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A cultura escolar democrática no Colégio Universitário da UFMA (1980-1995)

Democratic school culture at UFMA's University College (1980-1995)

La cultura escolar democrática en el Colegio Universitario de la UFMA (1980-1995)

Resumo:

Aborda-se o conjunto de práticas e representações culturais do Colégio Universitário da Universidade Federal do Maranhão (1980 a 1995), e a materialização da cultura escolar democrática via práticas escolares. Avaliam-se práticas educativas, pedagógicas e culturais que transformadas em rituais escolares denunciam a gramática escolar e sua identidade como Colégio de Aplicação. Utilizam-se pressupostos teórico-metodológicos da história cultural para cruzar dados extraídos de jornais, dispositivos legais, arquivo escolar e entrevistas. Concluiu-se que a integração política entre modos de conhecimento e exercício do poder mediada por táticas de apropriação na busca do sucesso escolar aponta o COLUN como instrumento de inserção/ascensão social num processo de emancipação contínua via educação.

Palavras-chave:
Colégio Universitário; cultura escolar; práticas escolares democráticas

Abstract:

The set of practices and cultural representations of the University College of the Federal University of Maranhão (1980 to 1995) and the materialization of the democratic school culture through school practices are addressed. Educational, pedagogical and cultural practices that are transformed into school rituals denounce school grammar and its identity as in Application College. Theoretical and methodological assumptions of cultural history are used to cross-check data extracted from newspapers, legal provisions, school archives and interviews. It was concluded that the political integration between modes of knowledge and the exercise of power mediated by appropriation tactics in the search for school success point to COLUN as an instrument of social insertion / ascension in a process of emancipation continues through education.

Keywords:
University College; school culture; democratic school practices

Resumen: Se aborda el conjunto de prácticas y representaciones culturais del Colegio Universitario de la Universidad Federal de Maranhão (1980 a 1995) y la materialización de la cultura escolar democrática vía prácticas escolares. Se avalian prácticas educativas, pedagógicas y culturales que transformadas en rituales escolares denuncian la gramática escolar y su identidad como Colegio de Aplicación. Se utilizan fundamentos teórico-metodológicos de la historia cultural para cruzar datos extraidos de periódicos, legislaciones, archivo escolar y entrevistas. Se concluye que la integração política entre modos de conocimiento y el ejercicio del poder mediada por tácticas de apropiación en la busca del éxito escolar, apuntam el COLUN como instrumento de inserción/ascenso social en un proceso de emancipación continua vía educación.

Palabras clave:
Colegio Universitario; cultura escolar; prácticas escolares democráticas


Introdução

A criação de instituições escolares vinculadas a universidades federais brasileiras remonta ao Decreto-lei nº 9.053Decreto-lei nº 9.053, de 12 de março de 1946. (1946). Cria um ginásio de Aplicação nas Faculdades de Filosofia do país. Rio de Janeiro, RJ: Imprensa Nacional. , de 12 de março de 1946, pelo qual “[...] as Faculdades de Filosofia Federais, reconhecidas ou autorizadas a funcionar no território nacional, fica[ria]m obrigadas a manter um ginásio destinado à prática docente dos alunos matriculados no curso de Didática” (Decreto-lei nº 9.053, 1946Decreto-lei nº 9.053, de 12 de março de 1946. (1946). Cria um ginásio de Aplicação nas Faculdades de Filosofia do país. Rio de Janeiro, RJ: Imprensa Nacional. , p. 520); ideia reforçada duas semanas depois, pelo Decreto-lei nº 9.092Decreto-Lei nº 9.092, de 26 de março de 1946. (1946). Amplia o regime didático das Faculdades de Filosofia e dá outras providências. Rio de Janeiro, RJ: Imprensa Nacional . , de 26 de março de 1946, que estabelece como condição para a obtenção do diploma de licenciado, que “[...] os alunos do quarto ano [receberiam] formação didática, teórica e prática, no ginásio de aplicação e [seriam] obrigados a um curso de psicologia aplicada à educação” (Decreto-lei nº 9.092, 1946Decreto-Lei nº 9.092, de 26 de março de 1946. (1946). Amplia o regime didático das Faculdades de Filosofia e dá outras providências. Rio de Janeiro, RJ: Imprensa Nacional . , p. 548). Esta ideia se materializa a partir de 1948, com o funcionamento do Colégio de Aplicação da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), seguindo-se à abertura de instituições congêneres em outros Estados da federação: Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco etc.

O Colégio Universitário surge em 1968, na Fundação Universidade do Maranhão - criada em 1966. Estabelecimento de ensino destinado a ofertar apenas o terceiro ano do então ensino médio, sustentando-se sua implantação no artigo 46, parágrafo 2°, da Lei nº 4.024Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. (1961). Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: Imprensa Nacional. , de 20 de dezembro de 1961, das diretrizes e bases da educação nacional, que exige a organização da “[...] terceira série do ciclo colegial [...] com currículo diversificado que vise ao preparo dos alunos para os cursos superiores [...] podendo ser ministrada em Colégios Universitários” (Lei nº 4.024, 1961Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. (1961). Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: Imprensa Nacional. , p. 57); garantindo-se no artigo 79 da mesma lei, que:

A universidade pode instituir Colégios Universitários destinados a ministrar o ensino da 3ª (terceira) série do ciclo colegial [e] Colégios Técnicos Universitários quando nela exista curso superior em que sejam desenvolvidos os mesmos estudos. Nos concursos de habilitação não se fará qualquer distinção entre esses colégios e os que provenham de outros estabelecimentos de ensino médio (Lei nº 4.024, 1961, p. 60-61).

Em 1972, no contexto da Lei nº 5.692Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. (1971). Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2° graus, e dá outras providências. Brasília, DF: Imprensa Nacional . , de 11 de agosto de 1971 - que trazia como novas diretrizes para a educação básica, a ampliação da escolaridade obrigatória de quatro para oito anos (1º grau) e o estabelecimento de um segundo grau de três anos com viés profissionalizante -, o Colégio Universitário foi transformado regimentalmente em Colégio de Aplicação da referida universidade, devendo ser campo de estágio para os professores em formação (Colégio Universitário [COLUN], 1972Colégio Universitário [COLUN]. (1972). Regimento interno do Colégio Universitário. ). Dadas as deficiências orçamentárias da instituição, a pálida relação entre o ensino superior e a educação básica, e a urgente renovação pedagógica das escolas públicas e privadas, a Secretaria Estadual de Educação e a Universidade Federal do Maranhão assinaram convênio em 1980, no sentido de instalar o Colégio Universitário em uma obra recém-construída pelo governo do Maranhão em parceria com a Agência dos Estados Unidos para o desenvolvimento internacional (USAID), com vistas à modernização do ensino de primeiro e segundo graus. A referida obra, localizada na periferia de São Luís (Vila Palmeira), tornou-se a sede do colégio de aplicação da Universidade Federal do Maranhão, estabelecendo-se assim diversas relações de poder entre agentes da universidade, da comunidade e do colégio que forjaram a cultura escolar específica da instituição.

Neste artigo, aborda-se o conjunto de práticas e representações culturais (Chartier, 1988Chartier, R. (1988). História cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand-Brasil.) do Colégio Universitário da Universidade Federal do Maranhão (1980 a 1995), e a materialização da cultura escolar democrática via práticas escolares; avaliando-se as práticas educativas, pedagógicas e culturais que, transformadas em rituais escolares, denunciam a gramática escolar e sua identidade como Colégio de Aplicação. Para tanto, utilizam-se dados extraídos de jornais consultados no acervo da Biblioteca Pública Benedito Leite, dispositivos legais, arquivo escolar e entrevistas; fontes analisadas segundo os pressupostos teórico-metodológicos da história cultural. O recorte temporal abrange desde o projeto de reestruturação do Colégio (1980) até a metade da década seguinte, quando ocorre a elaboração e implementação do seu projeto político-pedagógico.

