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História do Brasil para o "belo sexo": apropriações do olhar estrangeiro para leitoras do século XIX

Resumos

Análise dos diversos olhares sobre a história do Brasil produzidos e apropriados em três obras historiográficas da primeira metade do século XIX: History of Brazil, de R. Southey, Histoire du Brésil, de A. Beauchamp, e o conteúdo de história do Brasil publicado no semanário O Mentor das Brasileiras. A análise dessas obras permite verificar os trabalhos de tradução e adaptação dos textos e de transformação nas materialidades dos suportes realizados por seus autores. A versão brasileira, voltada para as leitoras, resultou em um texto mais reduzido em que foram suprimidos temas como canibalismo e poligamia dos índios e as conquistas portuguesas do século XVI, o que indica adequação do periódico a esse público e o seu engajamento em um projeto político mais amplo de afirmar o Brasil como nação independente e civilizada.

História do Brasil; história da leitura; cultura impressa


This paper analyzes some views on Brazilian history produced and appropriated in three historiographical works from the first half of 19th century: History of Brazil, by R. Southey, Histoire du Brésil, by A. Beauchamp and the content of History of Brazil published in the weekly publication O Mentor das Brasileiras (The Brazilian Women Mentor). The analysis shows the work of translation and adaptation of texts as well the transformation in its material forms by the authors. The Brazilian version of this history, directed toward female readers, has as result a shorter text without some subjects as Indians cannibalism and polygamy and the Portuguese conquests of 16th century. This indicates the adequacy of the newspaper to its readers and its enrollment in a wider political project that aims to affirm Brazil as an independent and civilized nation.

History of Brazil; history or reading; press culture


DOSSIÊ: HISTÓRIA E HISTORIADORES

História do Brasil para o "belo sexo": apropriações do olhar estrangeiro para leitoras do século XIX

History of Brazil for the "beautiful sex": appropriations of foreign view for 19th century female readers

Mônica Yumi JinzenjiI; Ana Maria de Oliveira GalvãoII

IPós-doutoranda da Faculdade de Educação - UFMG, Doutora em Educação. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faculdade de Educação - Departamento de Ciências Aplicadas à Educação. Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha - 31270-901 Belo Horizonte - MG - Brasil. myjinzenji@gmail.com

IIProfessora Adjunta da Faculdade de Educação, UFMG, Doutora em Educação. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faculdade de Educação - Departamento de Ciências Aplicadas à Educação. Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha - 31270-901 Belo Horizonte - MG - Brasil. anamgalvao@uol.com.br

RESUMO

Análise dos diversos olhares sobre a história do Brasil produzidos e apropriados em três obras historiográficas da primeira metade do século XIX: History of Brazil, de R. Southey, Histoire du Brésil, de A. Beauchamp, e o conteúdo de história do Brasil publicado no semanário O Mentor das Brasileiras. A análise dessas obras permite verificar os trabalhos de tradução e adaptação dos textos e de transformação nas materialidades dos suportes realizados por seus autores. A versão brasileira, voltada para as leitoras, resultou em um texto mais reduzido em que foram suprimidos temas como canibalismo e poligamia dos índios e as conquistas portuguesas do século XVI, o que indica adequação do periódico a esse público e o seu engajamento em um projeto político mais amplo de afirmar o Brasil como nação independente e civilizada.

Palavras-chave: História do Brasil; história da leitura; cultura impressa.

ABSTRACT

This paper analyzes some views on Brazilian history produced and appropriated in three historiographical works from the first half of 19th century: History of Brazil, by R. Southey, Histoire du Brésil, by A. Beauchamp and the content of History of Brazil published in the weekly publication O Mentor das Brasileiras (The Brazilian Women Mentor). The analysis shows the work of translation and adaptation of texts as well the transformation in its material forms by the authors. The Brazilian version of this history, directed toward female readers, has as result a shorter text without some subjects as Indians cannibalism and polygamy and the Portuguese conquests of 16th century. This indicates the adequacy of the newspaper to its readers and its enrollment in a wider political project that aims to affirm Brazil as an independent and civilized nation.

Keywords: History of Brazil; history or reading; press culture.

Este artigo tem como objetivo analisar os diversos olhares sobre o Brasil e sua história, produzidos e apropriados em três obras historiográficas impressas na primeira metade do século XIX. Formam esse corpus a History of Brazil, de Robert Southey, a Histoire du Brésil, de Alphonse de Beauchamp, e o conteúdo de história do Brasil publicado no semanário O Mentor das Brasileiras.

Essas três versões da história do Brasil se conectam de forma particular, tendo em comum o fato de terem sido produzidas entre as décadas de 1810 e 1830, embora a partir de tradições culturais distintas. A análise comparativa dessas obras permite verificar o trabalho de tradução e adaptação dos textos e de transformação nas materialidades dos suportes realizado por seus autores. Essas operações deram origem a textos diferentes, os quais visavam atender a finalidades e público diversos dos inicialmente esperados. A versão brasileira, publicada em um periódico voltado para o público feminino, impresso em Minas Gerais, resulta de uma adaptação da obra francesa, e esta, por sua vez, foi produzida apropriando-se, em grande medida, do livro inglês.

O OLHAR DE FORA: OS LIVROS DE HISTÓRIA DO BRASIL DE SOUTHEY E BEAUCHAMP

O inglês Robert Southey (1774-1843) formou-se ministro protestante e tornou-se conhecido por seus escritos poéticos e ensaios que compunham, em geral, vários volumes. Possuía um profundo interesse por Portugal e pelo Brasil, e sua vasta biblioteca, constituída por cerca de 14 mil livros, incluía importantes obras e documentos originais com base nos quais escreveu sua History of Brazil,1 1 SOUTHEY, Robert. History of Brazil. London: Printed for Longman, 1810-1819. publicada em Londres em três volumes in quarto. O primeiro volume saiu em 1810, o segundo em 1817 e o terceiro em 1819, totalizando mais de 2.300 páginas.

