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EDITORIAL

Assim como a Anpuh, a Revista Brasileira de História (RBH) apoia a rejeição da escola sem partido. Os motivos são simples e remetem à nossa História.

Em seu livro Machado de Assis, Historiador, Sidney Chalhoub analisa a ideologia senhorial da escravatura detendo-se na personagem de Estácio, criada pelo brilhante escritor negro. Herdeiro de seu pai morto, cabe a Estácio cumprir a vontade patriarcal expressa em testamento. Operando com a hegemonia cultural de homens livres brancos - proprietários membros de boas famílias, em geral donos de escravos e escravas -, Estácio é incapaz de relativizar valores e perceber diferenças. Toda diferença perante sua vontade senhorial é, pois, entendida como provocação, desobediência, indisciplina, desvio, doença ou rebeldia. Ao repicar o bordão "minha família, minhas regras", a escola sem partido vem, em nome de sábios homens brancos, afirmar a primazia do particular, do doméstico, o domínio do arbítrio privado, onde abuso e violência campeiam impunes e soltos, dada sua proximidade com a prática do estupro, da agressão, da mentira e da tortura. Em nome da defesa de sua cultura - que lhes é específica mas afirmam ser válida para todos -, põem em risco a igualdade da cidadania, difícil e histórica conquista numa sociedade, como a nossa, de desigualdades duráveis, desigualdades seculares.

Por sua vez, em O Estado Novo, Maria Celina Soares D'Araujo disseca o motivo pelo qual é autoritária uma proposta que afirma o apolítico - o apartidário - como adequado. Desdenhando a sociedade civil (vista como praça de desentendimentos, de diferenças aberrantes, de confusão permanente), o Estado Novo, ao decretar um Brasil sem partido como solução para o bem-estar e o desenvolvimento, recorreu à força para suprimir outras formas de pensar e agir. O fim da diversidade foi a extinção da política, da sociedade civil. A lei e a mordaça, a perseguição e a polícia calaram - prenderam e arrebentaram - a pluralidade social. Congregando a egrégia escola da família com Deus pela liberdade e a propriedade (vide editorial de O Globo em favor do término do ensino público superior gratuito), projeta-se uma efetiva ameaça à igualdade e à democracia. Tanto a sinopse quanto a trama do filme são notórias e sinistras.

A RBH é um periódico de acesso livre domiciliado na SciELO e no DOAJ. Aberta a autorias e às leituras as mais variadas, não postula uma História contada a partir de uma versão consagradora do Estado nacional, por ser a cidadania quem constitui a pátria (e não o contrário).

Montado a partir da publicação avançada de artigos, este número 72 veio a lume gradativamente. Ao ser fechado, sua pauta tem nove artigos e três resenhas. Quatro artigos compõem o dossiê "Perspectivas recentes da História Medieval no Brasil", organizado por Marcelo Cândido da Silva e Néri de Barros Almeida (vide sua Apresentação).

O "Crime da miscigenação", de Luciana Brito, discute como o caso brasileiro foi apropriado pela elite branca estadunidense, interessada, no pós-abolição, em dar vida durável a ideologias de supremacia branca e segregação racial. Não por acaso, o Brasil vira exemplo de atraso e degeneração, o que aviva as políticas segregacionistas nos Estados Unidos.

No artigo sobre a política externa equatoriana durante a Guerra do Pacífico (1879-1884), Claudio Figueroa analisa o papel de reivindicações territoriais no conflito, as quais declaravam defender o interesse nacional. O autor mostra como o Equador, que não foi um país beligerante, buscou redefinir sua fronteira com o Peru.

Com "Sou escravo de oficiais da Marinha", álvaro Nascimento situa a Revolta da Chibata no contexto do pós-abolição. O autor descreve os problemas enfrentados pela marujada, mormente negra (enquanto o oficialato era branco), nas décadas seguintes a 1888, detendo-se na insurgência contra castigos corporais que, em 1910, eram usados em nome do disciplinamento.

No seu esboço biográfico sobre "Miranda", codinome de Antônio Bonfim, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro de 1934 a 1936, Raimundo Moreira, com base em pesquisa de fontes inéditas, discute sua trajetória e formação como militante e sugere uma reavaliação de sua biografia.

Em "Sou ainda uma Brazilianist" Barbara Weinstein questiona essa categoria. Nos anos 1970, o termo "brasilianista" rotulou o estrangeiro que estudava o Brasil. Nascido no contexto da Guerra Fria e do nosso regime militar, invocava uma figura com orientação política específica. Mudanças no mundo acadêmico, lá ou aqui, complicam esse indicador de "lugar" de quem faz pesquisa.

Nas três resenhas deste número, está mais uma vez indiciado o fato de não ser a RBH uma revista paroquial. Uma autora atua na Inglaterra, um livro resenhado foi publicado fora do Brasil e outro resulta de uma tradução. Isso significa circulação e comunicação através de fronteiras estabelecidas. Lamentavelmente, até onde a vista alcança, nada disso é levado em conta quando se faz uma avaliação. Mantém-se aqui o pioneirismo do número 69, que publicou simultaneamente em português e inglês todos os seus artigos. Não são todos os periódicos que fazem isso. Também vale a pena notar que três autorias de artigos atuam fora do Brasil.

A RBH agradece a quem se envolveu com seu labor e engenho, voluntário, gratuito, ou não. Pablo Serrano e Deivison Amaral concorreram positivamente como assistentes editoriais, com entusiasmo e afinco diários. Armando Olivetti, Eoin O'Neill, Flavio Peralta e Roberta Accurso prestaram serviços profissionais de grande qualidade.

Deplora-se a queda, via golpe, da presidenta Dilma Rousseff.

Gravam-se aqui penhorados agradecimentos ao Programa de Pós-Graduação em História, Cultura e Práticas Sociais da Universidade do Estado da Bahia (PPGHCPS-UNEB), e também ao CNPq.

Antonio Luigi Negro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
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