ergueu estrepitosos vivas à Rui Barbosa e a todos os seus companheiros de trabalho, dirigindo-se em seguida até a Gazeta da Tarde, e daí ao edifício da Escola Politécnica, onde foi recebida com todas as honras, pelos colegas dessa academia.

Incorporados os alunos da Politécnica aos seus companheiros, fizeram logo larga colheita de laranjas, compradas no primeiro tabuleiro que encontravam, tomando então o préstito, mais aumentado, pela travessa de S. Francisco, ruas Sete de Setembro e Gonçalves Dias, onde cumprimentaram os estudantes as redações dos jornais: Novidades, Dia, e Revista Illustrada.

Dessa última rua seguiram outra vez pelas do Ouvidor, 1º de Março, Misericórdia até a Escola de Medicina.

A autoridade manifestada, logo que soube da ruidosa surpresa que lhe preparavam, longe de receber, em sua casa, à rua da Misericórdia, os autores de tão imponente idéia, evadiu-se, modestamente (o que não achamos louvável, mas sim de pouco espírito) a tão justa homenagem feita a quem se declara tão sério inimigo de uma das melhores frutas que possuímos.

Á vista desse procedimento, como quem depõe armas, após longa batalha pelejada, os acadêmicos penduraram, na porta principal do prédio ocupado pela autoridade, a coroa cívica que lhe fora destinada, deixando no corredor da entrada do edifício, como despojo da passeata, todas as laranjas (...)

De volta á Escola de Medicina, reuniram-se os acadêmicos em sessão solene, sendo nessa ocasião cumprimentados os alunos da Politécnica com um discurso entrecortado pelas palmas de todos os ouvintes" (Diário de Notícias, 26-7-1889).

Se ao leitor do século XXI causa estranheza a importância dada pelos estudantes à proibição do delegado, tal sensação se aprofunda quando se percebe que os vespertinos daquele dia e os matutinos do dia seguinte deram grande destaque ao evento, tratando-o como a principal notícia do dia. O contraste entre a estranheza sentida pelo leitor atual e a óbvia relevância do evento para os contemporâneos por si só aponta sua importância, mas não esgota, contudo, a riqueza de seus significados. A figura de Sabina se tornou tão conhecida a partir daquele momento, que voltou à tona, sob várias formas, ao longo de toda a Primeira República. O que este artigo pretende argumentar é que a figura de Sabina tornou-se recorrente por concentrar uma ampla gama de elementos a respeito das políticas cotidianas de raça e gênero e da negociação da identidade nacional, elementos que estavam em debate nos mais diversos espaços naquele período. Assim, por conseqüência, o estudo destas aparições de Sabina se mostra relevante para iluminar estes processos, assim como a importância do meio dentro do qual estas reaparições se deram: a cultura de massas.

Sobre o evento de 1889, o primeiro elemento que chama a atenção na cobertura dada pela imprensa à manifestação são os elogios ao seu caráter pacífico. Os jornalistas foram unânimes em afirmar que tudo ocorreu "na melhor ordem possível, e sem ocorrência alguma desagradável" (Gazeta da Tarde, 25-7-1889). Em outra visão, foi "genuinamente acadêmica, alegre, barulhenta e inofensiva" (Gazeta de Notícias, 26-7-1889). O Jornal do Commercio (26-7-1889) observou que "não houve da parte dos que a promoveram e levaram a efeito intuito de desprestígio a ninguém, nem de desobedecer a nenhuma autoridade". Contudo, apesar de estas descrições da manifestação ressaltarem seu caráter ordeiro, uma autoridade foi claramente questionada (ainda que um mero subdelegado) em pleno centro nervoso da principal cidade do País, ao som de ruídos de toda a espécie. Não deixa de ser surpreendente, neste contexto, a caracterização unânime da passeata como pacífica, em um momento em que os ânimos estavam exaltados, e violentos confrontos entre monarquistas e republicanos, como o ocorrido em dezembro do ano anterior, eram uma lembrança recente.

Na verdade, mais que pacífica, a passeata é relatada como sendo realmente divertida: a "pilhéria monumental dos estudantes de medicina" (Novidades, 27-7-1889) caiu no agrado geral, em primeiro lugar por seu lado cômico. Aparentemente isto se deu em boa parte devido ao fato de que, naquele universo mental, parecia próprio de estudantes realizar manifestações desta natureza3 3 Um gênero literário apreciado naquele momento era o das memórias estudantis, em que se lembravam aventuras de "pilares da nação" em seus tempos de estudantes. Ao comentar um livro deste gênero, sobre a Faculdade de Direito de São Paulo, Vieira Fazenda, em um artigo de 1907, enumera as características dos estudantes de então: "Pilhérias, anedotas, troça, sustos de sabatinas, tiros, pândegas da descuidosa vida acadêmica", da qual não deixavam de participar futuros "homens de respeito" (Vida Acadêmica. Revista do IHGB. Rio de Janeiro: 93:147, 1923.). . Os comentários da imprensa sobre a passeata em desagravo à Sabina não deixaram de ressaltar este ponto. Um cronista especialmente esclarecedor escreveu:

A boemia acadêmica de há vinte anos passados ressurgiu ontem, trocista e pilhéria, em plena rua do Ouvidor, vinda da escola de Medicina com escala pelas ruas da Misericórdia e Direita. A procissão das laranjas, que passou estrepitosamente às 11 horas da manhã, é o rejuvenescimento do espírito acadêmico, de que já não tínhamos hoje quase nenhuma manifestação, dessa troça que sumira-se na profunda vida de seriedade dos rapazes de agora, que escrituram como qualquer negociante a receita da pensão mensal com as despesas dos bailes obrigados à casaca, e que abandonaram as belas noitadas ao luar, em serenatas de modinha ao violão, pelas notas graves dos gravíssimos concertos clássicos" (Gazeta de Notícias, 26-7-1889).

Ou seja: os estudantes não apenas tinham o direito de promover manifestações que, dentro de certos limites, fossem cômicas e questionadoras, como deveriam fazê-lo, pois era o momento adequado para esse tipo de "travessura". Contudo, para manter a passeata dentro dos limites do permitido, os estudantes tomaram cuidados especiais para evitar qualquer tipo de oposição à sua atitude, acima de tudo evitando trazer à tona qualquer conteúdo político implícito no evento. O cronista citado, amplamente favorável à passeata e a divertimentos estudantis, seria também o mais óbvio testemunho desta preocupação:

Não houve nem um grito contra as instituições juradas, nem foi perpetrado discurso algum; e a um cidadão, que das janelas de uma casa da rua do Ouvidor começou a arengar, dizendo que este governo era o governo da opressão, responderam do préstito que eles não estavam fazendo uma manifestação política, mas uma manifestação agrícola, e deixaram o homem com o discurso atravessado na garganta.

Porém, narrativas posteriores do evento dão clara ênfase ao fato de que se tratou de um meeting republicano4 4 Ver MAGALHÃES Jr., Raimundo. Artur Azevedo e Sua Época. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 3ª edição, 1966, pp. 189-191, e o livro citado de José Ramos Tinhorão, baseado nas memórias de Ferreira da Rosa. Trabalhos sobre as revistas de ano endossam este ponto de vista, como RUIZ, Roberto. O Teatro de Revista no Brasil: das origens à Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Inacem, 1988, pp. 35-36. . O que indica que os membros da passeata, manipulando a liberdade de movimento que possuíam por serem estudantes e terem certa distinção social, utilizaram a oportunidade para realizar um evento de conteúdo político não manifesto mas suficientemente claro para todos os contemporâneos. Ao contestar a arbitrariedade de uma pequena autoridade, os estudantes foram hábeis o bastante para dar o seu recado sem insultar ninguém de modo direto.

