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‘Saber é poder’ e o saber do poder: José Veríssimo (1857-1916) entre a ‘marginalização’ e o ‘engajamento’ educativo na Província do Pará (1881-1884)

‘Conocer es poder’ y conocer poder: José Veríssimo (1857-1916) entre la ‘marginación’ y el ‘compromiso’ educativo en el Provincia do Pará (1881-1884)

Resumo:

Este artigo analisa a ‘experiência educativa’ de José Veríssimo associada à ‘marginalização’ e ao ‘engajamento’ político na província do Pará. No contexto de polarização política entre tradição imperial e política científica, ocorreu o concurso para a cadeira de francês do Liceu Paraense (1881) e emergiu a Sociedade Paraense Promotora da Instrução (1883-1884). Considero que a desclassificação no concurso foi uma forma de marginalização das posições profissionais prestigiadas e constatação a respeito da ‘decadência’ das instituições imperiais - conhecendo o ‘saber do poder’ -, permitindo o engajamento na Sociedade - promovendo o ‘saber é poder’ -, ao se apropriar das práticas político-culturais da Geração 1870 de contestação do status quo saquarema no contexto amazônico.

Palavras-chave:
Amazônia; geração 1870; política científica; instrução pública

Resumen:

Este artículo analiza la ‘experiencia educativa’ de José Veríssimo asociada con la ‘marginación’ y el ‘compromiso’ político en la Provincia de Pará. En el contexto de la polarización política entre la tradición imperial y la política científica, tuvo lugar la competencia por la cátedra francesa del Liceo Paraense (1881) y surgió la Sociedad Promotora de la Educación Paraense (1883-1884). Considero que la descalificación en el concurso fue una forma de marginar las prestigiosas posiciones profesionales y descubrir la decadencia de las instituciones imperiales - conocer el ‘conocimiento del poder’ -, permitir la participación en la Sociedad - promover el ‘conocimiento es poder’ -, mientras que apropiarse de las prácticas político-culturales de la Generación 1870 de impugnar el status quo saquarema en el contexto amazónico.

Palabras clave:
Amazonia; generación 1870; política científica; instrucción pública

Abstract:

This article analyzes José Veríssimo’s ‘educational experience’ associated with ‘marginalization’ and political ‘engagement’ in the province of Pará, Brazil. In the context of political polarization between imperial tradition and scientific politics, a competitive examination for the French chair at Liceu Paraense was held (1881), and the Instruction-Promoting Society of Pará (1883-1884) was founded. I consider that giving candidates failing scores was a way of marginalizing prestigious professional positions and evidences the ‘decadence’ of imperial institutions - aware of the ‘knowledge of power’ -, allowing engagement in the Society - promoting the idea that ‘knowledge is power’ -, by appropriating the political-cultural practices of the 1870 Generation as to questioning the conservative status quo in the Amazonian context.

Keywords:
Amazon; generation 1870; scientific politcs; public instruction

Introdução

José Veríssimo foi um dos mais representativos intelectuais paraenses do século XIX. Por seus trabalhos histórico-antropológicos, As populações indígenas e mestiças da Amazônia (1886), e produção literária, Cenas da vida amazônica (1886), foi considerado um ‘ilustrado’ autorizado, um intérprete reconhecido, um ‘intelectual amazônico’ que estava refletindo sobre o processo de modernização na província do Pará, entre 1870 e 1880. Do ponto de vista educativo, notabilizou-se pelas inovações pedagógicas realizadas no Collegio Americano (1884-1890), as quais forneceram material empírico para a escrita do A educação nacional (1890) e as credenciais para ser nomeado diretor da Instrução Pública do Governo Provisório Republicano (1889-1891) (Moraes, 2018Moraes, F. T. (2018). José Veríssimo (1857-1916), intelectual amazônico: geração 1870 e a educação no Grão-Pará (1877-1891) (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo. ).

Nasceu em Óbidos, oeste do Pará, em 1857. Realizou o ensino primário em Belém e Manaus, e os estudos secundários, no Colégio Pedro II. Ingressou no curso de Engenharia Civil na Escola Central (depois, Politécnica), desistindo por motivo de doença. Em Belém, a partir de 1877, colaborou nos jornais O Liberal do Pará, A Província do Pará, A República e Gazeta de Notícias. Fundou a Revista Amazônica, periódico dedicado às letras, às artes e às ciências na região, entre 1883 e 1884 (Prisco, 1937Prisco, F. (1937). José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro, RJ: Brigueit. ; Veríssimo, 1966Veríssimo, I. J. (1966). José Veríssimo visto por dentro. Manaus, AM: Edições Governo do Estado do Amazonas.).

A conexão entre o pensamento social e educacional de José Veríssimo é um pressuposto assumido pelos estudos que problematizaram sua trajetória intelectual no Pará. Enquanto a análise histórico-antropológica constatava a ‘abatimento’ das raças cruzadas no Pará, as propostas educativas encaminhavam possíveis soluções para a ‘regeneração’ destas populações mestiças. Estas pesquisas destacam o ‘caráter inovador’ da atividade educacional de José Veríssimo; seus trabalhos apontavam a necessidade de uma ‘educação nacional’ ancorada no sentimento cívico e no caráter nacional; por isso, tal projeto acabou se associando ao novo regime, ao promover uma ‘educação republicana’ (Araújo, 2010Araújo, S. M. S., & Prestes, C. A. T. (2010). Educação republicana sob a ótica de José Veríssimo. Educar em Revista, (n. esp. 2), 303-318. ; Araújo & Prestes, 2007Araújo, S. M. S., & Prestes, C. A. T. (2007). Raças cruzadas e educação: uma proposta de nacionalização do mestiço da Amazônia. In S. M. S. Araújo & C. A. T. Prestes (Orgs.), José Veríssimo: raça, cultura e educação (p. 137-170). Belém, PA: EDUFPA.; Cavazotti, 2003Cavazotti, M. A. (2003). O projeto republicano de educação nacional na versão de José Veríssimo. São Paulo, SP: Annablume. ; França, 2004França, M. P. S. S. A. (2004). José Veríssimo (1857-1916) e a educação brasileira republicana: raízes da Renovação Escolar Conservadora (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. , 2007França, M. P. S. S. A. (2007). José Veríssimo e a educação nacional. In S. M. S. Araújo (Org.), José Veríssimo: raça, cultura e educação (p. 171-225). Belém, PA: EDUFPA. , 2009França, M. P. S. S. A. (2009). O pensamento e a prática escolar de José Veríssimo no Colégio Americano. Revista Cocar (UEPA), 3, 113-123., 2014França, M. P. S. S. A. (2014). José Veríssimo: Diretor da Instrução Pública no Pará no Regime Republicano (Relatório de Pós-doutoramento). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. ; Tullio, 1996Tullio, G. A. (1996). Transformação ou modernização? O projeto pedagógico de José Veríssimo para o Brasil República (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. ).

A manifestação desta inovação pedagógica é destacada pela inclusão das disciplinas de história, geografia e educação física no ensino primário, bem como a preocupação com a educação feminina no Collegio Americano (Silva, 2012Silva, L. V. A. (2012). Ciência e educação científica feminina no discurso de José Veríssimo (1857-1916). História da Ciência e Ensino, 6, 49-70.). No projeto de educação nacional brasileira, o modelo educacional estadunidense assumiu um lugar de referência, pendulando entre o patriotismo e o americanismo (Bontempi Júnior, 2003Bontempi Júnior, B. (2003). Brasileiros e não yankees: americanismo e patriotismo em A Educação Nacional (1890), de José Veríssimo. Educação em Foco (Juiz de Fora), 7(2), 127-136. ). Ao apresentar as linhas mestras do debate educacional brasileiro, demonstrando com isso o seu pioneirismo, José Veríssimo foi incluído na linhagem de educadores com contribuições perenes e modelares para a educação brasileira, assim, sendo considerado um ‘clássico’ (Alves, 2011Alves, C. (2011). A educação nacional de José Veríssimo. In M. C. Xavier & J. C. Hamdan (Orgs.), Clássico da educação brasileira (Vol. 2, p. 27-48). Belo Horizonte, MG: Mazza.). De todo modo, a perspectiva comum desta historiografia é considerar o pensamento educacional de José Veríssimo corporificado e sistematizado na publicação do A educação nacional, de 1890.

