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A emancipação negociada: os debates sobre a criação da província do Paraná e o sistema representativo imperial, 18431 1 Este artigo é parte de uma pesquisa maior, realizada com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Resumos

A criação de novas unidades administrativas no Brasil Império raramente é utilizada como ferramenta para se entender a dinâmica político-econômica do período. Entretanto, a análise dos documentos produzidos pelos ricos debates parlamentares em torno desse tema demonstra que essa prática precisa ser revista, uma vez que a reorganização do território envolvia mais do que simplesmente emancipar extensões de terras: significava proceder a alterações fundamentais no funcionamento do sistema político do país. Neste sentido, o processo de emancipação da quinta comarca de São Paulo, futura província do Paraná, é emblemático, por trazer à tona elementos importantes para o entendimento dessa dinâmica. Questões como a sobrevivência da nova unidade administrativa, a perda de população e renda por parte de São Paulo, as relações nem sempre pacíficas entre as províncias e a posição do governo central nesse contexto estiveram colocadas em foco todo o tempo.


The creation of new provinces in the Empire of Brazil is rarely used as a tool for understanding the dynamics of politics and economy of this period. However, the analysis of the documents produced during the rich parliamentary debates about this question demonstrates the need to revise this practice, because territorial reorganization included more than political emancipation. It meant implementing some very important changes in the running of the country's political system. In this context, the emancipation of the fifth comarca of São Paulo, the future province of Paraná, is important because it highlights elements which help to understand these dynamics. Questions like the survival of the new province, the loss of population and revenue by São Paulo, the conflictual relations between provinces, and the official position of the central government, were in focus during all this process.

Paraná State; Parliament; Empire


Em 12 de abril de 1843, o deputado Joaquim José Pacheco, representante de São Paulo, apresentou à Câmara dos Deputados um requerimento de informações ao governo geral. Pedia, assim, que fossem enviados à Casa todos os documentos e esclarecimentos possíveis acerca da pretensão "dos povos" da comarca de Curitiba de se emanciparem da administração de São Paulo. Foram pedidos, ainda, dados acerca da produção daquela região, de seu território, população e limites, com a intenção de melhor informar os parlamentares acerca da necessidade do deferimento - ou recusa - de sua elevação à categoria de província (Anais, 12 abr. 1843ANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
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, p.767).

Iniciava-se, dessa forma, o longo e acirrado debate acerca da criação da província de Curitiba. Esse processo decisório seria encerrado após 10 anos, quando a região - já com o nome alterado para Paraná - conseguiu sua separação de São Paulo. Em 1843, contudo, constituiu-se em um dos principais temas da legislatura parlamentar, capaz de mobilizar completamente deputados que se posicionaram tanto a favor como contra a medida, e forçando a administração saquarema a se posicionar claramente acerca da questão. Assim como no caso da comarca do Rio Negro - já em vias de ter sua emancipação aprovada quando do início dessas discussões -, o que estava em jogo era mais do que a criação de uma nova unidade administrativa. Debateram-se projetos de Estado distintos, bem como a relação entre o centro de poder e as regiões periféricas do Império, e destas entre si.

Mas não foi apenas isso. Os debates de 1843 acerca da elevação da comarca de Curitiba provocaram uma situação de extrema tensão em uma legislatura que, como visto, era marcada por uma ampla maioria conservadora. Trata-se de um tema que levou parlamentares alinhados a esse partido fazerem oposição cerrada à posição assumida pelo núcleo saquarema sobre a questão. Ocorreu uma cisão profunda na bancada paulista na Câmara dos Deputados, sem tirar desta, contudo, a força política necessária para provocar o seu adiamento por tempo indeterminado - contrariando as diretrizes do gabinete conservador.

Nesse sentido, analisar os debates sobre a emancipação da Quinta Comarca paulista significa estudar um momento em que o sistema representativo imperial pôde funcionar em toda a sua plenitude. Em que, no cálculo de muitos parlamentares, o alinhamento político ficou em segundo plano, sendo preterido em favor de outros interesses e projetos julgados mais importantes. Significa, em outras palavras, analisar um tema privilegiado para se entender a forma como estava sendo construído o Estado brasileiro em meados do século XIX. Isso porque, com uma intensidade ainda maior do que no caso da criação da província do Rio Negro, foi capaz de excitar comportamentos que em nada se parecem com o que seria esperado de uma assembleia formada por uma virtual unanimidade de membros alinhados com um grupo político que possuía posição bem definida acerca do que estava sendo proposto.

O contexto em que ocorreu esse processo também contribui para aumentar sua importância. Neste caso em particular, adquire maior relevo o fato de que, menos de um ano antes, os liberais paulistas haviam sido militarmente derrotados, após iniciarem uma reação ao movimento político conhecido como Regresso. Segundo Divonzir Beloto, recaiu sobre João da Silva Machado a missão de "pacificar" a comarca que, entretanto, ainda não se havia rebelado. Enviado a Curitiba no início de 1842, imediatamente estabeleceu contato com os liberais da localidade. O motivo era a possibilidade de ser esse grupo político o mais propenso a apoiar seus copartidários de Sorocaba e os farrapos, como uma possível estratégia para colocar em dificuldades o governo central, então sob poder dos saquaremas (Beloto, 1990BELOTO, Divonzir. A criação da província do Paraná: a emancipação conservadora. Dissertação (Mestrado em História) - PUC. São Paulo, 1990., p.60-68).

Já sabendo que a emancipação da comarca era uma das principais bandeiras desse grupo, Machado rapidamente articulou um acordo. Caso a comarca permanecesse calma e não apoiasse nenhuma das duas revoltas armadas, o barão de Monte Alegre (José da Costa Carvalho), que acabara de assumir o cargo de presidente da província de São Paulo, intercederia pessoalmente, junto ao ministério, pela sua elevação ao status de província.

