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Hitler na mira das conspirações

Hitler in the Spotlight of the Conspiracies

EVANS, Richard J. . Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.

O ano era 2000, e o autor desta resenha cursava o segundo ano da Graduação. Tratava-se de uma disciplina propedêutica. Durante uma das aulas, a professora responsável, em um comentário que não tinha ligação alguma com o conteúdo daquela aula, sugeriu, em tom quase peremptório, que os judeus dominavam a economia e a política internacionais. A estocada da professora foi o bastante para, dali em diante, desencadear-se um bate-boca entre ela e dois alunos presentes, o que só se encerrou com o término da aula.

Foi a primeira vez que o autor entrou em contato com uma antiga teoria conspiratória a respeito de uma suposta dominação mundial exercida pelos judeus, por meio dos sistemas financeiro e político. Não seria, porém, a última ocasião em que ele ouviria provocações semelhantes. Até porque declarações antissemitas são recorrentes na sociedade brasileira, apesar dos esforços das leis e de instituições de que, entre outras, serve de exemplo o Museu do Holocausto, em Curitiba.

Não são novidades crenças que atribuem o que ocorre ao nosso redor a um plano perverso de dominação de um grupo obscuro de pessoas. Tais crenças, expressas por teorias conspiratórias, são exploradas por meio do cinema, da literatura ou mesmo da política. Contudo, a partir deste século elas parecem ganhar um novo impulso por intermédio da internet e, especificamente, das redes sociais, assim como pela disseminação da desinformação e das notícias falsas, que tornam difícil o discernimento entre verdade e inverdade (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.).

As teorias conspiratórias envolvem eventos reais variados. Porém, em nenhum lugar “a propagação de teorias da conspiração e de ‘fatos alternativos’ tornou-se mais óbvia do que nas hipóteses e explicações revisionistas acerca da história do Terceiro Reich […]”, afirma Richard J. Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 11) na introdução do livro Conspirações sobre Hitler. Por meio de Alec Ryrie (apud. Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.), o autor explica que, para a cultura ocidental, Adolf Hitler é a figura moral mais potente, sendo ele, e a experiência histórica do Nazismo, referências permanentes quando o mal é definido ou exemplificado na esfera pública.

Conspirações sobre Hitler é obra escrita a partir de uma pesquisa realizada entre 2013 e 2018, graças a uma bolsa concedida pelo Fundo Leverhulme para o Programa Conspiração e Democracia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Nesta obra, Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.) examinou cinco teorias da conspiração que envolveram episódios e personagens históricos do regime nacional-socialista, e que, segundo seu autor, tinham, até o momento, sido investigadas isoladamente: 1) A conspiração judaica denunciada no livro Os protocolos dos Sábios de SiãoBARROSO, Gustavo (Org.). Os protocolos dos sábios de Sião. 3ª Ed. Porto Alegre: Editora Revisão, 1991.; 2) A rendição alemã em 1918 como uma apunhalada pelas costas; 3) O incêndio do Reichstag; 4) O voo de Rudolf Hess para o Reino Unido; 5) A suposta morte de Adolf Hitler. Teorias conspiratórias desacreditadas há anos, porém que ganharam nova visibilidade pública, especialmente, por meio da indústria cultural e da internet (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.).

As teorias conspiratórias podem ser reunidas em dois grupos: a teoria da conspiração sistêmica, “em que uma única organização conspiratória [é] realizada em uma ampla variedade de atividades com o objetivo de assumir o controle de um país, uma região, ou mesmo do mundo inteiro”, explica Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 12); e a teoria da conspiração por trás de um evento, “em que um grupo organizado secreto está por trás de um único acontecimento”, completa o autor (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 12).

Em todo caso, é comum às teorias conspiratórias (ou da conspiração) a suposta existência de uma mão oculta por trás dos eventos históricos que baralha as cartas para que os rumos da história atendam aos seus planos. “Uma teoria da conspiração genuína deve pressupor um grupo de pessoas tramando em segredo para levar a cabo uma ação ilícita” (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 13).

Elas são diferentes de fake news, por exemplo, que consistem em operações deliberadas de distorção ou manipulação da verdade ou de publicação de fatos alternativos sobre um determinado acontecimento, pondera Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.). Teorias conspiratórias envolvem pedantismo e pseudo-erudição, por meio de um “estilo paranoico”, conceito este que o autor tomou emprestado do intelectual norte-americano Richard Hofstadter (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 10), para o qual: “A interpretação que o paranoico faz da história é claramente pessoal: eventos decisivos não são interpretados como parte do fluxo da história, mas tidos como consequências da vontade de alguém”.