Forma e gramática escolar do Colégio Universitário no contexto da sua reestruturação

“Reestruturar o Colégio Universitário, com seus objetivos renovadores, e[ra] um imperativo dos novos tempos” (Colégio Universitário será..., 1980Colégio Universitário será reestruturado. (1980, 03 maio). O Estado do Maranhão, p. 7. , p. 7), na medida em que oferecia uma resposta por parte da universidade às exigências de se ampliar e modernizar o processo de escolarização, de modo que este alcançasse os grupos sociais desprivilegiados, correspondendo no plano político-cultural à estratégia de estender às camadas populares a preparação para o exercício da cidadania e, assim, evitar ou diminuir as tensões e conflitos que pudessem ameaçar a ordem instituída.

Contexto em que o colégio, ao ser transferido do campus para a periferia, teve sua identidade reinventada não só pela incorporação de elementos da forma escolar que lhe faltavam, tais como espaço e tempo adequados ao ordenamento pedagógico (Vincent, Lahire, & Thin, 2001Vincent, G., Lahire, B., & Thin, D. (2001). Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, (33), 7-47.); mas também no sentido de consolidar o caráter de aplicação que, embora constasse no regimento interno desde 1972, não se tinha concretizado enquanto campo de estágio docente, pesquisas educacionais e experimentação metodológica (COLUN, 1972). Em outras palavras, tratou-se de repensar o seu papel, dando-lhe um redirecionamento funcional, tendo em vista que a modernização do ensino de primeiro e segundo graus tardava em se realizar. “Ao sentir a necessidade inadiável de promover o aperfeiçoamento intelectual e qualificar profissionais” (COLUN, 1980Colégio Universitário [COLUN]. (1980). Projeto de reestruturação., p. 1), a instituição parece questionar-se a si mesma, adotando um novo posicionamento diante da realidade educacional do Estado.

As instituições educativas cumprem este triplo registro de conhecimento do passado, problematização do presente, perspectivação do futuro. Organismos vivos, as instituições educativas, como os grupos sociais e como as pessoas, angustiam-se, pensam, tomam decisões, analisando o presente na sua complexidade e no jogo de probabilidades de desenvolvimento, perspectivando o futuro e inquirindo, fazendo balanço, atualizando o seu próprio passado (Magalhães, 2004Magalhães, J. (2004). Tecendo nexos: história das instituições educativas. Bragança Paulista, SP: EDUSF., p.71).

A sigla COLUN faz parte desse processo de reinvenção do Colégio na Vila Palmeira; bairro pobre que deve seu surgimento à ocupação populacional nas margens do rio Anil em fins da década de 1960 e inícios da de 1970, expandindo desordenadamente o espaço urbano da capital. Parte do processo de urbanização, o prédio é mais do que uma construção material; representação, por um lado, do discurso governista da gestão de João Castelo (1979-1982) e do suposto progresso social vivido pelo Estado, e, por outro, dos sonhos e esperanças dos moradores que anseiam pelas melhorias anunciadas. O espaço escolar ali produzido é fruto de estratégias político-educacionais idealizadas e de táticas de apropriação praticadas no seu interior.

[...] o espaço escolar tem de ser analisado como um constructo cultural que expressa e reflete, para além de sua materialidade, determinados discursos. No quadro das modernas teorias da percepção, o espaço-escola[r] é, além disso, um mediador cultural em relação à gênese e formação dos primeiros esquemas cognitivos e motores, ou seja, um elemento significativo do currículo, uma fonte de experiência e aprendizagem (Escolano, 2001Escolano, A. (2001). Arquitetura como programa: espaço, escola e currículo. In A. Viñao Frago & A. Escolano. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa (p. 19-57). Rio de Janeiro, RJ: DP&A. , p. 26).

O colégio foi instalado em estrutura arquitetônica grandiosa composta de dois prédios interligados, ambos equipados com mobiliário importado dos Estados Unidos via financiamento do Banco Mundial. Concepção de modernidade educacional que residia na amplidão das salas de aula e na comunicação espacial entre estas e os demais compartimentos pedagógicos (laboratórios, oficinas, bibliotecas, quadras poliesportivas), educativo-recreativos (pátio e áreas externas) e administrativos (salas de professores e outras). Desta materialidade escolar produziu-se uma representação positiva do Colégio Universitário. Imagem simbólica que se firma após o convênio com a universidade pela qualidade educacional proporcionada, sobretudo, na sua diferenciação em relação às outras escolas públicas e particulares que, com poucas exceções, tinham precaríssima estrutura material e humana, dificultando-se o estabelecimento da ordem escolar.

Considerando a arquitetura escolar como “[...] um programa, uma espécie de discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância” (Escolano, 2001Escolano, A. (2001). Arquitetura como programa: espaço, escola e currículo. In A. Viñao Frago & A. Escolano. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa (p. 19-57). Rio de Janeiro, RJ: DP&A. , p. 26), percebemos que se entre 1968 e 1980, funcionando em espaços provisórios e inadequados, “[...] e[ra] bastante simplificada a estrutura do Colégio Universitário, dispondo apenas de Diretoria e Secretaria” (COLUN, 1980Colégio Universitário [COLUN]. (1980). Projeto de reestruturação., p. 2), com poucas salas de aula, um grupo reduzido de professores e a oferta do segundo grau em consonância com a Lei 5.692/1971; sob o abrigo das formas arquitetônicas instaladas na Vila Palmeira, sua gramática escolar ganhou novos elementos.

No âmbito administrativo, o Conselho Técnico Consultivo opinava sobre a gestão escolar, mas não tinha poder de deliberação, pois esta era uma prerrogativa da Diretoria Geral, cujas decisões eram repassadas às vice-diretorias de primeiro e segundo graus, a quem cabia executá-las. Como apoio a estas atividades, havia a Secretaria Geral, as secretarias das duas vice-diretorias e a divisão de compras. Na organização do trabalho pedagógico, o Centro Integrado de Estudos era responsável por todo o planejamento didático da unidade e a ele estavam vinculados os departamentos de Supervisão (composto pelas seções de 1° e 2°graus), de ensino (que englobava as áreas de estudo, de disciplina e de estágio) e de Orientação Educacional (com os serviços de assistência ao 1° e 2° graus), também o setor de atividades e a Biblioteca. Estrutura organizacional que sustentou a oferta prevista pela Lei 5.692/1971.

O primeiro grau era oferecido nos seus oito anos (1ª a 8ª séries), havendo disciplinas gerais e especiais. Estas últimas consistiam no ensino de técnicas agrícolas, comerciais, industriais e educação para o lar, sendo ofertadas a partir da quinta série. O segundo grau (1°, 2° e 3° ano) dispunha do programa curricular comum e das habilitações profissionais, as quais deveriam ser escolhidas entre as seguintes áreas: administração, mecânica, eletricidade, construção civil, saúde e magistério. O rol de atividades educativas completava-se com a banda, o coral, o teatro, a hora cívica, as formaturas e festividades escolares, idealizando-se a construção da ordem urbana, pela qual

[...] colocar todas as crianças - ‘até mesmo as mais pobres’ - em escolas, aparece como um vasto empreendimento que se poderia chamar de ordem pública, com a condição de não reduzi-lo a simples ato de dominação, [pois] trata-se de obter a submissão, a obediência, ou uma nova forma de sujeição [através de] regras que são constitutivas da ordem escolar (Vincent et al., 2001Vincent, G., Lahire, B., & Thin, D. (2001). Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, (33), 7-47., p. 14, grifo do autor).