A comarca de Curitiba, de fato, não ofereceu apoio a nenhum dos movimentos armados, sendo o levante de Sorocaba rapidamente contido pelas forças legalistas. Isso não significa, entretanto, que a região não tenha se agitado, e não ameaçasse apoiar os liberais paulistas. Segundo correspondência enviada por João da Silva Machado ao presidente de São Paulo:

Vou contar a V. Ex. com alguma minuciosidade o que se tem passado nesta comarca. A notícia da rebelião em Sorocaba derramou aqui a confusão por haver chegado conjuntamente com a 1ª Proclamação, ordem e cartas diversos. Em consequência fizeram-se reuniões noturnas, uns queriam a separação, nomeando um presidente, outros um governo provisório de três membros, outros finalmente não sei o que. Até a Câmara se reuniu para dar posse aos empregados policiais. Foi quando felizmente chegaram aquelas cartas que V. Ex. mandou pela marinha com tanta prontidão. Sendo uma para o Tenente Cel. Miguel Marques dos Santos, que ali se achava, publicou seu contexto à face da Câmara, e como além da recomendação da ordem, lhes assegurava a separação da comarca, elevando-se à província, ficaram satisfeitos e desamotinaram-se ... A deliberação deste homem [cel. Balduíno] a favor da Legalidade desarmou a luzida rapaziada de Ponta Grossa que estava de cabecinha levantada e disposta a jogar todas as cartas e sei que meteu medo a toda a comarca e ao meu amigo Cunha, da Lapa. Enfim, salvou-se a comarca, que esteve por um fio de insurgir-se, porém agora parece-me que está segura ... Tenho empenhado a minha palavra de que Curitiba há de ser elevada à Província e portanto V. Ex. não me deixe ficar em falta.1 1 Correspondência de João da Silva Machado ao barão de Monte Alegre, presidente da província de São Paulo, 23 jun. 1842. In: BELOTO, 1990, p.63.

Por sua vez, o barão de Monte Alegre também cumpriu o prometido, enviando, em 30 de julho de 1842, um ofício ao ministro do Império, Cândido José de Araújo Viana, pedindo a elevação da comarca de Curitiba a província. Segundo o presidente de São Paulo, uma das principais razões que justificavam a adoção dessa medida estaria fundada

no perigo que há de, por mais tempo continuar a desatender a essas representações; nos perpétuos receios que tem o governo a cada pequena comoção que aparece no Império, de que a comarca se agite e acompanhe o movimento, por desgostos de não merecerem atenção dos seus votos a tão longo tempo manifestados; nas proporções, enfim, que este estado de coisas oferece a todo revolucionário ou demagogo para envolver em seus planos de desorganização um país muitíssimo interessante em todos os tempos, que atualmente ainda o é, muito mais pela proximidade em que fica da província do Rio Grande do Sul.2 2 Ofício do barão de Monte Alegre a Cândido José de Araújo Viana, ministro do Império, 30 jul. 1842. In: BELOTO, 1990, p.65.

Mas não era somente o temor de que a comarca se rebelasse que movia José da Costa Carvalho. Mais adiante em seu ofício, o presidente de São Paulo refere que a região já estava em condições de ser elevada a província, referindo para sustentar essa afirmação sua população, a facilidade de civilizar seus indígenas, suas rendas gerais e provinciais. Além disso, tratar-se-ia de uma região de fronteira, localizada a grande distância do centro de poder paulista, o que tornava difícil sua administração. Quanto à capital da nova unidade administrativa, Monte Alegre entendia que deveria ser localizada na cidade de Curitiba, "situada no centro da Comarca e por isso, mais ao alcance dos outros pontos dela" (Beloto, 1990BELOTO, Divonzir. A criação da província do Paraná: a emancipação conservadora. Dissertação (Mestrado em História) - PUC. São Paulo, 1990., p.65-68). Será útil perceber, neste ponto, que os argumentos utilizados pelo então presidente da província de São Paulo seriam retomados, quase em sua totalidade, pelos deputados defensores dessa medida na Câmara, cerca de um ano mais tarde.

O fato de o governo ter precisado negociar com parte da elite da comarca de Curitiba - no caso os liberais dessa região - mostra a força que esses grupos poderiam ter, caso estivessem em uma situação favorável. Subitamente colocados entre dois movimentos embaraçosos para a administração saquarema, eles conquistaram, apenas com a possibilidade de apoio a esses levantes, a promessa de que uma de suas principais reivindicações seria atendida. O problema, entretanto, residia no fato de que, na lógica do sistema representativo imperial, não bastava que o governo central apoiasse uma medida para que ela fosse adotada. Era preciso conseguir, também, a aprovação do Parlamento, que não se furtou a debater o acordo estabelecido em Curitiba, quase sempre criticando ou negando sua importância, como será visto a seguir.

APRESENTAÇÃO DE DOIS PROJETOS COMPLEMENTARES: EMANCIPAÇÃO DE CURITIBA E ANEXAÇÃO DO SAPUCAÍ A SÃO PAULO

Coube a outro deputado por São Paulo, Carlos Carneiro de Campos, apresentar e justificar um projeto para elevação da comarca de Curitiba ao status de província, na sessão da Câmara de 29 de abril de 1843 - pouco mais de duas semanas após o requerimento de informações apresentado por Joaquim José Pacheco. Nas razões que apresentou para motivar seu projeto, Carneiro de Campos ofereceu a seus colegas o que viria a ser a base dos argumentos favoráveis à adoção dessa medida (Anais, 29 abr. 1843ANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
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, p.982-984).

Assim, em primeiro lugar, utilizou uma ideia que havia sido largamente empregada na bem-sucedida defesa da criação da província do Rio Negro: a distância que separava o território a ser emancipado da capital da província. Ainda que apontasse que esse elemento representava um sério obstáculo para a boa administração da região, afirmava que ele, por si só, não seria suficiente para justificar a criação de uma nova unidade administrativa no Império. Isso porque, segundo o deputado, embora requeresse a tomada de providências que diminuíssem seus prejuízos, havia no Império várias localidades que também se encontravam longe de qualquer centro de poder, e que mesmo assim não estavam no caso de serem alçadas à categoria de província. Outros fatores deveriam se somar a esse para que uma política de tamanho alcance pudesse ser adotada. O que, no entendimento do parlamentar, ocorria no caso da comarca de Curitiba.

Neste sentido, a comarca possuiria população suficiente (cerca de 60 mil habitantes, nas suas palavras), um território fértil capaz de oferecer uma produção mais que suficiente para manter o novo aparato administrativo, e potencial de crescimento econômico. Argumentos sem dúvida bastante diferenciados, se tomados em conjunto com os utilizados para justificar a emancipação da comarca do Rio Negro, poucas semanas antes. Lá a grande distância do centro de poder também era um fator poderoso, mas a falta de população civilizada - com a consequente necessidade de aumentá-la -, e o enfraquecimento progressivo de uma economia já débil, serviam para apontar a criação da província como a decisão mais acertada a ser tomada.