A vítima direta do episódio foi o subdelegado, Jacome Lazary, que teve sua ordem revogada (sendo portanto desautorizado por seu superior), tornando-se alvo de chacota. Aqui pode-se lembrar o estudo já clássico de Robert Darnton, o qual sugere que um grupo de jovens adultos, desejando exprimir descontentamento em relação ao seu superior, utilizou elementos do charivari europeu de forma a evitar a punição5 5 DARNTON, Robert. "Os Trabalhadores se Revoltam: o grande massacre dos gatos na Rue Saint-Severin". In O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. Trad. Sônia Coutinho, 2ª edição, Rio de Janeiro: Graal, 1996, pp. 103-139. . De fato, o grupo de jovens protestando ruidosamente contra o subdelegado é um evento que não deixa de ter analogias com formas ritualizadas de protesto, como o charivari e a rough music, temas que já receberam estudos clássicos por parte da historiografia6 6 Ver por exemplo: DAVIS, Natalie Zemon. "Razões do desgoverno". In Culturas do Povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Trad. Mariza Corrêa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pp. 87-106; THOMPSON, Edward P. "Rough Music". In Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. Rosaura Eichemberg, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 353-403. . Se estas formas de protesto (ao menos em sua forma clássica) não faziam parte do repertório cultural corrente na Corte em 1889, seus habitantes tinham outra referência que poderia ser utilizada: o carnaval.

Sob este ponto de vista, não é difícil perceber que a passeata teve muito de carnavalesco, o que se torna claro na própria descrição da imprensa. Um exemplo foi a constante utilização da palavra "préstito" (lugar comum do vocabulário carnavalesco do período) em todos os relatos que apareceram nos jornais. O próprio trecho do jornal citado no início deste artigo descreve a passeata de um modo que em muito lembra um desfile de alguma agremiação carnavalesca, com seu desfile alegre pelas ruas centrais da cidade, as adesões espontâneas que recebia pelo caminho, a música, os acenos do público com lenços, etc. Vale lembrar ainda que a ridicularização humorística de um alvo definido através de símbolos e alegorias dificilmente soaria estranho aos cariocas do período, podendo até lembrar os apreciados carros de crítica das grandes sociedades. Outro dado é que as grandes sociedades carnavalescas, então em seu auge, haviam se caracterizado por seu engajamento na campanha abolicionista, e certamente o fato de os estudantes terem assumido a defesa de Sabina não deixava de trazer mais esta referência ao carnaval na passeata7 7 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 130-149. .

Contudo, a visão consensual da passeata que os jornalistas citados transmitiram à posteridade pouco informa sobre a participação da própria vendedora ao longo do evento, afora o fato de ela estar presente como símbolo do desagrado dos estudantes. Todavia, Sabina por certo tinha seu próprio ponto de vista sobre a sua situação. O cronista da Gazeta de Notícias explicava a seus leitores qual era a personagem principal da manifestação:

(...) aquela Sabina que não cessava jamais de gabar-se do seu tirocínio na escola, afirmando que matriculara-se ainda antes do Dr. Pizarro e que o Dr. Martins Teixeira, com toda a sua barriga, tinha sido seu calouro"(28-7-1889).

Assim, a vendedora de laranjas parecia considerar-se parte da tradição acadêmica, e a despeito da condescendência expressa na crônica citada, esta pretensão não parecia destituída de fundamentos para os contemporâneos. Quando de sua morte, a revista Brazil Médico, o principal periódico da medicina brasileira do período, não deixou de registrar o fato, por intermédio de seu diretor Azevedo Sodré:

Há bastante tempo não nos é dado registrar semana tão fértil em acontecimento interessando de perto à classe médica como a que vem de findar-se. Desde a recrudescência paroxística da letal endemia que de há longos anos assola e desacredita esta cidade, até a visita que ao hospital da Jurujuba fez o nobre Sr. Ministro do Império; desde o desaparecimento imprevisto da legendária Sabina, a conhecida e estimada vendedora de frutas junto às portas da Faculdade, até o suposto envenenamento das crianças em Niterói, tudo isso sobremaneira preocupou a atenção da classe médica e merece ser aqui devidamente consignado8 8 Brazil Médico, 15-1-1889. Tal fonte nos foi indicada por Josianne Francia Cerasoli, a quem agradecemos. .

A morte de Sabina era um evento digno de nota para a comunidade médica, colocada ao lado de epidemias e visitas de ministros imperiais, o que testemunha sua fama ao menos entre a comunidade acadêmica. Um jornalista chegou a afirmar por ocasião da passeata que

(...) Sabina morreu, morreu num quarto de hospital, para morrer no seu lar, entre a sua família, porque a família da Sabina eram todos os estudantes, e porque o seu lar, o verdadeiro, aquele em que ela vivia pela alma e pelo coração, era aquela grande casa de caridade. (Gazeta de Notícias, 26-7-1889)

Tal relato, que não escondia o paternalismo por trás de um tom romantizado, se é eficaz como testemunho da celebridade de Sabina, é notavelmente insuficiente para descrever a experiência da vendedora. Afinal, Sabina era uma descendente de escravos (um dos relatos chega a afirmar que se tratava de uma liberta) que obtinha a sobrevivência nas ruas da Corte, o que indica tratar-se de uma mulher que não era ingênua e que saberia utilizar o prestígio de seus fregueses. O testemunho de Vieira Fazenda neste ponto é esclarecedor. Ao comentar em 1907 o debate entre estudantes de medicina sobre a conveniência de manter os trotes violentos ou trocá-los por uma imediata socialização entre calouros e veteranos, o historiador da cidade comentava:

Desta segunda opinião era aqui, no Rio de Janeiro, a célebre Sabina. Dizia a espertalhona: os veteranos deviam comprar todos os dias muitas laranjas para com elas obsequiar os novatos. Pura questão de interesse, sem visos de sinceridade9 9 VIEIRA FAZENDA. O p. cit., p. 53 .

Além do julgamento moral ("pura questão de interesse"), Vieira Fazenda coloca em destaque as manobras de Sabina para obter seu sustento da melhor maneira possível ("espertalhona") e também sua fama ("célebre Sabina"). Assim, torna-se claro que a vendedora tinha seu próprio ponto de vista a respeito de sua situação, e certamente menos idílico que o fornecido pelo jornalista citado. E não seria arriscado imaginar que utilizasse sua freguesia privilegiada como meio de obter alguma distinção. A longa convivência com sua clientela provavelmente lhe deu algum status, o que se verificaria na dificuldade de retirá-la de seu posto quando da proibição.

Uma demonstração do prestígio de Sabina seria o próprio fato de que muitos dos jornais e todos os memorialistas que mencionam o evento ignorassem que Sabina não era a vendedora destituída do pequeno comércio em julho de 1889. Na verdade, Sabina havia morrido alguns meses antes, como atesta a observação do editor da revista Brazil Médico, citada acima. Desde então, seu posto havia sido assumido por Geralda, outra vendedora. Mas para muitos tal fato passou despercebido, e a protagonista do evento foi chamada pelos jornais de "Sabina", "Geralda", "Sabina II" ou, um tanto estranhamente, "Rosa Sabina Geralda". Um jornalista chegou a observar que "a autoridade policial, que não se animara a rebelar-se contra a Sabina, revolta-se agora contra a instituição, ataca o segundo reinado e proíbe a venda de laranjas!" (Gazeta de Notícias, 26-7-1889). O prestígio adquirido por Sabina ao longo dos anos muito provavelmente tenha retardado a atuação da polícia sobre seu espaço até depois de sua morte, o que não deixa de testemunhar também sua habilidade em se utilizar de suas boas relações.

Além dos diversos elementos bastante sublinhados nas diversas narrativas deste evento, pode-se ir mais longe, e observar ainda um outro aspecto que, embora não registrado por jornalistas, exerceu uma importância capital em todo o evento. Após mencionar o ridículo do subdelegado, o caráter pacífico do protesto, a restauração do posto da vendedora, a eficácia da pilhéria, seus fins republicanos, é preciso ainda ressaltar a utilização do corpo de Sabina.

De fato, no desagravo que promoveram, os estudantes representaram-se como indivíduos desinteressados que lutavam por justiça, o que ficaria demonstrado por terem, apenas em nome de seu ideal, lutado pela restituição do ganha-pão de uma pobre mulher. Repleto de símbolos de marginalização (pobreza, pele negra que remetia à instituição da escravidão, ainda viva até período bastante recente, o fato de ser mulher, idade avançada), o corpo de Sabina era por si só uma eloqüente afirmação de protesto, muito diferente dos jovens e saudáveis corpos dos estudantes de medicina (o que era lembrado por sua própria profissão), certamente mais brancos que Sabina e em sua maioria membros de restritos círculos das elites nacionais.