A despeito de ter sido uma obra de grande fôlego e a primeira sobre o Brasil a englobar todo o período colonial até a chegada da corte portuguesa, sua tradução para o português foi realizada somente em 1862, impressa pela Garnier em seis volumes, e os mil exemplares levaram vinte anos para se esgotar.2 2 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. Sua história. 2.ed. revisada e ampliada. São Paulo: Edusp, 2005. A pouca familiaridade dos leitores brasileiros com a língua inglesa e, em contrapartida, o uso mais comum da língua francesa podem ter sido duas das razões para que a obra de Beauchamp, Histoire du Brésil (1815),3 3 BEAUCHAMP, Alphonse de. Histoire du Brésil: depuis sa découverte en 1500 jusqu'en 1810. Paris: Librairie d'éducation et de jurispendence D'Alexis Eymery, 1815. publicada pouco tempo após o primeiro volume de Southey, se tornasse mais popular em solo brasileiro. Outro fator para a maior popularização da obra francesa pode ter sido a publicação de uma versão traduzida para a língua portuguesa que surgiu em Lisboa em 1817, em pequenos volumes ilustrados.4 4 CAMARGO, Ana Maria de Almeida; MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia da Impressão Régia do Rio de Janeiro, 1808-1812. São Paulo: Edusp, 1993. No Brasil, a Impressão Régia publicou os dois primeiros dos cinco volumes planejados pelo padre Inácio Felizardo Fortes, que os traduziu diretamente do francês, em 1818 e 1819 (Camargo; Moraes, 1993, p.xxvii).

Alphonse de Beauchamp (1767-1832), nascido em Mônaco, atuou em diversas instâncias da administração pública e burocrática francesas e é reconhecido como um escritor prolífico, que produziu várias obras de interesse popular, especialmente biografias e compêndios históricos.5 5 The New Encyclopaedia Britannica, 15.ed., v.2, 1990, p.18. A Histoire du Brésil é composta por três volumes in octavo e compreende o período de 1500 a 1810, em um total de 1.404 páginas. O sucesso de seu livro foi acompanhado da acusação de plágio por Southey que, no prefácio ao segundo volume de sua obra (de 1817), afirma que os dois primeiros tomos e parte do terceiro tomo da Histoire du Brésil de Beauchamp são cópia de seu primeiro volume. Beauchamp, por sua vez, cita o autor inglês em seu prefácio como uma entre as mais de cinquenta referências utilizadas no seu livro, entre autores portugueses, franceses, brasileiros e holandeses.

Para compreendermos melhor o teor dessa acusação na análise da produção escrita desse período, é importante considerarmos que a noção de autoria não era, na época, muito rigidamente estabelecida, e a transcrição e circulação de trechos de livros, leis e jornais era prática comum - não se considerava falta grave a ausência de referências aos textos de origem. Isso caracteriza uma "intertextualidade desenfreada", em que os autores "bebiam em fontes comuns, copiavam passagens uns dos outros com a mesma liberdade com que trocavam fragmentos de notícias nos cafés".6 6 DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.88-89.

Para aprofundarmos essa análise, é importante considerarmos não só o conteúdo dos dois textos aqui relacionados mas também o estilo da escrita e a materialidade dos dispositivos não textuais. Sendo assim, um primeiro ponto a ser ressaltado é a semelhança entre os livros de Southey e Beauchamp em relação ao estilo narrativo. Ambos desenvolvem a escrita introduzindo, cada qual a seu tempo, as personagens da história: os primeiros conquistadores e suas interações com os índios, a perseverança dos jesuítas, a coragem e a habilidade dos navegantes, os contratempos, derrotas e vitórias dos portugueses contra os índios e/ou contra os invasores de outros países.

Os livros sobre a história do Brasil e as narrativas de viagem existentes até então caracterizavam-se, em geral, pela descrição detalhada das condições naturais do novo continente, incluindo a flora, a fauna e as populações indígenas, e eram marcadas pela visão edênica, ou pela ênfase nas deformidades corporais, morais e comportamentais dos povos do Novo Mundo. É o caso de Historia da America Portuguesa (1730), de Sebastião da Rocha Pitta, de A primeira história do Brasil - História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (1576), de Pedro de Magalhães Gandavo, da History of Brazil (1809), de Andrew Grant, da Corografia Brazílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil (1817), de Manuel Aires de Casal, e do Résumé de l'Histoire du Brésil (1825), um pouco posterior, de Ferdinand Dennis.

A fórmula narrativa adotada por Southey foi também utilizada por Beauchamp que, na realidade, tomou a obra inglesa como texto-base: alguns capítulos são muito semelhantes e, em outros, os eventos relatados são apresentados na mesma sequência. Entretanto, Beauchamp produz uma versão mais resumida, suprimindo os trechos em que Southey se atém às longas e detalhadas descrições, em especial quando trata dos diversos grupos indígenas, suas características e hábitos. A omissão dos trechos descritivos resultou numa obra com os mesmos três volumes publicados por Southey, mas num formato menor e mais fino, como podemos ver na Figura 1.


A variação em sua forma original e a alteração do conteúdo resultaram em um novo livro. As supressões não foram feitas ao acaso nem por mera questão de economia, já que o conteúdo excluído se refere, predominantemente, à descrição de comportamentos e valores exóticos dos índios, como a poligamia e os rituais antropofágicos. Essas passagens eram tratadas por Southey com bastante fluência e naturalidade. As fontes utilizadas por Southey foram as narrativas de viagem de Hans Staden e Jean de Léry em que predominam as descrições "extravagantes", caracterizando os índios principalmente pelo canibalismo, pela feitiçaria e pela lascívia. É importante ressaltar, como lembra Raminelli,7 7 RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p.11-44. que essas descrições constituem representações sobre as populações nativas do novo continente a partir do olhar europeu, baseado principalmente na tradição cristã e no ideal colonizador. Dessa forma, "representar os índios como bárbaros (seres inferiores, quase animais) ou demoníacos (súditos oprimidos do príncipe das trevas) era uma forma de legitimar a conquista da América" (Raminelli, 2007, p.12). Os viajantes e cronistas produziam, cada um, sua versão acerca desses hábitos tupinambás - na página em branco, fabricavam o Novo Mundo.8 8 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. Muitas vezes, as imagens pictóricas produzidas nos séculos XVI e XVII, ainda segundo Raminelli, ressignificavam os textos a partir dos quais foram produzidas. Nessas imagens, há uma hipervalorização da participação das mulheres nos rituais antropofágicos, ausente nos textos, indicando a misoginia que reinava na Europa, segundo a qual as mulheres, tanto europeias como índias, eram filhas de Eva e reuniam os piores predicados.

O trabalho de supressão, por Beauchamp, dos trechos que descreviam os costumes "exóticos" dos indígenas, ilustra, como aponta Schwarcz (2008), que os autores franceses foram responsáveis por "humanizar" os índios, relativizando a visão pessimista em relação a esses povos. Assim, harmonizavam à natureza edênica os nativos domesticados.9 9 SCHWARCZ, Lilia M. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.45-48.