Mas, após esse distanciamento entre os dois casos, rapidamente surgiu, entre as justificativas de Carneiro de Campos, uma que novamente os aproximou: a necessidade de conter as desordens provocadas por movimentos armados. Assim, se para justificar a criação da província do Amazonas essa medida foi apresentada como capaz de auxiliar na pacificação das áreas deflagradas pela Cabanagem e de evitar a repetição desse movimento, no caso da emancipação de Curitiba o elemento que ganhou força foi a sua proximidade com o Rio Grande do Sul, grande o suficiente para permitir, caso nenhuma medida fosse tomada, o transbordamento de seus conflitos para outras regiões do país:

Observarei por último que com a existência das desordens do Rio Grande a posição da comarca de Curitiba tem sido sempre melindrosa; tem dado cuidados à administração provincial e geral aquela parte do Império. As ideias da rebelião do Rio Grande muitas vezes se tem intentado introduzir naquela paragem, procurando-se, ainda que felizmente sem fruto, desvairar os espíritos dos seus habitantes; a sua proximidade, pois, à província do Rio Grande exige que a ação do governo seja ali mais sentida, não só para que se possa repelir muito eficazmente essas tentativas como também para que as autoridades da Curitiba possam mais imediatamente aproveitar em favor da ordem pública aqueles recursos que na comarca se encontram. (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
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, 29 abr. 1843, p.983)

Não bastava destacar um corpo militar para a região. Era preciso dotar a elite local de meios para captar os recursos disponíveis na comarca, e investi-los "em favor da ordem pública", o que significava criar uma força policial, fortalecer a guarda nacional, e realizar obras públicas capazes de facilitar o aproveitamento do solo fértil da região, impulsionando as virtualidades de crescimento econômico que a comarca possuía. Para que esses objetivos fossem alcançados, a emancipação surgia como uma condição necessária, já que daria origem a uma Assembleia Legislativa que, de acordo com as determinações do Ato Adicional, teria a autonomia necessária para tributar e aplicar os frutos dessa arrecadação no desenvolvimento da província.

Mas esse não seria o único projeto apresentado pelo parlamentar. Em uma possível estratégia para compensar a perda, por parte de São Paulo, de uma de suas comarcas mais importantes, Carneiro de Campos propôs que fosse anexado a essa província uma parte do território de Minas Gerais. Como acontecia com outras regiões dessa província, a comarca do Sapucaí estava submetida à autoridade espiritual do bispo paulista, o que criava uma interposição de esferas jurisdicionais que, na ótica do deputado, precisava ser resolvida. De fato, o problema era tão grave que já havia sido objeto de um relatório apresentado em 1837 pelo presidente da província mineira, Antônio da Costa Pinto, à assembleia legislativa provincial:

Há na província 128 paróquias; 93 acham-se providas, 33 têm párocos encomendados; 93 formam o bispado de Mariana; uma pertence ao Rio de Janeiro; 4 ao de Goiás; 6 ao de Pernambuco; 9 ao de São Paulo; e 15 ao arcebispado da Bahia. Cabe aqui, senhores, lembrar-vos a conveniência de se darem à nossa diocese os mesmos limites, que tem a província.3 3 Falla dirigida à Assembléa Legislativa Provincial de Minas Gerais na sessão ordinária do ano de 1837 pelo presidente da província, Antônio da Costa Pinto. Ouro Preto: Typ. Do Universal, 1837. p.IV-V.

Agregando a esse fato a ideia de que a região estaria mais próxima da capital de São Paulo que da mineira - Ouro Preto -, Carneiro de Campos pôde justificar sua proposta (Anais, 29 abr. 1843ANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
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, p.983). Buscava, dessa forma, minimizar a oposição da bancada paulista à emancipação de Curitiba, que ele certamente sabia que seria enorme. Foi uma estratégia que custou, entretanto, o adiamento dessa medida por 10 anos, ao atrair contra si a má vontade da bancada mineira, ao mesmo tempo em que não logrou convencer os demais deputados paulistas a aceitar o desmembramento de sua província.

Seria necessário aguardar exatamente um mês até que a elevação da quinta comarca de São Paulo entrasse em discussão. Rapidamente foram formados dois grupos de deputados que se propuseram a discursar acerca do tema. Foram oito os parlamentares que discursaram contra a proposta, na primeira fase de debates - José Manoel da Fonseca, Joaquim Otávio Nébias e Joaquim Firmino Pereira Jorge, todos deputados por São Paulo; Venâncio Henriques de Rezende, Francisco de Paula Cândido e João Antunes Correia, representantes de Minas Gerais; Joaquim Manoel Carneiro da Cunha, deputado pela Paraíba; e Ângelo Muniz da Silva Ferraz, eleito pela Bahia -, contra três que discursaram a favor - Carlos Carneiro de Campos e Joaquim José Pacheco, deputados por São Paulo, e Bernardo Jacinto da Veiga, representante de Minas Gerais. Estes últimos receberam, ainda, o apoio do discurso proferido pelo ministro da Marinha, Joaquim José Rodrigues Torres. As votações indicaram, entretanto, que ao menos momentaneamente, a maioria dos deputados estava favorável à aprovação do projeto. Mais uma vez, a Câmara conservadora de 1843 se veria dividida ao debater a criação de uma nova província.

O INÍCIO DOS DEBATES E A CISÃO DA BANCADA PAULISTA

O projeto de emancipação da comarca do Rio Negro, que havia sido debatido em diversos momentos entre os anos de 1826 e 1843, recebera apoio unânime dos representantes da província a ser desmembrada - o Grão-Pará - e dos parlamentares que já a haviam presidido.4 4 Esse processo é objeto de análise em dois artigos: GREGÓRIO, 2011, e GREGÓRIO, 2011a. De fato, durante o processo decisório na Câmara, coube a esses deputados formular e apresentar a proposta por duas vezes - em 1826 e em 1839, oferecer a seus pares a maior quantidade de argumentos favoráveis à medida, e refutar sistematicamente as objeções que foram surgindo durante os debates. No caso da elevação a província da comarca de Curitiba, ocorreu exatamente o contrário. Embora o projeto tenha sido redigido e apoiado por alguns representantes de São Paulo, coube a outros deputados dessa província oferecer a resistência mais acirrada aos seus dispositivos. O que provoca, necessariamente, o questionamento sobre as razões que explicariam essa diferença de comportamento entre as duas bancadas diretamente afetadas pelas propostas.