E foram estes homens que utilizaram o corpo de Sabina para exprimir seu protesto, certamente confiando no privilégio de seus próprios corpos para manter sua segurança física fora de perigo. Para visualizar a importância da presença dos corpos jovens e saudáveis que organizaram a passeata, pode-se imaginar a atitude da polícia da Corte em relação a um evento semelhante promovido por capoeiras ou estivadores10 10 Ver TROCHIM, Michael. "The Brazilian Black Guard: Racial Conflict in Post-Abolition Brazil". In The Américas. 44.3, 1988, pp. 286-290; GOMES, Flávio dos Santos. "No Meio das Águas Turvas (racismo e cidadania no alvorecer da República: a Guarda Negra na Corte ¾ 1888-1889)". In Estudos Afro-Asiáticos. nº 21, 1991, pp. 75-96. , em comparação com a indulgente hilaridade com a qual os espectadores das ruas encararam o protesto. No limite, pode-se dizer que Sabina acabou retomando seu posto a salvo porque inspirou hilaridade à sua própria custa. Os estudantes de medicina posicionaram sua enorme figura tanto como um objeto de ridículo quanto de simpatia, sublinhando de forma incontestável a distância que separava seu corpo dos saudáveis futuros médicos. Basta observar a ênfase dada em descrições às dimensões do corpo e ao tom da pele de Sabina para se ter uma boa idéia da importância dos aspectos ridículos e cômicos na passeata11 11 Um exemplo seria o próprio Ferreira da Rosa, base da descrição citada por José Ramos Tinhorão, cujo texto fala em "gorda ex-escrava", "pesadona", etc., op. cit. A Gazeta de Notícias de 26-7-1889 reproduziu um desenho da passeata, onde ocupava lugar central a figura de Sabina, em uma representação que sublinhava fortemente a cor de sua pele e suas dimensões físicas. .

Esta certamente não foi a primeira vez em que membros da elite representaram-se como um grupo altruisticamente unido para resgatar marginalizados sociais, sendo o abolicionismo um precedente óbvio deste evento neste sentido. Também como a campanha abolicionista, a passeata mostrava membros de grupos de elite contando uma versão da história nacional na qual figuravam o respeito e a gratidão por parte dos afro-brasileiros em relação a seus condescendentes superiores brancos. Isto não encerra contudo a história aqui descrita, pois estes eventos viriam a ser tematizados ao longo de toda a Primeira República, recebendo novos e às vezes surpreendentes sentidos. Este é o tema do qual este artigo se ocupará em diante. Examinando a evolução das representações desta figura, o objetivo é lançar alguma luz sobre as políticas de raça e gênero durante o período estudado.

Pressupõe-se aqui que este processo, do qual as aparições de Sabina são parte ativa, ocupou lugar central no processo de delineamento dos contornos culturais do nacionalismo brasileiro, assim como todo o debate sobre a identidade nacional. A história das reaparições de Sabina no Rio de Janeiro da Primeira República também é uma parte da história do progressivo posicionamento de manifestações culturais identificadas aos descendentes de africanos no centro das definições mais correntes de identidade nacional. Em outras palavras, esta é a história da transformação de duas mulheres com existência real comprovada (Sabina e Geralda) em "Sabina", um símbolo social e tropo-cultural.

Um evento com as proporções desta passeata não demoraria a ter desdobramentos significativos. Comentando o evento, um jornalista escreveu: "um viva aos rapazes, que acabam de escrever a melhor cena das próximas futuras revistas de ano"12 12 Gazeta de Notícias, 28-7-1889. As revistas de ano eram um gênero de grande sucesso nas duas últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos do século XX, sendo peças apresentadas geralmente no início de cada ano, revisitando através do humor os fatos tidos como mais relevantes do ano anterior. . Tendo a passeata sido um evento de grande destaque e recheado de aspectos cômicos, era de fato sério candidato a figurar nas revistas do ano seguinte. O que ocorreu na verdade foi mais que isso. O principal escritor das revistas de ano, Artur Azevedo, em sua revista A República (escrita em parceria com seu irmão, o escritor Aluízio Azevedo), acabou por imortalizar a história de Sabina em um tango que seria um dos maiores sucessos musicais da capital federal naqueles anos. O texto da revista está perdido, mas os relatos indicam que o público a cada noite consagrava a soprano grega Ana Menarezzi, no momento em que, no papel de Sabina, cantava "As laranjas da Sabina". Assim, não apenas "os rapazes", mas Sabina também ajudava a escrever uma das cenas mais lembradas dentre todas as que passaram pelos palcos cariocas.

Não se deve estranhar a presença de uma cantora européia representando uma quitandeira em um palco carioca. No fim do século XIX, período em que rareavam (para dizer o mínimo) as oportunidades para atores identificados como negros ou mulatos em peças encenadas nos grandes teatros cariocas, não seria difícil imaginar a conveniência de utilizar uma bela mulher grega em vez de uma "parda", como os jornais descrevem Geralda. Sem a mediação da atriz branca, a representação no palco desta figura de excessiva marginalidade (muito gorda, muito negra), seria provavelmente impensável. O branqueamento de Sabina era assim uma resposta ao contexto de uma época em que seria muito difícil, tanto para os irmãos Azevedo quanto para o público, que tinham em mente imaginar algo que se aproximasse esteticamente de Sabina, representando-a em um quadro central de uma peça teatral. Assim, um público ansioso pagava para assistir, noite após noite, à jovem e bela soprano grega identificando-se como uma afro-descendente.

Outro aspecto importante a ser retido desta peça é que, segundo os historiadores do teatro de revista, esta seria a primeira aparição em uma peça do gênero de uma "baiana". Assim, estilizando Sabina, Artur e Aluízio Azevedo teriam realizado a associação (bastante recorrente nas décadas seguintes) entre baianas e o teatro de revista. Se Sabina foi de fato um protótipo desta relevante figura no teatro de revista e, mais que isso, na própria definição da nacionalidade, isto apenas demonstra a sua importância como janela na compreensão da presença de tipos afro-descendentes na cultura de massas e na definição do "caráter nacional".

Mas a canção de Artur Azevedo veiculada com grande sucesso em A República teria um sucesso prolongado a ponto de ser gravada em 1902, figurando entre as primeiras gravações realizadas no Brasil. Com isso, Sabina ganhava um novo meio de expressão que lhe garantiria mais um período de sucesso. E é justamente o fato de ter sido gravada que permite que sua letra seja conhecida nos dias de hoje. Esta não deixava de apontar o aspecto cômico da passeata como central para seu sucesso:

Sou a Sabina/ Sou encontrada/ Todos os dias/ Lá na carçada/ Da academia/ De medicina

Um senhor subdelegado/ Home muito restingueiro/ Me mandou por dois sordado/ Retirá meu tabuleiro, ai!

Sem banana macaco se arranja/ E bem passa monarca sem canja,/ Mas estudante de medicina/ Nunca pode/ Passar sem laranja da Sabina!

Os rapazes arranjaram/ Uma grande passeata/ E, deste modo mostraram/ Como o ridículo mata, ai!13 13 TINHORÃO, José Ramos. O p. cit., p. 19. Como atestado do sucesso da canção e de sua protagonista nos palcos cariocas, pode-se citar ainda a remontagem da revista Bendegó, de Oscar Pederneiras no ano de 1900, incluindo uma nova versão de "As Laranjas da Sabina", agora denominada "O Tango da Quitandeira", cantada por Aurélia Delorme.

Com o sucesso da peça e da canção, Sabina estava em um novo espaço: o do entretenimento de massas. Logo, não poderia ser retratada como o foi na passeata, como pobre vítima de uma arbitrariedade, trazendo em seu corpo diversas marcas de marginalização social. Afinal, o teatro de revista estava longe de ser "teatro de tese": era uma forma de entretenimento voltado para uma audiência diversificada. Longe de adotarem um tom pedagógico, estas peças buscavam debater os fatos do ano anterior de modo a deixar sempre um espaço para a ambigüidade. Precisavam, portanto, agradar a todo o público, e os irmãos Azevedo cuidaram disto sublinhando especialmente o lado cômico de Sabina, como sua fala, que era caracterizada como bastante deslocada em relação aos padrões gramaticalmente aceitos. Sabina, nas mãos de Artur Azevedo, ressaltava não apenas o ridículo da arbitrariedade do subdelegado para divertir a platéia, mas se utilizava também de um corpo que agradava à platéia em conjunto com uma simbologia facilmente reconhecida por todos os contemporâneos e que a identificava como uma entre tantas mulheres pobres. Esta mistura de beleza corporal, sátira política e condescendência em relação a Sabina, garantiu seu sucesso por um bom tempo e daria ainda muitos frutos nos palcos da revista carioca.