Um longo trecho em que Southey descreve um "banquete canibal" foi omitido por Beauchamp que, antes de saltar as 18 páginas referentes ao tema, faz uma observação crítica, como se estivesse em interlocução com Southey, sob o título "Influência da Religião no Brasil":

Se nas graves lições que a história oferece à meditação dos homens os crimes são em maior número do que as virtudes, é para o historiador ainda maior obrigação assinalar com respeito as ações generosas, posto sejam raras, que honram e consolam a humanidade. Deste modo, descrevendo a vida apostólica desses missionários célebres, aos quais o Império do Brasil deve em grande parte a política e a prosperidade, nós os seguiremos passo a passo pelos bosques da América, onde os veremos despojados de todas as vaidades do mundo e movidos por inspiração divina, a afrontar os bandos selvagens e cruéis, para os tornar humanos... (Beauchamp, 1815, p.191-192, tradução nossa)

Os "crimes" contra os costumes, a moral e a civilização são relatados por Southey com bastante detalhamento. Nos rituais antropofágicos dos índios, as mulheres possuíam papel importante, muitas vezes protagonizando-os:

Enquanto eram feitas as preparações para o banquete, uma mulher era escolhida para vigiar o prisioneiro e para coabitar com ele; aquele que o capturou, sem escrúpulos usava sua irmã ou sua filha. Se ela engravidava, era o que eles desejavam. Eles acreditavam que a criança procedia inteiramente do pai, recebendo da mãe apenas a nutrição até o nascimento, e nada mais. Essa crença produzia uma consequência horrível; o descendente de um prisioneiro era levado a crescer; as circunstâncias de seu local de nascimento e crescimento ocasionavam a ausência de sentimentos humanos voltados a ele; era lembrado sempre que ele era o sangue e a carne de seus inimigos e quando consideravam-no pronto, eles o matavam e o devoravam. (Southey, 1810, p.218, tradução nossa)

Instantaneamente, o corpo foi pego pelas mulheres; elas arrastaram-no para o fogo, escaldaram-no e tiraram a pele. Aquela que havia coabitado com o prisioneiro forçou algumas lágrimas sobre ele e pensou ser uma honra, se possível ter a primeira porção. Os braços foram cortados próximo aos ombros, e as pernas, acima dos joelhos, e quatro mulheres pegaram cada uma um membro e dançaram com ele próximo à área. O tronco foi, então, dividido. Os intestinos foram deixados para as mulheres, que ferveram e comeram com caldo; a cabeça também foi dividida; mas a língua e o cérebro foram distribuídos para as crianças, que foram também manchadas com o sangue. O polegar foi cortado por causa do seu uso na arqueria, uma arte de seu interesse pela qual eles eram singularmente supersticiosos... (Southry, 1810, p.221-222, tradução nossa)

Essas e várias outras passagens referentes tanto à antropofagia quanto à concubinagem das índias com os portugueses e à comercialização de mulheres índias foram referidas com "naturalidade antropológica" por Robert Southey e omitidas por Beauchamp.

Fazia parte também do processo de "humanizar" os índios, por Beauchamp, a construção de ligações afetuosas nos episódios que envolviam a poligamia. Como exemplo dessa estratégia narrativa, podemos citar o capítulo II do volume I de Southey e a sua reelaboração por Beauchamp. O capítulo se inicia narrando o naufrágio de Diogo Álvares Correa de Viana próximo à costa da Bahia, em 1510, quando estava a caminho das Índias. Diogo salvou-se de ser devorado pelos tupinambás ao impressioná-los com uma arma de fogo, motivo pelo qual foi batizado de "Caramuru", e passou a ser respeitado, vivendo entre eles. Southey se refere à poligamia de Caramuru como resultado de sua adaptação à cultura tupinambá:

Os chefes dos selvagens ficariam felizes se ele aceitasse suas filhas para serem suas esposas ... Ao longe, um navio francês vinha para a baía, e Diogo decidiu aproveitar essa oportunidade para ver uma vez mais sua terra natal. Ele carregou-o com pau-brasil e embarcou com sua esposa favorita, Paraguaçu... o Grande Rio. As outras esposas não puderam suportar esse abandono, pensaram que isso seria somente por um tempo; algumas delas nadaram atrás do navio com a esperança de serem embarcadas, e uma seguiu-o até tão longe que antes de alcançar a costa novamente, suas forças acabaram e ela se afogou. (Southey, 1810, p.31, tradução nossa)

A poligamia de Caramuru e o desespero de suas mulheres, atirando-se ao mar de forma quase humilhante, também estão presentes nos outros livros de história do Brasil, inclusive em Beauchamp, mas este enfatiza o fato de Caramuru levar sua "estimada esposa Paraguaçu, de quem não quis se apartar". Quanto à índia que se afogou, assim o autor a ela se refere: "foi vítima de seu amor por Caramuru" (Beauchamp, 1815, p.155, tradução nossa)

Beauchamp utilizou como texto base para a sua história o livro de Southey e, além das supressões aqui apresentadas e outras alterações tipográficas, como a divisão de parágrafos extensos em dois ou mais, acrescentou trechos do Chronica da Companhia de Jesv do Estado do Brasil: do que obraram seus filhos nesta parte do novo mundo (1663), do jesuíta português Simão de Vasconcellos (1597-1671) e Histoire d'un voyage fait en la terre du Bresil, autrement dite Amerique (1578), do calvinista francês Jean de Léry (1534-1611), ambos relatos de viagem escritos no formato narrativo. No primeiro caso, foram extraídos trechos específicos da atuação dos jesuítas em algumas passagens da história, enfatizando seu papel conciliatório em conflitos entre índios e colonizadores e a missão catequética, vista como mal compreendida pelos povos indígenas. Do segundo livro foram extraídos trechos detalhados sobre o empreendimento marítimo e colonizador do oficial francês Villegaignon (1510-1571) em território brasileiro.

Dessa forma, temos duas versões da história do Brasil, produzidas por tradições culturais diferentes. Foram exatamente as distintas características de seus conteúdos, o estilo narrativo, os aspectos tipográficos e o acesso diferenciado a uma e outra obra, que constituíram, a nosso ver, os critérios para a escolha da obra francesa como a história do Brasil que se queria difundir através do periódico O Mentor das Brasileiras. Pode-se dizer que a história do Brasil escrita por Beauchamp se aproximou mais da "imagem que o Brasil tinha de si próprio" no século XIX ou da imagem que se quis construir e difundir acerca de seu passado, em um momento no qual o país almejava se afirmar como nação, independente e civilizada. Indica também o cuidadoso papel de cumplicidade estabelecido pelo redator com seus leitores e leitoras, especificamente em se tratando do aspecto moral e religioso e da relativização da misoginia, mais fortemente presente na obra de Robert Southey.