Alguns elementos que podem ajudar a solucionar esse problema estão presentes nos discursos dos parlamentares envolvidos nos debates. No processo decisório acerca da emancipação da comarca do Rio Negro, foi uma constante nos discursos dos deputados paraenses a ideia segundo a qual a medida proposta seria o melhor remédio para uma série de males que afligiam a região. Entre eles estavam: a distância que a separava do centro de poder mais próximo - Belém; a dificuldade de administração do território, como uma consequência dessa distância; a dificuldade em pacificar toda a província, ainda vítima dos combates da Cabanagem; o definhamento do comércio, da indústria e, como resultado, das finanças da comarca - cuja renda não refletia seu potencial econômico; a falta de população que a ocupasse satisfatoriamente; e a necessidade de fortalecer as fronteiras externas da região.

Alguns desses elementos também podiam se aplicar ao caso de Curitiba, ainda que sob contestações. Estavam neste caso a existência de fronteiras externas que precisavam ser fortalecidas, a distância que separava a comarca da capital da província, e a necessidade de lidar com um movimento armado nas proximidades da região. Outros, entretanto, ofereciam-se de forma completamente invertida na comarca paulista, mesmo sob a ótica dos que defendiam sua emancipação. Assim, além de Carneiro de Campos, também Joaquim José Pacheco, outro representante dos paulistas favorável à emancipação, afirmou:

se se recorrer às memórias ou alguma coisa que se tem escrito a respeito, ver-se-á que a comarca tem população suficiente para ser elevada a província. Aqueles que propugnam por essa ideia dizem que a comarca tem 70.000 habitantes e mais; porém concedamos que tenha 60, 50.000 almas mesmo, entendo que ainda neste caso a comarca deve ser elevada a província. (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
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, 2 jun. 1843, p.474)

É difícil saber, ao certo, a real dimensão da população da comarca, dadas as já conhecidas imprecisões existentes nos levantamentos realizados nesse período. Mas a Tabela 1 permite ter uma ideia aproximada de seus números, desde que se tome o cuidado de considerá-lo apenas como uma ferramenta indicativa, já que as únicas fontes que permitem sua construção estão sujeitas a uma série de fatores que atentam contra sua exatidão:

Tabela 1
População da comarca de Curitiba, 1721-1854

Com relação à economia curitibana, Pacheco novamente concordou com a opinião de Carneiro de Campos, oferecendo números precisos para isso:

Persuado-me que todos nós sabemos qual é a renda geral e provincial arrecadadas na comarca de Curitiba; a renda geral arrecadada na alfândega de Paranaguá regula uns anos por outros a 60:000$ para mais, e a renda provincial não pode ser ignorada por nenhum dos ilustres deputados por São Paulo que impugnam o projeto ... eles portanto hão de ter visto que a comarca de Curitiba tem rendido anualmente em direitos provenientes de animais de 100 a 120 contos de réis, e que mesmo agora, com as desordens do Rio Grande do Sul, nunca este imposto dos animais tem sido menor de 70 a 80 contos de réis; esta é a renda principal da comarca, e portanto podemos considerar a comarca atualmente rendendo 100 a 120 contos, com esperança de render muito mais. (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
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, 2 jun. 1843, p.474-475)

A veracidade dessas colocações, e a importância acentuada da comarca de Curitiba para a província de São Paulo, são indicadas pelo fato de que não foram contestadas pelos opositores da emancipação, mas antes foram utilizadas para argumentar contra a adoção dessa medida. Nesse sentido, José Manuel da Fonseca, também deputado por São Paulo e um dos mais resistentes ao seu desmembramento, afirmou:

Mas, se vós confessais que a comarca de Curitiba prospera tanto, que a sua renda e a sua população têm aumentado debaixo do governo que tem, por que quereis mudar esse governo? ... Eu não sei, Sr. Presidente, se devemos preferir uma província grande a duas pequenas: São Paulo apenas faz em circunstâncias ordinárias as suas despesas gerais: subdividida a província, fará ela essa despesa? A nova província o fará? Tendo nós uma província que nada custa ao Tesouro, preferimos ter duas que vivam à custa da União, à custa do Tesouro? (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
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, 30 maio 1843, p.414)

Fonseca foi secundado por seu colega, também representante de São Paulo, Joaquim Otávio Nébias. Segundo esse deputado, as rendas provinciais mostravam-se superavitárias unicamente por conta dos valores recolhidos na barreira do Rio Negro, localizada na divisa entre a comarca de Curitiba e a província de Santa Catarina. Nesse sentido, retirar dos paulistas essa fonte de rendimentos seria desastroso, uma vez que a arrecadação provincial já estava diminuindo continuamente, o que obrigava sua administração a fazer uso constante do capital de reserva. Emancipar Curitiba, dessa forma, significaria reduzir São Paulo, nas palavras desse parlamentar, a uma "província mendicante" (Anais, 31 maio 1843ANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
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, p.440).

Para os deputados paulistas que se opunham à emancipação de Curitiba, portanto, a província tinha muito a perder com essa medida. Perderia o repasse da renda provincial gerada com o recolhimento dos direitos sobre o transporte de gado muar, do Rio Grande do Sul a Sorocaba, realizado na barreira do Rio Negro; perderia parte de sua participação na renda geral, já que não teria mais a posse sobre a alfândega de Paranaguá; e, como será visto, poderia perder parte de seu prestígio político, caso à diminuição de seu território seguisse uma diminuição de sua representação.