Os protocolos dos sábios de SiãoBARROSO, Gustavo (Org.). Os protocolos dos sábios de Sião. 3ª Ed. Porto Alegre: Editora Revisão, 1991. são uma reunião de transcrições das diretrizes de um suposto plano das lideranças judaicas internacionais reunidas no Primeiro Congresso Sionista realizado na Basileia, Suíça, em 1897, com o objetivo de estabelecer uma dominação mundial. Embora o Congresso tenha ocorrido, as transcrições publicadas nos “protocolos” são consideradas falsas, pelo menos desde a década de 1920. Segundo Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.), as origens desse texto são híbridas, sendo publicada na sua forma final, em 1903, por um jornal russo, editado pelo notório antissemita Pavel Aleksandrovich.

Sua publicação no início do século XX está situada no contexto do aparecimento do antissemitismo moderno vinculado ao conceito de raça, conforme Hannah Arendt (2012ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.) na primeira parte do livro As origens do Totalitarismo. Ao examinar os conteúdos dos “protocolos”, Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 26) concluiu que se trata de um texto sui generis, uma “amálgama de ideias muitas vezes bizarras e suas numerosas omissões, o documento não representava nem o antissemitismo tradicional nem o moderno”.

No entanto, teriam os “protocolos” fornecido a ostensiva justificativa para o extermínio de judeus pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial?

Para Norman Cohn (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.), a resposta é sim. Ele é considerado um dos pesquisadores pioneiros acerca de Os Protocolos dos sábios de SiãoBARROSO, Gustavo (Org.). Os protocolos dos sábios de Sião. 3ª Ed. Porto Alegre: Editora Revisão, 1991., e sua tese sobre as relações de causalidade entre os “protocolos” e o genocídio judeu perpetrado por alemães e seus aliados na Europa durante a Segunda Guerra Mundial foi assimilada por diversos estudiosos, entre os quais Hannah Arendt (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.).

Segundo Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.), trata-se de uma tese datada, na medida em que, atualmente, os historiadores dispõem de uma documentação muito maior sobre Hitler e as lideranças nazistas, assim como a respeito da assimilação dos “protocolos” pelos nazistas. Evans (2022)EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022. afirma que a tese da “autorização oficial para o genocídio” desconsidera outros aspectos biográficos e históricos que moldaram o antissemitismo de pessoas tais como Adolf Hitler, para o qual os judeus “agem de acordo com seu instinto racial” (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 52).

Diferente das quatro teorias conspiratórias seguintes, a discussão que o autor fez a respeito dos “protocolos” não tem muita relação com um estilo paranoico que guiou seu estudo. Na óptica desta resenha, Cohn (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.) foi um estudioso sério, e o questionamento sobre sua tese foi mais uma discussão acadêmica a respeito de uma determinada interpretação histórica que uma investigação acerca da permanência de uma teoria da conspiração.

A vitória aliada sobre as potências centrais, em 1918, não trouxe paz à Europa. Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.) lista dois fatos que contribuíram com essa situação: 1) A recusa dos alemães em aceitar a derrota militar; 2) Os efeitos políticos dessa recusa entre os próprios alemães. As origens da teoria da “punhalada pelas costas” estão enraizadas nesses dois fatos. Ela consiste em afirmar que o Exército Imperial não foi derrotado no campo de batalha, mas traído pela elite política civil, que assumiu o poder após a queda da monarquia, em 1918.

A desinformação a respeito da situação real das forças alemãs na Frente Ocidental em 1918 foi decisiva para a assimilação dessa teoria, pois, até a capitulação, as elites políticas e a opinião pública alemãs foram informadas com notícias falsas ou pouco realistas sobre a capacidade do Exército Imperial de enfrentar os aliados. Especialmente em 1918, criou-se a ilusão de que a vitória estava próxima. Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.) atribui ao General Erich Ludendorff a responsabilidade pela desinformação generalizada que alienou o comando militar e a liderança civil do que realmente estava acontecendo na frente de combate. O pós-guerra e seus efeitos econômicos e políticos contribuíram com o surgimento e a difusão da narrativa da “punhalada pelas costas”, sendo associada às esquerdas e aos pacifistas.