UMA LEITURA DO OLHAR DE FORA: A APROPRIAÇÃO10 10 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. v.2. Petrópolis (RJ): Vozes, 1990. DA HISTOIRE DU BRÉSIL PELO PERIÓDICO O MENTOR DAS BRASILEIRAS

Analisemos, agora, as apropriações do livro de Beauchamp realizadas pelo periódico O Mentor das Brasileiras. Que seleções o editor do jornal realizou dos textos dessa obra? Por que escolheu publicar alguns trechos? Que modificações realizou? Que interferências produziu para adequar o "olhar de fora" ao público "de dentro"? Que implicações teve, para as leitoras, a transposição do texto do suporte livro para o suporte jornal?

Entre as importantes contribuições de Roger Chartier para os estudos em história da leitura, destaca-se a reflexão sobre a influência dos dispositivos não textuais na leitura e na produção de sentido pelo leitor. Isso permite pensar que "autores não produzem livros", ou jornais, mas produzem textos. Os textos, em seu conteúdo, constituem parte essencial do impresso, mas o produto final recebe a colaboração - ou intervenção - de vários outros participantes do processo de produção desses impressos, como os impressores, tipógrafos, capistas e editores, entre outros, os quais definem os tipos e tamanhos de letra, a introdução de figuras e notas, a confecção de orelhas e capas e as formas de distribuição e divisão dos textos, por exemplo.11 11 ABREU, Márcia. Introdução. In: CHARTIER, Roger. Formas e sentido: cultura escrita - entre distinção e apropriação. Campinas (SP): Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil, 2003, p.9. As múltiplas reedições de livros acabam transformando muitos textos em seu formato e conteúdo, para que atendam a finalidades e público diversos dos que inicialmente haviam sido pensados.

Como afirma Chartier, conhecer a exata autoria desse trabalho de adaptação e revisão não é tarefa fácil,12 12 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.176. pois muitos foram os que contribuíram para sua produção, mesmo no Brasil do século XIX, nos primórdios da produção impressa. No caso dos periódicos, é difícil afirmar de quem era a responsabilidade por escolher os textos a serem compilados, a autoria das redações e, principalmente, das adaptações, omissões e acréscimos sobre os textos originais. Tem-se o produto final a ser analisado, como resultado desse processo de intervenções, do qual apenas uma imprecisa parte pode ser atribuída ao editor do periódico. Nesse processo, certamente as obras escolhidas não o foram unicamente pela ampla circulação e, portanto, pela facilidade de acesso, mas teriam sido selecionadas por sua "utilidade pedagógica", já que interpretações sugeridas acompanhavam as prescrições de leitura. Além disso, os textos introduzidos no jornal recebiam não só as previstas adaptações tipográficas, mas também as de conteúdo, sugerindo um leitor modelo 13 13 ECO, Humberto. Lector in Fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. São Paulo: Perspectiva, 1986. que ia sendo delineado a cada livro adaptado.

O Mentor das Brasileiras14 14 Para um aprofundamento sobre O Mentor, ver JINZENJI, Mônica Yumi. Cultura impressa e educação da mulher: lições de política e moral no periódico mineiro O Mentor das Brasileiras. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, UFMG. Belo Horizonte, 2008. Ver, também, SILVA, Wlamir. 'Amáveis patrícias': O Mentor das Brasileiras e a construção da identidade da mulher liberal na província de Minas Gerais (1829-1832). Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55, p.107-130, 2008. foi publicado em São João del-Rei,15 15 São João del-Rei constituía um dos principais núcleos urbanos do Brasil no período. Foi a primeira vila em Minas Gerais a ter uma biblioteca pública em funcionamento (1827) e a segunda vila a ter uma tipografia (1827). Encontrava-se em uma situação geográfica que a tornava rota de passagem para/entre as províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, sendo, portanto, região de intensa circulação de pessoas e mercadorias, exercendo papel fundamental no abastecimento (de produtos alimentícios e de consumo em geral) da província mineira e da Corte. Ver: CAMPOS, Maria Augusta do Amaral. A marcha da civilização: as vilas oitocentistas de São João del-Rei e São José do Rio das Mortes (1810-1844). Dissertação (Mestrado) - Departamento de História, Fafich, UFMG. Belo Horizonte, 1998, p.44; SILVA, Wlamir. Liberais e povo: a construção da hegemonia liberal-moderada na Província de Minas Gerais (1830-1834). Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ. Rio de Janeiro, 2002, p.39-40. Minas Gerais, entre 1829 e 1832.16 16 Em 1833, São João del-Rei contava com 1.442 fogos, população livre de 5.235 habitantes e população escrava de 1.823 habitantes, sendo uma das vilas mais populosas da província. Cf. Arquivo Público Mineiro, PP 1/33, Caixa 271, pacotilha 11, 10/01/1833. MARTINS, Maria do Carmo Salazar. Revisitando a província: comarcas, termos, distritos e população de Minas Gerais em 1833-1835. In: SEMINÁRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA, 5. Belo Horizonte, UFMG: Cedeplar, 1990. mimeo., p.23. Seu redator, José Alcibíades Carneiro, professor de Gramática Latina e colaborador do jornal O Astro de Minas, logo se integraria às várias outras instâncias públicas da vila, chegando a ser deputado geral. O Mentor é considerado o segundo jornal dirigido especificamente às mulheres entre os publicados no Brasil.17 17 O primeiro teria sido O espelho diamantino, publicado no Rio de Janeiro em 1827-1828. Com oito páginas, de pequena dimensão em relação a outros periódicos em circulação no período (14,7 x 19,7 cm),18 18 Uma das possíveis explicações para o tamanho do periódico está no fato de que se assemelhava a outras obras, inclusive livros, destinadas às mulheres. Ver JINZENJI, 2008. era publicado uma vez por semana e vendido a 80 réis, mesma quantia cobrada pelos principais periódicos de grande circulação no período, que possuíam, em geral, quatro páginas. O Mentor era distribuído nas principais vilas de Minas Gerais e na Capital Imperial. Os seus pontos de venda e subscrição indicam vinculação a uma rede de sociabilidade mais ampla, formada por representantes da elite política liberal moderada (ver Silva, 2002).