Neste ponto vale sublinhar a importância da história de Sabina que seria, mesmo por tortuosos e ambíguos caminhos, pioneira ao abrir caminho para a presença de personagens afro-brasileiros na nascente cultura de massas do Rio de Janeiro. A personagem representada por Ana Menarezzi fez sucesso noite após noite, mas o fato de revisitar uma história que havia divertido a cidade no ano anterior não foi certamente o único elemento relevante para seu sucesso. Naquelas noites no Teatro Variedades Dramáticas descobria-se mais uma fórmula de sucessos para o teatro musicado, para a cultura de massas e para todo o espaço público em geral: um corpo jovem representando uma afro-descendente de forma maliciosa para um público formado em boa parte por homens. Ao saltar das ruas do centro da cidade para os palcos, Sabina ajudava a fazer história, ajudando a construir o tipo da baiana, figura destacada nos palcos musicados cariocas ao longo das décadas seguintes.

Não por acaso, apenas dois anos após a estréia de A República, a baiana fez outra relevante aparição em uma peça musicada de grande sucesso. Em 1892, a companhia portuguesa Sousa Bastos, estrelada pela espanhola Pepa Ruiz, desfrutava o grande êxito de sua revista Tintim por Tintim também em terras brasileiras. Provavelmente buscando dar uma cor local ao seu grande sucesso, Sousa Bastos enxertou na temporada brasileira da peça um novo quadro em que era cantado o "lundu-baiano" "Munguzá":

Pra fazer bom munguzá/ Todo o cuidado se emprega/ Como eu jeitosa não há/ Baiana pura não nega

Doce apurado/ Leite bem grosso/ Coco ralado /Prove seu moço

Prove e depois me dirá/ Se gostou do munguzá/ Ioiô, Iaiá/ Vendendo este bom munguzá14 14 RUIZ, Roberto. O p. cit., p. 161. .

Esta canção, cantada pela própria Pepa Ruiz, a estrela da companhia, aponta a importância de Sabina na formação dos tipos "baiana" e "mulata" no teatro de revista brasileiro. Assim como em outros espaços da então incipiente cultura de massas, o teatro de revista seria a partir daquele momento um território onde estes tipos seriam por décadas exaltados como elementos centrais da nacionalidade brasileira. Aqui, a malícia da associação entre corpo feminino e gêneros alimentares típicos, elemento recorrente na tipificação feminina afro-brasileira, se encontra formulada claramente, tal fato se dando dois anos após o sucesso da canção que tematizara a história de Sabina. Esta erotização de corpos afro-descendentes, longe de ser nova15 15 No campo literário ver SANT'ANNA, Affonso Romano de. "A Mulher de Cor e o Canibalismo Erótico na Sociedade Escravocrata". In O Canibalismo Amoroso. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1984, pp. 17-60. , ganhava novos significados ao adentrar no campo da massificação cultural, inclusive pela possibilidade de tornar-se mais agradável para as platéias contemporâneas, mediada por jovens corpos de atrizes como Ana Menarezzi e Pepa Ruiz.

A canção também ajuda a desvelar a construção histórica do significado do termo "baiana". Se atualmente a mulata é comumente representada como mestiça desejável sexualmente, enquanto a baiana é retratada como reserva de uma autenticidade cultural afro-brasileira, muitas vezes aparecendo como uma mulher de idade avançada e assexuada, na virada do século XIX as duas figuras poderiam estar bem próximas, ambas funcionando como tipificações altamente erotizadas da mulher afro-descendente.

Em 1915, Sabina voltava aos palcos da revista carioca na peça A Sabina, de autoria de J. Brito e encenada pela importante companhia do Teatro São José, tendo estreado a 28 de agosto. O texto da peça não foi preservado, mas os comentários dos jornais indicam que as "Sabinas" em questão eram letras do tesouro, lançadas no mercado pelo governo federal para conter a crise financeira. Contudo, o déficit nas contas federais impediu que os bônus pudessem ser resgatados, lançando o governo de Wenceslau Brás em grande descrédito.

Na revista de J. Brito, as letras do tesouro eram personificadas em um personagem de nome "Sabina", representada pela atriz italiana Maria Lino. Contudo, a fim de tornar a alegoria inteligível para os espectadores da peça, a personagem entrava em cena vestida como a Sabina das Laranjas da peça de Artur Azevedo. Tal estratagema obteve resultado. O cronista teatral de O Paiz (29-8-1915) observou que o papel de Maria Lino "não é senão um misto da "Sabina" das laranjas e a outra, a da atualidade". Já o cronista do Jornal do Commercio nem sequer deu importância ao caráter atual da personagem, mencionando apenas a primeira Sabina:

A Sra. Maria Lino, a graciosa estrela da companhia, que tem a seu cargo o principal papel, a célebre baiana das laranjas, à porta da faculdade de medicina, animou com sua graça natural todo o primeiro ato. (29-8-1915).

O que se quer ressaltar aqui é a permanência da imagem de "Sabina" no imaginário popular. As críticas à peça mostram claramente que era uma figura ainda lembrada sem dificuldades, e mesmo que a alcunha destas letras do tesouro nada tenha a ver com a figura da vendedora de laranjas, nota-se que, para indicar que a personagem de Maria Lino era uma referência às letras não honradas do tesouro nacional, o autor da peça caracterizou-a como a personagem de Artur Azevedo, e não parece ter enfrentado nenhuma dificuldade para ser compreendido. Já a razão para que o termo "Sabina" fosse associado às letras do tesouro permanece incerto, embora se possam tecer algumas conjecturas.

O fato de as letras terem sido vistas como "não honradas" pode talvez apontar uma sexualização do corpo da mulher afro-descendente, que seria vista como "não honrada", dentro de códigos éticos dominantes. Esta visão das mulheres de ascendência africana não era novidade, mas foi redimensionada a partir de sua inserção no domínio da massificação cultural. Isto se torna um fenômeno tanto mais importante quando se nota que este processo freqüentemente se cruzava com o debate sobre o que seriam os elementos constituintes do caráter nacional. Neste processo, tanto baianas como mulatas, versões altamente sexualizadas da mulher afro-brasileira, seriam retratadas um sem-número de vezes no ambiente da cultura de massas (palcos teatrais, carnavais, canções, picadeiros, etc.) como símbolos nacionais.

A linguagem corporal atribuída a baianas e mulatas pode ser acompanhada através do carnaval carioca do início do século XX, onde a figura de Sabina era bastante recorrente. Na década de 1910, por exemplo, pode-se encontrar Sinhô ensaiando os primeiros passos que o levariam a tornar-se um dos compositores mais populares da década seguinte, dirigindo As Sabinas da Kananga ou Grupo das Sabinas, grupo interno da Kananga do Japão, uma das mais conhecidas agremiações do carnaval carioca no período16 16 ALENCAR, Edigar de. Nosso Sinhô do Samba. 2ª edição, Rio de Janeiro: Funarte, 1981, pp. 23 e 29. Tal indicação nos foi fornecida por Maria Clementina Pereira Cunha, a quem agradecemos. . É possível que a origem do termo "Sabina" não tenha sido a vendedora de laranjas do século anterior, e sim o evento lendário que estaria situado nos primórdios da história romana. Segundo o mito, um grupo de mulheres denominadas "Sabinas" (em função de sua região de origem) teria sido raptado para suprir a ausência de mulheres em Roma. Tal evento, uma referência clássica da história romana, é uma origem plausível por ser o rapto das Sabinas um evento que chegou a ser tematizado no carnaval carioca17 17 Informação fornecida oralmente por Cristiana Schettini Pereira, a quem somos gratos. . Além disto, o episódio do rapto se encaixava como uma luva na auto-imagem das grandes sociedades carnavalescas, fortemente marcada pela agressiva sexualidade masculina, associada a ostentação de um tipo de sexualidade feminina, especialmente quando era o caso de exibir mulheres vistas como acessíveis sexualmente. O exemplo típico seria o fato de que famosas atrizes e meretrizes nunca faltaram nos desfiles das três grandes sociedades do carnaval carioca18 18 Ver PEREIRA, Cristiana Schettini. Nas Barbas de Momo: os sentidos da presença feminina no carnaval das "grandes sociedades" nos últimos anos do século XIX. Campinas: IFCH-Unicamp, 1995. .