Ao considerar estes apontamentos historiográficos, o artigo objetiva analisar dois momentos olvidados nas atividades educativas de José Veríssimo no Pará, marcados pela ‘marginalização’ e pelo ‘engajamento’ político: o concurso para a cadeira de francês do Liceu Paraense (1881) e a participação como primeiro secretário e conferencista da Sociedade Paraense Promotora da Instrução (1883-1884). Considero que tais ‘experiências educativas’ (Thompson, 1981Thompson, E. P. (1981). O termo ausente: experiência. In E. P. Thompson. A miséria da teoria ou um planetário de erros (p. 180-200). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , 1987) se transformaram nos primeiros contatos de José Veríssimo com o debate político e educacional, tendência aprofundada com o advento do Collegio Americano (a partir da direção de Veríssimo, em 1884); possibilitando, por sua vez, o acúmulo de discussão e experiência prática que fomentaria a escrita do A educação nacional (1890) e a atuação administrativa na Diretoria da Instrução Pública (1890-1891).

As dimensões da ‘marginalização’ e do ‘engajamento’ político de José Veríssimo estavam diretamente associadas a ser um representante da ‘Geração 1870’ no Pará (Bezerra Neto, 1998Bezerra Neto, J. M. (1998). O homem que veio de Óbidos: pensamento social e etnografia em José Veríssimo. Anais do Arquivo Público do Pará, 3(2), 239-261. ; Figueiredo, 2008Figueiredo, A. M. (2008). A Cidade dos Encantados: pajelança, feitiçaria e religiões afro-brasileiras na Amazônia, 1870-1950. Belém, PA: EDTUFPA. ; Moraes, 2018Moraes, F. T. (2018). José Veríssimo (1857-1916), intelectual amazônico: geração 1870 e a educação no Grão-Pará (1877-1891) (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo. ). A proposta analítica de Angela Alonso (2002Alonso, A. (2002). Idéias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo, SP: Paz e Terra. ) compreende a ‘Geração 1870’ enquanto movimento político composto por diversas extrações sociais, cuja marca de coesão era a ‘marginalização política’ no contexto do Segundo Reinado (1840-1889), polarizado entre as forças da ‘política cientifica’ e as hostes da ‘tradição imperial’.

A ‘tradição imperial’, derivada das reflexões dos ilustrados brasileiros e do movimento romântico, encarou as intempéries políticas do Primeiro Reinado (1822-1831) e da Regência (1831-1840), forjando um modelo de Estado, organização da sociedade e identidade nacional estabelecido a partir de uma experiência nacional - de centralização política e escravidão - que se distanciava ao mesmo tempo que incorporava o ‘repertório’ do pensamento europeu - composto pelo pensamento conservador da Restauração francesa de Guizot e Thiers, pelo direito divino do rei de Bossuet e pelo romantismo de Chateaubriand e Lamartine. Esta tradição apoiava-se em três fundamentos: o ‘liberalismo estamental’, que assegurava liberdade e cidadania aos proprietários de escravos, legitimando a hierarquia social; o ‘catolicismo hierárquico’, que garantia a legitimidade do poder real e acolhia os excluídos pelo liberalismo, homens livres pobres, mulheres, crianças e escravos; e, o ‘indianismo romântico’, que erigia uma representação singular de nação brasileira, ao imaginar uma visão positiva da colonização portuguesa e inventar uma identidade nacional ajustada às instituições políticas do Império (Alonso, 2002Alonso, A. (2002). Idéias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo, SP: Paz e Terra. ).

Os grupos da ‘política científica’, por seu turno, expunham suas ‘teorias da reforma’ no debate político. Neste conjunto, os novos liberais, tendo Joaquim Nabuco e o seu livro O abolicionismo como representante, apontavam suas críticas sobre a herança colonial na formação socioeconômica do Brasil; ao mesmo tempo que os positivistas abolicionistas, nas figuras de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, estabeleceram uma leitura positivista da formação brasileira. Ambos propunham uma ‘reforma social’, na qual a primeira medida seria a abolição da escravatura. Por sua vez, os liberais republicanos, responsáveis pelo Manifesto Republicano, tendo à frente Quintino Bocaiúva, os federalistas positivistas gaúchos, representados por Julio de Castilhos e Assis Brasil, e os federalistas científicos paulistas, como Pereira Barreto e Alberto Salles, colocavam em causa a questão da autonomia provincial e da formação do Estado nacional, reivindicando uma ‘reforma política’ que implementasse a federação como forma de governo (Alonso, 2002Alonso, A. (2002). Idéias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo, SP: Paz e Terra. ).

O movimento político-intelectual da ‘Geração 1870’ estava marginalizado das principais instituições imperiais - as cátedras das faculdades, os assentos no parlamento e as lideranças dos partidos - e acabou apostando seu engajamento nas campanhas temáticas, nas associações de curta duração (sociedades, clubes, associações etc.), nas passeatas, nos comícios, nos banquetes. Os grupos contestadores prepararam suas formas de organização política nas margens das instituições imperiais, no seio da sociedade civil: por meio de ‘práticas político-culturais’ de mobilização representadas pelas conferências, meetings, agindo em efemérides e datas comemorativas. Tratavam-se de eventos públicos denominados de meetings na Inglaterra, que, ao serem apropriados pelo movimento ‘geração 1870’ brasileiro, interligavam-se a outras formas de protesto no Ocidente e ressignificavam a tradição político-cultural brasileira (Alonso, 2002Alonso, A. (2002). Idéias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo, SP: Paz e Terra. ).

Neste contexto de polarização política entre ‘tradição imperial’ e da ‘política científica’ na década de 1880, ocorreu o concurso para a cadeira de francês do Liceu Paraense e emergiu a Sociedade Paraense Promotora da Instrução. Em função de tais fatos, assinalo que a desclassificação no concurso foi uma forma de ‘marginalização’ das posições profissionais prestigiadas e a constatação a respeito da ‘decadência’ das instituições imperiais - conhecendo o ‘saber do poder’; permitindo, por sua vez, o ‘engajamento’ na Sociedade - promovendo o ‘saber é poder’ -, ao se apropriar das ‘práticas político-culturais’ da Geração 1870 de contestação (meetings e conferências) ao status quo saquarema na província, sobretudo aos católicos ‘ultramontanos’.

Em uma pacata quinta-feira, 10 de maio de 1883, no rodapé da segunda página do O Liberal do Pará, na seção ‘Annuncios’, uma breve nota redigida pelo primeiro secretário, José Veríssimo, informava à sociedade paraense sobre o ato de inauguração da Sociedade Paraense Promotora da Instrucção: “A ordem do dia é: 1º Posse da directoria definitiva. 2º Discurso do sr. presidente, Conselheiro Tito Franco de Almeida” (O Liberal do Pará, 1883a, p. 2).

No domingo próximo, 13 de maio, ocorria a meeting de abertura da Sociedade, às 10 horas, no salão da Assembleia Paraense. Na seção ‘Noticiario’, um articulista do O Liberal do Pará repercutiu o evento: “Folgamos de vêr o espirito de associação desenvolver-se no sentido de diffundir conhecimentos, de ‘propagar á instrucção’, essa grande alavanca e solida base de todo progresso” (O Liberal do Pará, 1883bO Liberal do Pará. (1883b, 13 de maio)., p. 3, grifo nosso). Nela ainda foram feitos os mais sinceros votos pelo futuro desta ‘util instituição’ e promessas de franco e decidido apoio à iniciativa.

No ato inauguração, a seção ‘Noticiario’ informava o comitê diretor empossado: presidente, conselheiro Tito Franco de Almeida; 1º vice-presidente, doutor Demetrio Bezerra; 2º vice-presidente, doutor José Paes de Carvalho; 1º secretário, José Veríssimo; 2º secretário, Marcellino A. L. Barata; tesoureiro, Ludovico Paiva; procurador, Rodrigo Salles. A notícia encerrava com um esclarecimento e um convite: a promoção de conferências ocorreria aos domingos, cujo primeiro ocupante da tribuna seria o médico português doutor Domingos J. B. D’Almeida - “Comprimentando a sociedade promotora da instrucção, convidamos o publico, principalmente as distinctas familias desta capital a comparecerem” (O Liberal do Pará, 1883bO Liberal do Pará. (1883b, 13 de maio)., p. 3).