O uso conhecido mais antigo da expressão “punhalada pelas costas” ocorreu em 19 de junho de 1917, em resposta aos deputados do Reichstag que aprovaram uma resolução pedindo a paz negociada e sem anexações territoriais. Porém, ela ganhou visibilidade pública em 1919, no contexto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a capitulação. Na ocasião, o endosso de Hindenburg à história da “punhalada” conferiu legitimidade e peso de verdade à teoria. Ao longo da década de 1920, ela enraizou-se no imaginário alemão. Paradoxalmente, os nazistas fizeram pouco uso dessa teoria conspiratória, pois eles não tinham o mínimo interesse em reabilitar a Monarquia. Para Hitler, os verdadeiros culpados foram aqueles que assinaram a “paz” de Versalhes, os “criminosos de novembro” (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.).

Afinal, os alemães foram ou não derrotados em combate?

Eles foram derrotados, pois, como é possível constatar em diversas obras gerais sobre a Primeira Guerra Mundial, mesmo com a transferência de tropas para a Frente Ocidental, após a paz assinada com os russos e as ofensivas de 1918, os recursos humanos e materiais dos aliados eram superiores. Além disso, o colapso das potências centrais contribuiu definitivamente para a derrota alemã, sendo decisiva a rendição da Bulgária para o pedido de armistício pelos alemães, em 06 de outubro de 1918. Além disso, o exército desmobilizado retornou à Alemanha em desordem, saqueando e roubando o que havia pela frente. Algo bem diferente da idealização de uma força combatente invicta, que foi apunhalada pelas costas (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.; Keegan, 2004KEEGAN, John. História Ilustrada da Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.).

Berlim, 27 de fevereiro de 1933. Por volta de 21h10, o Reichstag sofreu um incêndio violento. Após um inquérito, foi concluído que o incêndio foi criminoso, sendo o jovem holandês Marinus van der Lubbe o responsável. Nascido na cidade de Leiden, em 1909, van der Lubbe foi um ativista comunista e antifascista ligados a diversos incêndios em Berlim. Foi condenado à morte pelo incêndio do Reichstag e executado em 1934 (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.).

Apesar do relatório policial decorrente de um inquérito e da condenação de van der Lubbe, desde a fatídica noite de 27 de fevereiro o incêndio do Reichstag motiva duas teorias conspiratórias: a primeira, de origem nazista, enunciada principalmente por Hitler e Hermann Göring, segundo a qual o incêndio era parte de uma conspiração comunista para tomar o poder dos nacional-socialistas; a segunda, veiculada pelos comunistas alemães, partiu de um argumento cui bono, segundo a qual se os nazistas foram os principais beneficiados políticos do sinistro, somente eles eram os verdadeiros autores do incêndio (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.).

Nos contextos do pós-guerra e da “desnazificação” da Alemanha Ocidental, em meio aos processos judiciais, as autoridades civis e militares responsáveis não encontraram outros culpados pelo crime, sendo reafirmada a conclusão do inquérito policial de 1933, segundo o qual Marinus van der Lubbe havia provocado o incêndio sozinho. De acordo com Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.), o ponto alto do processo de refutação dessa teoria foi atingido em 1964, com a publicação de um artigo de pesquisa sobre o incêndio do Reichstag escrito pelo então jovem historiador Hans Mommsen, na época contratado pelo Instituto de História Contemporânea de Munique.

Entender o incêndio do Reichstag como um evento não planejado levou Mommsen a defender a ideia de que os nazistas eram oportunistas que se aproveitavam das ocorrências fortuitas potencialmente favoráveis para introduzir suas diretrizes políticas e promover seus próprios objetivos. Essa leitura tornou-se a chamada interpretação “funcionalista” do poder no Terceiro Reich, em oposição à teoria “intencionalista” de quem via tudo como resultado dos planos de Hitler (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 101).

Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.) conclui que caso do Reichstag é insólito, pois deu origem a duas teorias conspiratórias completamente opostas, porém que se baseiam com tanta clareza nas mesmas evidências que têm sido usadas para dar respaldo a ambas.