Para se ter ideia da importância da renda oferecida pelo transporte e comércio de muares, basta atentar para o seguinte cálculo, oferecido por Divonzir Beloto:

na comarca, fazia-se o registro dessas tropas no Registro do Rio Negro, a entrada da província. Mas o imposto era efetivamente arrecadado em Sorocaba. Pagava-se por mula a importância de 3$500. Destes, 1$000 eram remetidos ao Rio Grande do Sul. Os 2$500 restantes eram rendas provinciais. No ano de 1838 foram negociadas 32.747 mulas, apresentando uma arrecadação de 81:869$950 de um total da província de 292:701$359, ou 28%. (Beloto, 1990BELOTO, Divonzir. A criação da província do Paraná: a emancipação conservadora. Dissertação (Mestrado em História) - PUC. São Paulo, 1990., p.69-70)

A seguinte tabela, confeccionada com os dados oriundos da tributação paulista, permite ter uma visão ainda mais precisa da importância do registro do Rio Negro para a economia da província:

Tabela 2
Tributos de barreira na província de São Paulo, 1835-1836 a 1850-1851

Durante o período coberto por esses dados, percebe-se como os valores tributados no registro do Rio Negro oscilam sempre entre a segunda e a terceira colocações em importância, atingindo seu ápice em 1837-1838, quando chega muito próximo da primeira fonte de renda, as taxas de barreira. Após 1846, entretanto, ocorre uma queda brusca nos rendimentos sob essa rubrica, o que ainda assim não a levou a perder o terceiro lugar entre todos os tributos analisados. Seria importante buscar entender o porquê dessa queda, questão que não se pode explicar por esta pesquisa, uma vez que extrapola os seus limites. O que pretendo mostrar com esses dados é o quanto em recursos a província de São Paulo perderia com a emancipação de sua Quinta Comarca e o fim dos repasses dos tributos cobrados no registro do Rio Negro. Esse fato, sem dúvida, foi elemento importante no cálculo dos deputados paulistas que se envolveram na discussão do tema.

Quanto à dimensão da renda oferecida pela alfândega de Paranaguá, pode-se ter uma ideia bastante precisa com a análise da Tabela 3, elaborada com os números referentes ao comércio daquele porto:

Tabela 3
Exportações e importações da comarca de Curitiba, via porto de Paranaguá, 1842/1843 a 1853/1854 (em mil-réis)

A oscilação dos valores relativos à exportação da comarca explica-se, em grande parte, pelas diferenças na quantidade e no valor da sua principal mercadoria, a erva-mate, como se percebe pela Tabela 4:

Tabela 4
Exportação de erva-mate, por arroba e preço, via porto de Paranaguá, 1842/1843 a 1853/1854

Assim, nos períodos em que houve queda no volume exportado e/ou nos preços cobrados por cada arroba de erva-mate - 1848 até 1851, ano em que houve uma breve alta, interrompida por nova baixa até 1853 - os valores da exportação da comarca sofreram uma queda correspondente, ocorrendo movimento inverso quando o comércio do produto passava por uma recuperação. Isso indica a grande importância que a economia ervateira possuía para a comarca de Curitiba e, consequentemente, para a província de São Paulo, nos anos que antecederam a criação da província do Paraná.

Esse cálculo, que buscava levar em conta o prejuízo que a província teria com o desmembramento, aparentemente não existia para os deputados paraenses. Se Curitiba surgiu repetidamente como uma das porções mais importantes da província de São Paulo, o Rio Negro apareceu quase sempre como um território longínquo demais, difícil de administrar e controlar, e com uma economia que, embora possuísse enorme potencial, ainda apresentava um caráter incipiente. Nesses termos, no discurso desses parlamentares sua província nada perderia com o desmembramento. Desde que, como visto, não fosse alterada sua representação no Parlamento, o que eles se esforçaram para garantir. Isso não passou despercebido a José Manuel da Fonseca:

Notável contradição! A comarca do Rio Negro deve ser província: e por quê? Porque tem decaído muito. A comarca da Curitiba deve ser província: e por quê? Porque está muito florescente! A comarca do Rio Negro deve ser elevada a província porque tem diminuído em suas rendas e população, e porque esta não está bem ilustrada; a comarca da Curitiba deve ser elevada a província porque tem muita renda e população; está muito ilustrada, muito próspera!!! Eu lamento que a mania de subdivisões de províncias, e feitas a esmo, vá tendo entrada nesta casa!!! (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
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, 30 maio 1843, p.414)

No entanto, o que poderia parecer uma contradição se explica pelo funcionamento político-administrativo do Estado imperial. Se for considerado o papel das assembleias legislativas provinciais, tal qual proposto por Miriam Dolhnikoff, a criação de uma província significava a organização de um governo autônomo com capacidade para levantar recursos necessários para promover o desenvolvimento de regiões abandonadas como a comarca do Rio Negro (Dolhnikoff, 2005DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.). Ao mesmo tempo, se justificava no caso de territórios cuja riqueza e aumento da população lhes conferia o direito de dirigir os próprios negócios, tendo em vista seus interesses específicos, sem se submeter a um governo distante e voltado para outros interesses, como era o caso de São Paulo - cujo governo estava mais comprometido com a expansão da agricultura de exportação do que com a produção de erva-mate de Curitiba. No caso das regiões ricas, tratava-se de atender a reivindicação da elite do território a ser emancipado que se considerava no direito de ter governo próprio. No caso das regiões pobres, tratava-se de atender as reivindicações da elite do território que tinha de carregar uma região deficitária. Para além do discurso, a criação de uma província e de um governo próprio significava, nos dois casos, criação de empregos, importante moeda de troca política no século XIX, e fortalecimento político para a elite local, que passava a contar com representantes próprios no Parlamento, e, neste caso, não importava se a região era rica ou pobre. Do ponto de vista das elites dominantes nas províncias que sofreriam o desmembramento é compreensível a diferença de postura entre paulistas e paraenses, tendo em vista as diferenças das regiões a serem desmembradas. A autonomia conquistada pelo Ato Adicional fazia depender os cofres provinciais da produção e circulação de mercadorias, além de outras atividades que se desenvolviam no território sob sua jurisdição. Cofres que financiavam investimentos na própria província. Por isso, para a elite paulista a perda de Curitiba era inaceitável, pois ela era fonte importante de arrecadação de impostos provinciais, enquanto para a paraense a perda do Rio Negro não revertia em diminuição de arrecadação provincial, dado o abandono em que se encontrava a região. Havia ainda o problema da representação no Parlamento. A escassa população do Rio Negro tornava mais fácil para a elite paraense reivindicar a manutenção do número de membros de sua bancada, criando novos cargos de representantes para a nova província a ser criada. A populosa Curitiba, se transformada em província, resultava em perda significativa de população por São Paulo, que temia ter diminuído o número de seus representantes na Assembleia Geral.