Além do Discurso de Abertura pelo conselheiro Tito Franco de Almeida, realizado na fundação da Sociedade, em 1883, aconteceram três conferências no salão do Grêmio Literário Português. Realizou-se a primeira entre maio e junho - O método intuitivo Froebel para a educação da primeira infância por Domingos J. B. de Almeida. Já a segunda, em junho - A mãe de familia do Conselheiro Tito Franco de Almeida. A última conferência, em julho - O movimento intellectual brazileiro nos ultimos dez annos, de José Veríssimo. O discurso de abertura e as três conferências foram publicadas na Revista Amazonica. As atividades da Sociedade ocorreram entre 1883 e 1884.

Todavia, antes do advento da Sociedade, José Veríssimo tinha participado do concurso de lente de francês no Liceu Paraense, em 11 de agosto de 1881. Os desdobramentos do concurso representaram sua ‘primeira polêmica’ associada a questões educacionais, cuja apuração animou as páginas de agosto dos jornais Gazeta de Notícias e O Liberal do Pará.

‘Saber do poder’: o ‘caso’ do concurso à cadeira de francês no liceu paraense

Corria a boca miúda e nas colunas dos jornais, o boato de que houve favoritismo no concurso, uma vez que a cadeira estaria previamente escolhida em favor do adido da secretaria da presidência da província, o doutor João Antônio Luiz Coelho, aprovado no concurso e nomeado no cargo (Gazeta de Notícias, 1881Gazeta de Notícias. (1881f, 18 de agosto). f).

Em 13 de agosto de 1881, a seção ‘Asumptos do dia’ do Gazeta de Notícias expunha o boato: o voto do corpo docente do Liceu Paraense, responsável pelo concurso de francês, era “[...] ‘escoimado de paixão’, e se prejudicava os cavalheiros victimas da injustiça não lesa menos os interesses da instrucção publica” (Gazeta de Notícias, 1881cGazeta de Notícias. (1881c, 13 de agosto)., p. 2, grifo nosso).

A exemplo dos concursos realizados para as cadeiras de latim e alemão, continuava informando a seção, os candidatos do concurso de francês não deveriam ser excluídos da classificação, tendo em vista que foram aprovados no certame: “Os dois cavalheiros, com toda a justiça, aprovados plenamente no concurso de ante-hontem não deviam ser excluidos da classificação, não podiam sel-o também os srs. ‘José Verissimo’ e Pinto Marques” (Gazeta de Notícias, 1881cGazeta de Notícias. (1881c, 13 de agosto)., p. 2, grifo nosso).

O texto da seção detalhava o boato: tal resultado devia-se “A facilidade com que a ‘politicagem’ intervem no ensino [...]”, considerando que “[...] as espheras pretas que pozeram-n’os fóra da classificação não lhes ‘qualificam o merito, punem-lhes’, quando muito, ‘as opiniões’ [...]”, ao passo que estas, as ‘opiniões’, “Não era precisamente de que se tratava no concurso, mas era o que annunciava com bastante antecipação”. A cadeira já estava prometida, garantia novamente a seção: “Dizia-se que a ‘cadeira estava promettida’, que estava dada, e é bem possivel a vista dos precedentes, que o voto do corpo docente apenas symbolise uma ratificação de ‘promessa’” (Gazeta de Notícias, 1881cGazeta de Notícias. (1881c, 13 de agosto)., p. 2, grifo nosso).

Ao encerrar a seção, o articulista lamentava que o corpo docente do Liceu Paraense, por se desviar da prática da justiça e do dever, apenas “Prejudicava-se prejudicando os seus desaffectos [...]”, ao demonstrar “[...] ter todos os attributos para as ‘tricas da nossa politicagem’, fallecem-lhes o sentimento do dever” (Gazeta de Notícias, 1881cGazeta de Notícias. (1881c, 13 de agosto)., p. 2, grifo nosso). Em outras palavras: o concurso público que deveria reconhecer os méritos intelectuais dos candidatos para o exercício do magistério, selecionava-se em função da opinião política.

O breve perfil biográfico Emilio Littré, de José Veríssimo, foi publicado em colunas seriadas no jornal Gazeta de Noticias, em julho de 1881. Dedicado à mocidade paraense, em dezembro de 1881, foi encadernado em formato de folheto com 49 páginas (Prisco, 1937Prisco, F. (1937). José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro, RJ: Brigueit. ). A redação d’O Liberal do Pará foi agraciada com um exemplar, sendo este recebimento registrado na nota ‘Emilio Littré’:

O nosso talentoso comprovinciano José Verissimo reunio em folheto os artigos que publicou na ‘Gazeta de Noticias’ sobre Emilio Littré e a Philosophia Positiva, addicionando-lhe um novo artigo de polemica.

O sr. José Verissimo prestou um bom serviço á sociedade propagando ‘em forma mais duradoura’ as ‘idéas modernas’ em contraposição aos ‘princípios reaccionarios’ que formigam entre nós.

O illustre escriptor fez bem em offerecer o seu escripto à ‘mocidade’; porque dessa falange esclarecida do século que depende a total ‘aniquilação dos preconceitos e idéas retrógradas’.

Agradecemos assás o exemplar com que nós obsequiou

(O Liberal do Pará, 1881bO Liberal do Pará. (1881b, 13 de dezembro)., p. 1, grifo nosso).

O redator d’O Liberal do Pará, em meio aos elogios e os obséquios, estabeleceu o gradiente de leitura e recepção das forças da ‘política científica’ sobre o opúsculo de José Veríssimo. A biografia sobre Émile Littré significava a exposição das ‘idéas modernas’ em oposição aos ‘princípios reaccionarios’ e as ‘idéas retrógradas’ contribuindo, por seu turno, para a ‘aniquilação dos preconceitos’ que formigavam no seio da mocidade paraense. Por isso, é possível afirmar que a biografia sobre Littré dialogava diretamente com o debate político na província, a biografia expressava abertamente as ‘opiniões’ políticas de José Veríssimo.

Na escrita do perfil biográfico, José Veríssimo sublinhava que a ‘filosofia positiva’ era a base segura da ‘renovação mental’ demandada pelo progresso da humanidade, porque isso “[...] não se achavam [nas] creações hypotheticas da metaphysica, nem [nas] entidades da theologia [...]” (Gazeta de Notícias, 1881a,Gazeta de Notícias. (1881a, 01 de julho). p. 2); e assumia o papel de discípulo de Émile Littré - no caso, a posição de positivista heterodoxo -, ao reconhecer a sua justificativa para a dissidência no seio da ‘pequena escola positivista’. Littré era sectário do ‘método positivo’, passando ao largo da ‘religião positiva’, esposada por Pierre Laffitte. Esta consideração do redator d’O Liberal do Pará autorizava José Veríssimo a desempenhar o papel de publicista das ‘idéas modernas’ - representadas, neste contexto da província, pelo positivismo baseado na dissidência de Émile Littré.

No conjunto da obra de Auguste Comte (1798-1857), houve duas obras fundamentais: Cursos de filosofia positiva, que propunha uma síntese e um método do conhecimento positivo, e Sistema de política positiva e catecismo positivista, ambas propondo uma ciência política e religião positiva. Criaram-se duas correntes no interior do positivismo, encabeçadas por dois discípulos, após a morte de Comte: a corrente de Émile Littré - os heterodoxos - que defendia como principal legado o método positivo, e o grupo de Pierre Laffitte - os ortodoxos - que aceitava integralmente o sistema filosófico positivista. Estas duas vertentes foram as principais formas de apropriação do legado comteano entre os positivistas brasileiros. No Pará, Lauro Sodré e José Veríssimo, dois eminentes positivistas, eram entusiastas de Émile Littré (Lins, 1967Lins, I. (1967). História do positivismo no Brasil. São Paulo, SP: Cia. Editora Nacional. ; Azzi, 1980Azzi, R. (1980).A concepção da ordem social segundo o positivismo ortodoxo brasileiro. São Paulo, SP: Loyola. ; Alonso, 2002Alonso, A. (2002). Idéias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo, SP: Paz e Terra. ; Coelho, 2006Coelho, A. W. (2006). A ciência de governar: positivismo, evolucionismo e natureza em Lauro Sodré (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Pará, Pará. ).

