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Leucemia Mielocítica Aguda da infância e adolescência: fracassos e vitórias

Acute Myeloid Leukemia of children and teenagers: disappointments and conquests

EDITORIAIS

Leucemia Mielocítica Aguda da infância e adolescência — fracassos e vitórias

Acute Myeloid Leukemia of children and teenagers — disappointments and conquests

Waldir V. Pereira

Prof. Titular da Disciplina de Hematologia-Oncologia. Universidade Federal de Santa Maria

Correspondência Correspondência: Waldir V. Pereira Av. Roraima, 1000 — Cidade Universitária — Bairro Camobi 97105-900 — Santa Maria, RS — Brasil Tel.: (55) 3220-8554 E-mail: oncohema@husmufsm.br

Há cerca de três décadas, a Leucemia Mielocítica Aguda (LMA) em crianças e adultos era considerada uma doença incurável. Inicialmente, com a introdução dos quimioterápicos citosina arabinoside (ARA-C) e os antracíclicos, surgiram casos de remissão completa, sobrevida longa e possível cura.1 Embora estes sucessos fossem esporádicos, quebrava-se o paradigma da incurabilidade e nascia uma era de esperança.

A organização de grupos cooperativos para o tratamento experimental desta doença teve influência definitiva nos resultados animadores que hoje alcançamos. Como em outras áreas da terapêutica oncológica começamos a dispor dos fármacos mais importantes para tratar a LMA: a ARA-C e os antracíclicos já nos anos 1970. Não sabíamos, porém, a melhor maneira de usá-los. Durante alguns anos, apesar de tê-los ao nosso alcance, muitas vidas foram perdidas até que estudos, na maioria prospectivos, nos conduziram a melhores maneiras de manejá-las. Até hoje continuam sendo a espinha dorsal do tratamento da LMA. Atualmente, em torno de metade destes pacientes podem ser curados quando encaminhados, em tempo apropriado, a centros de excelência para o tratamento desta doença.

Foi, sem dúvida, uma grande conquista, mas continua sendo um grande desafio avançar com a pesquisa básica e clínica para resgatar a outra metade. É por este motivo que os tratamentos devem, em grande parte das vezes, ser associados a grupos de investigadores experientes e instituições com capacidade de suporte para sustentar a operacionalização destes estudos cooperativos. Ainda com os meios hoje disponíveis, há controvérsias de qual a maneira mais apropriada de tratar a LMA. O fato de metade, ou mais, dos pacientes não alcançarem a cura, o tratamento deve ainda ser considerado em fase investigacional. As dúvidas se estendem tanto ao tratamento de indução de remissão como o de pós-remissão.

Algumas questões podem ser postas:

Qual a intensidade da indução? Sabe-se hoje que a associação ARA-C + antracíclico pode gerar remissão completa em 70% a mais de 80% dos pacientes. É uma fase de tratamento de grande morbidade em que devem ser bem pesados os ganhos e as perdas resultantes da maior ou menor intensidade do tratamento.

A duração de sete a dez dias consecutivos com ARA-C e mais de três com antracíclicos talvez não eleve expressivamente os índices de remissão. A grande questão é se um tratamento mais intensivo com a adição de outros fármacos, elevando doses, ou comprimindo o espaço de tempo entre os ciclos iniciais de quimioterapia, resultaria em maior redução da Doença Residual Mínima (DRM) e eventual elevação do índice de cura. Um estudo do Grupo CCG Protocolo 2891 revelou que os índices de sobrevida global eram superiores com a indução intensiva, baseada em intervalo curto e fixo entre os dois ciclos de indução, em vez de intervalos com duração suficiente para recuperação medular.2 No entanto, a mortalidade relacionada ao tratamento inicial foi elevada. Também no grupo nórdico (NOPHO), a mortalidade foi considerada inaceitável no protocolo NOPHO 88, quando, no ciclo de quimioterapia subseqüente ao primeiro, não era esperada a recuperação da medula óssea. Tendo como mudança essencial o prolongamento deste intervalo, no protocolo seguinte, NOPHO 93, houve redução da mortalidade e melhor sobrevida global.3 De qualquer maneira, nesta fase do tratamento deve-se levar o paciente a uma intensa hipoplasia medular. Regimes de pequena intensidade com doses convencionais de ARA-C e daunorrubicina (5+3) são de eficácia menor. Em vários regimes de indução atuais são acrescentados a thioguanina e/ou etoposide. Em um estudo brasileiro desenvolvido com o SJCRH foi adicionado clordeoxiadenosina (2 CDA) como janela terapêutica.4 Também o uso de altas doses de ARA-C é objeto de estudos cooperativos.