Fernando Antônio Santos Garcia, professor de educação física do COLUN desde 1980, vivenciou esse momento histórico.

Eu entrei no Colégio Universitário em 1980, quando houve uma reformulação e depois dessa reformulação o COLUN foi efetivado lá na Vila Palmeira, onde nós tínhamos dois prédios, um funcionava o 1° grau e o outro, o 2° grau, certo? Inicialmente, nós tínhamos um quadro de professores que atendiam a ambos os turnos e a ambos os graus de ensino [...]. Isso porque ele funcionava anteriormente aqui na Praça Gonçalves Dias e depois no campus, então quando ele foi para a Vila Palmeira o que houve foi uma ampliação do seu quadro docente, quando vários professores ingressaram no COLUN via concurso ou via seletivo, e após a sua efetivação todo esse quadro mais os professores da rede estadual foram absorvidos pela Universidade Federal do Maranhão, sendo igualados em seus vínculos com o serviço público federal no mesmo patamar daqueles que faziam parte do Colégio desde quando ele funcionava na Praça Gonçalves Dias. E, claro, também houve uma grande ampliação do quadro de alunos (Garcia, 2019Garcia, F. A. S. (2019, 24 agosto). Entrevista concedida aos autores .).

O grupo de trabalho que elaborou o projeto de reestruturação permaneceu ativo e conduziu a sua implementação, certamente com adaptações decorrentes dos primeiros embates com aquela realidade. A visão negativa que se tinha construído a respeito das áreas periféricas espalhadas pela cidade, da margem esquerda do Bacanga à margem direita do Anil, trouxe sobre todos os ocupantes destes espaços representações que os estigmatizavam socialmente, ligando-os à desordem, ao perigo e ao crime, classificando-os como indesejáveis e gerando sentimentos de medo e desconfiança. Situação narrada por Ana Luiza Nazareno Ferreira, ex-professora de língua portuguesa.

A princípio, quando a gente imaginava a mudança da escola, indo lá pra Vila Palmeira, pra nós foi muito [...] medo [...] ficamos apavorados [...] porque a Vila Palmeira, naquela época, era um ambiente de muita violência, muita violência! A Vila Palmeira era [...] muita droga e [...] tanto é que, no início, quando a escola começou a funcionar, às vezes a polícia tinha que estar na frente da escola, considerando que os traficantes ficavam lá fora esperando os alunos para oferecer a droga (Ferreira, 2019Ferreira, A. L. N. (2019, 04 agosto). Entrevista concedida aos autores.).

Uma das medidas para enfrentar essa questão foi aumentar consideravelmente o tempo escolar com o objetivo de diminuir a influência do ambiente social sobre os alunos, retirando-os das ruas onde passavam a maior parte do tempo, mas também fazendo com que ficassem mais no colégio do que em casa, ao oferecer-lhes “[...] dois turnos de trabalho, um dos quais é destinado a suprir as deficiências, empregando-se estudo orientado e outras técnicas” (Colégio Universitário será..., 1980, p. 7). Para cumprir esta determinação, contava com professores e especialistas dedicados exclusivamente à instituição além de ter um espaço suficiente para atender a demanda de atividades no contraturno, com uma estrutura adequada para garantir a permanência desses alunos no colégio durante o maior tempo possível, havendo ainda a participação dos estudantes de licenciatura da Universidade Federal na condição de estagiários.

Sobre esse momento, o reitor José Maria Cabral Marques (1979-1988) assim se expressou:

Eu acho que foi uma das coisas excelentes em matéria de extensão, estágio, ensino e até pesquisa educacional. Aliás, havia naquela extensão e também estágio, dois aspectos muito importantes para uma comunidade carente que, hoje eu sei, mudou muito. Pelo menos uma vez por semana eu passava por lá. Lembro-me de que, nos primeiros dias de aula, recebi informações incríveis: estudantes tentando se esfaquear lá dentro; só entravam armados; eram brigas eternas, e vinham pais e mães que também entravam na briga, na base do tapa. Conseguimos reverter essa situação. Não sei se hoje o Colégio ainda é padrão, mas, pelo menos numa época, o foi. Tinha qualidade e havia empenho dos que o faziam. Depois conseguimos verba do Ministério para a contratação de professores, e a coisa tomou rumo mais avançado (Faria & Montenegro, 2005Faria, R. H. M., & Montenegro, A. T. (2005). Memória de professores: histórias da UFMA e outras histórias. São Luís, MA: EdUFMA. , p. 297).

Se, por um lado, a menção do reitor a ‘informações incríveis’ e ‘brigas eternas’ sinaliza o desafio que o colégio enfrentou no sentido de agir sobre o comportamento social dos alunos; por outro, sua afirmação de que ‘vinham pais e mães que também entravam na briga’ não deixa de ser um indício do interesse destas pessoas em participar da vida escolar. Um dos caminhos encontrados para dialogar com as famílias foi a oferta de cursos de curta duração para os pais e mães de alunos e outras pessoas da comunidade, utilizando-se de projetos de professores, estagiários e extensionistas da universidade.

Em julho de 1980, por exemplo,

Com a duração de uma semana, o curso de primeiros socorros [...] ministrado pelas estagiárias de enfermagem [...] antecede a outros cursos práticos que já estão em desenvolvimento, tais como ‘Hábitos Alimentares’ e ‘Higiene’, que serão ministrados brevemente, dando continuidade ao trabalho meritório que vem sendo desenvolvido já há algum tempo por uma equipe de professores e estagiários da Universidade Federal do Maranhão, uma experiência inédita, mas já coroada de êxito (Programa social..., 1980Programa social no Colégio Universitário. (1980, 02 julho). O Estado do Maranhão , p. 3., p. 3, grifo do autor).

A presença de extensionistas, estagiários, professores e pesquisadores cujas ações foram desenvolvidas em articulação com os interesses do seu numeroso público, já que “[...] era grande a capacidade de absorção de alunos [e] o COLUN atendia toda aquela área: Vila Palmeira, CEMA/DETRAN, Barreto, Radional, Alemanha e até um pouco do João Paulo” (Garcia, 2019Garcia, F. A. S. (2019, 24 agosto). Entrevista concedida aos autores .), possibilitou que a cultura escolar da instituição, longe de ser um reflexo fiel do conhecimento produzido na universidade, seja antes um mosaico elaborado pela recriação de saberes que se dá nesses embates com o ambiente cultural comunitário. Por este ângulo, o regimento interno elaborado em 1982 é o resultado de um recorte da cultura social que conduz a esta bricolagem pela qual o COLUN adquire uma identidade singular que se distingue entre várias culturas escolares heterogêneas (Forquin, 1993Forquin, J. C. (1993). Escola e cultura:as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. ) e que reforça os objetivos de

[...] ‘oferecer ensino de 1° e 2° graus à população de Vila Palmeira’ [...] ‘servir de campo de estágio para os cursos da UFMA, notadamente os de licenciatura, proporcionando a articulação dessa universidade com o ensino de 1° e 2° graus’, [devendo] ‘constituir-se em local de desenvolvimento de tecnologias de ensino, pesquisas e experiências educacionais’ [...] ‘integrar a comunidade do bairro em atividades diversas, com vistas a sua participação no processo educativo’ [e ainda] ‘propiciar contínuo aperfeiçoamento aos docentes, técnicos e pessoal administrativo da escola, incentivando a participação em cursos, círculos de estudos, etc.’ (COLUN, 1982Colégio Universitário [COLUN]. (1982). Regimento interno do Colégio Universitário . , p. 3, grifo do autor).