Em 1871 aconteceu a admissão de Littré na Academia Francesa, depois da publicação do seu Diccionario, e a demissão do famoso Dupanloup, bispo de Orleans; ambos os fatos foram ‘acentuados’ do perfil escrito por Veríssimo, pois representavam uma intervenção no debate político na província: a relação entre a Igreja Católica e os livres-pensadores (considerados ateus). Tal admissão recebeu o ‘ataque grosseiro do clericalismo’ em uma carta dirigida pelo bispo à redação do ‘jornal catholico Le Monde’, na qual postulava os critérios a serem utilizados pela Academia Francesa no ingresso dos seus membros, especialmente, “[...] quando as opiniões aparecem em publico e com barulho [que provocam] [...]”, ao considerar que “[...] a Academia ‘não pode sancionar todas as opiniões’” (Gazeta de Notícias, 1881bGazeta de Notícias. (1881b, 02 de julho)., p. 2, grifo nosso).

Em outras palavras: “Em definitiva, a verdade n’esta questão é simples ‘que a respeito de opiniões professadas, ha um limite’, sempre o houve, deve havel-o e se o ha, deve ser ou aqui ou em parte nenhuma” (Gazeta de Notícias, 1881bGazeta de Notícias. (1881b, 02 de julho)., p. 2, grifo do autor). Para o bispo Dupanloup, com o acento de Veríssimo para o contexto da província, só “[...] póde ser admitido na Academia, posto que atheu, se se tiver a prudencia de não professar publicamente esta opinião” (Gazeta de Notícias, 1881bGazeta de Notícias. (1881b, 02 de julho)., p. 2, grifo nosso). Do acento, Veríssimo passou para a ‘crítica aberta’: “E’ de facto a doutrina da ‘hypocrisia official’, corrente na Igreja, depois que, em virtude da manifestação das idéas dissidentes principiada com a Reforma, se creou essa entidade hybrida que se chama a religião do Estado, a ‘crença official’” (Gazeta de Notícias, 1881bGazeta de Notícias. (1881b, 02 de julho)., p. 2, grifo nosso).

Ao evidenciar a ‘hypocrisia official’, Veríssimo lutava contra os ‘princípios reaccionarios’ e as ‘idéas retrógradas’ associadas à Igreja Católica. No contexto da província, os embates entre as forças da ‘tradição imperial’ e da ‘política científica’ foram marcados por duas baixas que delimitavam a ‘marginalização’ no acesso aos recursos políticos e burocráticos dos jovens representantes das ‘idéas modernas’: a demissão de Lauro Sodré como professor interino na cadeira de história e a reprovação de José Veríssimo para a cadeira de francês, ambos os cargos no Liceu Paraense. Estes constrangimentos sugeriam a dimensão de ‘decadência’ da política imperial, cujo combate era mediado por um ‘repertório’ que mobilizava argumentos científicos, ligados ao positivismo em particular e o cientificismo em geral, e valores laicos, associados à garantia de direitos civis e à secularização das instituições do Estado imperial.

Com efeito, o ano de 1881 foi um momento marcante na formação política e pedagógica de José Veríssimo. Neste contexto, convém salientar, Veríssimo era professor de francês no Collegio Americano, então estabelecimento de propriedade de Justus W. Nelson, missionário metodista no Pará. Aberta ao público desde janeiro, a partir de março a escola passou a publicar anúncios a procura de lente de francês nas páginas do Diário de Belém. Em abril, o nome de José Veríssimo aparecia como professor das disciplinas de francês, português e história nos prospectos de divulgação da escola. A partir de 1884, José Veríssimo e Justus W. Nelson dividiram a direção da escola, embora a parceria tenha sido efêmera - houve divergências sobre a inovações pedagógicas levadas a cabo por Veríssimo, como o ‘jardim de infância’ e a laicidade do ensino - tornando-se José Veríssimo seu proprietário entre 1884 e 1890 (Moraes, 2018Moraes, F. T. (2018). José Veríssimo (1857-1916), intelectual amazônico: geração 1870 e a educação no Grão-Pará (1877-1891) (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo. ). Portanto, tal experiência pedagógica no ensino particular na província habilitava-o para concorrer a cadeira de francês do Liceu Paraense.

Do ponto de vista da formação política, até então era um jovem jornalista integrante das hostes do Partido Liberal, que estava entrando em contato com o repertório da ‘política científica’, sobretudo o liberalismo e o positivismo desdobrados em um anticlericalismo militante. Em função deste ‘engajamento’, José Veríssimo sofreu a interdição dos mecanismos de ‘marginalização política’ ao ser desclassificado por suas ‘opiniões políticas’ no concurso da cadeira de francês do Liceu Paraense, “[...] classificação não lhes ‘qualificam o merito, punem-lhes’, quando muito, ‘as opiniões’” (Gazeta de Notícias, 1881c, p. 2), como havia noticiado o articulista do Gazeta de Noticias a respeito do boato de politicagem no concurso em questão - era o ‘saber do poder’ se manifestando, beneficiando uns, prejudicando outros em razão da ‘opinião política’. Não obstante, a discussão sobre o concurso ocupara também as páginas dos jornais O Liberal do Pará e A Constituição, respectivamente, representantes das posições liberais e conservadoras no interior do espectro político da província do Pará.

Na primeira página d’O Liberal do Pará, de 25 de agosto de 1881, também foi noticiado o ocorrido no concurso para a cadeira de francês do Liceu Paraense, ao comentar um artigo publicado no A Constituição, que abordava a nomeação do doutor João Antônio Luiz Coelho. A redação do A Constituição, ‘com um desassombro digno de inveja’, reprovava essa nomeação ao considerar que Egydio Duarte e Pinto Marques eram mais habilitados para o cargo.

Se o A Constituição apregoava indiscriminadamente essa argumentação, “[...] que se cifra em affirmar e não em provar [...]”, O Liberal do Pará recorria a cautela por avaliar que “[...] não é licito deixar correr mundo uma tal informação sem contra ella protestar em nome da justiça” (O Liberal do Pará, 1881a, p. 1); se o concurso estava marcado pela injustiça, esta não se restringia aos dois protegidos do A Constituição, relegando ao esquecimento os outros candidatos prejudicados, no caso, os senhores Cabral e José Veríssimo.

O redator d’O Liberal do Pará passou em revista o desempenho dos candidatos, perseguindo o seu ideal de justiça:

Confronte a ‘Constituição’ as provas destes dois candidatos [Egydio Duarte e Pinto Marques] e as do sr. Coelho, verá que em cada lhes é elle inferior, pois não teem maiores incorreções nem defeitos do que as do sr. Pinto Marques; quanto ao sr. Egydio, esse nem terminou a prova escripta, tão laborioso foi o parto que deu á luz aquella producção.

Vejamos como fallam e pronunciam fracez esses tres candidatos, apellamos para os que ouviram os examinandos; o sr. Pinto Marques falla bem francez não ha duvida, mas ou porque se demorasse mais tempo em França ou por maior facilidade nos órgãos vocaes, ninguém dirá em boa fé que o sr. Coelho não falla com maior elegância e pureza do que o sr. Pinto Marques.

Em grammatica o sr. Pinto Marques é na realidade forte, mas em nenhuma das perguntas que fez de grammatica franceza propriamente dita deixou de ser satisfeito por seu antagonista.

Mas assim como reconhecemos as habilitações referidas no sr. Pinto Marques, não podemos tambem deixar de reconhecer que na prova oral s.s. este longe de satisfazer, pois que o seu modo de expôr deixa muito a desejar.

Não podemos deixar de ainda mencionar que a surdez tão pronunciada do sr. Pinto Marques punha ainda o sr. Coelho acima delle perante a consciencia de um juiz recto.

Quanto ao sr. Egydio, não podendo sequer terminar a sua prova escripta, com péssima pronuncia, póde dizer-se que não falando francez, com maior numero de erros e incorreções, desde o primeiro dia vencido pelos seus contendores, e pois fóra de combate pela opinião publica, não podia ser escolhido nem pela congregação nem pela presidencia

(O Liberal do Pará, 1881aO Liberal do Pará. (1881a, 25 de agosto)., p. 1, grifo do autor).

Ao assumir o papel de guardião da justiça e da opinião pública, o redator procurou demonstrar que as críticas do A Constituição não tinham fundamento e apontaram que quem sofrera injustiça havia sido José Veríssimo e Cabral. Se o articulista do Gazeta de Notícias denunciava genericamente a politicagem no processo de avaliativo do concurso, o redator d’O Liberal do Pará indicava claramente os nomes e os interesses em disputa.

A injustiça da ‘Constituição’ é evidente, pois que diz q’ só estes dous candidatos poderião ser preferidos, quando ainda acima destes estão os srs. José Verissimo, e Cabral.