O Mentor surge em um contexto de proliferação do periodismo no Brasil. Na própria Vila de São João del-Rei, no período de 1827 a 1835, oito periódicos foram impressos (ver Xavier da Veiga, 1898, p.202, e Campos, 1998, p.176), dos quais o Astro de Minas, que tinha como editor Baptista Caetano d'Almeida, também o principal responsável pela fundação da biblioteca pública, teve maior circulação e longevidade (1827-1839).

Em seu prospecto, o redator de O Mentor explicita alguns temas que constituiriam as páginas do periódico:

1) política, especificamente sobre o sistema de governo em vigor, "sucintas notícias do que se passar (e for interessante) nos Tribunais, nas Assembleias e nos Gabinetes Nacionais e Estrangeiros";

2) obras cujas narrações sejam destinadas a um fim moral;

3) trechos da história moderna, com exemplos de ações virtuosas de heroínas que mereçam ser seguidos;

4) belas artes, para dirigir as potencialidades intelectuais das mulheres;

5) atualidades relacionadas à educação moral, modas e enfeites relativos ao "belo sexo".

O editor explicita, ainda, que restrições seriam feitas a correspondências que desmoralizassem as mulheres, assim como as que contivessem críticas a autoridades políticas e demais pessoas.

Embora esses temas fossem recorrentes no jornal, a análise dos seus exemplares revela que O Mentor não possuía uma "rotina" em termos de seções e matérias. Não é possível perceber uma regularidade que o torne previsível, pois é mais marcado pela flexibilidade do que pela "estabilidade".

Voltado para o público feminino, O Mentor concretizava, em suas páginas, o projeto de que era preciso formar cidadãs e cidadãos virtuosos para a nova nação que se construía. Parece inegável a conotação religiosa associada ao ser virtuoso, na medida em que tanto para homens quanto para mulheres, a moderação nos sentimentos e nos impulsos seria a chave reguladora do matrimônio. Na expressão "virtuoso" está implícita também a valorização da castidade, da fidelidade e da devoção à família. Agregada a essas virtudes, presente no mundo ocidental desde pelo menos o período medieval, coexistia a ideia de civismo, segundo a qual o ser virtuoso é aquele capaz de abnegar-se de seus interesses pessoais pelo bem comum. A fusão dessas duas ideias permite compreender a construção de representações de gênero imbricada e indissociável ao papel político;19 19 BLOCH, Ruth. Gender and morality in Anglo-American Culture, 1650-1800. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 2003, (The gendered meanings of virtue, p.138). o homem deve estar sempre pronto para pegar em armas e defender sua Pátria, além de fornecer cidadãos a ela; à mulher cabia administrar a família e educar os cidadãos e, sempre que necessário, apoiá-los na defesa da Pátria.

Diante desse projeto editorial, por que o editor dedicaria, em grande parte dos números do periódico, uma seção à história do Brasil? Por que selecionaria trechos de obras de grande circulação na Europa e no Brasil, como o livro de Beauchamp?

Inicialmente, é preciso evidenciar que a prática da "intertextualidade desenfreada", como já dissemos, era comum e inerente à produção de periódicos no período. O redator de O Mentor das Brasileiras utilizou pelo menos 46 jornais diferentes para compor suas matérias, além de mais de uma dezena de livros. Entre os periódicos mais citados pelo Mentor encontram-se O Simplício (com 24 citações), a Aurora Fluminense (11 citações), o Nova Luz Brasileira (6 citações) e o Tribuno do Povo (6 citações), do Rio de Janeiro; o Manual das Brasileiras (11 citações), de São Paulo; o Universal (7 citações), de Ouro Preto; e O Popular (6 citações), de Pernambuco. Percebe-se, nitidamente, desse modo, a circulação de informações, textos e ideias entre algumas das principais províncias brasileiras no período. Essa análise também nos leva a compreender que o próprio jornal resultava em um texto que induzia as leitoras à leitura extensiva.

Quanto aos livros, pode-se afirmar que a sua presença também era constante nos periódicos publicados na época. Os jornais costumavam reservar, ao final da última página de cada número, um espaço para anúncios e avisos; o Astro de Minas publicava-os gratuitamente para os subscritores (n.2, 22 nov. 1827, p.4); o Universal cobrava 20 rs por linha (n.1, 16 jul. 1827, 3º ano). Era nesses espaços que se divulgava, por exemplo, a venda de impressos nas tipografias e lojas - leis encadernadas, folhinhas de algibeira, folhetos e livros - assim como o interesse pela compra de impressos, como alguns livros específicos e números de jornais antigos. Esses anúncios geralmente incluíam os respectivos preços, e a variedade de títulos indica a presença tanto de obras estrangeiras - em idioma original ou traduzidas -, como as de autoria brasileira.

Se o espaço reservado aos anúncios, por si só, já permite um estudo da circulação de livros e demais impressos no cotidiano das cidades e vilas, a presença de excertos de obras, de capítulos de livros, ou mesmo a impressão de livros completos em números sucessivos dos jornais, permitem discutir sobre uma das formas de utilização desses impressos, ou seja, o trabalho de apropriação operado pelos redatores desses jornais, que incorporavam aos seus números, das mais diversas formas, obras de cunho filosófico, moral, religioso, educativo e literário, com o objetivo de produzir um veículo de cunho educativo.

Os usos do impresso, como salientado por Chartier, estavam ligados a diversas dimensões do cotidiano, como a devoção, o entretenimento, a informação e o conhecimento,20 20 CHARTIER, Roger. As utilizações do objecto impresso (séculos XV-XIX). Portugal: Difel, 1998, p.1. havendo ainda outras formas de significação desse objeto, relacionadas ao status conferido à posse de livros e ao ornamento.21 21 VILLALTA, Luiz Carlos. Os leitores e os usos dos livros na América portuguesa. In: ABREU, Márcia (Org.). Leitura, história e história da leitura. Campinas (SP): Mercado de Letras, ALB; São Paulo: Fapesp, 1999, p.204. Associada à ideia de erudição e distinção dos proprietários de livros, ganha destaque a noção de que o livro era fonte de conhecimentos e poderia ser utilizado para fins de instrução.

