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A arquitetura moderna do século 20, tecnologia herdeira da eugenia do século 19

Modern Architecture of the 20th Century, Technology Heir to the 19th Century Eugenics

LÓPEZ-DURAN, Fabiola. . Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018.

Figura 1
Capa de Eugenics in the Garden, de Fabíola López-Duran.

Embora a teoria lamarckiana da “herança das características adquiridas”1 1 A teoria evolucionista lamarckiana, desenvolvida pelo naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), afirmava que a evolução das espécies resulta da adaptação do indivíduo ao ambiente. Conforme essa teoria, a adaptação do indivíduo ao ambiente seria adquirida geneticamente e herdada por sua prole, causando a transmutação das espécies. tenha sido abandonada pelas ciências naturais ainda no século 19, ao ser suplantada pela teoria da seleção natural2 2 A teoria da seleção natural foi elaborada simultaneamente pelos naturalistas britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913). Conforme essa teoria, as espécies com características mais vantajosas terão mais chance de se reproduzir e sobreviver no ambiente. como explicação para o especismo, ela constituiu as bases para uma tecnologia eugenista de controle de corpos desviantes, por meio do projeto moderno de arquitetura no século 20.

Essa é a ideia central que Fabíola López-Duran desenvolve em seu “Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity”. A eugenia lamarckiana - baseada na teoria de que a evolução resulta da adaptação ao ambiente - teria atravessado o Atlântico a partir da França ao cruzar as fronteiras da medicina e das ciências naturais em direção à arquitetura e ao urbanismo, e foi adotada por tecnocratas engenheiros, arquitetos urbanistas, políticos e intelectuais, tendo se materializado não só por meio da construção de cidades e edifícios em ambos os lados, mas especialmente na formação da América Latina. O espaço deixa de ser receptor das políticas de higiene -nunca teria sido, na opinião desta resenhista - para se tornar agente da tecnologia eugenista lamarckiana de seleção e controle de corpos.

López-Duran desenvolveu uma pesquisa de fôlego nos últimos vinte e cinco anos, partindo do levantamento de documentos em vários arquivos e acervos no Brasil, na Argentina, na França, nos Estados Unidos e no Canadá. A autora elege alguns eventos do urbanismo realizados no Brasil e na Argentina na primeira metade do século 20 para demonstrar sua teoria, dialogando com as formulações sobre biopolítica e biopoder de Michel Foucault e com a crítica à ciência moderna de Bruno Latour. A partir de um modelo transnacional e interdisciplinar de análise, chega à teoria apresentada, oferecendo como contribuição a análise da influência da eugenia lamarckiana na construção do ambiente construído e a “revelação de um subestimado conluio entre estética, ciência e política no centro da arquitetura moderna latino-americana” (López-Duran, 2018LÓPEZ-DURAN, Fabiola. Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018. , p. 09, tradução minha) do século 20.

A autora inicia seu texto evocando a imagem do Grande Globo do geógrafo anarquista Élisée Reclus (1830-1905), projetado em 1888 para a Exposição Universal de Paris de 1889, um edifício onde seria possível percorrer miniaturas da paisagem terrestre por meio de rampas helicoidais que circunscreviam um globo em escala 1:100.000; uma escala em que se poderia ver os detalhes da Terra “como se num sobrevoo de balão”, cujo interior conteria uma exposição sobre a evolução da espécie humana. A ideia de um planeta sem fronteiras, miniaturizado, controlado pelas mãos humanas - onde os aspectos biológicos da evolução da espécie humana, o meio ambiente e a genética eram representados de maneira relacional - era o prelúdio do que viria nos próximos 50 anos, e prelúdio da teoria que López-Duran apresenta em seu texto.