Essa diferença na percepção, por parte dos deputados, de dois fatos parecidos - o desmembramento das províncias que se propunham a representar -, não basta para encerrar a questão. Permanecem, ainda, as dúvidas sobre o porquê de a bancada paulista na Câmara dos Deputados ter se dividido tão profundamente, a ponto de seus membros adotarem posições diametralmente opostas, por vezes baseadas nos mesmos argumentos. E, nesse caso, a trajetória política dos envolvidos oferece elementos que permitem propor uma explicação.

A análise da carreira dos dois deputados por São Paulo favoráveis à emancipação de Curitiba, Carlos Carneiro de Campos e Joaquim José Pacheco, traz à tona alguns pontos em comum entre ambos. Os dois nasceram na Bahia, tendo chegado a São Paulo para cursar Direito no largo de São Francisco. Em suas carreiras jurídicas, enquanto Pacheco aposentou-se como juiz, Carneiro de Campos chegou a exercer o cargo de diretor da faculdade que cursara. Como políticos, Pacheco teve uma carreira, por assim dizer, mais modesta, tendo sido eleito deputado geral por São Paulo em cinco legislaturas - algumas vezes como suplente -, e nomeado presidente da província de Sergipe, cargo que ocupou por quase 7 meses, em 1839. Já Carneiro de Campos foi eleito deputado geral por São Paulo em quatro oportunidades, tendo sido nomeado senador pela mesma província em 1857. Além disso, foi nomeado presidente da província de Minas Gerais duas vezes, ministro dos Negócios Estrangeiros outras três, e ministro da Fazenda uma vez. Ocupou, ainda, o cargo de presidente do Banco do Brasil, e foi nomeado conselheiro de Estado. Morreu com o título de 3º visconde de Caravelas. Ambos, portanto, marcaram a carreira com passagens por outros locais além de São Paulo, tornando-se, em determinado momento, não apenas políticos provinciais, mas de todo o Império, fato corroborado pelo fato de que nasceram em uma província diferente da que estavam representando no Parlamento.

Quando se analisa a trajetória dos três deputados por São Paulo que se opuseram ao desmembramento da província, também é possível perceber vários pontos em comum. José Manuel da Fonseca, Joaquim Otávio Nébias e Joaquim Firmino Pereira Jorge nasceram em São Paulo. Todos se formaram em Direito, e Fonseca o fez em Coimbra. Todos exerceram o cargo de deputado geral representando apenas sua província natal - Fonseca uma vez, Nébias em sete oportunidades e Pereira Jorge em três. Fonseca acabou sendo nomeado senador, em 1854, também por São Paulo. O único que ocupou um cargo extraprovincial foi Nébias, nomeado ministro da Justiça do gabinete conservador de 1870. Todos os três, portanto, representavam a província na qual haviam nascido, não tendo exercido, em geral, cargos políticos em nenhuma outra localidade - única exceção a Nébias, que ainda assim só saiu de São Paulo para servir à administração imperial.

Essa diferença nas carreiras dos integrantes dos dois grupos ajuda a entender por que Pacheco e Carneiro de Campos propuseram a emancipação de Curitiba, ainda que com prejuízo da província que representavam, ao passo que Fonseca, Nébias e Pereira Jorge preferiram defender a qualquer custo a integridade de sua terra natal. Nesse sentido, esta passagem de um discurso de José Manuel da Fonseca exemplifica bem o sentimento que pode ter movido, também, seus outros dois conterrâneos:

Eu devo confessar à Câmara (não sei se isto acontece a todos, porém julgo que o que se passa em mim é natural a todos) que o meu patriotismo na verdade não nasce do Brasil para as províncias, o meu patriotismo reporta-se a algum lugar, mesmo circunscrito, e daí é que vai para cima, é que se estende a este todo; o Brasil que adoro... o lugar em que nasci, onde está o meu umbigo, aquele onde cresci, onde pratiquei os brincos da infância, onde estão todos os meus interesses e, o que é mais, as pessoas que me são mais caras, me merecem o maior amor que é possível. (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, 18 ago. 1843, p.797)

É possível levantar a hipótese, neste caso, de que as origens e trajetórias distintas desses deputados tenham gerado visões diferentes sobre o problema. Em um Parlamento onde os deputados oscilavam entre a representação do interesse nacional e do interesse provincial, representantes oriundos de regiões diferentes das que representavam poderiam estar dispostos a sacrificar alguns interesses provinciais, enquanto aqueles cuja carreira estivera sempre colada à representação da sua província natal transformavam os interesses desta em prioridade com maior empenho.

RELAÇÕES DE PODER INTERPROVINCIAL: O SISTEMA REPRESENTATIVO DO IMPÉRIO PASSA POR CURITIBA

Mais do que a possibilidade de criação de uma nova unidade administrativa no Império, os debates acerca do projeto apresentado por Carlos Carneiro de Campos mostraram-se uma ótima oportunidade para discutir vários elementos constituintes do sistema político imperial. Entre esses, um dos que mais mobilizaram os deputados foi a relação de poder entre as províncias, mais especificamente entre a província de São Paulo e o restante do país, assim como com seu vizinho maior e mais poderoso, Minas Gerais.

De fato, para os opositores da emancipação de Curitiba essa medida representava tão somente um estratagema para punir São Paulo pela revolta de 1842. Segundo esse argumento, o desmembramento teria a dupla vantagem de mostrar às demais províncias o que ocorreria com quem "ousasse" se opor à ordem política constituída, ao mesmo tempo em que enfraqueceria a unidade paulista a ponto de esta não mais ter condições de repetir seu erro. Nesse sentido, José Manuel da Fonseca acusou:

Não é a distância, Sr. Presidente, não é a renda, não é a população, nem coisa alguma destas, que deu nascimento ao projeto que se discute e aos outros dois que estão na casa, e que separam o norte de São Paulo para anexar ao Rio de Janeiro! Não, não; é a revolução que desgraçadamente apareceu em São Paulo no ano próximo passado que dá ocasião a tudo isto... alguns patrícios meus cometeram semelhante erro, semelhante imprudência... não pode haver maior desgraça para uma província! Perde-se-lhe todo o respeito e consideração... (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, 9 ago. 1843, p.677)