A estrutura organizacional estabelecida pela universidade desde o projeto de reestruturação sofreu modificações a partir de 1982, atendendo de certa forma reivindicações ou sugestões nascidas no embate com a realidade local; reconfiguração identitária responsável pela reorganização da vida escolar. Em seu novo organograma surgem várias instâncias, entre elas: a superintendência, que cuidava da administração geral; as diretorias de ensino (de 1° e 2° graus); o Núcleo de Assistência Pedagógica (NAP) apoiando e supervisionando as atividades docentes e discentes; o Núcleo de Assistência ao Educando (NAE) para serviços de orientação educacional, assistência social e atendimento à saúde do aluno. Como instâncias decisórias foram criados o Conselho de professores, a quem cabia participar da elaboração do calendário escolar e, o Conselho de classe, que debatia assuntos relativos ao desempenho dos estudantes e deliberava sobre a necessidade ou não de intervenções pedagógicas nesses casos. A Associação Cívica, Recreativa e Cultural (ASSORCIC), de onde se originou o grêmio estudantil, organizava eventos cívicos, esportivos e literários e, a Associação de pais e comunitários atuava no diálogo entre o colégio e a sua comunidade.

Os “[...] conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar” (Julia, 2001Julia, D. (2001). A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, 1(1), 09-43. , p. 10) que orientavam seu projeto pedagógico influenciaram o comportamento dos agentes envolvidos no campo social que então se configurava, onde o aluno deveria ser

[...] orientado no sentido de planejar sua comunidade, dotando-a de instituições voltadas para a recreação, o comércio, o saber e a arte [sendo] criados serviços de identificação civil, registro de nascimento, registro eleitoral, agências postais, bancos, mantendo o estudante contato com sua nacionalidade, sexo, naturalidade, cor, filiação, idade e suas implicações e demais dados de identificação necessários ao reconhecimento de sua existência, como integrante da sociedade (COLUN, 1980Colégio Universitário [COLUN]. (1980). Projeto de reestruturação., p. 15).

Práticas educativas e pedagógicas do COLUN/UFMA

A esta estratégia político-educacional imposta, no sentido de educar as novas gerações, tornando-as aptas a participarem de forma produtiva da modernização capitalista e criando condições para o ordenamento da sociedade (segundo os princípios liberais e democráticos importados da cultura norte-americana via modelo de ensino polivalente), a comunidade escolar respondeu com táticas de apropriação (Certeau, 2012Certeau, M. (2012). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.) que consistiram em incorporar ao currículo transmitido códigos da cultura local. Por esta lógica, percebemos no estreitamento das relações com a cidade de São Luís e, especialmente, com a Vila Palmeira, um fator de diferenciação e produção cultural que se manifestou desde o início da trajetória do COLUN neste bairro, principalmente, pela participação popular nos eventos escolares.

Segundo Luzia da Conceição Azevedo Reis, que frequentou o colégio durante o ano de 1981, na condição de estagiária da disciplina de matemática,

A escola sempre promoveu eventos [...] Eventos relativos ao esporte, por exemplo, que era muito maior o envolvimento com o esporte, nessa época [...] inclusive uma professora da UFMA, do Departamento de Educação Física, desenvolveu lá a prática da ginástica rítmica que se manteve [...] E o Colégio sempre conquistava medalhas nas competições que participava (Reis, 2019Reis, L. C. A. (2019, 21 setembro). Entrevista concedida aos autores .).

O lugar das práticas esportivas no calendário escolar, para além da disciplina de educação física, nasceu das fecundas trocas culturais que se realizaram nas primeiras olimpíadas do colégio. Jogos interclasses para os quais afluíam em grande número os moradores do bairro; crianças, jovens e adultos cujo interesse pelo esporte é uma característica das periferias urbanas carentes de equipamentos de lazer. De modo semelhante, o sucesso de outras práticas corporais e artísticas, tais como a ginástica rítmica, a banda, o coral e o teatro tem alguma relação com hábitos cultivados naquela localidade, a exemplo da capoeira, exercícios musicais nas igrejas e danças folclóricas.

Estas práticas culturais, ritualizadas em momentos solenes e/ou festivos, como a hora cívica, as formaturas, as festas juninas e os jogos escolares, além dos “[...] desfiles de 05 de setembro [...] dia da raça [e] 07 de setembro [...] dia da pátria [que foram] organizados pela Banda Marcial [...] formada por alunos e ex-alunos” (Garcia, 2019Garcia, F. A. S. (2019, 24 agosto). Entrevista concedida aos autores .), reforçaram a imagem positiva do Colégio Universitário e ajudaram a torná-lo um ponto de referência educacional na cidade de São Luís. Práticas culturais que, transformadas em rituais escolares, ganharam caráter educativo, pois, ao inculcar condutas civilizadas, “[...] atua[ra]m e influencia[ra]m a vida dos sujeitos, de modo amplo, difuso e imprevisível” (Franco, 2016Franco, M. A. R. S. (2016). Prática pedagógica e docência: um olhar a partir da epistemologia do conceito. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 97(247), 534-551., p. 536).

A interação que se estabeleceu entre o currículo prescrito e a cultura popular teve um peso inegável na configuração das práticas educativas disseminadas pelo COLUN, as quais visavam disciplinar o comportamento social por meio de atividades que, ao ocupar o tempo livre das pessoas (principalmente crianças), infundiram nelas “[...] disposições em relação à regularidade, ao respeito pelo ‘emprego do tempo’ [e a] submeter[em] o desenvolvimento de sua vida a uma divisão em sequências temporais previstas antecipadamente” (Vincent et al, 2001Vincent, G., Lahire, B., & Thin, D. (2001). Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, (33), 7-47., p. 40, grifo do autor). Atividades realizadas sob regulamentos disciplinares que garantem em tese a ordem escolar, a qual participa da ordem pública inerente ao processo de urbanização, instaurando-se assim uma relação social do tipo pedagógica que se concretiza nas salas de aula, laboratórios, oficinas e outros espaços escolares utilizados por numerosa equipe de educadores, estagiários e alunos.

O programa disciplinar correspondia “[...] [a]o curso de civilidade, que se inicia[va] aos estudos mais rudimentares da vida em sociedade até o mais complexo conhecimento da vida moderna [...] no campo científico, tecnológico e industrial” (Colégio Universitário será..., 1980, p. 7), sem prescindir “[...] [d]o toque sonoro e muito afinado de algumas das mais disputadas atividades artístico-culturais” (Colégio reestruturado, 1983Colégio reestruturado. (1983, 11 julho). Jornal de Hoje, p. 3. , p. 3) que tinham como escopo o despertamento e desenvolvimento do senso estético e do potencial criativo por meio da educação musical, das artes cênicas, plásticas e marciais, entre outras práticas culturais.

Este foi o caso, por exemplo, do PROCOLUN (Projeto Artístico-Cultural do Colégio Universitário), surgido em 1982, no qual se pretendia “[...] desenvolver o potencial artístico existente nos alunos do Colégio e comunitários a partir da realidade cultural local” (COLUN, 1982Colégio Universitário [COLUN]. (1982). Regimento interno do Colégio Universitário . , p. 1), utilizando-se o espaço escolar no horário noturno. Ao integrar práticas de coral, dança, banda, teatro, capoeira e artes plásticas que envolviam alunos e não alunos, “[...] engloba diversas atividades, havendo a preocupação de conhecer e valorizar o folclore maranhense” (COLUN, 1982Colégio Universitário [COLUN]. (1982). Regimento interno do Colégio Universitário . , p. 2). Práticas educativas que se tornaram permanentes e tiveram o mérito de alterar, aos poucos, a imagem negativa da Vila Palmeira, permitindo a circularidade de uma nova representação sobre esta zona periférica da cidade.