Se as censuras que a ‘Constituição’ dirigir ao sr. Dantas nunca passarem da alturas destas, pouco trabalho terá s. exc. em delas se justificar.

[...] e o redator da ‘Constituição’ se está compenetrado dos deveres de jornalista, deveria na questão do lyceu ser menos apaixonado pelo seu colega de redação o sr. Peres Duarte

(O Liberal do Pará, 1881aO Liberal do Pará. (1881a, 25 de agosto)., p. 1, grifo do autor).

Como ficou evidente, havia fortes interesses de Peres Duarte na aprovação de Egydio Duarte, uma vez que ambos eram irmãos. Provavelmente, Pinto Marques tenha entrado na reclamação de Peres Duarte para evitar, se fosse possível com tão evidente parentesco, o favorecimento mais direto a Egydio Duarte. Contudo, se existia o parentesco em jogo, a opinião política também estava em disputa, tendo em vista o fato de que os irmãos Duarte eram conservadores. No protesto de injustiça do A Constituição estavam equacionados a ‘segurança’ do parentesco e o ‘interesse’ da opinião política.

Por sua vez, como uma das partes interessadas e prejudicadas, a fim de averiguar o ocorrido durante o concurso no qual recebera a nota ‘R’, José Veríssimo entrou em contato com os membros da banca por correspondência. O senhor Henrique de La Rocque Junior, lente de alemão, e doutor Ignacio Justo Ribeiro, lente de latim, enviaram cartas - ambas publicadas - nas quais espontaneamente garantiam não ter dado aquela nota. Assim empenhava a palavra o professor de latim:

Tendo tido noticia de que v. queixava-se de ter sido eu o lente que lançar nota contra si o R, achei conveniente declarar-lhe pela presente que em nenhum dos candidatos d’este concurso lancei R; se houve algum R, partiu dos que tinha ‘interesse’ em inhabillital-o, juntamente o sr. Pinto Marques para maior ‘segurança’.

Peço que diga ao informante que tenha coragem bastante de sustentar em minha presença tal infamia.

Póde fazer o uso que lhe convier da presente carta

(Gazeta de Notícias, 1881dGazeta de Notícias. (1881d, 14 de agosto)., p. 2, grifo do autor).

Henrique de La Rocque também comprometia a palavra em carta a José Veríssimo, publicada no Gazeta de Notícias.

Pedindo-me em sua carta de hontem, só agora mesmo recebida, que com toda a lealdade e franquesa, declaro, se fui eu quem, por occasião do exame de francez, lançou na urna o R que o ihabilitou a classificação, respondo conscienciosamente e da melhor vontade: não, não fui eu, pois votei a seu favor lançando na urna um A.

Póde desta minha resposta fazer o uso que lhe convier [...]

(Gazeta de Notícias, 1881eGazeta de Notícias. (1881e, 17 de agosto)., p. 1).

Diante desta apuração, devidamente documentada, Veríssimo chegou a dois julgamentos:

Isto é um negocio muito serio, no qual é necessária a maior franqueza e a maior lealdade.

Tendo-me todos declarado que nenhum votou contra mim, só ha duas conclusões a tirar:

1ª. ou que eu fui victima de um engano;

2ª ou que quem quer foi que me reprovou tem tanta certeza de ter comettido uma injustiça que não só não se atreve a declaral-o, mas apresasse a negal-o. Em ambos os casos, julgo-me justificado e estou satisfeitissimo

(Gazeta de Notícias, 1881dGazeta de Notícias. (1881d, 14 de agosto)., p. 2).

A sua questão era investigar quem havia conscientemente lhe prejudicado no concurso, pois quem cometeu uma injustiça proposital nada mais era do que um patife: “O meu fim n’esta questão - que está longe de terminar - é provar que quem quer que foi que me reprovou errou com consciencia de que errava cometeu uma injustiça com certeza de que a commettia, é portanto ‘um patife’” (Gazeta de Notícias, 1881eGazeta de Notícias. (1881e, 17 de agosto)., p. 1, grifo nosso). Portanto, ‘Descobrir um patife’ era a contribuição deste escrutínio público, “[...] é um serviço que eu me orgulharei de ter prestado a sociedade paraense” (Gazeta de Notícias, 1881eGazeta de Notícias. (1881e, 17 de agosto)., p. 1).

O concurso para professor no Liceu Paraense era uma das arenas do debate político. A única instituição pública de ensino secundário da província tornara-se responsável a um só tempo pela formação dos novos quadros da elite intelectual e política e pela legitimação daqueles que ingressavam no seu corpo docente. O Liceu emergiu como um espaço de reprodução e consagração da elite política e intelectual na província. Por isso, o cargo de professor do Liceu Paraense era bastante cobiçado e disputado (França, 1997França, M. P. S. S. A. (1997). Raízes históricas do ensino secundário público na Província do Grão-Pará: o Liceu Paraense (1840-1889) (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.).

A politicagem integrava os critérios avaliativos nos concursos das cadeiras da instituição, como nos faz crer o articulista do Gazeta de Notícias ao apontar que era ‘escoimado de paixão’ os exames de provimento; ao mesmo tempo que o corpo docente estava muito mais inclinado à interdição das ‘opiniões políticas’ do que no julgamento dos ‘méritos intelectuais’ dos candidatos. Reprovavam-se alguns candidatos para o ‘interesse’ e a ‘segurança’ de quem já estava prometida a vaga, o ‘candidato oficial’ - o beneficiário do ‘saber do poder’.

Este exercício de interdição profissional era realizado em função de critérios políticos. José Veríssimo não tinha seus conhecimentos da língua francesa julgados em seu mérito, pois o que estava sendo avaliado eram as suas opiniões políticas associadas à ‘política científica’. Situação semelhante ocorreu com Lauro Sodré, que ocupava a cadeira de lente interino de história no Liceu Paraense.

Em 1881, a controvérsia entre o jovem 2º tenente, Lauro Sodré, e o insigne bispo, dom Macedo Costa, agitaram as paixões políticas nas páginas do A Boa Nova e A Província do Pará. Em nota retrospectiva, de 1896, na republicação dos seus textos jornalísticos, sob o título A philosophia positiva, Lauro Sodré esclarecia as causas da querela. Suas colaborações em revistas acadêmicas e no jornal A Província do Pará, órgãos da imprensa que defendiam o “[...] dogma da emancipação da consciência [...]”, foram consideradas uma “[...] audaciosa heresia no seio da sociedade catholica paraense” (Sodré, 1997, p. 247).

Nesta época, Lauro Sodré era lente interino da cadeira de história no Liceu Paraense, e, após “[...] as maldições e os protestos das consciencias ‘indignadas’ [...]” (Sodré, 1997, p. 247), orquestradas pela redação do jornal A Boa Nova, foi ao cabo de alguns dias destituído do cargo. Segundo Sodré, aqueles eram tempos da ‘intolerancia philosophica’, impresso, nestes termos, pelos piedosos tipos do jornal católico.

Não queremos já allegar a nossa qualidade de christãos, de catholicos; fossemos nós um povo musulmano, budhista etc. não era possivel ‘tolerar’ que se nomeasse professor, guia e instituidor da mocidade um atheu publico, notório como este, e no mesmo momento em que elle está fazendo escandalosissimo alarde do seu atheismo, do seu materialismo o mais brutal (Sodré, 1997Sodré, L. (1997). Crenças e opiniões (Edição fac-similar). Brasília, DF: Editora do Senado Federal. Originalmente publicado em 1896., p. 247, grifo do autor).

Nos dias 17 e 18 de agosto de 1881, a redação da A Província do Pará, com os artigos O ensino official e os livres pensadores, empenhava-se na defesa do militar republicano em réplica a “[...] exagerada intolerancia pregada pela folha catholica”. A defesa do positivismo contra o catolicismo, realizado por Lauro Sodré, ocorrera neste contexto de perseguição profissional por razões políticas.

Ambos, José Veríssimo e Lauro Sodré, tiveram o seu acesso interrompido à instituição, evitando, assim, a segurança material e o reconhecimento profissional, pois defendiam a laicização das instituições civis do Estado, sendo bastante anticlericais na crítica do padroado Estado-igreja - não obstante, por essas críticas eram considerados ‘ateus’ numa sociedade profundamente católica.