Para o deputado paulista, todo o processo de debate que havia se iniciado com a apresentação do projeto de Carneiro de Campos seria, portanto, um teatro, um embuste para disfarçar a aplicação de uma punição à província de São Paulo. O fato de que ele estava sendo discutido sem qualquer informação oficial sobre a comarca que se pretendia desmembrar, a preocupação do governo central em subir à tribuna para defender a medida, mesmo não estando obrigado a isso, e a existência de duas outras propostas que envolviam perda territorial para os paulistas,5 5 Joaquim José Rodrigues Torres, futuro visconde de Itaboraí, havia subido à tribuna na Câmara dos Deputados para defender a emancipação da comarca de Curitiba, ainda que procurando enfatizar o fato de que nem ele nem o governo do qual fazia parte estavam obrigados a isso por qualquer acordo supostamente negociado com as elites daquela localidade. Quanto ao território de São Paulo, tratava-se, naquele mesmo momento, de representações elaboradas com o objetivo de pedir a anexação dos municípios paulistas de Areias e Bananal à província do Rio de Janeiro. certamente contribuíam para esse sentimento. Outro deputado paulista, Joaquim Firmino Pereira Jorge, afirmaria, aliás, que votava contra esse projeto com a única intenção de dificultar o surgimento e aprovação de outros que pretendessem fazer "novos cortes" na província de São Paulo (Anais, 19 jun. 1843ANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, p.676).

Uma ideia central nos argumentos dos deputados paulistas que se opunham à criação da província de Curitiba foi o conceito de consideração política. Para esses parlamentares, a revolta de 1842 - agregada à punição que se pretendia imputar pelo seu acontecimento - levaria a um enfraquecimento político de São Paulo, que deixaria de figurar, dessa forma, entre as principais províncias do Império. A relação entre território e poder político era direta, e Pereira Jorge afirmou:

O nobre deputado diz que não deve entrar em questão a parte do território. Mas a parte do território não traz consigo parte da população, e a parte da população não traz consigo parte da renda? Demais, não perde a província em consideração política? Creio que se dermos esse golpe e outros que já estão propostos, e que não posso afiançar que não passem, porque vejo pessoas influentes interessadas nisto, pergunto: a província de São Paulo não perde muito de sua categoria? Não perde em consideração? (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, 2 jun. 1843, p.478)

Perder consideração política, na ótica desses representantes, significava perder o poder de defender os próprios interesses em um sistema político que fazia da representação um motor importante para a tomada de decisões e a formulação de políticas públicas. Retirar partes do território de São Paulo provocaria, dessa forma, o enfraquecimento de suas elites políticas - as mesmas que haviam provocado o movimento de 1842 -, tornando mais difíceis futuras oposições destas às determinações do governo central.

Esse foi um argumento bastante forte entre os representantes dos paulistas, fazendo que mesmo pessoas nascidas em outras províncias, como o mineiro João Evangelista de Negreiros Sayão Lobato, visconde de Sabará, a abraçassem com entusiasmo. Ocupando em caráter provisório uma cadeira na Câmara dos Deputados - foi eleito como suplente por São Paulo e substituiu, durante parte dos debates, a João Carlos Pereira de Almeida Torres, o visconde de Macaé -, ele formulou em termos mais amplos o problema do enfraquecimento da província paulista:

seria muito bom ... que houvesse uma nova divisão do território do Brasil, que todas as províncias fossem representadas nesta casa por igual número de deputados. Mas, pergunto, será isto possível? Certo que não. A passar o projeto que eleva a comarca de Curitiba a província, se conseguirá este efeito? Certo que não; pelo contrário, aparecerá o efeito oposto; e por quê? Porque a província de São Paulo, que hoje figura entre as de primeira ordem, e que por isso de alguma maneira equilibra com a de Pernambuco, com a da Bahia, com a de Minas, ficará em muito mais baixa escala, em muito menor número de representantes. (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, 11 ago. 1843, p.703)

Nessa lógica, pode-se entender como consideração política, ou, ainda, importância política de uma província, o grau de representatividade que ela possuía no Parlamento imperial. Quanto maior a quantidade de representantes e, portanto, a capacidade de determinadas províncias - e suas elites políticas - fazerem valer seus interesses na arena parlamentar, tanto maior era sua consideração política. Nesse sentido, diminuir a importância de São Paulo poderia provocar consequências funestas, já que aumentaria ainda mais a preponderância de algumas províncias sobre o conjunto das demais.

Segundo essa argumentação, as bancadas provinciais agiam no Parlamento tendo em vista os interesses das elites que as elegeram, fazendo que o sistema representativo se convertesse em um embate no qual o número de deputados - e sua capacidade de tecer alianças - determinava vencedores e vencidos. Aos representantes das províncias menores caberia apenas alinhar-se a um dos lados em disputa na tentativa de atender, da melhor forma possível, às suas necessidades mais imediatas. Eram essas as unidades de menor consideração política que não possuíam, portanto, poder suficiente para influir de forma decisiva na política imperial.

Havia outra interpretação do funcionamento do sistema representativo imperial. Carlos Carneiro de Campos a expressou nos seguintes termos:

a união do Império não pode se manter pelo domínio de uma província sobre outra. Se eu estivesse persuadido de que com efeito províncias há que têm preponderância política, eu como deputado deveria ser o primeiro a procurar desfazer essa preponderância política ... Por isso, se a ideia da preponderância política foi apresentada para combater o projeto, eu agradeço porque ela o sustenta: eu não a quero, quero igualdade política: creio que somos aqui deputados do Império, e não de certas províncias (apoiados). Não posso reconhecer como benefício que certas províncias se apresentem como causando susto ou ciúme às outras. (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, 19 jun. 1843, p.678, grifo meu)

Não cabia aos deputados gerais, portanto, agir motivados pelos interesses das províncias que os elegeram. Volta à tona, assim, o dilema sobre representar uma região específica, ou toda a nação. Os debates sobre a emancipação de Curitiba evidenciam que não havia, ainda, consenso sobre qual forma de representatividade era mais desejada ou sequer sobre qual prevalecia de fato. Os defensores da medida argumentavam com os benefícios que esta traria para todo o país, como a defesa das fronteiras externas, um maior apoio à repressão da Revolta Farroupilha, e o maior desenvolvimento de uma grande região. Já os opositores pensavam predominantemente em termos de prejuízos à província de São Paulo, ainda que estes pudessem, eventualmente, provocar consequências funestas para todo o Império - como a quebra do equilíbrio parlamentar e o aumento das despesas do Tesouro Geral.