A comunidade do bairro também participa[va] das atividades do Colégio por intermédio das ações extra-curriculares. O bairro, assim, já possui o seu coral para deleite de numerosa plateia que se encanta com os números apresentados e com frequência são desenvolvidos espetáculos de teatro, demonstrações de capoeira, exposições de artes plásticas e exibições da banda de música (Colégio reestruturado, 1983Colégio reestruturado. (1983, 11 julho). Jornal de Hoje, p. 3. , p. 3).

Este modo de ver o COLUN aparece frequentemente em dispositivos que o descrevem e contrastam com a comunidade por ele atendida. Embora constituída por pessoas de baixa renda, “[o] bairro da Vila Palmeira, [...] possu[ía] um dos mais elevados padrões de ensino do Estado, graças ao Colégio Universitário, que funciona[va] sob os auspícios da UFMA, há mais de 3 anos” (Colégio reestruturado, 1983Colégio reestruturado. (1983, 11 julho). Jornal de Hoje, p. 3. , p. 3). O COLUN no meio de escolas públicas carentes de estrutura material e profissional, e em quantidade insuficiente, pois “[...] exist[ia] no [bairro do] João de Deus aproximadamente 1.500 crianças, na faixa etária de 4 a 10 anos, que não frequenta[va]m escolas” (João de Deus..., 1983João de Deus quer construir Colégio. (1983, 23 julho) O Debate, p. 6. , p. 6), situação que é comum a outros pontos da cidade e a escolas particulares não menos desestruturadas em sua maioria, consegue diferenciar-se como estabelecimento de ensino ao produzir relevante impacto sociocultural na periferia urbana de São Luís.

[...] o Colégio Universitário vem desenvolvendo no seio de uma comunidade pobre e outrora problemática, um trabalho da mais ampla repercussão social e educacional. Além de ministrar o ensino de 1° e 2° graus, o Colégio Universitário da Vila Palmeira serve, ao mesmo tempo, de campo de estágio a mais de 10 cursos da UFMA e de laboratório de pesquisas educacionais, além de promover a educação permanente de adultos, através dos cursos comunitários. Música, Teatro, Artes Plásticas, Coral, Capoeira e Banda, são algumas das atividades extra-curriculares do Colégio que a cada bimestre apresenta exposições de Artes Industriais, Técnicas Agrícolas e Educação para o lar, com trabalhos desenvolvidos pelos próprios alunos nas oficinas da escola. Ao todo, são 1.300 alunos, 100 estagiários e 90 professores, todos mantidos pela Universidade Federal do Maranhão. O reitor José Maria Cabral Marques esteve ontem em visita ao Colégio e constatou ‘inloco’ o andamento das atividades (Colégio reestruturado, 1983Colégio reestruturado. (1983, 11 julho). Jornal de Hoje, p. 3. , p. 3, grifo do autor).

Ao repercutirem socialmente suas atividades, a ponto de serem divulgadas na imprensa, o rompimento do estigma da violência e da marginalidade predominantes nas notícias sobre a Vila Palmeira se iniciam, aparecendo concomitantemente às imagens que identificavam o bairro como uma comunidade carente e desordeira, representações que o associavam às práticas civilizatórias disseminadas pelo Colégio Universitário. Rituais escolares que enalteciam um ideal educativo, apresentando o nome da instituição em exibições pela cidade. O Coral COLUN VOX, por exemplo,

[...] participava do FEMACO, que era o Festival de Corais do Maranhão [...] e estava sempre se apresentando na escola, nas reuniões [...] formaturas [...] festividades [e] também era convidado a fazer exibições em vários outros locais e eventos pela cidade, como na própria UFMA (Ferreira, 2019Ferreira, A. L. N. (2019, 04 agosto). Entrevista concedida aos autores.).

Se por um lado, ao participarem de cerimônias de natureza festiva, religiosa, cívica ou artística, os membros do COLUN VOX compartilharam momentos de comemoração, celebração, culto ou fruição cultural; por outro, agiram como divulgadores das normas disciplinares cultivadas no Colégio Universitário e usufruíram da distinção simbólica que este pertencimento lhes proporcionava. Nesta dinâmica, legitimaram princípios de ordenamento social pela via da moralização e também difundiram de certa forma as concepções de ensino defendidas pela instituição (Cândido, 2007Cândido, R. M. (2007). Culturas da escola: as festas nas escolas paulistas (1890-1930) (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo.). Tais valores morais estavam relacionados com o espírito patriótico tão fervorosamente invocado na Semana da Pátria que incluía os desfiles de 05 e 07 de setembro já mencionados.

O sentimento patriótico alimentado pela hora cívica durante o ano atingia o clímax nos desfiles de setembro, quando alunos e alunas marchavam pelo bairro com o pavilhão nacional hasteado, além de exibirem outros símbolos nacionais, regionais e locais (hinos e bandeiras). Tais eventos traduziram o orgulho dos estudantes e de suas famílias ostentado no uniforme escolar, onde o nome da instituição aponta não só o prestígio do Colégio, mas também a conquista pessoal de cada um deles: indivíduos pobres, cuja origem social não lhes garantiu herança cultural nem econômica; possuidores apenas das suas astúcias, com as quais conseguiram adquirir algum capital escolar e fizeram seus próprios investimentos no mercado de bens simbólicos. Ao colocar esse conjunto de valores em circulação, os desfiles cívicos e outros eventos escolares fortaleceram a integração entre a universidade, o colégio e o bairro.

Você via pai e mãe todo tempo lá na escola, conversando com professor, conversando com a equipe pedagógica, vendo e acompanhando seu filho, porque a pessoa atravessava a rua e já estava no Colégio; em muitas dessas reuniões, nós da área de Educação Física fazíamos várias atividades esportivas com os pais [...] Então era uma briga para a gente encerrar a programação, porque eles não queriam mais ir embora; ou seja, havia uma integração muito, muito grande mesmo! (Garcia, 2019Garcia, F. A. S. (2019, 24 agosto). Entrevista concedida aos autores .).

Se estas práticas educativas correspondiam aos objetivos da universidade de ampliar o Colégio Universitário, dando-lhe forma e função de aplicação pedagógica, o que implicava antes de tudo, na ação modeladora de hábitos relativos à higiene, aos costumes, às ideias e aos valores morais capazes de formar cidadãos cultos, educados, civilizados (Elias, 1994Elias, N. (1994). O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.); por outro lado, seu sucesso se deve ao desejo e à luta dos habitantes daquela periferia pelos benefícios da cidadania e da urbanização. Longe de reduzir-se às normas definidoras de conhecimentos e condutas ou mesmo às práticas que apenas permitem transmitir e incorporar códigos de uma gramática escolar universal, nacional ou regional; a cultura escolar do Colégio Universitário se fez específica nesses embates entre a universidade, a instituição escolar e a comunidade, nessa rede de relações de poder onde cada parte adota sua posição particular, mas todas se juntam numa interseção resultante do cruzamento de interesses que define o real como um campo de forças.