Tratamento Pós-Remissão

A quase totalidade dos pacientes recidiva se não for dada continuidade ao tratamento pós-remissão. Entre as questões que surgem para esta fase, está a de como devem ser conduzidos os casos com doadores aparentados idênticos.

Vários estudos têm demonstrado melhores índices de sobrevida global para os que se submetem ao transplante medular ou dispõem de doador idêntico aparentado. A impossibilidade de proceder uma randomização gera uma série de viezes de difícil interpretação. No entanto, esta conduta tem sido discutida à luz de novas observações. Em crianças com fatores favoráveis de prognóstico como: t(8;21), inv(16), remissão após o 1º ciclo de quimioterapia t(9;11) talvez o transplante possa ser reservado para o resgate de eventual recidiva.

No último estudo do grupo BFM, o transplante de medula óssea (TMO) não demonstrou ser superior à quimioterapia. Há evidentemente casos que a indicação do TMO5 é incontestável como: mais de um ciclo para alcançar remissão, cariótipos e tipos morfológicos FAB desfavoráveis e LMA secundária.

Aliás, a estratificação em grupos de prognóstico baseados no cariótipo, resposta à indução, certos tipos morfológicos FAB: M4, M7, nível da DRM, podem de antemão definir o tratamento mais aconselhável, assim como traçar as premissas para elaboração de um Protocolo.

Os transplantes de medula óssea de doadores não aparentados, inclusive com sangue de cordão, são reservados aos casos de recidiva ou de pior prognóstico. Assim como na quimioterapia, as técnicas de TMO também têm sido aprimoradas e aumentado o seu alcance. Inclusive com a evolução do TMO haploidêntico será possível aumentar a disponibilidade de doadores.

Várias propostas de quimioterapia pós-remissão têm sido experimentadas. Embora não haja unanimidade nas opiniões, alguns aspectos de consenso têm sido observados na maioria dos estudos prospectivos, como a intensidade do tratamento que deve ser maior que a da indução. Quimioterapia branda e prolongada por tempo aproximado de até dois anos parece ser ineficiente. As recidivas durante esta fase são freqüentes. Mesmo quando usada após períodos de intensificação ou consolidação, a sobrevida global não é superior e, por vezes, inferior à observada em regimes idênticos sem complementação com a "manutenção". Entretanto, nos estudos do grupo BFM, que se situam entre os que apresentam os melhores índices de sobrevida global, a manutenção continua sendo usada.

Uma das abordagens do tratamento pós-remissão é a aplicação de pares ou grupos de drogas de forma seqüencial, procurando evitar os fármacos com toxicidade superponível e com mecanismos de resistência semelhante. Desta maneira, a população de células leucêmicas residuais ficaria exposta a um efeito farmacodinâmico mais eficaz. Os resultados com estes regimes têm variado. No protocolo VAPA, 70% dos pacientes alcançaram remissão e, destes, 56% permaneceram em remissão contínua completa.6 Já no estudo desenvolvido no SJCRH usando pares de drogas de maneira intensiva, os índices de sobrevida observados foram mais baixos.7 Apesar destes protocolos constarem de blocos seqüenciais de quimioterápicos com as características anteriormente observadas, o conteúdo, intensidade e duração do tratamento não são comparáveis. A hipótese de reduzir o risco de resistência cruzada às drogas com um número maior de fármacos pode também resultar em detrimento de drogas mais efetivas que passam a ser usadas em quantidades expressivamente menores, ou seja, o espaço para seu uso seria reduzido, devido à mielosupressão causada por quimioterápicos de eficácia eventualmente menor.

As altas doses de ARA-C vêm se impondo em vários regimes e é objeto de muitos estudos prospectivos. As LMA's com alterações de cariótipo que envolve o (Core Binding Factor) de transcrição, parecem ser mais suscetíveis a esta modalidade terapêutica. Da mesma forma, as LMA's dos pacientes com Síndrome de Down. Há especulações com relação à LMA com t(9;11). Quantitativamente, a ARA-C talvez seja a droga com maior amplitude de dosagens com variação ponderal superior a 30 vezes nos diferentes regimes propostos. Enquanto no protocolo MRC 10 a dose individual preconizada é de 1g/m2 em vários outros estudos atinge até 3 g/m2.3,8 O número ideal de ciclos pós-remissão também não está bem estabelecido e certamente depende das drogas usadas e da intensidade do tratamento. No protocolo MRC 12 há uma randomização entre 4 e 5 ciclos.9 O resultado deste estudo poderá auxiliar no esclarecimento desta questão.