Rudolf Hess nasceu em Alexandria, Egito, em 1894, numa família de comerciantes. Aviador na Primeira Guerra Mundial, ele ingressou no NSDAP em 1920. Durante os tempos de movimento político, Hess foi secretário e factotum de Hitler. Como vice-líder do NSDAP, ele era visto como a “consciência do Partido” e uma espécie de nazista “raiz” incorruptível. Contudo, ele era considerado uma pessoa excêntrica pelos demais líderes nacional-socialista, a exemplo de Hermann Göring (Goldensohn, 2005GOLDENSOHN, Leon. As entrevistas de Nuremberg. São Paulo: Companhia das Letras , 2005.).

Porém, durante o final da tarde de 10 de maio de 1941, Hess decolou em um bimotor Messerschmitt Bf 110 do aeródromo de Augsburgo, em direção ao leste do rio Lech. Quase cinco horas depois, por volta de 23h09, ele saltou de paraquedas sobre um campo próximo de Glasgow, na Escócia (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.).

Ao ser capturado, Hess se identificou e pediu para entrar em contato com o Duque de Hamilton. Diante dele, o líder nazista declarou que tinha vindo em missão humanitária para uma oferta de paz com o Reino Unido. Seus termos de paz eram: 1) Restauração das antigas colônias alemãs; 2) Dar à Alemanha plenos poderes na Europa continental; 3) Paz com a Itália. Ao saber desses fatos, a reação de Churchill e do seu gabinete foi extremamente realista em não levar a sério a “missão” de Hess e seus “termos de paz” (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.).

Mas, por que Rudolf Hess voou para o Reino Unido? Ele temia que a Alemanha, como na Primeira Guerra Mundial, se envolvesse em um conflito de duas ou mais frentes, pois era uma questão de tempo para o início de uma guerra contra a União Soviética. Logo, em sua avaliação, era essencial uma paz com o Reino Unido. Hess acreditava que entre a elite política britânica existisse uma “facção da paz”, que poderia retirar Churchill do poder e firmar a paz com a Alemanha e a Itália. Nada mais equivocado, na medida que a “missão de Hess foi levada a cabo desde o início sob falsas premissas”, afirma Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 129).

Teria sido o voo de Hess ordenado por Hitler? Essa e outras especulações sobre tal voo começaram a pipocar tão logo seu BF 110 se espatifou contra o chão. O fio condutor dessa teoria conspiratória era a ciência de Hitler do plano de Hess. Apesar de afirmar e reafirmar até sua morte, em 17 de agosto de 1987, que a iniciativa foi exclusivamente sua, e que Hitler nada sabia a seu respeito, ao longo do tempo a teoria sofreu algumas variações: 1) O voo de Hess foi um protesto contra a desastrosa influência de Joachim von Ribbentrop sobre Hitler, que levara à guerra contra o Reino Unido; 2) Para Stálin, o voo foi parte de um conluio entre alemães e britânicos, como parte de um plano das potências capitalistas do Ocidente para atacarem a União Soviética; 3) A existência de uma suposta “facção da paz” como um ardil do MI 5 para enganar Hitler; 4) Hitler jamais desejou uma guerra contra o Reino Unido, sendo o voo de Hess uma tentativa derradeira e desesperada de paz. A quinta e última variação surgiu logo após o suicídio de Rudolf Hess, em 1987, e foi propagada pelo seu filho Wolf-Rüdiger Hess, que acusou o gabinete da então Primeira-Ministra Margareth Thatcher de encomendar o assassinato do seu pai, a fim de evitar sua libertação em Spandau.

Desde o início, Hess deixou claro que sua missão foi solitária. Hitler e o governo alemão foram pegos de surpresa. Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.) é categórico e recorrente ao longo do seu texto em afirmar que não há evidências documentais que refutam esse fato, inclusive de um suposto assassinato encomendado por Thatcher. Assim como as demais teorias examinadas, salta aos olhos do leitor que seus propagadores ignoraram tudo o que foi produzido até então, inclusive, os princípios metodológicos básicos para uma pesquisa histórica de qualidade.

A última teoria conspiratória examinada é a mais popular e a mais lucrativa de todas, pois é responsável por uma produção escrita e audiovisual inesgotável que envolve até o Brasil: a “suposta” morte de Adolf Hitler, em 30 de abril de 1945.