Diante da oferta qualificada de serviços educacionais, houve forte mobilização comunitária no sentido de assegurar que as crianças e adolescentes do bairro mantivessem a preferência no preenchimento das vagas, principalmente, em nível de primeiro grau (o mais concorrido). Exemplo disso é o pré-escolar Comunitário de Vila Palmeira, criado por uma conjugação de esforços do colégio e da comunidade na preparação para a primeira série. A socialização das crianças e os primeiros passos no sentido de alfabetizá-las ocorriam em organizações locais como a Associação de Mães e a União dos Moradores e era conduzida por profissionais da instituição com o apoio das monitoras escolhidas entre as próprias mães, irmãs ou outras pessoas responsáveis pelos pré-escolares. Às famílias eram oferecidos treinamentos para atuação na monitoria e palestras no intuito de conscientizar os pais da importância do envolvimento familiar no processo educativo (COLUN, 1983Colégio Universitário [COLUN]. (1983). Projeto pré-escolar comunitário. ), demonstrando que “[...] paralelamente ao trabalho com as crianças, é frequentementeexaminada a necessidade de atuar junto aos pais ‘para educá-los’” (Vincent et al., 2001Vincent, G., Lahire, B., & Thin, D. (2001). Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, (33), 7-47., p. 42, grifo do autor). Como resultado deste trabalho, o ensino pré-escolar foi incorporado ao currículo oficial da instituição e suas práticas pedagógicas, “[...] que se realiza[ra]m para organizar/potencializar/interpretar as intencionalidades de um projeto educativo” (Franco, 2016Franco, M. A. R. S. (2016). Prática pedagógica e docência: um olhar a partir da epistemologia do conceito. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 97(247), 534-551., p. 537), passaram a ocupar o centro do debate sobre a experimentação de novas metodologias e a criação de tecnologias de ensino inovadoras; pilares sobre os quais se assentou a identidade do Colégio Universitário.

Em razão da constante pesquisa educacional realizada in loco por profissionais da equipe técnica, professores e estagiários, constatou-se que o desempenho de crianças das séries iniciais era prejudicado pelo uso de métodos de ensino e materiais inadequados que não dialogavam com a história de vida dos alunos, propondo-se, nesta ocasião, a elaboração de cartilhas de alfabetização e leitura; inovação metodológica que resultou na elaboração (por parte desses educadores) de duas produções didáticas intituladas Aprendendo a ler com Mimi e Lendo com Malu e Beto na Vila Palmeira, as quais foram utilizadas por algum tempo durante a década de 1980 e representam aspectos originais da cultura escolar ‘colunense’, uma vez “[...] que considera[m] as especificidades da clientela (no que concerne à faixa etária [e] ao conceito sociocultural bairro-cidade-estado) como o aspecto mais importante e como ponto de partida para posterior ampliação do campo de conhecimento do aluno” (COLUN, 1983Colégio Universitário [COLUN]. (1983). Projeto pré-escolar comunitário. , p. 3).

Nessa lógica, o ensino de primeiro e segundo graus criou suas práticas pedagógicas tendo o bairro como laboratório. As atividades desenvolvidas em sala de aula convergiam para a elaboração de um produto a ser apresentado ao público. Para isso, “O Colégio Universitário realiza[va], a cada bimestre, exposições abertas à comunidade, para que principalmente os pais particip[ass]em do que os filhos est[avam] fazendo na escola” (Colégio reestruturado, 1983Colégio reestruturado. (1983, 11 julho). Jornal de Hoje, p. 3. , p. 3). Amplamente divulgadas e frequentadas, estas exposições científicas tornaram-se a principal forma de avaliação da aprendizagem. Como desdobramento das exposições bimestrais, foram criadas as feiras científicas anuais. Nelas, ocorria a culminância de todo o trabalho realizado ao longo do ano por alunos, estagiários e professores. Geralmente, cada estudante apresentava uma pesquisa feita durante o ano dentro de algum projeto interdisciplinar, sendo este o maior diferencial da proposta pedagógica, permanecendo por todo o período em que o COLUN esteve na Vila Palmeira1 1 O Colégio Universitário funcionou na Vila Palmeira até o ano de 2006, quando foi transferido para a cidade universitária dom Delgado, no Bacanga; onde, atualmente, está localizada sua sede. como um dos traços da identidade colunense, única em meio à heterogeneidade das culturas escolares (Forquin, 1993Forquin, J. C. (1993). Escola e cultura:as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. ).

O que foi mais interessante, quando a escola foi para lá, ela foi com uma proposta de trabalhar com projetos [...] que fizeram a diferença naquele bairro... E foi a chegada dessa escola que fez a Vila Palmeira se transformar socialmente. E foram os projetos interdisciplinares que trouxeram a comunidade para dentro da escola (Ferreira, 2019Ferreira, A. L. N. (2019, 04 agosto). Entrevista concedida aos autores.).

A cultura escolar democrática no COLUN/UFMA

Percebemos que para a iniciação dos trabalhos e para as habilitações profissionais determinadas pela Lei 5.692/1971, o Colégio Universitário reagiu interrogando à comunidade da Vila Palmeira que conteúdos deveriam ser ensinados ou que cultura deveria ser transmitida a uma população da periferia de São Luís. Contexto em que a Lei nº 7.044Lei nº 7.044, de 18 de outubro de 1982. (1982). Altera dispositivos da Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971, referentes a profissionalização do ensino de 2°grau. Brasília, DF: Imprensa Nacional ., de 18 de outubro de 1982, ao extinguir a obrigatoriedade do ensino profissionalizante e determinar a manutenção da orientação para o trabalho, permitiu ao COLUN operacionalizar, em 1984, uma reforma curricular que aumentou a carga horária da formação geral em detrimento das disciplinas do núcleo especial, mas estas últimas foram mantidas, proporcionando aos estudantes de primeiro e segundo graus “[...] sólida formação geral, ampla e crítica da realidade em que se inserir, podendo transferir seus conhecimentos para a vida prática no processo de reorganização de suas experiências” (COLUN, 1984Colégio Universitário [COLUN]. (1984). Reformulação da grade curricular de 1º e 2º graus., p. 2).

Nesse sentido, percebe-se maior atuação da associação de pais e comunitários e do grêmio estudantil. Os discentes e seus responsáveis conquistam espaço nos debates, gerando práticas escolares democráticas como os conselhos de classe, que aos poucos, modificaram o sistema de avaliação no que tange à sua flexibilidade.

Primeiro era a reunião geral dos professores [...] depois ela foi se modificando [pois] foi havendo a necessidade de fazer um conselho onde os professores de cada turma pudesse[m] discutir as dificuldades e deficiências daquela turma específica; então era visto como estava o rendimento dos alunos, os riscos de reprovação e o que poderia ser feito, como o setor pedagógico da escola poderia ajudar; ou seja, foram se formando os conselhos a cada bimestre e o conselho de classe final para fechar o ano (Garcia, 2019Garcia, F. A. S. (2019, 24 agosto). Entrevista concedida aos autores .).

O Conselho de classe, instância pioneira na adesão do colégio ao modelo de gestão escolar democrática, foi uma conquista gradativa que contou com a participação de professores, alunos, famílias e outros, resistindo com suas táticas de apropriação ao sistema burocrático de administração praticado pela universidade.

O Conselho de Classe era onde se dava a participação do aluno, do professor e dos pais, inclusive no final do ano eram analisados os casos de reprovação e se o aluno tivesse abaixo da média só em uma ou duas disciplinas, todos os professores daquela turma averiguavam a conduta daquele aluno ao longo do ano letivo, para ver se ele merecia mesmo ficar reprovado ou não e, dependendo do caso, poderia ser dada uma segunda chance, então ele faria uma última prova; mas o Conselho era soberano, suas decisões tinham de ser acatadas (Ferreira, 2019Ferreira, A. L. N. (2019, 04 agosto). Entrevista concedida aos autores.).