Independentemente da interpretação dada ao sistema político imperial, o fato é que, embora idealmente todos os deputados defendessem uma reorganização territorial mais ampla, capaz de englobar toda a extensão do Império brasileiro e igualar a consideração política de todas as províncias, em 1843 foram discutidos projetos que versavam apenas sobre o desmembramento de duas comarcas específicas. Isto não passou despercebido a parlamentares como Joaquim Otávio Nébias, o qual afirmou que, embora todo o Império estivesse mal dividido, o raio da divisão havia caído apenas sobre as províncias de São Paulo e do Grão-Pará - mesmo assim, esta última representava um caso excepcional, que não deveria ser levado em conta (Anais, 31 maio 1843ANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, p.439).

Na verdade, se propostas de divisão territorial representavam um raio, este não foi programado para cair apenas sobre as províncias paulista e paraense. Honório Hermeto Carneiro Leão, então ministro da Justiça do gabinete saquarema, já teria afirmado, anteriormente, que também a província de Minas Gerais deveria ser subdividida em, pelo menos, outras três unidades administrativas (Anais, 31 maio 1843ANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, p.436-437). Isso não impediu, entretanto, que somente os projetos sobre a emancipação de Curitiba e do Rio Negro fossem apresentados na Câmara, o que levou o deputado sergipano José de Barros Pimentel a questionar a atitude do governo central:

Eu, Sr. Presidente, descubro neste projeto da divisão de São Paulo uma ideia que faz com que a ele me oponha e que é pouco agradável àqueles que gostam da moralidade das ações governativas. Tendo-se aqui primeiro aventado a ideia da divisão de Minas, o governo nenhum passo deu para que se apresentasse um projeto sobre o qual tivéssemos aqui uma discussão; pelo contrário, foi sôfrego em apoiar plenamente a ideia da subdivisão de São Paulo; convém agora indagar qual o motivo que leva o governo a apoiar uma e renunciar outra. (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, 19 jun. 1843, p.664)

Circulava pelos corredores da Câmara uma tese que buscava explicar essa diferença de postura do governo central mediante os resultados alcançados nas últimas eleições. De acordo com essa ideia, São Paulo estaria sendo dividida porque apresentou resultados desfavoráveis ao gabinete saquarema, enquanto Minas Gerais estava sendo preservada pelo motivo oposto (Anais, 19 jun. 1843ANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, p.671). Finalmente, a explicação que encontrou maior eco, principalmente entre os deputados paulistas opositores da emancipação de Curitiba, colocou peso maior sobre a força parlamentar da bancada mineira, que fadava de antemão qualquer tentativa de divisão ao fracasso. Adicionando um teor dramático a essa argumentação, alcançado pelo recurso à analogia com a situação geopolítica do continente europeu, Joaquim Otávio Nébias afirmou:

Eu ouvi apenas o nobre ministro da justiça [Honório Hermeto Carneiro Leão] dizer que a sua opinião era que se devia dividir a província de São Paulo em duas, assim como a de Minas em três (apoiados); mas tem-se insistido na província de São Paulo e ninguém teve a coragem ainda de bulir no colosso do Brasil (apoiados); apenas a pobre Polônia (que assim considerarei a província de São Paulo) está prestes a ser estrangulada pela Rússia... (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, 31 maio 1843, p.436-437)

Fortaleceu-se, assim, a imagem da Rússia mineira interessada em "estrangular" a Polônia paulista, e a apresentação de propostas de subdivisão de Minas Gerais, com o consequente enfraquecimento político dessa província, se tornou o contraponto necessário à aceitação da emancipação de Curitiba. Para combater essa tendência, o deputado mineiro Francisco de Paula Cândido afirmou, ironicamente:

O nobre deputado não deixou também de clamar pela divisão de Minas! Sempre divisão de Minas, é Minas um tutu. Ora, os senhores que tanto se arrepiam contra a grandeza de Minas para que também não clamam para se lhe dar um porto de mar? Então sim razão haveria de temerem sua preponderância: é por ventura de pequeno peso na balança dos interesses provinciais um porto de mar? Deem-no, e então projetem a divisão em quantas mil partes quiserem. (AnaisANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
www.camara.gov.br...
, 14 ago. 1843, p.736)

A animosidade entre deputados paulistas e mineiros crescia rapidamente, no bojo das cobranças dos primeiros por uma divisão do território da província representada pelos segundos. José Manuel da Fonseca, o mais comprometido com a oposição à emancipação de Curitiba, procurou se valer da situação, ao vincular a essa discussão a anexação da comarca mineira do Sapucaí a São Paulo. Formulou, desta forma, uma estratégia que foi capaz de fazer com que o projeto perdesse completamente o apoio que encontrava entre os representantes de Minas Gerais. Esse fato custou, mais tarde, o adiamento indefinido da proposta apresentada por Carlos Carneiro de Campos, que só seria retomada 7 anos depois, no Senado, em um contexto completamente diferente.

  • ANAIS da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro. Disponível em: www.camara.gov.br.
    » www.camara.gov.br
  • BELOTO, Divonzir. A criação da província do Paraná: a emancipação conservadora. Dissertação (Mestrado em História) - PUC. São Paulo, 1990.
  • COSTA, Hernani Maia. O triângulo das barreiras: as barreiras do Vale do Paraíba Paulista, 1835-1860. Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2001.
  • GREGÓRIO, Vitor Marcos. Dividindo o Grão-Pará: os debates sobre a criação da província do Rio Negro na Câmara dos Deputados, 1826-1828. Almanack Braziliense, São Paulo. v.1, p.137-152, 2011. Disponível em: www.almanack.unifesp.br/index.php/almanack/article/view/720.
    » www.almanack.unifesp.br/index.php/almanack/article/view/720
  • GREGÓRIO, Vitor Marcos. A província do Amazonas e o sistema representativo no Brasil Imperial: os debates de 1843. Em tempo de Histórias, Brasília, v.17, p.93-106, 2011a. Disponível em: http://seer.bce.unb.br/index.php/emtempos/article/view/2890/2497.
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  • DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.
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    Este artigo é parte de uma pesquisa maior, realizada com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2011
  • Aceito
    12 Dez 2014
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