No Capítulo 1, “Utopia na prática: eugenia e a medicalização do ambiente construído”3 3 Tradução minha. No original: “Practicing Utopia: Eugenics and the Medicalization of the Built Environment”. (López-Duran, 2018LÓPEZ-DURAN, Fabiola. Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018. , p. 19), López-Duran elege quatro textos ficcionais de autores latinos ou residentes na América Latina - médicos e intelectuais que foram publicados em periódicos científicos do período - que abraçaram e contribuíram para a difusão das ideias de eugenia em voga. São os textos Eugenia: Esbozo novelesco de costumbres futuras, de 1919, do médico mexicano nascido em Cuba Eduardo Urzaiz; O presidente negro ou O choque das raças: Romance americano do ano 2228, escrito em 1926 por Monteiro Lobato; Buenos Aires en el año 2080: Historia verosímil, escrito em 1879 pelo jornalista francês residente na Argentina Achilles Sioen; e La ciudad argentina ideal o del porvenir, publicado em 1919 pelo médico argentino Emilio Coni.

Ainda que não sejam apresentadas as conexões dos respectivos autores com instituições científicas e profissionais onde proliferaram tais ideias de eugenia - e talvez não seja essa a intenção de López-Duran especificamente para esse capítulo -, a autora exemplifica como essas ficções, além de muito possivelmente terem contribuído para a divulgação das ideias da eugenia lamarckiana, ao mesmo tempo eram já parte constituinte de um pensamento difuso e hegemônico à época. Ademais, tais ficções espelharam - ou foram espelhadas - em diversos eventos, políticas e abordagens elencados pela autora, de controle e repressão do corpo feminino e de cerceamento e opressão contra populações negras e autóctones que diversos países latino-americanos empreenderam visando a modernização de seus espaços, bem como a purificação e o disciplinamento de suas populações.

No Capítulo 2, “De Paris para o oeste: do Musée Social ao paraíso adoentado”4 4 Tradução minha. No original: “Paris Goes West: From the Musée Social to an ‘Ailing Paradise’”. (López-Duran, 2018LÓPEZ-DURAN, Fabiola. Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018. , p. 43), López-Duran retorna às origens do Musée Social de Paris, fundado em 1894, ao qual se associaram diversos intelectuais, cientistas, engenheiros, arquitetos e urbanistas, no intuito de pensar a modernização da França e recuperar as cidades e a população francesa da “degeneração” com base nas teorias da eugenia lamarckiana. López-Duran apresenta como diversos daqueles engenheiros, arquitetos e urbanistas eventualmente atravessaram o Atlântico para desenvolver planos diretores urbanísticos e projetos de arquitetura para diversas cidades da América Latina. Entre eles, o arquiteto francês Donat-Alfred Agache, que desenvolveu o plano urbanístico em 1930 para o Rio de Janeiro. Ainda que duvidássemos, as conexões entre políticos e intelectuais cariocas e os técnicos do Musée Social de Paris são apresentadas pela autora, que relata desde a escolha e o convite de Agache até a conclusão do projeto que resultou na expulsão das populações negras e pobres das atuais áreas nobres do Rio de Janeiro, por meio de um urbanismo cirúrgico que materializou as teorias médicas da eugenia lamarckiana no tecido social da cidade.

No Capítulo 3, “Máquinas da vida moderna: os equipamentos de saúde e reprodução”5 5 Tradução minha. No original: “Machines for Modern Life: The Apparatuses of Health and Reproduction”. (López-Duran, 2018LÓPEZ-DURAN, Fabiola. Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018. , p. 83), López-Duran apresenta uma série de eventos entre o último quarto do século 19 e a primeira metade do século 20, quando se empreendeu a criação e a instalação de equipamentos com vistas ao controle das populações “perigosas” - judeus, prostitutas, anarquistas, imigrantes do sul e leste europeus e imigrantes da Ásia - e a sua “domesticação” em seres dóceis, disciplinados e produtivos. Por meio do projeto de jardins públicos, entendido pela eugenia lamarckiana como o elemento restaurador da degenerescência e organizador e normalizador da vida urbana, articularam-se diversos outros equipamentos urbanos - a casa operária, creches e escolas, hospitais, asilos, sanatórios e dispensários para prostitutas - estrategicamente localizados no tecido urbano de Buenos Aires para o controle e a repressão dos indivíduos, especialmente do corpo de mulheres, reduzidas ao papel de mãe, nutridora e dócil, e do corpo das crianças e dos jovens, os futuros integrantes da sociedade perfeita.