Todavia, a difusão do termo "Sabina" no carnaval carioca do início do século certamente também teve influência dos eventos que marcaram a trajetória da vendedora de laranjas aqui estudada. Um exemplo, dotado de grande expressividade, é a canção carnavalesca "As Sabinas do Poleiro", de Antônio R. de Jesus e Lezut, lançada na década de 1920. Na partitura, a canção é dedicada pelos autores às Sabinas, subgrupo dos Fenianos, uma das três grandes sociedades carnavalescas do Rio de Janeiro, e que nesse momento ainda eram componentes de destaque no carnaval carioca19 19 Sobre as grandes sociedades do carnaval carioca, ver o capítulo 2 do livro citado de Maria Clementina Pereira Cunha. A ela agradecemos pela cessão de uma versão deste capítulo antes de este ser publicado e também por ter ajudado a dirimir algumas de nossas dúvidas sobre o tema. . Se, como foi observado, o evento presente na história romana possivelmente tenha influenciado a denominação desse grupo, não há dúvidas de que havia também a referência ao evento de 1889 e seus desdobramentos, já que fotografias do grupo publicadas na imprensa20 20 Careta, nº 606 (31-1-1920), 661 (19-2-1921), 709 (21-1-1922), 762 (27-1-1923). Fon-Fon, 31-1-1920. mostravam invariavelmente homens vestidos de baiana. O "poleiro" citado era o salão de baile dos Fenianos. A canção dizia:

As Sabinas do poleiro/ não são filhas da Bahia/ são do Rio de Janeiro/ Do reinado da folia

Mexe baiana/ tem munguzá/ mexe com jeito/ não sejas má

são bonitas são dengosas/ mulatas cheias de enguiço/ são faceiras são sestrosas/ no pisar do teu feitiço

não há grupo tão querido/ neste Rio de Janeiro/ que seja mais aplaudido/ que as sabinas do poleiro21 21 Arquivos da Empresa Pascoal Segreto ¾ Divisão de Música da Biblioteca Nacional, caixa 102. .

Tal canção pode ser vista como ponto importante da trajetória da Sabina no universo público carioca na Primeira República, pois na composição estão concentradas a polissemia e a diversidade de facetas de alguns elementos cruciais através dos quais se buscou definir o "caráter nacional". Mais que qualquer outro momento da trajetória de Sabina, esta canção aponta a variedade de sentidos que as idéias de "baiana" e "mulata" poderiam significar naqueles anos. Primeiramente confirma a idéia de que ambos os tipos estariam muito próximos neste período, podendo mesmo coexistir em uma única figura. Conforme se viu nas peças do teatro de revista do século XIX, o termo "baiana" não está necessariamente ligado a algum espaço geográfico específico, podendo estar ¾ como neste caso ¾ diretamente relacionado à mulata que tantas vezes seria exaltada como símbolo da nacionalidade em espaços como o teatro de revista e a música popular (com direito às tradicionais metáforas alimentares). Isto faz emergir o fato de que ambas as figuras poderiam ser definidas tanto por performances corporais quanto por critérios de procedência racial e/ou geográfica.

Esta canção também não deixa de mais uma vez testemunhar o processo de erotização do corpo da mulher afro-brasileira no ambiente da cultura de massas, desta vez por parte de um grupo formado por indivíduos do sexo masculino. As sociedades cultivavam uma auto-imagem na qual a permissividade figurava como marca registrada, e seus bailes exerceriam papel importante neste ponto, sempre contando com a presença de "meigas filhas do pecado" (na expressão de um jornalista) para "abrilhantar" o evento22 22 PEREIRA, Cristiana Schettini. Op. cit. A expressão citada está na página 81. . A presença de grupos travestidos nestes bailes aparentemente não era rara, e já no final do século XIX poderiam ser encontrados homens vestidos com roupas de baiana, enfatizando o exagero e o ridículo da vestimenta23 23 Idem, p. 81. . No caso das Sabinas do Poleiro, o traje de baiana recebe outros significados: pode-se ver que estes homens de alta extração social claramente enfatizavam baianas e mulatas como fonte de prazer sexual. Valendo-se de um momento especificamente favorável para isso (o carnaval24 24 A associação entre Sabina e o carnaval parece ter sido particularmente forte, já que além dos grupos citados, foi localizada ainda mais uma agremiação carnavalesca em cuja denominação há referências a esta figura: "O Grupo das Sabinas, rancho gentil de raparigas do Castelo, abrindo marcha pelas ruas da cidade com o "choro" de Caninha à frente, deu início às pândegas de Momo na Avenida Rio Branco". Careta, nº 607, 7-2-1920. ), o grupo citado utilizou seus próprios corpos para reforçar a associação (mediada neste caso pelo embranquecimento) entre corpos afro-brasileiros e sexualidade25 25 Estas performances de agressiva masculinidade heterossexual contrastam fortemente em seus sentidos com outras situações de travestimento masculino no período do carnaval. Para outro tipo de performance ver GREEN, James N. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Trad. Cristina Fino e Cássio Fernandes Leite. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. .

As aparições carnavalescas de Sabina também indicam um dos caminhos através dos quais se constroem símbolos sexuais e nacionais. Aqui tem-se claramente um mito surgido há milênios (o rapto das Sabinas) e a memória de um evento extremamente denso de significados (a passeata de 1889 e seus desdobramentos) que se fundem, criando uma figura de grande popularidade e recorrência ("Sabina"). Se o mito da história latina possuía por si só fortes conotações sexuais, especialmente no que tange à posse e dominação masculina, tal conotação foi claramente fortalecida após os eventos de 1889. A popularização da figura da vendedora de laranjas deu uma nova dimensão ao referencial emprestado da Antigüidade clássica. Com sua ascendência africana (tendo chegado ao Brasil, portanto, através de um rapto), sua pele mais escura que os membros das sociedades e tendo sido objeto da ação paternalista de sujeitos de elite, Sabina oferecia a possibilidade de fortalecer as imagens de sexualização e dominação masculina já explícitas no mito original. A fusão entre estas duas histórias separadas por milênios no tempo, ajudava a cimentar o caminho para performances corporais (especialmente visíveis em espaços como carnaval e teatro de revista) que associavam violentamente os corpos de mulheres afro-brasileiras à erotização e acessibilidade sexual.

A visibilidade de Sabina ainda nos anos 1920 pode ser atestada através de outra fonte, desta vez de natureza bastante diversa. Em 1923, os leitores do jornal carioca A Notícia puderam ter contato com uma outra versão de sua história, o que confirma não apenas sua durabilidade enquanto símbolo como a multiplicidade de significados a ela atribuídos. Sabina ainda era familiar aos leitores deste periódico, que a viram inserida em uma história confiante imbuída de uma visão de progresso. O articulista, ao ver a portuguesa Engrácia carregando o cesto cheio de frutas para vender, teria se lembrado de Sabina, o que o levou a comparar as duas vendedoras de frutas, separadas por décadas.

Segundo o jornalista, não importava a diferença de cor entre as duas, e sim, o paralelismo de seus sentimentos. Sabina, segundo o texto, havia trabalhado duro por muitos anos para sustentar seu filho na escola em sua terra natal, a Bahia. Envergonhada de sua ocupação, Sabina nunca se revelou a seu próprio filho. Já a portuguesa Engrácia vendia suas frutas acompanhada de seus filhos, sem se envergonhar de sua pobreza honesta. Concluía então o articulista: "e aí temos nós a confirmação da grande verdade de que no Rio, só é parasita quem bem o queira ser(...)". Nesta otimista história contada nas páginas do jornal carioca, Sabina agora representava um período da história brasileira em que o ato de se sujeitar ao trabalho seria característico dos "pretos", e mesmo estes teriam vergonha de ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Já a laboriosa Engrácia simbolizaria, em contraste, o momento em que o texto é escrito, quando o trabalho duro e honesto teria deixado de ser algo visto como degradante, e a pobreza honesta era algo que poderia ser exibida com certo orgulho.