Tais interdições e constrangimentos foram impondo a estes jovens intelectuais o sentimento de ‘decadência’ das instituições imperiais e de ‘marginalização’ profissional e política. Sua militância política contestava às instituições imperiais, principalmente a centralização política e a aliança Estado e igreja, ao mesmo tempo que indicavam a federação e a secularização como saídas para uma ‘civilização federativa’ e ‘laica’ na Amazônia. No interior desta militância, a ‘instrução pública’ destacou-se como forma de intervenção política: assim emergia a iniciativa da Sociedade Paraense Promotora da Instrução.

Embora tenha tido uma vida efêmera - como parte considerável das associações, clubes, sociedades e revistas voltadas para o debate político - considero que a Sociedade foi um espaço formativo para os contatos iniciais de José Veríssimo com a discussão educacional. A proposta da Sociedade era promover meetings e conferências periódicas a respeito de temas relevantes no âmbito educacional. Acreditava-se no poder da ‘propaganda’ e da ‘difusão’, visando ao mesmo tempo atualizar a sociedade paraense a respeito das ‘idéas modernas’ e desenvolver uma ‘opinião pública’ ilustrada.

‘Saber é poder’: o ‘engajamento’ na sociedade paraense promotora da instrução

Com o convite feito por José Veríssimo à ilustre sociedade paraense, nas páginas d’O Liberal do Pará, às 10 horas de 13 de maio de 1883, foi fundada a Sociedade com o discurso do seu presidente, conselheiro Tito Franco de Almeida, no salão nobre da Assembléa Paraense.

“Senhoras e Senhores - Orgão da ‘Sociedade Paraense Promotora da Instrucção’ cabe-me a honra de inaugural-a. Qual o pensamento que a alimenta, quaes as esperanças que afaga, os meios de acção que acaricia, os resultados que deseja?” (Revista Amazônica, 1883a, p. 94, grifo do autor). Com estas palavras introdutórias, o conselheiro Tito Franco de Almeida procurava articular questões programáticas com uma premissa: ‘Saber é poder’, isto é, “Queremos espalhar -a mãos cheias - a ‘instrucção’, que é o grande instrumento do ‘triunfo benefico da civilisação’” (Revista Amazônica, 1883a, p. 94, grifo nosso). Portanto, o programa de ação política da agremiação consistia na ‘difusão da instrução’, cuja palavra de ordem era ‘Saber é poder’.

Na argumentação da conferência, o conselheiro Tito Franco de Almeida creditava ao século XIX o advento da sociedade democrática, sendo uma das suas maiores demonstrações a ‘creação d’escolas’: “[...] pedra angular do magnifico edifício dos amigos sinceros da humanidade, operarios efficases, embora modestos e desinteressados, de todas as glorias futuras” (Revista Amazônica, 1883a, p. 94). Porém reconhecia que a igreja e os padres haviam ocupado, e ainda ocupavam, essa ‘missão’ de propagar o ensino, cada paróquia tinha uma escola, cada catedral tinha uma biblioteca.

Assim, o presidente da Sociedade apresentava dois princípios novos para a difusão da instrução. Por um lado, ao mesmo tempo que se aperfeiçoava a inteligência ensinando a ler Virgílio, a conhecer os deuses de Ovídio, a traduzir os sonhos de Platão, era necessário o acompanhamento de um ‘ensino prático’ das escolas industriais. Por outro, defendia a ilimitada ‘liberdade de ensino’ de fundar e dirigir institutos de instrução e educação, por representar uma garantia de direito civil entre as distintas expressões de fé.

“Cumpre obedecer á verdade histórica [...]”, por meio da retomada destes antecedentes, porque forneciam elementos preciosos para compreender o presente: “Estamos na época das grandes reformas, n’um século revolucionario. Reformemos, não para peior que seria retrogradar; destruamos os catellos e os reductos da ‘ignorancia’, levantando ‘monumentos á sciencia’, porque - destruir sem construir - seria demolir [...]”, pois recorrer a história era manter-se atualizado como “Filhos deste século, assombroso pelo progresso em todos os ramos de conhecimentos humanos, reputamos dogma fundamental a ‘liberdade para todos’, até para os seus próprios inimigos” (Revista Amazônica, 1883aRevista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. , p. 96, grifo nosso).

Ao caracterizar o movimento intelectual do seu tempo, ao posicionar-se no contexto de transformações do século XIX, a agremiação ratificava o seu programa político-educativo: “A ‘Sociedade Paraense Promotora da Instrucção’ promete o ensino leigo ou civil, porque só devíamos offerecer o que sabemos e podemos ensinar [...]”; ou seja, era imprescindível ensinar com ardor e rapidez dos progressos científicos, “Ensinemos, pois, com o ardor de reformistas, e com a rapidez de revolucionarios” (Revista Amazônica, 1883aRevista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. , p. 96, grifo do autor).

Contudo, a marcha dos progressos científicos tinha um freio bem conhecido: a ignorância. Segundo o conferencista-presidente, o monopólio da instrução pública nas mãos do Estado (indo do ensino superior ao ensino primário) sustentava a indiferença e a impotência de espírito; o governo imperial barrava o espírito de associação e de iniciativa particular: “Carrega o Estado o peso de um fardo com que não póde. Tudo querendo inspirar, prever, fazer, tornar-se responsável por tudo que não póde, porque tem impedido a iniciativa particular ou de associação” (Revista Amazônica, 1883aRevista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. , p. 96).

Para embasar seu argumento em defesa da iniciativa privada na educação, o conselheiro Tito Franco de Almeida mencionava o caso dos Estados Unidos. Enquanto os cidadãos estadunidenses depositavam seus dólares diretamente nas escolas, “[...] nós brazileiros abandonamos esse encargo ao Estado, cujos orçamentos são tão parcos”; associava, deste modo, a iniciativa particular com “[...] o fundamento real da civilisação da pátria, da sua riqueza, prosperidade e poder” (Revista Amazônica, 1883aRevista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. , p. 97).

Somado a iniciativa particular, como uma forma de desenvolver o espírito de associação, tornava-se essencial a promoção de um ensino mais ‘prático’ e ‘dinâmico’, cujo resultado fosse provocar a curiosidade e o desejo de conhecer na juventude. Todavia, ressaltava que o espírito de associação não consistia em uma exclusividade da mocidade, ao agir por meio do ensino abarcaria amplos segmentos da sociedade civil.

Do ponto de vista político, na apologia à iniciativa particular como promotora da educação e na defesa dos métodos ativos e práticos no ensino, o discurso do conselheiro Tito Franco de Almeida filiava a Sociedade as premissas do liberalismo: a instrução deve romper os diques da ignorância, levando as luzes da civilização a todos. Por isso, a ênfase nas conferências periódicas difundido o ‘esclarecimento’ à sociedade paraense.

Com a ação político-educativa baseada na ‘difusão’ e ‘propaganda’ da instrução como princípio civilizatório, a Sociedade lançava mão de um circuito de atividades práticas: a) ‘as leituras e conferencias’: “[...] além da instrução que derramam, [...] aproximam todas as classes, o rico e o pobre, o forte e o fraco, os sexos, emfim, approximação que forma laços de serviços mútuos, de protecção reciproca, de amizades, muitas vezes, eternas [...]”, tendo em vista ainda o seu emprego em “[...] grandes centros de luzes, como Paris e Londres, Berlim e Munich, Gand e Boston etc.”; b) ‘as bibliotecas’: “[...] que constituem a necessidade ardente de quantos não dispõem de meios para instruir-se, e das horas certas dos cursos, leituras e conferencias”; c) ‘o museu e as exposições’: “[...] porque a vista é o melhor auxiliar da intelligencia”; d) ‘a revista periodica’: “[...] é o grande vehiculo do ensino universal, a magnifica locomotiva da civilisação moderna” (Revista Amazônica, 1883aRevista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. , p. 97).

“Vê-se bem quanto é modesta a nossa pretenção social: - ‘ensinar o que todos devem saber’” (Revista Amazônica, 1883a, p. 97, grifo do autor). Com esta pretensão, à guisa de conclusão da conferência, o presidente da Sociedade ponderava que duas questões - uma no presente e a outra no futuro - se estabeleciam com a existência da agremiação: a primeira evidenciava-se na ‘vontade de trabalhar’, de cumprir o programa político-educativo exposto na conferência; a segunda, animada pelos empenhos e compromissos firmados, “[...] é [era] a do sucesso coroando a grande ambição dos verdadeiros amigos da humanidade” (Revista Amazônica, 1883aRevista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. , p. 97).