No processo de pesquisa, tivemos dificuldades em identificar a origem das obras citadas no periódico O Mentor das Brasileiras, pois, na maior parte das vezes, não vinham acompanhadas de referências completas. A prática de se referir somente ao autor ou fornecer dados não muito precisos sobre os títulos das obras (ao menos para os pesquisadores da atualidade) parece ser bastante comum nos séculos XVIII e XIX, visto ser recorrente também nas listas de livros encomendados para serem adquiridos em Portugal, assim como nos catálogos de bibliotecas particulares.22 22 ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas (SP): Mercado de Letras, ALB; São Paulo: Fapesp, 2003, p.32-37. Dos livros que puderam ser identificados, localizados e lidos, predomina a bibliografia de origens inglesa e francesa.

Entre os livros citados, selecionados e adaptados, além da história do Brasil, foi possível identificar fábulas de Phaedrus, uma bibliografia inglesa - incluindo Adam Smith, Jane Marcet, Jonathan Swift e Thomas Paine -, além dos franceses Volney, Montesquieu, Voltaire e Pierre Blanchard. Essa heterogeneidade desperta questões acerca da biblioteca do redator, José Alcibíades Carneiro, que supostamente seria composta por livros escritos nas línguas inglesa e francesa. Isso leva a pensar sobre suas habilidades de leitura, pois também sabia latim, idioma que ainda lecionava durante o período de redação de O Mentor.

Que espaço ocupava, então, a história do Brasil nas páginas de O Mentor? Na Tabela 1 é possível visualizar, com base em breve descrição das seções do jornal, esse lugar.

A história do Brasil, sob o título de "Parte histórica", foi a seção mais estável e duradoura do jornal, ocupando sempre ao menos uma das suas oito páginas, e esteve presente em 94 dos 129 números. Sua publicação se inicia no número 3, com estas palavras:

Como no Prospecto da nossa folha nos comprometemos a dar alguns extratos da história moderna, cumpriremos a palavra principiando pela do Brasil, nossa adorada Pátria. Desde já advertimos as nossas amáveis leitoras, que não nos fazemos cargo de longas narrações, ou fatos minuciosos; a pequenez da nossa folha o não admite; lançaremos rapidamente os olhos sobre as páginas mais interessantes da história do Brasil. (

O Mentor das Brasileiras

, n.3, 14 dez. 1829, p.17)

Ao contrário do que se propunha, a análise indica não ter havido um "lançar-se rapidamente os olhos" sobre a história do Brasil, e essa seção foi caracterizada pelas longas narrações e pelos fatos minuciosos.

Quando a publicação da seção foi suspensa, durante alguns números do jornal, foi impressa na Correspondência uma carta de leitora que pedia a sua volta. Assim "Huma que não se esquece" se dirige ao Mentor das Brasileiras:

Como sei que quando se promete alguma coisa (ao Público principalmente) está o prometente obrigado a satisfazê-la, cuido que não levará a mal que lhe faça uma pergunta. Por que se não tem continuado a História do Brasil, havendo desempenhado tão dignamente até aqui a parte política que lhe corresponde? Não sei a que atribua uma tão criminosa falta... (O Mentor das Brasileiras, n.31, 30 jun. 1830, p.245)

Logo em seguida a essa correspondência, o redator se desculpa, justificando a retirada do assunto, que teria sido substituído por outros, a partir da sugestão de alguns amigos. Desde então, a seção, que estava ausente do jornal desde seu número 18, voltou a ser impressa no número que seguiu à réplica - o 32 -, e esteve presente em cada número até o fim da circulação de O Mentor.

A presença marcante desse conteúdo no jornal revela a noção de positividade atribuída à leitura da história, em especial pelas mulheres, em oposição, por exemplo, ao romance, considerado nocivo, pela capacidade de alterar comportamentos, corromper a inocência, afastá-las da virtude e favorecer o crime (Abreu, 1999, p.12). David Hume, em Of the study of History (1741),23 23 Citado em KERBER, Linda. Women of the Republic: intellect & ideology in Revolutionary America. New York; London: W. W. Norton, 1980, p.246-247. contrasta a história contida nos romances com os estudos históricos; os romances, segundo ele, oferecem uma falsa representação da natureza humana, pois encorajam a expectativa de perfeição e a crença de que o amor é a paixão primária que governa o mundo masculino. Ainda segundo Hume, o gosto pela narrativa pode ser mais bem satisfeito com histórias reais, de reis e rainhas, batalhas e líderes, do que com contos ficcionais de conflitos passionais protagonizados por jovens incógnitas e comuns; a leitura da história promove o aprimoramento da mente, sem excitar as paixões. A outra conveniência apontada para a leitura da história é que ela aparenta ser "segura", enquanto as ciências, os clássicos e a filosofia não o são. A história promoveria uma aprendizagem moderada e agradável, sem envolver muita abstração e pesquisas difíceis, o que transformaria a delicadeza, tipicamente feminina, em aspereza. Do ponto de vista de escritoras norte-americanas do século XIX, era o estudo da história do próprio país que forneceria os conhecimentos acerca de sua pátria. Associado ao estudo da constituição e do sistema de governo, forneceria subsídios para que as mulheres tivessem mais clareza de seu papel na sociedade.24 24 TUTHILL, Louisa, citada em BAYM, Nina. American women writers and the work of history, 1790-1860. New Brunswick (NJ): Rutgers University Press, 1995, p.13.

A história escrita no modelo de narrativa era vista como a ideal, talvez por se assemelhar à trama dos romances, o que fazia o gosto das leitoras. Esse pode ter sido um dos motivos pelos quais, entre os vários livros sobre a história do Brasil que circulavam no período, o redator tenha escolhido, para publicar no jornal, a Histoire du Brésil (1815), de Alphonse de Beauchamp.

O Mentor das Brasileiras publicou o primeiro volume de Beauchamp na quase totalidade, excluindo as primeiras quatro partes; em seguida, publicou o segundo volume, interrompendo a publicação a partir da página 112, quando encerrou suas atividades. As partes do primeiro volume que não foram publicadas tratam de:

Livro I: A origem da Monarquia portuguesa; descobertas e conquistas dos portugueses na África e Índia;

Livro II: Viagem de Pedro Álvares Cabral à África; descoberta do Brasil;

Livro III: Estado do Brasil na época da descoberta;

Livro IV: Capitanias hereditárias na época de João III.

A supressão dos Livros I e II parece-nos coerente com o projeto liberal moderado, em um contexto em que se buscava, exatamente, distanciar-se de qualquer referência à Monarquia Portuguesa. Se por um lado era impossível negar a presença portuguesa no Brasil desde o século XVI, era, por outro lado, possível desprezar a sua história e os empreendimentos marítimos realizados anteriormente à chegada ao Brasil. Os Livros III e IV, por sua vez, são mais descritivos, versam sobre as características naturais, sobre os habitantes do Brasil, e a divisão em capitanias. A partir do livro V, a história do Brasil passou a ser contada nos moldes narrativos e, desde então, dos títulos aos conteúdos, os trabalhos de tradução e de compilação no jornal se mantiveram bastante fiéis à obra de Beauchamp.