Não é preciso demonstrar o fato de que, a despeito da afirmação anti-racista do autor, a questão racial no pós-abolição é o ponto central desta defesa do progresso e do liberalismo. Em primeiro lugar, pela contundência que o autor dedica a Sabina:

Dizem que Sabina tinha um filho estudando na Bahia e que todo o seu sonho fora vê-lo medico. Trabalhava mais por ele do que por ela, que ao que se afirma, também para não humilhá-lo, não lhe dissera nunca que fora o seu sangue, o sangue daquela mulher, de condição inferior, que o gerara. Alguma coisa de análogo à 'Mãe', o famoso drama de Alencar. (A Notícia, 16-4-23).

Aqui, surge como intransponível a "condição inferior" de Sabina, e é trazida à tona a lembrança da famosa peça de José de Alencar na qual uma mulher acaba escrava de seu próprio filho, sem que este saiba da identidade da mãe. A referência à peça é mais um ponto de apoio à proposta do jornalista de simbolizar em Sabina o período escravista do Brasil: associação do trabalho com pessoas de ascendência africana, vergonha da condição de trabalhador, destruição das redes familiares devido à instituição da escravidão, etc. Já o caso da vendedora portuguesa (que possui inclusive sobrenome, "Engrácia Fernandes", o que indica sua inserção em uma rede familiar) simbolizaria a nova condição do trabalhador após 1888: orgulhoso e valorizador da vida familiar, sinalizando um progresso facilmente perceptível nas décadas do pós-abolição.

Logo, o artigo de A Notícia aponta, em primeiro lugar, a permanência de Sabina no imaginário popular, além da importância da canção de Artur e Aluízio Azevedo na fixação da história da quitandeira ("Recordam muitos ainda a manifestação de desagravo que os então futuro Hipócrates fizeram a essa preta velha, trazendo-a de passeata e mais ao seu tabuleiro, entre vivas e brados, pelas ruas da cidade. Foi quando surgiu aquela canção, cujo estribilho muita gente trauteia, sem conhecer-lhe a origem"). Mais que isto, nesta análise surge de modo claro a preferência pela substituição do trabalho escravo (envergonhado do trabalho e distante da vida familiar normativa) pelo imigrante europeu (orgulhoso de seu trabalho e apegado à família convencional). Tal substituição teria possibilitado uma mudança no status social do trabalho e dos trabalhadores após 1888. O texto é então essencialmente uma afirmação explícita de crença no progresso do Brasil através do branqueamento, que levaria o País ao desenvolvimento através do trabalho duro de sua população, a cada dia mais clara.

Esta edificante história que transborda de wishful thinking poderia entretanto ser contada de outras formas naquele momento. Afinal, utilizando as oportunidades existentes com a crescente intensificação do processo de massificação cultural, pessoas que se identificariam como afro-descendentes proporcionavam entretenimento a grupos sociais diversos, tornando-se mais visíveis a cada dia. O teatro de revista era um fórum particularmente exemplar neste sentido. No século XIX, européias como Pepa Ruiz e Ana Menarezzi desempenhavam papéis de baianas e mulatas. No pós-guerra, atrizes brasileiras como Margarida Max e Otília Amorim seriam intérpretes consagradas destes papéis. Na segunda metade dos anos 1920, a atriz Araci Cortes (que nunca deixou de reconhecer sua ascendência mestiça) se transformaria na principal mulata dos palcos cariocas. Outros tipos associados aos afro-descendentes (malandros, capoeiras) e representados por atores não-brancos, gradualmente eram mais visíveis em alguns dos principais teatros cariocas.

Como exemplo da maior visibilidade adquirida por atores e tipos afro-brasileiros no decorrer do período estudado, pode-se citar a peça Ai... Sabina!, de J. Sousa, que estreou no Democrata Circo, em 1926. A personagem-título era uma mulata cobiçada por todos, cozinheira na pensão de D. Rita e membro de destaque no desfile do cordão carnavalesco "Prazer das Morenas". Decidida a subir de vida, Sabina entra em uma escola de dança e atuação, com o objetivo de tornar-se atriz26 26 Arquivo da 2ª Delegacia Auxiliar de Polícia, Caixa 37, n.º 796 (Arquivo Nacional). . Aparecem então vários portugueses com capital para formar uma companhia teatral e torná-la a estrela, o que fecha esta burleta-revista de modo pouco surpreendente. Aqui, pode-se notar em primeiro lugar a aparição de uma "Sabina" em mais um espaço, desta vez um circo situado em um bairro operário da zona norte carioca. Mesmo não se tratando da mesma personagem de Artur Azevedo, nota-se a permanência do nome na designação de afro-brasileiras desejáveis sexualmente. O processo de transformação de uma mulher que despertava apenas compaixão, e em cujo corpo eram enfatizados apenas elementos como "gordura" e "velhice", em um símbolo do prazer sexual parece ter se completado aqui. Outro dado a ser retido desta peça é a percepção do autor de que o teatro de revista e a cultura de massas em geral eram situados entre os poucos caminhos em que a ascensão social de afro-brasileiros parecia possível.

Neste contexto, não é nada surpreendente o surgimento, no mesmo ano de 1926, da Companhia Negra de Revistas, que contava em sua formação apenas com artistas que se identificavam como negros. Utilizando o prestígio de vários destes artistas (Miss Mons, Rosa Negra, Sebastião Cirino, De Chocolat, Pixinguinha, Bonfiglio de Oliveira), a companhia saboreou o sucesso de sua revista de estréia, Tudo Preto, encenada no teatro Rialto entre julho e setembro, excursionando depois por São Paulo e Minas Gerais, também com destaque, lançando um dos grandes sucessos musicais da década, "Cristo nasceu na Bahia", de Sebastião Cirino e Duque. Ponto central na estratégia da peça para atacar o racismo e a exclusão era o argumento de que algo que seria inerente aos afro-descendentes ("a cultura e as tradições negras") seria fonte da mais pura e inatacável autenticidade nacional. A cultura daí derivada (representada em Tudo Preto por sincretismo religioso, música popular, mulheres africanas, feijoada, entre outros) era identificada como a cultura mais genuinamente nacional27 27 Ver o texto da peça: Caixa 40, n.º 891 (2ª DAP ¾ AN). . Importante ainda notar que esta exaltação da "cultura negra" como "nacional" se dava tendo como pano de fundo a idéia de que o Brasil seria marcado pela boa convivência entre as raças. Ainda que aos olhos de hoje isto não pareça uma mensagem política radical, a ênfase de Tudo Preto em apresentar um Brasil marcado pela harmonia racial não deixava de apresentar, na forma de expressão de um desejo, uma reivindicação e esperanças em sua concretização.

Mesmo porque a própria existência de um grupo de artistas de sucesso ostentando orgulho pelo fato de se classificar como "negro" já era, por si só, uma atitude de caráter político. A imprensa militante paulistana compreendeu perfeitamente este aspecto da companhia, e não deixou de exaltá-lo:

Nós, paulistanos e paulistas, brasileiros sensatos, hoje, mais que nunca estamos satisfeitos. Um fato importantíssimo vem concorrer com a desejada ansiedade de longos meses em expectativa é o da estréia da Cia. NEGRA DE REVISTA, no Apolo. (...)

A época é nossa, conforme afirmações inúmeras; essa novidade teatral surgiu na Cidade-Luz ¾ Paris, com Josephine Baker, hoje entre nós brasileiros está se celebrizando; todos nós devemos, de bom grado, ir aplaudir os patrícios que com ardor e boa vontade estão labutando corajosamente para o complemento de nossas glórias28 28 O Clarim d'Alvorada, 24-10-1926. Outras matérias se seguiriam a esta nas semanas seguintes. .

Torna-se claro que estes ativistas perceberam agudamente as implicações políticas e culturais do surgimento da Companhia Negra de Revistas. Um momento que exemplifica o sentido político das atividades desta companhia é o da apoteose de Tudo Preto, uma homenagem à Mãe Negra. Infelizmente não sobreviveram descrições desta apoteose, mas é bastante provável que a companhia visasse apoiar uma causa muito específica: a construção de um monumento à Mãe Preta. No momento em que Tudo Preto estava em cena, desenrolava-se uma campanha para construir um estátua em homenagem a esta figura. A idéia e a campanha pela construção do monumento haviam sido lançadas por Cândido de Campos, proprietário do jornal A Notícia. Este jornalista utilizava expressões fortes para obter seu intento: a Mãe Preta seria a figura "luminosamente simbólica para nós", que representaria "a raça negra e nosso destino". Mais que isso, a Mãe Preta era

(...) talvez a mais comovida evocação de nossa alma; símbolo, na verdade, do ambiente familiar brasileiro, que se formou ao seu influxo, ao influxo do seu exemplo de imensa e heróica dedicação, símbolo da sua própria raça, que dos seus flancos fecundos proveio, e de um passado que já se vai esfumando em lenda deliciosa; símbolo, finalmente, dos próprios superiores sentimentos que, com o seu sangue e o seu contato moral, nos transmitiu, para nosso orgulho e nossa felicidade (A Notícia, 4-5-1926).