As ações do Núcleo de Assistência Pedagógica, coordenado à época pela professora Maria da Conceição Brenha Raposo, contribuíram fundamentalmente para essa reconfiguração. Educadora influenciada pelo pensamento de Paulo Freire, que defendia a educação comprometida com a mudança social, influenciou o corpo docente do colégio a repensar o projeto educativo da instituição, levando em conta que nesse período os professores reivindicaram uma série de alterações na organização administrativa e pedagógica do estabelecimento na procura da “[...] descentralização do sistema administrativo [...] visando à participação de todos no processo decisório” (COLUN, 1985Colégio Universitário [COLUN]. (1985). Projeto “Colégio Universitário: experiência pedagógica. , p. 5). Isto resulta na aprovação do regimento interno de 1988 que trazia marcas do momento histórico de redemocratização ao colocar no topo do organograma administrativo o Conselho Diretor com representantes de todos os segmentos da comunidade escolar (COLUN, 1988Colégio Universitário [COLUN]. (1988). Regimento interno do Colégio Universitário . ).

O Conselho Diretor era formado pelos coordenadores das áreas. Por exemplo, o coordenador de Educação Física, o coordenador de humanas, e assim por diante. Tinha também o representante do Núcleo Pedagógico, da secretaria, coordenações, do grêmio e da associação de pais; todos tinham voz e voto (Garcia, 2019Garcia, F. A. S. (2019, 24 agosto). Entrevista concedida aos autores .).

Cultura escolar democrática que se consolida na relação entre o Colégio Universitário e o seu público na Vila Palmeira; interação social responsável por selecionar as práticas escolares democráticas que se vão tornando relevantes, permanentes e norteadoras da vida escolar, sendo este o recorte operado pelo COLUN na cultura social. ‘Identidade colunense’ que tem considerável peso em momentos críticos da trajetória da universidade, como as greves, as mobilizações estudantis, os debates e outros atos públicos que esta instituição protagoniza e onde é constante a presença do seu Colégio de Aplicação.

No final dessa década, o COLUN passou a ser administrado por uma gestão colegiada e firmou-se como uma escola de reconhecida importância não só para o bairro, mas para toda a cidade de São Luís, participando, por exemplo, do Programa de Integração da Universidade com o Ensino de 1° grau que visava a sua melhoria nas séries iniciais do primeiro grau mediante a capacitação de professores (COLUN, 1989Colégio Universitário [COLUN]. (1989). Relatório de atividades do Colégio Universitário. ). Nos anos 1990 iniciou-se a busca por maior articulação “[...] com os departamentos acadêmicose coordenadoria de cursos [a fim de] apoiar, cooperar, participar, estimular e integrar as diversas atividades, principalmente, por ser o campo de estágio por excelência para todos os cursos da UFMA” (COLUN, 1990Colégio Universitário [COLUN]. (1990). Estrutura e funcionamento do Colégio Universitário., p. 1). Em 1991, houve continuidade na política de integração “[...] entre a escola e as pró-reitorias, departamentos acadêmicos, coordenação de curso e outras instituições federais, estaduais e municipais de forma útil e profícua, gerando contatos mais estreitos com os referidos órgãos” (COLUN, 1991Colégio Universitário [COLUN]. (1991). Relatório de atividades do Colégio Universitário . , p. 3). Momento representativo da consolidação do Colégio Universitário no cenário educacional da cidade, onde ocupa uma posição de destaque e desempenha a função não mais restrita aos muros da universidade; sua importância social está em fazer circular saberes que compõem uma cultura escolar democrática, contribuindo de modo direto para a formação de novos professores e de modo indireto para a difusão de novas práticas escolares.

Neste mesmo ano, “[...] a escola foi amplamente beneficiada, quando teve o prazer de ter as suas instalações físicas reformadas, os móveis consertados nas oficinas e uma maior aquisição de recursos tanto de ordem didática como permanente” (COLUN, 1991Colégio Universitário [COLUN]. (1991). Relatório de atividades do Colégio Universitário . , p. 4). Entusiasmo que demonstra táticas singulares de apropriação do espaço escolar, se leva em conta que a sua estrutura material vinha servindo para fins que não correspondiam necessariamente ao projeto de fortalecimento do ensino profissionalizante que poderia ter levado ao mero tecnicismo na prática; pelo contrário, o uso e consumo diferenciado dos materiais ali distribuídos fortaleceram o caráter formativo mais amplo.

Quanto ao estágio, “[...] pudemos constatar o nível de qualidade atingido e a participação atuante das coordenações de curso como forma de legitimar a escola como campo específico de estágio” (COLUN, 1991Colégio Universitário [COLUN]. (1991). Relatório de atividades do Colégio Universitário . , p. 5); ao consolidar a sua identidade enquanto colégio de aplicação e manter o foco na experimentação metodológica configura-se campo de formação didático-pedagógica dos licenciandos da UFMA. Em 1992, ocorreu um concurso para contratação de novos professores e a lotação de técnicos administrativos, bem como novas reformas nos prédios de primeiro e segundo graus, com a construção de salas de informática, de língua inglesa, do coral, do Clube de Física e de vídeo. Instalações que reforçam a identidade do colégio e seu caráter de aplicação e vanguarda pedagógica, gerando representações do COLUN como uma escola de referência. Desde então, segundo o professor de ciências e de física da instituição Isaac Newton2 2 Pseudônimo que usamos para identificar um dos nossos entrevistados que optou pelo anonimato. , este estabelecimento de ensino

Sempre foi uma escola benquista pela comunidade, teve muita credibilidade, não só pelos professores qualificados, mas também por toda uma estrutura que na época nós tínhamos... Nós chegamos a ter laboratórios de Física, Química, Biologia e Ciências; eram quatro laboratórios muito bem equipados [...] Além disso, havia um laboratório de serigrafia, onde era dado um curso para a comunidade; tinha a serralheria, que também era voltado para a comunidade; a horta, para desenvolver a prática da horticultura, dando cursos também para os moradores ali do entorno; economia doméstica, que utilizava a oficina de Educação para o Lar, de uso comunitário também; o setor de enfermagem e o de Odontologia, ambos com atendimento aos alunos e igualmente à comunidade (Newton, 2019Newton, I. (2019, 06 outubro). Entrevista concedida aos autores .).

Com essa nova reorganização interna, durante a gestão da professora Antônia Moreira Durans (1989-1993) - primeira diretora eleita -, foram fortalecidos os conselhos escolares (conselho diretor e conselho de classe), o grêmio estudantil e a associação de pais e comunitários, consolidando-se a feição democrática da instituição que, nas palavras da própria diretora em palestra proferida ao final do mandato,

[...] não era quartel, com um conjunto de regras e regulamentos para serem observados e cumpridos; [mas] um local onde as novas gerações se apropriam do conhecimento sistematizado, compromissando todos aqueles que recebem essas gerações num fim comum, [sendo] a função de diretor [...] o ponto de convergência dos demais elementos envolvidos naquele compromisso (COLUN, 1993Colégio Universitário [COLUN]. (1993). Situação do Colégio Universitário (1980-1993). , p. 1).

Ao dizer que a instituição não era quartel, parece indicar posição contrária ao regime civil-militar e ser favorável à redemocratização. Nessa lógica, as transformações da forma escolar correspondem a mudanças nos modos de conhecimento e de exercício do poder (Vincent et al., 2001Vincent, G., Lahire, B., & Thin, D. (2001). Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, (33), 7-47.); portanto, alguns elementos culturais do COLUN na Vila Palmeira, como o Grêmio Estudantil, a Associação de pais e comunitários e os Conselhos Escolares têm suas práticas melhor compreendidas se os relacionamos ao momento histórico de redemocratização do Brasil.