Os soviéticos foram os primeiros a saber que o Führer e sua esposa se suicidaram no interior do Führerbunker pelo General Hans Krebs, em 1o de maio de 1945. E foi aí em que tudo começou, pois, apesar dos informes vindos da linha de frente e do anúncio feito por Dönitz, em 30 de abril, o governo soviético iniciou uma campanha deliberada de desinformação a respeito da morte de Hitler que foi decisiva para a mais duradoura das teorias conspiratórias sobre o assunto. “O motivo era político: para o líder soviético, a afirmação de que Hitler ainda estava vivo reforçava seu argumento de que era necessário ser duro com os alemães […]”, explica Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 166). O autor prossegue e afirma: “O líder soviético queria refutar a afirmação de Dönitz de que Hitler havia morrido como um herói e retratá-lo como um covarde que fugiu do cenário de sua derrota […]” (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 166).

A popularização das teorias conspiratórias acerca da sobrevivência de Hitler ao conflito ocorreu a partir da década de 1950, alimentada por supostas rotas de fuga e aparições em diversos lugares do mundo, a exemplo da Argentina. Segundo Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.), a mais divulgada e persistente teoria conspiratória acerca da fuga de Hitler e Eva Braun os remete a esse país, alcançado pelo casal por meio de um submarino. Sob a proteção de Perón e dos simpatizantes argentinos do Nazismo, eles viveram seus últimos anos naquele país.

Apesar de variadas, as teorias conspiratórias sobre a “suposta” morte de Hitler possuem quatro características comuns: 1) atribuição do rótulo de meras “histórias” ou “versões” oficiais aos estudos biográficos e históricos que afirmam que Hitler e Eva Braun morreram em Berlim; 2) Leituras descontextualizadas das fontes primárias; 3) Especulações e truques de retórica; 4) Muito sensacionalismo (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.).

O autor examinou e refutou com destreza as principais teorias conspiratórias, em particular a série “Caçando Hitler”, que foi ao ar pelo History entre 2015 e 2018, e que, apesar de uma audiência média de 3 milhões de espectadores, foi descontinuada. Entretanto, o que se sabe a respeito dos últimos dias de Hitler?

Segundo Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.), desde o final da década de 1940 sabe-se que Hitler e Eva Braun morreram no Führerbunker, em 1945. Aliás, sabe-se com detalhes obtidos por fontes documentais, testemunhais e forenses. Três investigações independentes e desconhecidas entre si, e mesmo do público, chegaram à mesma conclusão. A primeira e menos conhecida foi a “Operação Mito”, liderada pelo Comissário do Povo Sergei Kruglov, concluída em dezembro de 1945. A segunda foi o inquérito liderado pelo historiador e, na época, oficial do MI 5 Hugh Trevor-Roper, resultando no livro Os últimos dias de HitlerTREVOR-ROPER, Hugh. Os últimos dias de Hitler. São Paulo: Editora Flamboyant, s.d., lançado em 1947. A terceira e última tratou-se de uma investigação conduzida pelo Tribunal de Berchtesgaden, iniciada em 1953, com um processo de restituição de uma obra de arte que pertenceu à coleção particular de Hitler e que resultou na emissão de uma Certidão de Óbito em 1956 (Evans, 2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.).

Apesar de todas as discussões sobre negacionismo no Campo da História, não é comum entre os historiadores trabalhos sobre teorias conspiratórias, que geralmente são relegadas ao Jornalismo. Por que elas podem interessar os profissionais da História?

Interessam pela forma com que suas teses são sustentadas, na medida em que elas dão origem a argumentos baseados em documentos falsos ou retirados dos contextos em que foram produzidos, sendo tomados de forma isolada, sem erudição ou metodologia. Quando seus propagadores são confrontados com seus críticos, o modus operandi consiste em atacar reputações ou desqualificar trabalhos que os contradizem como simples “versões oficiais”.

Examinar as teorias conspiratórias pode ser um exercício importante sobre como o próprio saber histórico é produzido e empregado. Isto é imprescindível em tempos de desinformação e fake news. Portanto, esta obra serve “para nossos próprios e atribulados tempos”, conforme afirma Evans (2022EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022., p. 19).

REFERÊNCIAS

  • ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • BARROSO, Gustavo (Org.). Os protocolos dos sábios de Sião. 3ª Ed. Porto Alegre: Editora Revisão, 1991.
  • EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Crítica, 2022.
  • GOLDENSOHN, Leon. As entrevistas de Nuremberg. São Paulo: Companhia das Letras , 2005.
  • KEEGAN, John. História Ilustrada da Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
  • TREVOR-ROPER, Hugh. Os últimos dias de Hitler. São Paulo: Editora Flamboyant, s.d.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2022
  • Aceito
    20 Dez 2022
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