O discurso de Cândido de Campos tinha profundos desdobramentos que ele por certo não ignorava. A imagem do Brasil como paraíso das relações raciais era antiga, e parecia especialmente interessante em um contexto de questionamentos contundentes em relação às teorias eurocêntricas do século XIX. Assim, fica claro o sentido que norteou a busca por trazer de volta à tona esta imagem do Brasil, que daria ao País algo de que se orgulhar na comparação com outros países. Como centenas de pessoas, lideradas pelos estudantes de medicina, haviam feito quase quarenta anos antes, era o momento de homens brancos de elite buscarem, no corpo de uma mulher pobre e afro-descendente, elementos organizadores de uma versão da identidade nacional. E, certamente não por acaso, as figuras de Sabina e Mãe Preta tinham diversas similitudes, uma vez que, para audiências de elite, ambas remetiam a uma tranqüilizadora esfera paternalista. Assim como Sabina, segundo a versão dos jornais de 1889, havia sido resgatada pelos estudantes de elite, agora era a Mãe Preta que, para Cândido de Campos, deveria ser trazida à tona para simbolizar uma imagem de paz e sem questionamento de autoridades.

A campanha liderada por A Notícia lembra de modo evidente idéias associadas a Gilberto Freyre, mostrando que a versão do caráter nacional fundada na idéia de democracia racial estava na ordem do dia para muitas pessoas na década de 1920, sendo a campanha pela construção do monumento à Mãe Preta um elemento constituinte neste edifício. Talvez em um nível ainda mais evidente do que a obra de Freyre, a idéia do monumento traduzia uma nostalgia da autoridade patriarcal que agora se via solapada em um contexto de relações urbanas em uma sociedade que se industrializava, e na qual havia o sentimento generalizado de que as convenções de gênero mudavam vertiginosamente29 29 Para uma descrição genérica dos elementos componentes desta sensação geral de que as convenções tradicionais de gênero estavam em processo de transformação vertiginosa ao longo da década de 1920, ver BESSE, Susan K. Restruturing Patriarchy: the modernization of gender inequality in Brazil, 1914-1940. Chapel Hill-London, North Caroline University Press, 1996. .

Contudo, a apoteose de Tudo Preto mostra o apoio de grupos que se identificavam de forma orgulhosa como negros à causa do monumento, indicando que o conceito de democracia racial não era dotado de um sentido único de nostalgia senhorial. E o apoio da companhia a esta causa não ficou apenas na apoteose de Tudo Preto: vários de seus membros compareceram (e foram lá fotografados) a uma missa em apoio ao movimento na igreja de Nossa Senhora do Rosário30 30 Promovida pela Irmandade N. S. do Rosário e S. Benedito dos Homens Pretos. A Notícia, 19-8-1926. . E os artistas da companhia eram apenas uma fração do total de afro-brasileiros que deram seu apoio à proposta. Este apoio foi suficientemente documentado pela imprensa militante31 31 Ver O Clarim d'Alvorada e Getulino a partir de abril e maio de 1926. , incluindo diversos artigos publicados nestes jornais em apoio à causa. É provável que toda esta discussão, que gerou grande interesse da comunidade afro-brasileira no Rio de Janeiro e em São Paulo, tenha sido capital para a concretização do projeto, com a construção do monumento à Mãe Preta tendo sido efetivada em frente à igreja de São Benedito, em São Paulo.

Em suma, um grande número de afro-brasileiros (jornalistas, leitores de jornais, artistas, clérigos, católicos, intelectuais, carnavalescos, etc.) aprovou veementemente a idéia de simbolizar o nacionalismo brasileiro na figura de uma mulher afro-brasileira, que representaria a singularidade sociocultural do País32 32 Como comentário à relevância deste evento, pode-se lembrar que monumento muito semelhante foi erguido em Campinas várias décadas depois (1974), como "contribuição dos homens de cor de Campinas" (frase que acompanha o monumento) às comemorações do bicentenário da cidade. . A idéia foi aprovada em bronze, assim como divertidas noites teatrais e carnavais. O que se quer sugerir aqui é que a campanha pela construção do monumento teve algo em comum com a Companhia Negra de Revistas, a presença das Sabinas no carnaval e toda a trajetória de Sabina. Em cada um destes elementos, um reforço do posicionamento de afro-brasileiros no centro da "cultura" brasileira, o que levou, por caminhos ainda pouco estudados, à centralidade de algo que era visto como inerente aos afro-brasileiros na auto-imagem do País. Sem exagerar a importância da figura da Sabina neste processo, seria possível argumentar que a evolução desta figura ao longo dos anos para um desfrutável símbolo da harmonia racial brasileira ¾ a mulata ¾ ajudou a pavimentar o caminho não apenas para a campanha em favor do monumento à Mãe Preta, mas também para o processo de reavaliação da importância dos afro-descendentes para a nação, processo este que esteve no coração do nacionalismo brasileiro do pós-guerra.

Ao acompanhar a trajetória de Sabina ao longo da Primeira República, tornam-se mais claros alguns meandros do processo de posicionamento de símbolos aceitos como "negros" no centro do "caráter nacional". Vê-se que estilizando, ressignificando e disponibilizando em larga escala um repertório já existente relativo aos afro-descendentes, a cultura de massas exerceu contribuição relevante para este processo. Em especial a partir da constatação de que, ganhando mais visibilidade através dos veículos da cultura de massas, essas imagens "negras" não mais deixariam de ser associadas ao "popular", e no contexto do pós-guerra paulatinamente ganhariam o status de "nacional". A trajetória de Sabina aponta ainda de modo claro a impossibilidade de separar os debates sobre a identidade nacional na Primeira República do processo de massificação cultural, assim como das políticas cotidianas de raça e gênero. As conseqüências deste processo sobre o futuro de todas estas questões é um ponto importante a ser discutido. Mas essa já é uma outra história.

NOTAS

Artigo recebido em 07/2001. Aprovado em 03/2002.