O trecho compilado inicia-se com o título "Naufrágio e aventuras de Caramuru", do qual tratamos anteriormente. A versão dessa trama, publicada no jornal, omite a poligamia de Caramuru e, portanto, o episódio das outras índias se atirando ao mar e nadando em direção ao navio francês. Sugere, ainda, assim como Beauchamp já o havia feito, a ligação afetuosa entre Caramuru e Paraguaçu, mas neste caso, monogâmica (O Mentor das Brasileiras, n.6, 6 jan. 1830, p.46).

Entendendo-se que essa era a história do Brasil que se queria difundir através do jornal e se queria preservar para a posteridade, deve-se considerar não só a "forma" como a história é contada, mas também o "conteúdo". Se não era voltada unicamente para as mulheres, tinha-se a noção de que as mulheres "também" fariam parte desse público leitor, o que nos leva a atribuir um significado particular às escolhas feitas para a produção do jornal.

O trabalho realizado indica, portanto, a complexidade envolvida na elaboração de um instrumento educativo, na materialidade do suporte jornal, voltado para o público feminino, ao se utilizar de elementos originários de outras tradições culturais e religiosas. Desse modo, temas como "adultério", "canibalismo", "castidade", "amor" e "propriedade", entre outros, deveriam ser banidos ou tratados de outra forma em relação a como o eram originalmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao menos duas grandes considerações merecem ser feitas. Em primeiro lugar, é importante destacar que, como buscamos mostrar ao longo do texto, não existia, nas primeiras décadas do século XIX, um olhar europeu único sobre o Brasil. Diferentes países, com tradições culturais, religiosas, territoriais e políticas distintas, constituíam a "jaula invisível" de que nos fala Ginzburg,25 25 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. a qual possibilitava a produção, por sujeitos - homens e europeus -, de narrativas que, embora se assemelhassem em alguns aspectos, diferenciavam-se substantivamente em outros.

A segunda constatação que se pode fazer é que obras escritas por estrangeiros sobre o Brasil sofriam, no país, um processo de apropriação. Esse processo não era único nem homogêneo, mas estava relacionado - muito concretamente, no caso analisado - aos objetivos do periódico: formar mulheres - letradas e do meio urbano, da província de Minas Gerais - para cumprir seus papéis de cidadãs moral e politicamente virtuosas, no interior de um projeto mais amplo vinculado aos ideais dos liberais moderados. Em um contexto de instabilidade política - estávamos no período regencial -, buscava-se apagar certo passado - de dependência da monarquia portuguesa, de índios canibais e poligâmicos - e afirmar o Brasil como nação: jovem, independente e civilizada.

NOTAS

Artigo recebido em fevereiro de 2009.

Aprovado em abril de 2010.