Enquanto se busca alcançar maiores índices de cura da LMA, na Leucemia Promielocítica Aguda (LPMA) e na LMA, nos pacientes com Síndrome de Down procura-se com o mesmo interesse reduzir a morbidade. O apogeu da investigação clínica na LPMA já pode ser comemorado. Índices de até 90% de sobrevida livre de eventos e eventual cura já têm sido alcançados.10 Isto com a colaboração de drogas ablativas e não ablativas — antracíclicos e ácido transretinóico respectivamente, nem sempre associados a ARA-C e a outros quimioterápicos. Estes resultados são ainda mais animadores quando se considera a possibilidade do uso do trióxido de arsênico como agente não mieloablativo e com diferente mecanismo de resistência. Sua indicação poderá se estender além do tratamento de resgate, e vir a participar como componente de 1ª linha. Já há, inclusive, especulações sobre o tratamento desta doença sem quimioterápicos mieloablativos.

Drogas com outros mecanismos de ação, como os anticorpos anti-CD33 associados à calicheamicina, vêm sendo investigados no tratamento inicial. Vários fármacos não mieloablativos dirigidos a alvos celulares, como o receptor com atividade tirosinoquinase FLT-3.

Neste fascículo é apresentado o artigo de Zanichelli MA et al. — perspectiva para a LMA na infância após a observação de um grupo de pacientes tratados convencionalmente. Este estudo reúne 43 crianças recrutados no Hospital Sírio Libanês e Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo. Visto a baixa incidência desta doença, estimada em torno de 400 pacientes anuais no Brasil, o número de casos é expressivo para a análise dos resultados de um Protocolo desenvolvido nestas duas Instituições.

O regime proposto consta de uma indução com daunorrubicina e ARA-C durante um período convencional. Adicionalmente foi incluída a vincristina e a dexametasona, que têm maior especificidade para a Leucemia Linfocítica Aguda (LLA), mas também têm sido incluídas em outros protocolos para LMA, entre os quais BFM 78 - 83, CCG 2891 e outros. Embora não se tenham evidências concretas da participação favorável destes fármacos nestas leucemias, há, pelo menos, relatos bem avaliados da sua ação em casos de LMA com alguns marcadores linfóides associados, que facilitam a remissão tanto de pacientes refratários ao tratamento convencional como recidivados.11

No tratamento pós-remissão foram incluídas seis doses elevadas de ARA-C de 1,5g/m2 alternadamente com blocos de outras drogas em doses convencionais: ciclofosfamida + etoposide e daunorrubicina, ARA-C, vincristina e dexametasona durante um período de 60 semanas. Este regime pode ser considerado de intensidade expressiva, principalmente pela inclusão de doses elevadas de ARA-C dentro de níveis ainda hoje usados.

Na casuística apresentada, além dos fatores de mau prognóstico que foram relevantes na análise univariada — contagem leucocitária, classificação FAB e número de ciclos necessários para induzir remissão — deve ser acrescido um número considerável de pacientes classificados como FAB M4 (25%) e M7 (28%) considerados também como de evolução desfavorável.

Devido a este estudo ter sido desenvolvido na era pré- ATRA, os pacientes com LPMA que representavam 14% dos casos tiveram uma evolução desfavorável que pesa negativamente nos resultados globais. A sobrevida livre de eventos de 24 ± 7% e global de 34 ± 7% rivaliza com os melhores resultados alcançados pela geração de Protocolos da época dirigidos pelos grupos cooperativos internacionais mais representativos.7,12 É relevante salientar a qualidade do tratamento de suporte para atingir estes resultados.

Devido à grande morbidade destes tratamentos, a comparação de resultados entre instituições que usam o mesmo regime terapêutico é muitas vezes significativamente diferente, mesmo em países desenvolvidos. Além das condições hospitalares, o treinamento e a experiência da equipe multidisciplinar têm grande impacto na obtenção de melhores índices de cura com menor morbidade.

A implementação de um protocolo brasileiro para o tratamento da LMA na infância e adolescência permitirá o recrutamento de um maior número de pacientes, o que facilitará o disciplinamento do diagnóstico, análises de ínterim freqüentes, consultoria e encaminhamento para instituições com os recursos essenciais para o tratamento desta doença.

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Recebido: 11/08/2006

Aceito: 14/08/2006

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.

Conflito de interesse: não declarado

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
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