A partir daí o ingresso de estudantes não se restringiu mais à vila e bairros próximos, mas tornou-se possível ao restante da população, havendo alterações nos critérios de seleção dos alunos. A presença dos estagiários dos cursos de licenciatura da UFMA foi outra constante, apesar de existirem reclamações de alguns departamentos da universidade em relação ao necessário deslocamento para a Vila Palmeira, por estar relativamente distante do campus. Nessa perspectiva, a administração superior da universidade também dava sinais do seu interesse em transferir a instituição, encontrando apoios e resistências entre os professores e demais servidores do colégio. Transcorridos mais de dez anos de permanência na Vila Palmeira, o Colégio Universitário tinha sua identidade configurada a partir dos elementos culturais mais relevantes dessa trajetória, os quais conformaram e definiram a cultura escolar da instituição (Viñao Frago, 2001Viñao Frago, A. (2001). Do espaço escolar e da escola como lugar: propostas e questões. In A. Viñao Frago & A. Escolano. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa (p. 59-89). Rio de Janeiro, RJ: DP&A .) por meio de várias ações, entre elas: a inserção do conselho de classe, do conselho diretor e do grêmio estudantil; a inclusão da associação de pais e comunitários e as práticas de estágio supervisionado; os serviços especializados de orientação educacional e a presença de profissionais que não são comuns a instituições escolares ordinárias (engenheiro, dentista, agrônomo, médico, entre outros); assim como a difusão de valores democráticos que aparecem nos relatórios anuais de atividades e nas atas do conselho diretor e do conselho de classe através de termos como ‘integração’, ‘participação’ e outros.

Enfim, uma série de práticas originadas nos primeiros anos da década de 1980em pleno período autoritário, mas também em tempos de resistência política e redemocratização, que mostram a necessidade de desnaturalizar a instituição escolar, como também, de evitar tomá-la como algo estático (Faria Filho, 2000Faria Filho, L. M. (2000). Instrução elementar no século XIX. In E. M. T. Lopes, L. M. Faria Filho & C. G. Veiga (Orgs.), 500 anos de educação no Brasil (p. 135-149). Belo Horizonte, MG: Autêntica. ), sabendo que o olhar para esses elementos culturais importantes na trajetória histórica do Colégio Universitário implica em

[...] desvelar a ordenação do tempo e dos espaços, as práticas de avaliação e de classificação dos alunos, a divisão, hierarquização e controle dos professores, a composição dos programas, a inovação dos métodos de ensino, a cultura material da escola, as práticas educativas adotadas no ensino das matérias, os dispositivos disciplinares (normas de conduta, prêmios e punições), a transmissão dos valores e as práticas simbólicas como as festas e comemorações cívicas, as exposições escolares e as solenidades de encerramento do ano letivo (Souza, 2013Souza, R. F. (2013). A escola modelar da República e a escolarização da infância no Brasil: reflexões sobre uma investigação comparada em âmbito nacional. In R. F. Souza, V. L. G. Silva & E. F. Sá (Orgs.), Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1930) (p. 19-57). Cuiabá, MT: EdUFMT. , p. 29-30).

Na gestão da professora Sandra Regina Rodrigues dos Santos, eleita para o quadriênio 1993-1997, esse conjunto de “[...] conhecimentos, competências, crenças, hábitos, valores, que constituem o que se chama precisamente de ‘conteúdo’ da educação” (Forquin, 1993Forquin, J. C. (1993). Escola e cultura:as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. , p. 10), considerado aqui como fruto de uma “[...] pedagogização das relações sociais” (Vincent et al., 2001Vincent, G., Lahire, B., & Thin, D. (2001). Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, (33), 7-47.), é sempre alguma coisa “[...] que nos precede, nos ultrapassa, nos institui enquanto sujeitos humanos [pelo que] pode-se perfeitamente dar-lhe o nome de cultura” (Forquin, 1993, p. 10), e ganhou forma escrita no projeto político- pedagógico da instituição, cuja tessitura deixou rastros da participação de vários agentes (profissionais, alunos, pais); participação dos organismos representativos da escola que objetivaram “[...] a descentralização administrativa e a formulação das diretrizes gerais para a política de educação que iremos desenvolver” (COLUN, 1994Colégio Universitário [COLUN]. (1994). Projeto político pedagógico. , p. 4). Dessa forma é possível relacionar o conteúdo dessa proposta pedagógica com o artigo 15 da Lei nº 9.394Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (1996). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Imprensa Nacional ., de 20 de dezembro de 1996, que concede autonomia pedagógica e administrativa às instituições escolares da rede pública (Lei nº 9.394, 1996Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (1996). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Imprensa Nacional .), mostrando que aos processos de escolarização, correspondem projetos político-sociais (Faria Filho, 2000Faria Filho, L. M. (2000). Instrução elementar no século XIX. In E. M. T. Lopes, L. M. Faria Filho & C. G. Veiga (Orgs.), 500 anos de educação no Brasil (p. 135-149). Belo Horizonte, MG: Autêntica. ).

Considerações finais

O Colégio Universitário transferido para a Vila Palmeira no bojo de um movimento de modernização do ensino de primeiro e segundo graus construiu sua identidade na periferia de São Luís por meio de embates que envolviam numerosos agentes sociais; rede de relações de poder estabelecida em torno desta instituição singular, cuja cultura escolar se fez única pelo recorte dos aspectos culturais da sociedade que mais lhe interessaram: bricolagem formada pelos saberes acadêmicos, profissionais e comunitários.

Assim, é possível partir do pressuposto de que a cultura escolar produzida pelo Colégio Universitário na Vila Palmeira seria originária do embate entre as ações da Universidade Federal do Maranhão e as práticas docentes, discentes e comunitárias ocorridas naquele espaço escolar, percebendo-se que houve a preservação de algumas práticas que foram mais valorizadas e adaptadas pela comunidade escolar e tornaram-se permanentes. Além do estágio supervisionado dos estudantes da UFMA, os Conselhos Escolares (Conselho de classe e Conselho diretor), o Grêmio estudantil, a Associação de pais e comunitários, as festas escolares, os jogos escolares e as feiras de ciências, por exemplo, são características marcantes dessa cultura e estão na base da identidade deste estabelecimento.

Desse modo, a ação educativa do colégio consolidou a sua influência sobre numerosos agentes sociais, aumentando a disputa pelo direito de matrícula como forma de ter acesso aos bens culturais que possibilitariam a aquisição de capital escolar a indivíduos mantidos à margem desse consumo e em posição desvantajosa no mercado de bens simbólicos. Situação social e cultural que não parece ter interferido negativamente no ingresso, permanência e formação deste público na instituição; etapas que por eles foram conquistadas e consideradas por nós como o produto das diversas táticas de apropriação em uso na busca do sucesso escolar e, de considerar-se o ensino neste Colégio de Aplicação um instrumento de inserção e ascensão social como marca de um processo de emancipação contínua via educação.

Referências

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  • 1
    O Colégio Universitário funcionou na Vila Palmeira até o ano de 2006, quando foi transferido para a cidade universitária dom Delgado, no Bacanga; onde, atualmente, está localizada sua sede.
  • 2
    Pseudônimo que usamos para identificar um dos nossos entrevistados que optou pelo anonimato.
  • Como citar este artigo: Castellanos, S. L. V., & Oliveira, W. R. A cultura escolar democrática no Colégio Universitário da UFMA (1980-1995). (2021). Revista Brasileira de História da Educação, 21. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v21.2021.e160.

Editado por

Editor-associado responsável: Cláudia Engler Cury (UFPB) E-mail: claudiaenglercury73@gmail.com http://orcid.org/0000-0003-2540-2949

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2020
  • Aceito
    03 Nov 2020
  • Publicado
    22 Jan 2021
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