  • 1 SOUTHEY, Robert. History of Brazil. London: Printed for Longman, 1810-1819.
  • 2 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. Sua história. 2.ed. revisada e ampliada. São Paulo: Edusp, 2005.
  • 3 BEAUCHAMP, Alphonse de. Histoire du Brésil: depuis sa découverte en 1500 jusqu'en 1810. Paris: Librairie d'éducation et de jurispendence D'Alexis Eymery, 1815.
  • 4 CAMARGO, Ana Maria de Almeida; MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia da Impressão Régia do Rio de Janeiro, 1808-1812 São Paulo: Edusp, 1993.
  • 5 The New Encyclopaedia Britannica, 15.ed., v.2, 1990, p.18.
  • 6 DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.88-89.
  • 7 RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil São Paulo: Contexto, 2007, p.11-44.
  • 8 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
  • 9 SCHWARCZ, Lilia M. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.45-48.
  • 10 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. v.2. Petrópolis (RJ): Vozes, 1990.
  • 11 ABREU, Márcia. Introdução. In: CHARTIER, Roger. Formas e sentido: cultura escrita - entre distinção e apropriação. Campinas (SP): Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil, 2003, p.9.
  • 12 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.176.
  • 13 ECO, Humberto. Lector in Fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. São Paulo: Perspectiva, 1986.
  • 14 Para um aprofundamento sobre O Mentor, ver JINZENJI, Mônica Yumi. Cultura impressa e educação da mulher: lições de política e moral no periódico mineiro O Mentor das Brasileiras Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, UFMG. Belo Horizonte, 2008.
  • Ver, também, SILVA, Wlamir. 'Amáveis patrícias': O Mentor das Brasileiras e a construção da identidade da mulher liberal na província de Minas Gerais (1829-1832). Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55, p.107-130, 2008.
  • 15 São João del-Rei constituía um dos principais núcleos urbanos do Brasil no período. Foi a primeira vila em Minas Gerais a ter uma biblioteca pública em funcionamento (1827) e a segunda vila a ter uma tipografia (1827). Encontrava-se em uma situação geográfica que a tornava rota de passagem para/entre as províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, sendo, portanto, região de intensa circulação de pessoas e mercadorias, exercendo papel fundamental no abastecimento (de produtos alimentícios e de consumo em geral) da província mineira e da Corte. Ver: CAMPOS, Maria Augusta do Amaral. A marcha da civilização: as vilas oitocentistas de São João del-Rei e São José do Rio das Mortes (1810-1844). Dissertação (Mestrado) - Departamento de História, Fafich, UFMG. Belo Horizonte, 1998, p.44;
  • SILVA, Wlamir. Liberais e povo: a construção da hegemonia liberal-moderada na Província de Minas Gerais (1830-1834). Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ. Rio de Janeiro, 2002, p.39-40.
  • 16 Em 1833, São João del-Rei contava com 1.442 fogos, população livre de 5.235 habitantes e população escrava de 1.823 habitantes, sendo uma das vilas mais populosas da província. Cf. Arquivo Público Mineiro, PP 1/33, Caixa 271, pacotilha 11, 10/01/1833. MARTINS, Maria do Carmo Salazar. Revisitando a província: comarcas, termos, distritos e população de Minas Gerais em 1833-1835. In: SEMINÁRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA, 5. Belo Horizonte, UFMG: Cedeplar, 1990. mimeo., p.23.
  • 18 Uma das possíveis explicações para o tamanho do periódico está no fato de que se assemelhava a outras obras, inclusive livros, destinadas às mulheres. Ver JINZENJI, 2008.
  • 19 BLOCH, Ruth. Gender and morality in Anglo-American Culture, 1650-1800 Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 2003, (The gendered meanings of virtue, p.138).
  • 20 CHARTIER, Roger. As utilizações do objecto impresso (séculos XV-XIX). Portugal: Difel, 1998, p.1.
  • 21 VILLALTA, Luiz Carlos. Os leitores e os usos dos livros na América portuguesa. In: ABREU, Márcia (Org.). Leitura, história e história da leitura Campinas (SP): Mercado de Letras, ALB; São Paulo: Fapesp, 1999, p.204.
  • 22 ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros Campinas (SP): Mercado de Letras, ALB; São Paulo: Fapesp, 2003, p.32-37.
  • 23 Citado em KERBER, Linda. Women of the Republic: intellect & ideology in Revolutionary America. New York; London: W. W. Norton, 1980, p.246-247.
  • 24 TUTHILL, Louisa, citada em BAYM, Nina. American women writers and the work of history, 1790-1860 New Brunswick (NJ): Rutgers University Press, 1995, p.13.
  • 25 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • 1
    SOUTHEY, Robert.
    History of Brazil. London: Printed for Longman, 1810-1819.
  • 2
    HALLEWELL, Laurence.
    O livro no Brasil. Sua história. 2.ed. revisada e ampliada. São Paulo: Edusp, 2005.
  • 3
    BEAUCHAMP, Alphonse de.
    Histoire du Brésil: depuis sa découverte en 1500 jusqu'en 1810. Paris: Librairie d'éducation et de jurispendence D'Alexis Eymery, 1815.
  • 4
    CAMARGO, Ana Maria de Almeida; MORAES, Rubens Borba de.
    Bibliografia da Impressão Régia do Rio de Janeiro, 1808-1812. São Paulo: Edusp, 1993.
  • 5
    The New Encyclopaedia Britannica, 15.ed., v.2, 1990, p.18.
  • 6
    DARNTON, Robert.
    Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.88-89.
  • 7
    RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. In: DEL PRIORE, Mary (Org.).
    História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p.11-44.
  • 8
    CERTEAU, Michel de.
    A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
  • 9
    SCHWARCZ, Lilia M.
    O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.45-48.
  • 10
    CERTEAU, Michel de.
    A invenção do cotidiano: artes de fazer. v.2. Petrópolis (RJ): Vozes, 1990.
  • 11
    ABREU, Márcia. Introdução. In: CHARTIER, Roger.
    Formas e sentido: cultura escrita - entre distinção e apropriação. Campinas (SP): Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil, 2003, p.9.
  • 12
    CHARTIER, Roger.
    A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.176.
  • 13
    ECO, Humberto.
    Lector in Fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. São Paulo: Perspectiva, 1986.
  • 14
    Para um aprofundamento sobre
    O Mentor, ver JINZENJI, Mônica Yumi.
    Cultura impressa e educação da mulher: lições de política e moral no periódico mineiro
    O Mentor das Brasileiras. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, UFMG. Belo Horizonte, 2008. Ver, também, SILVA, Wlamir. 'Amáveis patrícias':
    O Mentor das Brasileiras e a construção da identidade da mulher liberal na província de Minas Gerais (1829-1832).
    Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55, p.107-130, 2008.
  • 15
    São João del-Rei constituía um dos principais núcleos urbanos do Brasil no período. Foi a primeira vila em Minas Gerais a ter uma biblioteca pública em funcionamento (1827) e a segunda vila a ter uma tipografia (1827). Encontrava-se em uma situação geográfica que a tornava rota de passagem para/entre as províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, sendo, portanto, região de intensa circulação de pessoas e mercadorias, exercendo papel fundamental no abastecimento (de produtos alimentícios e de consumo em geral) da província mineira e da Corte. Ver: CAMPOS, Maria Augusta do Amaral.
    A marcha da civilização: as vilas oitocentistas de São João del-Rei e São José do Rio das Mortes (1810-1844). Dissertação (Mestrado) - Departamento de História, Fafich, UFMG. Belo Horizonte, 1998, p.44; SILVA, Wlamir.
    Liberais e povo: a construção da hegemonia liberal-moderada na Província de Minas Gerais (1830-1834). Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ. Rio de Janeiro, 2002, p.39-40.
  • 16
    Em 1833, São João del-Rei contava com 1.442 fogos, população livre de 5.235 habitantes e população escrava de 1.823 habitantes, sendo uma das vilas mais populosas da província. Cf. Arquivo Público Mineiro, PP 1/33, Caixa 271, pacotilha 11, 10/01/1833. MARTINS, Maria do Carmo Salazar. Revisitando a província: comarcas, termos, distritos e população de Minas Gerais em 1833-1835. In: SEMINÁRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA, 5. Belo Horizonte, UFMG: Cedeplar, 1990. mimeo., p.23.
  • 17
    O primeiro teria sido
    O espelho diamantino, publicado no Rio de Janeiro em 1827-1828.
  • 18
    Uma das possíveis explicações para o tamanho do periódico está no fato de que se assemelhava a outras obras, inclusive livros, destinadas às mulheres. Ver JINZENJI, 2008.
  • 19
    BLOCH, Ruth.
    Gender and morality in Anglo-American Culture, 1650-1800. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 2003, (The gendered meanings of virtue, p.138).
  • 20
    CHARTIER, Roger.
    As utilizações do objecto impresso (séculos XV-XIX). Portugal: Difel, 1998, p.1.
  • 21
    VILLALTA, Luiz Carlos. Os leitores e os usos dos livros na América portuguesa. In: ABREU, Márcia (Org.).
    Leitura, história e história da leitura. Campinas (SP): Mercado de Letras, ALB; São Paulo: Fapesp, 1999, p.204.
  • 22
    ABREU, Márcia.
    Os caminhos dos livros. Campinas (SP): Mercado de Letras, ALB; São Paulo: Fapesp, 2003, p.32-37.
  • 23
    Citado em KERBER, Linda.
    Women of the Republic: intellect & ideology in Revolutionary America. New York; London: W. W. Norton, 1980, p.246-247.
  • 24
    TUTHILL, Louisa, citada em BAYM, Nina.
    American women writers and the work of history, 1790-1860. New Brunswick (NJ): Rutgers University Press, 1995, p.13.
  • 25
    GINZBURG, Carlo.
    O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      Fev 2009
    • Aceito
      Abr 2010
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