No programa político-educativo da Sociedade, a instrução pública convertia-se em um instrumento civilizatório de combate a ignorância e de construção dos monumentos à ciência, por meio da máxima ‘difusão’ e ‘propaganda’ das manifestações do espírito humano. Ao mesmo tempo que a iniciativa particular era considerada o caminho mais seguro de erigir a civilização, o ensino prático e dinâmico era o método mais profícuo para atingir todas as idades e classes sociais. Um circuito de atividades político-culturais, desenvolvidas no seio da sociedade civil paraense, era apresentado como forma de derramar as luzes da instrução. Da conferência e leitura pública às bibliotecas, dos museus e exposições à revista periódica: uma diversidade de práticas educativas convergia para ‘ensinar o que todos devem saber’; um programa político-educativo que acumulava esforços para concretizar a palavra de ordem, ‘Saber é poder’.

Com esta exposição de motivos devidamente noticiada à sociedade paraense, a primeira conferência foi realizada sob o título O método intuitivo Froebel para a educação da primeira infância por Domingos J. B. de Almeida, em 27 de maio de 1883, e publicada na edição de maio da Revista Amazonica, com o título modificado ‘A educação da infancia’.

N’O Liberal do Pará um breve anúncio convocava os ‘amantes da civilisação e do progresso’, às 11 horas, no salão do Grêmio Literário Português, a assistir a primeira conferência da Sociedade Paraense Promotora da Instrução, proferida por Domingos d’Almeida.

A tribuna será occupada pelo sr. dr. Domingos J. B. de Almeida, que tomará por thema o ‘Methodo intuitivo de Froebel’, dedicado a instrucção da infancia.

S. s. não só desenvolverá com a pericia e illustração que possue as vantagens resultantes desse methodo na propagação da instrucção da mocidade, como tambem comprovará com mappas e desenhos os excellentes resultados por elle obtidos.

Tratando-se de uma festa da intelligencia, de que devem brotar os mais proveitosos e sasonados fructos, nós apellamos para os amantes do progresso e da civilisação, rogando-lhes não se recusem de concorrer áquella conferencia, contribuindo assim para que a semente espalhada pela Sociedade promotora da instrucção entre nós, produsa quanto d’ella devemos esperar

(O Liberal do Pará, 1883c,O Liberal do Pará. (1883c, 27 de maio). p. 2, grifo do autor).

As descobertas científicas e os progressos do conhecimento no século XIX, assegurava o conferencista, estavam combinados a dois eventos capitais da história da humanidade. Enquanto a descoberta do método experimental por Francisco Bacon foi responsável pelo progresso nas ciências, a Revolução Francesa promoveu a emancipação dos povos, possibilitando à humanidade usufruir da liberdade.

O exercício da liberdade e a utilização da ciência moderna permitiram, com uma celeridade nunca antes vista, a emergência das descobertas científicas, artísticas, industriais e agrícolas; mas a mesma agilidade não era observada na educação do homem, cujo caminhar era moroso e tardio: “Qual será a causa? E’ que se tem cuidado mais da ‘instrucção’ que da ‘educação’, no entanto póde a educação, rigorosamente fallando suprir a instrucção, mas a instrucção só por si não suprirá a educação” (Revista Amazônica, 1883aRevista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. , p. 108, grifo nosso).

A distinção entre ‘instrução’ e ‘educação’ era um dos argumentos estruturantes da palestra. O conferencista afirmava: o progresso do mundo social dependia da articulação de três fatores, a saber, as dimensões físicas, morais e intelectuais do engenho humano. Havia uma associação exclusiva entre instrução e intelecto. Por sua vez, a educação desenvolvia a formação integral (física, moral e intelectual) do homem. Despontava, portanto, desta desarticulação entre instrução e educação, respectivamente, os ‘homens scientificos’ em detrimento dos ‘homens praticos’.

No avançar da conferência, Domingos d’Almeida procurava dar vida a definição teórica ao elencar exemplos práticos. A habilidade nas artes, nos ofícios, na indústria e na agricultura eram características dos ‘homens praticos’. Pelo excessivo conhecimento teórico, os ‘homens scientificos’ estavam materializados na figura dos bacharéis: “[...] Os bachareis tudo avassalam, tudo sophismam, são o peior dos cancros da França [...]”, (Revista Amazônica, 1883aRevista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. , p. 109) ao citar Alphonse Karr, assegurava o conferencista, semelhante mal atingia o Brasil.

Ainda na senda dos exemplos concretos, o palestrante indicou às iniciativas de ‘brazileiros notaveis’, que recomendavam uma profunda reforma ao assinalar os problemas da instrução do Império. Em primeiro lugar, Domingos d’Almeida citava uma conferência sua autoria realizada na Escola da Glória, em 24 de outubro de 1880, sobre a educação e jardins de infância, na qual indicava ações e propostas que logravam superar a carência de educação na infância. Em segundo lugar apontou o decreto de 19 de abril de 1879, do conselheiro Leôncio de Carvalho, que autorizava a fundação de ‘jardins de crianças’ em todos os distritos do município neutro.

Em seguida descreveu que Menezes de Vieira havia anexado ao seu colégio um ‘jardim de crianças’ administrado por sua esposa, conforme as diretrizes do método intuitivo de Froebel. Por fim, destacou que na Escola Normal, sob a responsabilidade do professor Zaluar, ministrava-se a disciplina do ‘ensino prático das coisas’, também conhecida por ‘lições de coisas’. Todas estas iniciativas e esforços, conforme o conferencista, apenas evidenciavam a lacuna existente na educação da infância brasileira.

Sob o influxo da distinção e dos exemplos levantados, a título de diagnóstico, Domingos d’Almeida apresentava a sua proposta de intervenção político-educativa, o segundo argumento da conferência: a educação da infância era a base da sociedade civilizada; o sustentáculo da formação dos homens, cidadãos e pais; a pedra angular do engendramento de mulheres, mães e esposas.

A educação da infancia é a base fundamental, de que depende a civilisação e o progresso dos povos. Sem ella, nem sempre ou difficilmente, a instrucção chega a produzir os fructos anhellados, porque a creança póde estar já eivada, física e moralmente, de vicios e defeitos irremediaveis

(Revista Amazônica, 1883aRevista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. , p. 110).

Ao mesmo tempo que a infância ocupava as nossas reminiscências saudosas, ela poderia transformar-se na origem dos males e dos vícios causados pela falta de educação. Enquanto a instrução desenvolvia exclusivamente a inteligência, seus benefícios não conseguiam isoladamente ultrapassar as tendências ruins da má índole e dos maus hábitos obtidos pelo ‘organismo’ nos primeiros sete anos de vida.

Nas considerações finais da conferência, a partir de duas citações, uma do próprio conferencista e outra de Friedrich Froebel, os argumentos expostos foram amarrados na ideia de ‘jardim de infância’ como ‘educação integral da criança’. Primeiro, ao utilizar uma metáfora biológica, Domingo d’Almeida convertia as crianças em plantas que necessitavam de cultivo, que precisavam de cultura.

A creança é como as plantas mimosas dos jardins, que não chegam a florescer e fenecem logo ao brotar da terra, ainda que lhes deem agua, ar e luz, si as não livram a miudo das outras plantas damninhas que lhes sugam a seiva e as murcham, e dos vermes que as corroem e mattam.

(Revista Amazônica, 1883a, p. 110Revista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. ).

Depois, o conferencista transcreve um trecho de L’Educacion de l’homme, de Froebel.

Não se prestando todos os cuidados em desenvolver o homem nas primeiras phases da vida, trava-se para mais tarde a marcha da educação; este esquecimento, esta negligencia muito vulgar, é as mais das vezes para o homem a causa deplorável que o desvia do alvo a que visavam as suas faculdades e as suas aspirações. Que as diferentes idades formem uma cadeia (no que toda a educação) successiva e não interrompida

(Revista Amazônica, 1883aRevista Amazônica. (1883a, maio). Ano I, Tomo I, (3), 94-97. , p. 110).

Para Domingos d’Almeida, a educação da infância consistia no fundamento de uma sociedade próspera e civilizada; o desenvolvimento infantil não deveria ficar restrito ao intelecto, formando-se limitados ‘bacharéis’ detentores tão somente de conhecimentos abstratos. Sua proposta político-educativa estabelecia um equilíbrio entre instrução e educação, ao fomentar o crescimento em proporções equivalentes da capacidade intelectual, da sensibilidade moral e da habilidade física. A educação conciliava o ‘homem scientifico’ com o ‘homem pratico’.