López-Duran apresenta o plano diretor do arquiteto francês Jean-Claude Nicolas Forestier (1861-1930) para Buenos Aires e seus jardins, e defende que a eugenia lamarckiana já era uma prática corrente e difusa nesse período destacado, antes mesmo da fundação do Museo Social da Argentina, em 1911, o qual sobreviveu ao desconforto gerado pelas práticas eugenistas do nazismo após o fim da segunda guerra.

No Capítulo 4, “Imaginando a evolução: Le Corbusier e a reconstrução do Homem”6 6 Tradução minha. No original: “Picturing Evolution: Le Corbusier and the Remaking of Man” (López-Duran, 2018LÓPEZ-DURAN, Fabiola. Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018. , p. 144), López-Duran amarra as ideias expostas ao longo dos três primeiros capítulos, nos quais discute o amadurecimento das ideias conservadoras de Le Corbusier7 7 Pseudônimo do arquiteto suíço Charles-Edouard Jeanneret-Gris (1887-1965). , o que se deu tanto por meio das visitas que realizou ao Rio de Janeiro e a Buenos Aires entre 1929 e 1936 - quando observou a implantação dos projetos urbanos e da arquitetura sendo aplicada como a apropriada tecnologia da engenharia social de renovação do tecido social - quanto por meio da influência que recebeu de Alexis Carrel (1873-1944) - o eugenista francês que advogou, entre outras atrocidades, por câmaras de gás para eliminar tipos indesejados -, entre outros tecnocratas que com ele colaboraram com Vichy. A autora discute que teria sido o maior desejo de Le Corbusier se tornar o herdeiro dos experts internacionais formados dentro do Musée Social e atravessar o Atlântico com um plano urbanístico comissionado para as cidades latino-americanas.

Eventualmente, os anos 1940 foram frustrantes para Le Corbusier, que se sentia injustiçado ao não receber o devido reconhecimento pelo sucesso que a arquitetura moderna brasileira fazia internacionalmente, a qual carregaria suas ideias de eugenia materializadas em arquitetura. De qualquer maneira, Le Corbusier teria sintetizado a eugenia lamarckiana, que atravessou ida e volta o Atlântico, não somente na Unidade de Habitação de Marselha - a creche e o jardim restaurador e normalizador da vida urbana, ambos na cobertura; a habitação mínima; e os serviços urbanos, fontes de saúde e profilaxia, nos andares intermediários -, mas também no Modulor, o módulo humano estandardizado, um homem grande, de cabeça pequena, mãos e pés grandes, em alusão ao descendente melhorado de um ser primevo, que representa o resultado perfeito da miscigenação das raças.

Eugenics in the Garden é publicado pela University of Texas Press e foi editado por Felipe Correa e Bruno Carvalho, sendo parte da coleção “Lateral Exchanges: architecture, urban development, and transnational practices”, dedicada aos campos relacionados da arquitetura, do paisagismo, do urbanismo, da história e dos estudos visuais e de mídia. A série propõe debates sobre como modelos e conceitos de construção do espaço, ou as pessoas que pensaram tais modelos e conceitos, circularam para além de fronteiras idiomáticas, políticas e geográficas. Totalmente acertado o tema deste livro com a série, já que López-Duran argumenta para uma “reconsideração do entendimento de eugenia e posiciona a Modernidade fora dos modelos de centro-periferia, reconhecendo-a como produto de múltiplas redes e interconexões transnacionais” (López-Duran, 2018LÓPEZ-DURAN, Fabiola. Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018. , p. 13, tradução minha).