  • 2 TINHORÃO, José Ramos. Música Popular: teatro & cinema. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 17.
  • 4 Ver MAGALHÃES Jr., Raimundo. Artur Azevedo e Sua Época Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 3ª edição, 1966, pp. 189-191,
  • 5 DARNTON, Robert. "Os Trabalhadores se Revoltam: o grande massacre dos gatos na Rue Saint-Severin". In O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa Trad. Sônia Coutinho, 2ª edição, Rio de Janeiro: Graal, 1996, pp. 103-139.
  • 6 Ver por exemplo: DAVIS, Natalie Zemon. "Razões do desgoverno". In Culturas do Povo: sociedade e cultura no início da França moderna Trad. Mariza Corrêa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pp. 87-106;
  • THOMPSON, Edward P. "Rough Music". In Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional Trad. Rosaura Eichemberg, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 353-403.
  • 7 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 130-149.
  • 10 Ver TROCHIM, Michael. "The Brazilian Black Guard: Racial Conflict in Post-Abolition Brazil". In The Américas 44.3, 1988, pp. 286-290;
  • GOMES, Flávio dos Santos. "No Meio das Águas Turvas (racismo e cidadania no alvorecer da República: a Guarda Negra na Corte ¾ 1888-1889)". In Estudos Afro-Asiáticos nº 21, 1991, pp. 75-96.
  • 16 ALENCAR, Edigar de. Nosso Sinhô do Samba 2ª edição, Rio de Janeiro: Funarte, 1981, pp. 23 e 29. Tal indicação nos foi fornecida por Maria Clementina Pereira Cunha, a quem agradecemos.
  • 18 Ver PEREIRA, Cristiana Schettini. Nas Barbas de Momo: os sentidos da presença feminina no carnaval das "grandes sociedades" nos últimos anos do século XIX. Campinas: IFCH-Unicamp, 1995.
  • 29 Para uma descrição genérica dos elementos componentes desta sensação geral de que as convenções tradicionais de gênero estavam em processo de transformação vertiginosa ao longo da década de 1920, ver BESSE, Susan K. Restruturing Patriarchy: the modernization of gender inequality in Brazil, 1914-1940. Chapel Hill-London, North Caroline University Press, 1996.
  • 1
    Os autores gostariam de agradecer, além dos nomes citados ao longo do texto, a pessoas que debateram idéias aqui contidas, apresentando valiosas sugestões: Robert W. Slenes, Wlamyra Albuquerque, Camilla Agostini e os membros da linha de pesquisa História Social da Cultura, do programa de pós-graduação em História Social da Unicamp, onde uma versão anterior deste trabalho foi debatida.
  • 2
    TINHORÃO, José Ramos.
    Música Popular: teatro & cinema. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 17.
  • 3
    Um gênero literário apreciado naquele momento era o das memórias estudantis, em que se lembravam aventuras de "pilares da nação" em seus tempos de estudantes. Ao comentar um livro deste gênero, sobre a Faculdade de Direito de São Paulo, Vieira Fazenda, em um artigo de 1907, enumera as características dos estudantes de então: "Pilhérias, anedotas, troça, sustos de sabatinas, tiros, pândegas da descuidosa vida acadêmica", da qual não deixavam de participar futuros "homens de respeito" (Vida Acadêmica.
    Revista do IHGB. Rio de Janeiro: 93:147, 1923.).
  • 4
    Ver MAGALHÃES Jr., Raimundo.
    Artur Azevedo e Sua Época. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 3ª edição, 1966, pp. 189-191, e o livro citado de José Ramos Tinhorão, baseado nas memórias de Ferreira da Rosa. Trabalhos sobre as revistas de ano endossam este ponto de vista, como RUIZ, Roberto.
    O Teatro de Revista no Brasil: das origens à Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Inacem, 1988, pp. 35-36.
  • 5
    DARNTON, Robert. "Os Trabalhadores se Revoltam: o grande massacre dos gatos na Rue Saint-Severin". In
    O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. Trad. Sônia Coutinho, 2ª edição, Rio de Janeiro: Graal, 1996, pp. 103-139.
  • 6
    Ver por exemplo: DAVIS, Natalie Zemon. "Razões do desgoverno". In
    Culturas do Povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Trad. Mariza Corrêa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pp. 87-106; THOMPSON, Edward P. "Rough Music". In
    Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. Rosaura Eichemberg, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 353-403.
  • 7
    CUNHA, Maria Clementina Pereira.
    Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 130-149.
  • 8
    Brazil Médico, 15-1-1889. Tal fonte nos foi indicada por Josianne Francia Cerasoli, a quem agradecemos.
  • 9
    VIEIRA FAZENDA.
    O
    p. cit., p. 53
  • 10
    Ver TROCHIM, Michael. "The Brazilian Black Guard: Racial Conflict in Post-Abolition Brazil". In
    The Américas. 44.3, 1988, pp. 286-290; GOMES, Flávio dos Santos. "No Meio das Águas Turvas (racismo e cidadania no alvorecer da República: a Guarda Negra na Corte ¾ 1888-1889)". In
    Estudos Afro-Asiáticos. nº 21, 1991, pp. 75-96.
  • 11
    Um exemplo seria o próprio Ferreira da Rosa, base da descrição citada por José Ramos Tinhorão, cujo texto fala em "gorda ex-escrava", "pesadona", etc.,
    op. cit. A
    Gazeta de Notícias de 26-7-1889 reproduziu um desenho da passeata, onde ocupava lugar central a figura de Sabina, em uma representação que sublinhava fortemente a cor de sua pele e suas dimensões físicas.
  • 12
    Gazeta de Notícias, 28-7-1889. As revistas de ano eram um gênero de grande sucesso nas duas últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos do século XX, sendo peças apresentadas geralmente no início de cada ano, revisitando através do humor os fatos tidos como mais relevantes do ano anterior.
  • 13
    TINHORÃO, José Ramos.
    O
    p. cit., p. 19. Como atestado do sucesso da canção e de sua protagonista nos palcos cariocas, pode-se citar ainda a remontagem da revista
    Bendegó, de Oscar Pederneiras no ano de 1900, incluindo uma nova versão de "As Laranjas da Sabina", agora denominada "O Tango da Quitandeira", cantada por Aurélia Delorme.
  • 14
    RUIZ, Roberto.
    O
    p. cit., p. 161.
  • 15
    No campo literário ver SANT'ANNA, Affonso Romano de. "A Mulher de Cor e o Canibalismo Erótico na Sociedade Escravocrata". In
    O Canibalismo Amoroso. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1984, pp. 17-60.
  • 16
    ALENCAR, Edigar de.
    Nosso Sinhô do Samba. 2ª edição, Rio de Janeiro: Funarte, 1981, pp. 23 e 29. Tal indicação nos foi fornecida por Maria Clementina Pereira Cunha, a quem agradecemos.
  • 17
    Informação fornecida oralmente por Cristiana Schettini Pereira, a quem somos gratos.
  • 18
    Ver PEREIRA, Cristiana Schettini.
    Nas Barbas de Momo: os sentidos da presença feminina no carnaval das "grandes sociedades" nos últimos anos do século XIX. Campinas: IFCH-Unicamp, 1995.
  • 19
    Sobre as grandes sociedades do carnaval carioca, ver o capítulo 2 do livro citado de Maria Clementina Pereira Cunha. A ela agradecemos pela cessão de uma versão deste capítulo antes de este ser publicado e também por ter ajudado a dirimir algumas de nossas dúvidas sobre o tema.
  • 20
    Careta, nº 606 (31-1-1920), 661 (19-2-1921), 709 (21-1-1922), 762 (27-1-1923).
    Fon-Fon, 31-1-1920.
  • 21
    Arquivos da Empresa Pascoal Segreto ¾ Divisão de Música da Biblioteca Nacional, caixa 102.
  • 22
    PEREIRA, Cristiana Schettini.
    Op. cit. A expressão citada está na página 81.
  • 23
    Idem, p. 81.
  • 24
    A associação entre Sabina e o carnaval parece ter sido particularmente forte, já que além dos grupos citados, foi localizada ainda mais uma agremiação carnavalesca em cuja denominação há referências a esta figura: "O Grupo das Sabinas, rancho gentil de raparigas do Castelo, abrindo marcha pelas ruas da cidade com o "choro" de Caninha à frente, deu início às pândegas de Momo na Avenida Rio Branco".
    Careta, nº 607, 7-2-1920.
  • 25
    Estas performances de agressiva masculinidade heterossexual contrastam fortemente em seus sentidos com outras situações de travestimento masculino no período do carnaval. Para outro tipo de performance ver GREEN, James N.
    Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Trad. Cristina Fino e Cássio Fernandes Leite. São Paulo: Ed. Unesp, 2000.
  • 26
    Arquivo da 2ª Delegacia Auxiliar de Polícia, Caixa 37, n.º 796 (Arquivo Nacional).
  • 27
    Ver o texto da peça: Caixa 40, n.º 891 (2ª DAP ¾ AN).
  • 28
    O Clarim d'Alvorada, 24-10-1926. Outras matérias se seguiriam a esta nas semanas seguintes.
  • 29
    Para uma descrição genérica dos elementos componentes desta sensação geral de que as convenções tradicionais de gênero estavam em processo de transformação vertiginosa ao longo da década de 1920, ver BESSE, Susan K.
    Restruturing Patriarchy: the modernization of gender inequality in Brazil, 1914-1940. Chapel Hill-London, North Caroline University Press, 1996.
  • 30
    Promovida pela Irmandade N. S. do Rosário e S. Benedito dos Homens Pretos.
    A Notícia, 19-8-1926.
  • 31
    Ver
    O Clarim d'Alvorada e
    Getulino a partir de abril e maio de 1926.
  • 32
    Como comentário à relevância deste evento, pode-se lembrar que monumento muito semelhante foi erguido em Campinas várias décadas depois (1974), como "contribuição dos homens de cor de Campinas" (frase que acompanha o monumento) às comemorações do bicentenário da cidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Fev 2003
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Recebido
      Jul 2001
    • Aceito
      Mar 2001
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