A conferência inaugural do conselheiro Tito Franco de Almeida e a palestra de Domingos d’Almeida apresentaram o programa político-educativo da Sociedade. Em resumo: a conferência de abertura ressaltava que ‘Saber é poder’, sendo necessário envidar todos os meios e esforços para propagar as luzes da instrução; tal empenho reconhecia na infância o alicerce de uma sociedade civilizada, o caminho para o progresso estava assegurado na formação integral das faculdades humanas.

Em julho de 1883, José Veríssimo proferiu a conferência O Movimento Intellectual Brazileiro - nos ultimos dez annos. Seu objetivo era expor “[...] o formidavel movimento intellectual que agita todo o mundo civilisado” (Revista Amazônica, 1883bRevista Amazônica. (1883b, julho). Ano I, Tomo I, (5), 167-177. , p. 167). Tal movimento estruturava-se nas descobertas da ciência positiva, superando a especulação teológica e o idealismo vago; a Europa era considerada um ‘laboratorio immenso’ que providenciava ao mundo inteiro os sistemas filosóficos, as teorias científicas, as ideias literárias e as criações artísticas.

Ao utilizar a obra do ‘sr. dr. Sylvio Romero’ como referência - nomeadamente, A filosofia no Brasil -, José Veríssimo demarcava que esse movimento de renovação intelectual no Brasil iniciara em 1873. Até esse momento, a vida intelectual brasileira estava circunscrita aos trabalhos de erudição histórica e jurídica e “[...] suffocada na córte do imperio pela idolatria romantica” (Revista Amazônica, 1883Revista Amazônica. (1883b, julho). Ano I, Tomo I, (5), 167-177. b, p. 168): “Em uma palavra, desde a independencia até 1873, não ha, não conheço ao menos, a não ser talvez a Flora fluminense de Velloso, um único trabalho de valor da sciencia brazileira” (Revista Amazônica, 1883bRevista Amazônica. (1883b, julho). Ano I, Tomo I, (5), 167-177. , p. 168)

Três ‘causas geradoras’, de acordo com o conferencista, eram responsáveis pela renovação intelectual no país: a Guerra do Paraguai, o Movimento Republicano de 1870 e a Questão Religiosa. O elemento comum destas causas foi o despertar da ‘consciência nacional’. Ao averiguar este despertar, Veríssimo registrou as manifestações dignas de nota na filosofia, na literatura (romance, poesia e teatro) e nas ciências naturais. Apontava também sob o influxo renovador a reforma do Colégio Pedro II, a criação da Escola Politécnica, a partir da Escola Central, a fundação da Escola de Minas de Ouro Preto - estas últimas, instituições mais dedicadas ao ensino das ciências físicas, matemáticas e naturais. Em ato contínuo, arrolava ainda a reforma do Museu Nacional e da sua revista Archivos; a publicação da revista Ensaios de Sciencia, dedicada aos estudos das línguas indígenas e as ciências da linguagem; e os Annaes da Biblioteca Nacional.

“Ao mesmo tempo nas provincias, dava-se igual movimento de espíritos” (Revista Amazônica, 1883bRevista Amazônica. (1883b, julho). Ano I, Tomo I, (5), 167-177. , p. 174), assim, Veríssimo inventariava um catálogo de obras relevantes - da filosofia à história - produzidas em Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Sul e São Paulo. Distinguia também eminentes representantes das ‘modernas tendencias do intellecto brazileiro’, nas ciências, na história, na crítica literária, na literatura, ao mencionar Machado de Assis, Sílvio Romero, Araripe Júnior, Escragnolle Taunay, Franklin Távora, dentre outros. Por fim, encerrava a conferência com um voto: “[...] o de que o Pará não fique fora desse movimento, e compreenda que para a gloria e a honra, e para a propria felicidade material, de um povo, ‘não basta produzir borracha’” (Revista Amazônica, 1883bRevista Amazônica. (1883b, julho). Ano I, Tomo I, (5), 167-177. , p. 177, grifo do autor).

José Veríssimo corroborava com o programa político-educativo da Sociedade, ao traçar um histórico do movimento intelectual, científico e artístico na Corte e nas províncias, procurava ‘difundir’ as principais formas de manifestação da ‘ciência positiva’ no cenário brasileiro. Deste modo colaborava para a formação da opinião na sociedade paraense em favor das ‘idéas modernas’, nesse intento urgia que a província acompanhasse o ‘movimento de espíritos’, pois o progresso e a civilização não se restringiam a ‘produzir borracha’.

Considerações finais

Nas reflexões finais deste artigo, pretendo apontar a relevância interpretativa que as experiências de ‘marginalização’ no concurso do Liceu Paraense e de ‘engajamento’ na Sociedade possibilitam para entender a trajetória pedagógica de José Veríssimo, no Pará. Pois é necessário colocar essa trajetória no ‘contexto histórico’ e no ‘processo político’. No contexto de modernização econômica encaminhado pela abertura do rio Amazonas a navegação internacional e pela exportação de borracha ao mercado internacional. Assim como no processo político de polarização entre ‘tradição imperial’ e ‘política científica’ no contexto do Segundo Reinado, a partir da emergência do movimento político-intelectual da ‘Geração 1870’. Assim, na Província do Pará, a experiência educativa de José Veríssimo incorporou o repertório da política científica - essa ‘dimensão política’ é fundamental para compreender essa trajetória em dois movimentos (Moraes, 2018Moraes, F. T. (2018). José Veríssimo (1857-1916), intelectual amazônico: geração 1870 e a educação no Grão-Pará (1877-1891) (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo. ).

Em primeiro lugar, na passagem da ‘difusão’ à ‘prática educativa’, da Sociedade Paraense Promotora da Instrução (1883-1884) ao Collegio Americano (1884-1890); da tribuna pública de divulgação ao laboratório privado de experimentação: considera-se a Sociedade como prática político-cultural de contestação do status quo imperial do ponto de vista educacional e a ‘escola’ enquanto uma instituição de ‘organização da cultura’, ao selecionar e legitimar saberes educativos ‘modernos’ para a mocidade paraense. Em segundo lugar, o A educação nacional (1890) é considerado uma síntese teórica derivada da prática pedagógica de José Veríssimo no Collegio Americano; ao mesmo tempo sublinha-se que essa reflexão teórica foi incorporada pela ‘política pública’ educacional do Estado republicano em construção, a partir da gestão de José Veríssimo como diretor da Instrução Pública (1889-1890).

Com efeito, a concepção de educação do Collegio Americano partia dos pressupostos da ‘educação integral da infância’ e da distinção entre ‘educação e instrução’, ficando evidente as contribuições da Sociedade na passagem da ‘difusão’ à ‘prática educativa’. As ‘experiências’ no concurso para a cadeira de francês no Liceu Paraense e na Sociedade permitiram a José Veríssimo conhecer a interdição profissional e a militância político-cultural como sendo as duas facetas do ‘saber do poder’ e do ‘saber é poder’. Neste contexto, emergiu o projeto educativo do Collegio Americano sob a direção de José Veríssimo, a partir do influxo da ‘marginalização’ e do ‘engajamento’. Portanto, reitero, a procura pelos ‘patifes’ que lhe prejudicaram no concurso e o papel de secretário/conferencista da Sociedade não consistiram em eventos marginais na trajetória educativa de José Veríssimo, uma vez que representaram os seus primeiros contatos com o ‘fazer-se político’ (Thompson, 1981Thompson, E. P. (1981). O termo ausente: experiência. In E. P. Thompson. A miséria da teoria ou um planetário de erros (p. 180-200). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , 1987Thompson, E. P. (1987). A formação da classe operária inglesa (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra. ) na conjuntura de contestação das instituições imperiais na província do Pará.

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  • 2
    nota: Este artigo é uma versão modificada do quinto capítulo da tese de doutorado José Veríssimo (1857-1916), intelectual amazônico: Geração 1870 e a educação no Grão-Pará (1877-1891), defendida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
  • 3
    Como citar este artigo: Moraes, F. T. de. ‘Saber é poder’ e o saber do poder: José Veríssimo (1857-1916) entre a ‘marginalização’ e o ‘engajamento’educativo na província do pará (1881-1884). (2020). Revista Brasileira de História da Educação, 20. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v20.2020.e117

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2019
  • Aceito
    28 Maio 2020
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