O texto é dividido nos quatro capítulos resumidos anteriormente, além da introdução e do epílogo, no qual Fabíola López-Duran revela os motivos pessoais que a despertaram para o tema trabalhado no livro. A memória da alteridade nas diversas amostras de embriões e fetos armazenadas em frascos de vidro, que via como variações possíveis da natureza humana - López-Duran frequentara na infância o laboratório de sua mãe, pesquisadora de embriologia humana da Escola de Medicina na Universidade dos Andes, na Venezuela -, foi confrontada, durante sua adolescência nos anos 1980, com as lições sobre puericultura, a “‘ciência’ da unidade mãe-criança” (López-Duran, 2018LÓPEZ-DURAN, Fabiola. Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018. , p. 189), por docentes que se esforçavam em transformar a branquitude em virtude e patologizar as diferenças. López-Duran sintetiza as observações de sua trajetória pessoal e como profissional da História da Arquitetura no jardim que dá título ao livro, como a metáfora para a modernidade e para a arquitetura moderna, eugenista, onde as espécies escolhidas são controladas e podadas desde o nascimento, eliminando-se outras ervas, entendidas como daninhas e indesejadas. Fabíola López-Duran afirma que este é “um livro sobre tema que a sociedade permanece relutante em discutir”8 8 Tradução minha. No original: “So, this is a book about something society remains reluctant to discuss”. (López-Duran, 2018LÓPEZ-DURAN, Fabiola. Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018. , p. 17) especialmente na atualidade, quando a eugenia retorna por meio do conservadorismo que reafirma as crenças de superioridade racial e de diferenciação de gênero.

Destaco eu que não é difícil perceber como a eugenia pode ainda ser parte do nosso cotidiano, desde as diversas terapias que a medicina oferece para gerar filhos biológicos a quem estaria biologicamente impedido e recusa a possibilidade de adotar uma criança, passando pela disponibilidade de tecnologia genômica para se descobrir ancestralidade - essa informação poderá ser usada contra as pessoas quando a intolerância é cada vez maior contra povos minoritários? -, até o tratamento cruel que a categoria médica no Brasil em geral dedica a pacientes fora do padrão normativo. E se evidencia, até hoje, em sua forma mais cruel, na hipersexualização de mulheres não-brancas - historicamente, conforme López-Duran, o alvo da miscigenação e da purificação das raças -, e no massacre de homens não-brancos e de corpos diferentes e desviantes da norma, em comunidades pobres e periféricas latino-americanas.

Além da vontade de saber mais se e como a eugenia lamarckiana permeou os projetos urbanos elaborados e implantados em outros países latino-americanos na primeira metade do século 20, fica também a vontade de entender mais se e como a eugenia lamarckiana esteve presente no projeto de Brasília, do qual participaram Lucio Costa e equipe, agentes na criação da identidade nacional brasileira, envolvidos nos projetos arquitetônicos para o Rio de Janeiro nos anos 1930, quando tiveram Le Corbusier como seu consultor - uma tarefa desafiadora a quem tomá-la para si, considerando-se que a eugenia, um paradigma científico apropriado, difuso e aceito na primeira metade do século 20, passou a ser oficialmente recusada após a segunda guerra, com a revelação das atrocidades do nazismo.

REFERÊNCIA

  • LÓPEZ-DURAN, Fabiola. Eugenics in the Garden: Transatlantic Architecture and the Crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018.
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    A teoria evolucionista lamarckiana, desenvolvida pelo naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), afirmava que a evolução das espécies resulta da adaptação do indivíduo ao ambiente. Conforme essa teoria, a adaptação do indivíduo ao ambiente seria adquirida geneticamente e herdada por sua prole, causando a transmutação das espécies.
  • 2
    A teoria da seleção natural foi elaborada simultaneamente pelos naturalistas britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913). Conforme essa teoria, as espécies com características mais vantajosas terão mais chance de se reproduzir e sobreviver no ambiente.
  • 3
    Tradução minha. No original: “Practicing Utopia: Eugenics and the Medicalization of the Built Environment”.
  • 4
    Tradução minha. No original: “Paris Goes West: From the Musée Social to an ‘Ailing Paradise’”.
  • 5
    Tradução minha. No original: “Machines for Modern Life: The Apparatuses of Health and Reproduction”.
  • 6
    Tradução minha. No original: “Picturing Evolution: Le Corbusier and the Remaking of Man”
  • 7
    Pseudônimo do arquiteto suíço Charles-Edouard Jeanneret-Gris (1887-1965).
  • 8
    Tradução minha. No original: “So, this is a book about something society remains reluctant to discuss”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2023
  • Aceito
    30 Set 2023
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